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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. v.2 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006

 

TRIBUTO

 

 

Cristiano Nabuco de Abreu

Psicólogo Clínico, Doutor em Psicologia pela Universidade do Minho (Portugal), Mestre pela PUC/SP, S.E.I. – Universidade de York (Canadá). Coordenador da Equipe de Psicologia do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

 

 

Estou me aproximando de dois senhores e à medida que aperto o passo para alcançá-los descuido-me e os livros caem da mão. Com o barulho, um deles se vira e de maneira extremamente afável abaixa-se para ajudar-me a recolhê-los. O outro, que ainda se virava para observar, também acompanha este primeiro senhor e, em gesto semelhante, se agacha também para auxiliar.

Experimentando um misto de vergonha e profundo respeito, eu os acompanho (bem depois deles) e me abaixo também. O constrangimento que retardou minha ação se devia a vários fatores. Em parte, por estar no meio de uma centena de pessoas e “conseguir” a atenção dos dois.

Com uma reação levemente engessada, mostrei meus dentes – o que se chamaria socialmente de sorriso – e balbuciei algumas palavras que provavelmente somente eu consegui compreender no meio daquele tumulto. Na verdade, pensando agora melhor, talvez aquela forma de tensão pudesse ter sido considerada, sim, certa forma ancestral de sorriso, mas na verdade era muito mais a expressão de um sentimento que até hoje tenho dificuldades de compreender.

“Você quer ajuda, meu rapaz?” – Indaga o primeiro senhor. Balanço a cabeça para frente (duas vezes) numa tentativa de resposta enquanto o segundo senhor faz uma brincadeira comigo e com seu colega. Enquanto os três ficam agachados no chão e meu constrangimento aumenta, me diz o segundo senhor: “Meu filho, você deixou cair da mão mais de dez anos de esforços científicos.” E continuou: “Você sabia que este meu amigo aqui (apontando para o primeiro) escreveu este livro (‘Human Change Processes’), na maior parte das vezes durante a noite e em pé, tamanha era sua empolgação e seu esforço?”

Embora tenha aparentado para os dois ter entendido a brincadeira e mostrando novamente meus dentes, confesso que naquele momento eu não tinha a menor noção do que aquilo queria dizer. Talvez um jovem e ainda inseguro psicólogo de um país muito distante tivesse mesmo dificuldade em compreender o que aquilo significava.

A cena terminou na cafeteria do congresso em uma conversa que me valeu, no mínimo, dois autógrafos. O primeiro (Michael Mahoney) se tornou grande mestre e amigo e o segundo (Aaron Beck) um conhecido que jamais deixou de responder aos meus e-mails.

Este episódio marca o inicio de uma história que teve uma data para começar, mas que dificilmente terminará, pois embora Mike não esteja mais entre nós, seus ensinamentos estão em todos os lugares. Nos atendimentos, nas aulas, nos trabalhos, na Psicologia e, principalmente, na vida. Não raro ouço pessoas que nunca o conheceram parafraseá-lo, manifestando orgulho e familiaridade.

Embora sua vida tenha sido sempre marcada pela sensível dificuldade em ser compreendido pelos demais, desde os mais representativos, como Skinner, por exemplo, que francamente o desencorajou a escrever sobre a terapia cognitiva “pois ela não levaria a lugar algum”, até chegar aos profissionais menos importantes dos dias de hoje, Mike sempre foi um homem à frente de seu tempo – talvez esta tenha sido a principal razão de seu isolamento e brilhantismo.

Quem sabe agora, talvez, eu consiga entender um pouco melhor parte daquele sentimento que tive quando o conheci – sensação de difícil explicação, peculiar quando estamos na presença de pessoas de grande magnitude. Se eu pudesse prestar algum tipo de tributo a sua vida, eu diria a ele que nós, brasileiros, tivemos muito orgulho de termos sido seus amigos. Mike se vai e deixa no rastro de seu maior legado um exemplo de brilho próprio e de primeira grandeza.

Michael Mahoney
1946 - 2006

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