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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. v.1 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Treinamento em habilidades com genitores em situação de guarda compartilhada

 

Behavioural training with parents in shared custody

 

 

Danielle Goldrajch

Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente relato de caso consiste na descrição de uma intervenção psicológica no âmbito judicial. As ações judiciais das Varas de Família, que incluem disputas de guarda e regulamentação das visitações dos genitores, freqüentemente são encaminhadas para uma avaliação psicológica, que apresenta um laudo com uma sugestão técnica para o litígio. No presente caso, os genitores disputavam a guarda da filha de quatro anos, que residia a cada semana na casa de um deles. Estes se comunicavam de forma marcadamente hostil e seu relacionamento era de intensa agressividade, impossibilitando uma eficaz troca de informações, o que gerava descontinuidade nos cuidados fornecidos à criança. Após a entrega do laudo, foi determinado um acompanhamento psicológico com o objetivo de realizar um treinamento de habilidades de comunicação, assim como de coordenação das orientações fornecidas à filha, visando a garantir a continuidade de cuidados e a proteção integral à criança. O acompanhamento resultou em melhora na qualidade de comunicação e colaboração nos cuidados à criança e na elaboração de um acordo judicial entre os genitores.

Palavras-chaves: Guarda compartilhada, Técnicas cognitivo-comportamentais, Psicologia jurídica.


ABSTRACT

The case describes a psychological assessment followed by a six month behavioral training with parents in a shared custody situation. The child was four years old and was living with both parents, each week with one of them in a different home. The parents’ relationship was remarkably aggressive and there was lack of communication abilities between them, leading to discontinuity of adequate care for the child. The purpose of the behavioral training was to improve those communication abilities, preparing parents to coordinate their efforts in an effective joint custody.

Keywords: Shared custody, Cognitive-behavioral techniques, Law and psychology.


 

 

Introdução

O presente relato de caso consiste na descrição dos procedimentos utilizados ao longo de uma perícia psicológica determinada judicialmente. As ações judiciais das Varas de Família, que incluem ações como as de Posse e Guarda e também de Regulamentação de Visitas, freqüentemente trazem determinações judiciais para a realização de perícias sociais e psicológicas. Isso ocorre porque tais demandas dizem respeito a crianças e adolescentes que não são mais cuidados por ambos os genitores na vigência de uma união. Ou seja, após a dissolução da união, geralmente um dos genitores passa a morar com a(s) criança(s) e gerenciar todos ou quase todos os aspectos da vida do(s) filho(s). O convívio com o genitor não detentor da guarda ocorre nos dias das visitas, que tem sua periodicidade determinada caso a caso, mas que, geralmente, se constitui em finais de semana quinzenais, às vezes, acrescidos de uma tarde ou noite em cada semana, além de divisões especiais a serem determinadas em certas datas, como em datas festivas, aniversários e férias escolares. A visitação pode ocorrer com ou sem pernoite, o que também é decidido de acordo com as peculiaridades de cada caso.

 

A Avaliação Psicológica

A perícia psicológica consiste em uma avaliação psicológica que se baseia na leitura dos autos, na realização de entrevistas individuais e, em alguns casos, conjuntas, com as partes, na coleta de dados institucionais (escola, outros profissionais de saúde), quando necessário, na eventual utilização de testes psicológicos e no encaminhamento para avaliações complementares por outros profissionais, em certos casos. As entrevistas com as crianças geralmente ocorrem em uma sala especial, com brinquedos, jogos e material gráfico, de forma que os dados observados na interação lúdica possam complementar os dados provenientes de verbalização.

Os aspectos investigados na avaliação psicológica incluem: a dinâmica familiar anterior à separação, os motivos que levaram à separação, a interação atual dos ex-cônjuges, a interação de cada genitor com a criança antes, ao longo e depois da separação, assim como as características da personalidade dos genitores e, a eventual necessidade de encaminhamento para avaliação psiquiátrica de ambos ou de um dos genitores.

A avaliação da criança é feita através de entrevistas individuais e/ou conjuntas com genitores ou irmãos, nas quais é investigado seu desenvolvimento cognitivo e emocional de acordo com sua faixa etária, assim como analisadas as características de sua personalidade e a eventual necessidade de avaliação complementar de natureza psiquiátrica, neurológica, fonoaudiológica ou de outro profissional de saúde. A interação da criança com seus genitores (ou com aqueles cuidadores que estão pleiteando a guarda ou a visitação) é observada em entrevistas conjuntas com os mesmos, onde são considerados os aspectos verbalizados assim como a observação comportamental, que inclui aspectos não-verbais, como postura corporal, proximidade e gestos carinhosos ou hostis, por exemplo.

 

O Laudo de Avaliação Psicológica

Todos os dados coletados ao longo da avaliação, que incluem as informações provenientes do laudo social, da leitura dos autos, do contato com outras instituições, de avaliações complementares, das entrevistas psicológicas e das observações comportamentais são considerados na realização do laudo psicológico. Este apresenta uma análise do caso, onde são expostos os conflitos interpessoais (entre os membros da família) e intrapessoais (relativos ao indivíduo) relacionados ao litígio judicial e as implicações psicológicas das alternativas de guarda e visitação.

Na conclusão, é apresentada uma sugestão a partir dos dados obtidos e das possíveis implicações psicológicas das alternativas de guarda e visitação pleiteadas na ação judicial. Há casos em que acordos são alcançados ao longo da perícia, de forma que o mesmo é redigido no laudo. Em outros casos, a conclusão do laudo pode sugerir um acompanhamento psicológico temporário para a criança e/ou seus genitores. Uma das possibilidades da sugestão desse acompanhamento ocorre quando é vislumbrada a possibilidade de um desfecho consensual a partir de um trabalho psicológico mais extenso com as partes. O desfecho consensual evita a perpetuação do litígio e suas conseqüências psicológicas negativas para as crianças e adolescentes envolvidos. Os procedimentos utilizados ao longo do acompanhamento são delineados de acordo com as necessidades de cada caso.

 

Relato do Caso

No presente artigo, são descritos os procedimentos utilizados em um acompanhamento psicológico determinado judicialmente. Os nomes das pessoas, datas, localidades e detalhes pessoais foram omitidos ou alterados visando a preservar suas identidades.

No momento em que o processo chegou para a perícia, a situação era a seguinte: a genitora havia ajuizado, dois anos antes, uma ação de Posse e Guarda em relação a sua filha de dois anos de idade. A genitora relatou que se separou do genitor, pois “soube que este tinha um relacionamento extraconjugal”, afirmando também que levou sua filha ao sair da casa do casal. O genitor, por sua vez, disse que a “genitora desejou finalizar o casamento porque queria ter uma ‘vida de solteira’ e que havia deixado a filha com ele até que ela se estabelecesse em nova residência”, de forma que as informações provenientes dos genitores eram divergentes. Ambos afirmaram que, quando a criança já estava morando com a mãe, passaram a ocorrer diversas intercorrências policiais, ora o genitor se queixando de ameaça e agressão por parte da genitora, ora a genitora é que relatava ter sido vítima de agressões físicas e verbais, tendo inclusive anexado, ao processo, os boletins de ocorrência policial . Afirmaram que essas agressões eram provenientes da falta de entendimento acerca da guarda e visitação da filha.

A genitora disse que, ao longo do ano em que a filha estava com três para quatro anos, ela concordou que a criança residisse uma semana na casa do genitor e outra semana em sua casa, de forma que os genitores passaram a ficar com a filha pela mesma quantidade de tempo, o que fez com que as agressões diminuíssem. Ambos relataram que faziam “a troca” de residência na própria escola, pois não conseguiam nem se encontrar sem que houvesse sentimentos de mal-estar e hostilidade. Sendo assim, a criança era levada para a escola na segunda-feira e quem buscava era o outro genitor. Este ficava com a criança ao longo daquela semana e a levava na segunda-feira seguinte para nova “troca”. No entanto, os genitores estavam insatisfeitos com a alternância das residências, por motivos que serão abordados adiante, e estavam pleiteando a guarda da filha.

Diante da demanda da ação ajuizada, ou seja, Posse e Guarda, foram colhidos os dados acerca de qual dos genitores seria mais apto a cuidar da filha. Os dados levaram à conclusão de que tanto o genitor assim como a genitora tinham desejo, capacidade, e disponibilidade para exercer a guarda da criança. Por outro lado, a criança relatava e demonstrava desejar e precisar da presença de ambos, afirmando que queria continuar a “ter duas casas e passar uma semana lá e outra cá”. Nas entrevistas conjuntas da criança com cada um dos genitores, a criança demonstrou sentir afeto e apego por ambos. Foi observada também uma adequação cognitiva e psíquica para sua faixa etária, além de marcante inteligência e eloqüência por parte da criança, agora com quatro anos.

Cabe assinalar outros dados obtidos: O genitor demonstrou maior poder aquisitivo e contar com o apoio da avó paterna para cuidar da criança, enquanto a genitora relatou dificuldades financeiras e afirmou contar com o apoio de diversos parentes. Foi observado que a genitora valorizava a presença do pai para a filha, reconhecendo sua importância e desejando que o contato da criança com o genitor se mantivesse de uma forma ampla, pois segundo ela “a filha era apaixonada pelo pai”. Quanto ao genitor, este relatava que “os cuidados prestados pela genitora à filha não eram suficientes nem adequados e que não existia um afeto intenso entre mãe e filha”, não considerando a importância da genitora para a criança.

Um dado relevante consistiu na investigação da condução dos tratamentos médicos da criança. Foi relatada, pelos genitores, uma ocasião em que, pelo fato de um deles não concordar com um tratamento médico prescrito, descontinuou o referido tratamento na semana em que estava com a criança. Além disso, foi relatado que determinadas orientações escolares, que foram transmitidas para um dos genitores, não foram comunicadas por este ao outro genitor, gerando prejuízos na continuidade da orientação pedagógica.

 

A Decisão Judicial

O laudo de avaliação psicológica apresentou a situação, enfatizando a disponibilidade e capacidade dos genitores e o desejo da criança de permanecer alternando semanalmente as residências, porém assinalou que faltavam algumas habilidades dos genitores para que essa situação não gerasse danos à criança. Foi apontada a necessidade de continuidade de tratamentos médicos e orientações escolares, assim como a importância da valorização pelos genitores, da presença do outro genitor, construindo assim, uma continuidade afetiva e de orientações para a criança.

Diante do conteúdo do laudo, a decisão do juiz determinou a manutenção temporária da alternância das residências, ao lado da determinação de acompanhamento psicológico para os genitores por um período mínimo de seis meses, visto que diante dos dados da avaliação psicológica e social, o magistrado não considerou apropriado que a criança fosse retirada do amplo convívio com a genitora nem com o genitor, porém, na medida em que foram assinalados aspectos prejudiciais para a criança, determinou um acompanhamento psicológico visando a sanar esses aspectos.

 

O Acompanhamento Psicológico

Os genitores demonstraram insatisfação com a decisão judicial, pois não consideravam possível uma modificação no padrão de relacionamento entre eles, além de desejarem resolver rapidamente a questão da guarda, sem ter de alterná-la com o outro genitor, sendo que ambos acreditavam que ganhariam a disputa. É importante assinalar que as intervenções psicológicas, provenientes de determinações judiciais, possuem um caráter coercitivo, podendo gerar uma atitude negativa proveniente das partes envolvidas no processo. Podem considerar o acompanhamento psicológico obrigatório como desnecessário, de forma que o comparecimento aos encontros pode estar sendo visto como algo desagradável e possivelmente inócuo. Cabe, ao psicólogo, abordar as crenças, atitudes e emoções relacionadas ao acompanhamento. Essa abordagem inicial busca a criação de um vínculo empático e acolhedor, onde as partes estarão sendo ouvidas e compreendidas em sua totalidade, facilitando a exposição autêntica e a colaboração por parte das mesmas. A abordagem da atitude negativa inicial e sua reestruturação fazem parte de uma eficaz estratégia de motivação para o engajamento no acompanhamento psicológico, em especial, quando este provém de uma determinação judicial ou possui, de alguma forma, um caráter coercitivo.

O acompanhamento psicológico foi iniciado na semana seguinte à audiência, através de entrevistas individuais com os genitores. Nessas entrevistas, foram abordadas, individualmente, as crenças, atitudes e emoções em relação à determinação judicial; discutidos os prós e contras de uma guarda compartilhada e também o motivo pelo qual cada um deles se considerava melhor guardião do que o outro genitor. Foi conversado sobre o que seria melhor para a filha, refletindo sobre a ligação afetiva da criança com ambos os genitores e a expressão da criança acerca do seu desejo de permanecer tendo um amplo convívio com ambos. A presença e o afeto de cada um dos genitores foram valorizados, buscando motivá-los para uma expressão pessoal autêntica e para construção de novas formas de relacionamento e comunicação, assinalando que uma convivência respeitosa e positiva para a criança e para eles próprios só seria possível através do empenho dos dois e a orientação psicológica poderia oferecer um auxílio no alcance desta meta. Também foram abordados com cada um dos genitores quais aspectos gostariam que fossem diferentes no relacionamento com o outro genitor e em relação ao gerenciamento conjunto da guarda, como será descrito adiante.

Após o estabelecimento de uma boa comunicação da psicóloga com cada um dos genitores e da análise de suas expectativas e desejos em relação à guarda e também acerca de quais aspectos consideravam deficitários em relação a uma guarda compartilhada, foram iniciadas as entrevistas conjuntas. As entrevistas iniciais tinham uma periodicidade semanal, o que foi sendo expandido ao longo do acompanhamento, chegando, nos últimos dois meses do acompanhamento psicológico a uma entrevista conjunta mensal.

Nas entrevistas conjuntas, inicialmente os genitores se mantiveram arredios e hostis. Foi solicitado que cada um expusesse ao outro como estava se sentindo diante da situação atual da alternância das residências e suas expectativas em relação ao futuro. Diante de um discurso de natureza hostil, que misturava mágoas do passado, ofensas pessoais, descontentamento com atitudes do ex-cônjuge, o trabalho inicial consistiu em construir uma forma de diálogo objetivo, focalizado em um objetivo comum. Visando à construção desse objetivo comum, foi feita uma reflexão acerca das alternativas à guarda compartilhada, ou seja, uma guarda única de forma que um dos genitores teria o tempo de convívio com a criança bastante reduzido e participaria menos nas decisões relativas à vida da filha. A genitora também afirmou que a criança iria sentir muita falta do pai, caso ela detivesse a guarda isoladamente.

Diante das colocações feitas pela genitora, tendo o genitor a possibilidade de tentar estabelecer a guarda compartilhada em vez de visitações esporádicas (no caso de a guarda ser deferida à genitora) e tendo a genitora valorizando o convívio amplo da criança com o genitor, ambos chegaram a conclusão de que seria benéfica a tentativa de trabalhar para que a alternância de residências se desse em um ambiente de cooperação, continuidade e tranqüilidade para a criança, deixando de ser uma guarda alternada para se tornar uma efetiva guarda compartilhada. No entanto, os genitores ainda manifestavam a descrença em uma possível modificação tanto dos conflitos interpessoais assim como da falta de cooperação quanto aos cuidados com a filha.

Foi solicitado, então, que ambos fizessem, em casa, uma lista com tudo o que eles pudessem se lembrar acerca de o que gerava insatisfação na situação atual de compartilhamento do tempo semanalmente e também no que se referia à administração dos cuidados conjuntos prestados à criança e trouxessem a lista no encontro seguinte.

Os aspectos assinalados foram:

1- Ambos assinalaram a falta de respeito ao lidar com o outro genitor.

2- A genitora assinalou que o genitor não valorizava o papel da mãe para a criança.

3- A genitora também se queixou de não ter acesso à filha quando ela estava na casa do pai, nem por telefone e muito menos poder freqüentar a casa do genitor e falar com os parentes da família do genitor.

4- O genitor relatou não concordar com procedimentos, atitudes ou cuidados prestados à criança pela genitora. A genitora, por sua vez, também relatou não concordar com determinados procedimentos adotados pelo genitor em relação à filha.

5- Os genitores não concordavam com a divisão das atribuições quanto à pensão alimentícia.

Nos encontros seguintes, quase que ambos desistiram da tentativa de buscar a guarda compartilhada, pois conforme cada um falava sobre os seus descontentamentos, o outro interpretava aquela fala como uma ofensa pessoal e tendia a responder de forma também ofensiva, em uma espiral crescente de hostilidade. Foram necessárias a modelação e a reestruturação cognitiva. Esta buscou construir uma nova forma de interpretar as afirmações do outro, vendo-as de forma objetiva e não pessoal, seguida da modelação para se construir uma nova forma de diálogo, a partir de instruções e exemplos da psicóloga. Essas instruções envolveram desde conseguir esperar a sua vez de falar, sem interromper o outro, assim como enumerar, objetivamente, quais situações estavam gerando descontentamento e o que se pretendia buscar como alternativa a essas situações, sem que o discurso se tornasse ofensivo.

Foi utilizada a fórmula “XYZ”, de Haim Ginott (Goleman, 1995, p.160), que significa a tradução de uma comunicação de caráter hostil, baseada em ofensas pessoais, para a seguinte estrutura objetiva: “Quando você me fez X, me fez sentir Y e eu preferia que você, em vez disso, fizesse Z”. Sendo assim, para as insatisfações assinaladas, foram sendo construídas alternativas satisfatórias a partir da reflexão conjunta. Por exemplo, em vez de se estacionar a comunicação na queixa de que o genitor não valorizava o contato com a genitora e em como esta se sentia menosprezada, foram construídas e adotadas novas alternativas comportamentais. Como exemplos dessas alternativas, pode-se citar que o genitor passou a incentivar a filha a ligar para a genitora, na semana em que a filha estava em sua residência; além de incentivar a filha a cumprimentar a mãe na porta da escola, quando ambos os genitores lá estivessem; e também o próprio genitor passou a cumprimentar e conversar com a mãe, sendo observado pela filha.

Ao longo das entrevistas conjuntas com os genitores, foram feitas algumas entrevistas individuais com a criança, para investigar a repercussão que as transformações familiares foram gerando. A criança se mostrou animada, falante e desinibida e os genitores relataram que a criança estava mais carinhosa e que chegou a comentar com uma colega, com uma expressão feliz, que os seus pais estavam conversando um com o outro. Contaram também que a filha estava se sentindo tranqüila ao conversar com um e depois com outro, sem constrangimentos, quando ambos estavam em um mesmo lugar e demonstrava felicidade com a nova situação.

Outro procedimento adotado nas entrevistas conjuntas com os genitores foi a propositura de tarefas para serem realizadas no período entre os encontros. Estas tarefas foram construídas conjuntamente com os genitores, a partir da “lista de insatisfações”. A tarefa inicial consistiu na realização mínima de um telefonema por semana, entre os genitores, contando ao outro como foi o período em que a criança esteve em sua residência, focalizando aspectos de saúde e escolares, entre outros, além de incentivar que a criança falasse com o outro genitor pelo telefone, como já citado anteriormente.

A partir dessa tarefa e da melhora da comunicação, outras transformações foram se seguindo e, a cada encontro, os genitores relatavam mais entrosamento entre as ações e tranqüilidade na administração conjunta das tarefas cotidianas da criança. A criança passou a, eventualmente, almoçar na casa de um dos genitores, mesmo na semana em que estava na casa do outro, ou simplesmente ir visitar o outro genitor, se sentisse saudades naquela semana, podendo levar também suas colegas para a casa do outro genitor.

No quarto mês de acompanhamento psicológico, o genitor convidou a genitora e sua família para uma festa de aniversário, que estava fazendo para a filha, em sua residência. É possível notar que esse convite, por parte do genitor, mostrou uma valorização da presença materna para a criança e a abertura do contato da genitora com a nova família do genitor, o que havia sido um dos aspectos assinalados pela genitora na “lista de insatisfações”.

No encontro seguinte à festa, os genitores chegaram juntos, sorrindo, dizendo que estavam “se entendendo muito bem” e que agora “eram amigos”. Relataram que conseguiram conversar sobre as questões da pensão alimentícia, tendo os genitores acordado que, devido à condição financeira privilegiada do genitor, este se responsabilizaria por determinados encargos financeiros mesmo quando a filha estivesse na residência materna.

Foram feitos ainda dois encontros onde, através dos relatos dos fatos recentes, houve a ênfase nas interações positivas e nos exemplos de comunicação eficaz direcionada à continuidade dos cuidados prestados à filha. Foi clarificada a necessidade da continuação dessa postura para o bem estar da criança.

 

Conclusão

Inicialmente, é importante destacar que as técnicas utilizadas ao longo do acompanhamento psicológico são descritas de forma pormenorizada na bibliografia sobre o tema, sendo aqui apenas mencionadas. Quanto à nomenclatura “Guarda Compartilhada”, cabe assinalar que, no presente artigo, está sendo considerada como uma cooperação integral entre os genitores de uma ou mais crianças de forma a fornecer a esta(s) o maior convívio possível com pai e mãe. A forma de divisão do tempo no qual a(s) criança(s) fica(m) com cada um dos genitores, ou se há um local único onde a(s) criança(s) mora(m) ou duas residências, pode variar, dependendo das atividades e da organização escolar da(s) criança(s) e da organização cotidiana dos genitores, entre outras situações particulares a cada caso. O fator importante é a cooperação integral nas decisões acerca da vida da(s) criança(s) e a amplitude do contato da(s) criança(s) com mãe e pai, de forma que possa(m) desfrutar da proximidade, do afeto e da orientação de ambos os genitores, garantindo o direito de ampla convivência familiar, em ambiente saudável, tendo sempre como objetivo o melhor interesse da(s) criança(s).

Assinalo ainda que, em geral, no meio jurídico, se tem considerado que somente a(s) criança(s) cujos pais têm, naturalmente, um bom relacionamento entre si e que adotam espontaneamente uma guarda compartilhada, é que pode(m) efetivamente usufruir os benefícios de manter um amplo e importante contato com ambos os genitores. Esse entendimento é baseado no fato de que, diante de uma impossibilidade de comunicação e cooperação, surge a prejudicial falta de continuidade nos cuidados e orientações fornecidos à(s) criança(s).

Nesse sentido, apresento a hipótese de que, em alguns casos, os conflitos entre genitores podem ser compreendidos como a falta de habilidades específicas para a comunicação e para o gerenciamento da cooperação nos diferentes aspectos vitais da(s) criança(s). Seguindo essa hipótese, havendo capacidade e disponibilidade de os genitores, individualmente, fornecerem cuidados e proteção à(s) criança(s), certos casos que seriam inviabilizados pela discórdia poderiam se tornar, através do trabalho psicológico de treinamento das habilidades de comunicação e cooperação, casos em que fosse possível efetivar, com qualidade para a(s) criança(s) e seus genitores, uma guarda compartilhada.

 

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Endereço para correspondência
Rua Raimundo Correa, 20/901 – Copacabana. CEP 2.040-040 Rio de Janeiro – RJ – E-mail: gold@infolink.com.br

Recebido em: 09/04/2005
Aceito em: 23/05/2005

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