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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. v.2 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre pró-socialidade, resiliência e psicologia positiva1

 

Reflections about pro-sociability, resilience and positive psychology

 

 

Maria Aznar-Farias I; Nancy Ramacciotti de Oliveira-Monteiro II

I Doutora pela USP, pós-doutora pela Universidade de Valência – Espanha, professora da Universidade Católica de Santos – UNISANTOS, professora aposentada pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
II Doutora e Pós-doutora pela Universidade de São Paulo, professora da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – Campus Baixada Santista

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O presente artigo traz uma reflexão sobre pró-socialidade, resiliência e psicologia positiva, e ainda sobre desenvolvimento de jovens em territórios chamados de risco. Mostra estudos que vêm sendo desenvolvidos desde a década de 1980 sobre pró-socialidade, educação voltada para comportamentos pró-sociais e prevenção de comportamentos anti-sociais. Relaciona a pró-socialidade tanto com a psicologia evolutiva (do desenvolvimento) quanto com a psicologia social. Aponta questões críticas envolvidas no conceito da pró-socialidade (da mesma forma que o constructo da resiliência), no que tange à sua vinculação com a ideologia. Refere que no Brasil ainda não são encontrados estudos específicos sobre pró-socialidade. A resiliência é vista como uma adaptação positiva a despeito das adversidades. Faz uma breve revisão da teoria ecológica do desenvolvimento humano que valoriza os processos psicológicos em sua relação com as multi-determinações ambientais para o entendimento do desenvolvimento (além dos fatores biológicos). Apresenta ainda reflexões sobre o problema brasileiro do desenvolvimento de jovens em territórios considerados de risco. A implantação de modelos de aprendizagem em pró-socialidade, podendo atingir diferentes níveis de sistemas ecológicos, é recomendada como dispositivo para promoção da resiliência.

Palavras-chave: Pró-socialidade, Resiliência, Psicologia do desenvolvimento.


ABSTRACT

This article calls upon a reflection about pro-sociability, resilience and positive psychology, also covering the development of young people in so-called risk territories. It displays studies about pro-sociability that have been developed since 1980, as well as about education directed to pro-social behaviors and prevention of antisocial behaviors. It relates pro-sociability both to developmental and Social Psychology, pointing to critical questions involved in the concept of pro-sociability (in the same way as the construct of resilience), and its connection with ideology. It reminds us that specific studies about pro-sociability are not yet found in Brazil. Resilience is seen as a positive adaptation despite adversities. Our study makes a brief revision of the ecological theory on human development, which emphasizes the value of psychological processes in their relationships with multi-determined environments, seeking to understand the development of the person beyond the biological factors. It also presents reflections on the problems related to the development of youngsters in risk territories in Brazil. It recommends, as a mechanism for the promotion of resilience, the introduction of learning models in pro-sociability, possibly reaching different levels of ecological systems.

Keywords: Pro-sociability, Resilience, Development psychology.


 

 

Muitos dos problemas que atingem crianças e jovens brasileiros relacionam-se com a violência e a delinqüência, fenômenos psicológicos e ambientais intrincados com as dificuldades nos processos de desenvolvimento humano. A partir de uma revisão dos conceitos de pró-socialidade e de resiliência, neste artigo, são propostas algumas reflexões sobre contextos de desenvolvimento de crianças e jovens em territórios chamados de risco. A teoria ecológica do desenvolvimento humano, como uma referência da chamada psicologia positiva, também é apresentada na composição desses temas, apontando avanços para o entendimento e a possibilidade de prevenção e intervenção no desenvolvimento sadio de crianças e jovens considerados em situação de vulnerabilidade.

 

Pró-socialidade

Desde a década de 1980, estudos sobre pró-socialidade, educação voltada para comportamentos pró-sociais e prevenção de comportamentos anti-sociais vêm sendo desenvolvidos na Espanha, na Argentina e na antiga Tchecoslováquia, sob a coordenação de Roche (Roche & Sol, 1998; Roche, 2004). Esses trabalhos dão seguimento aos primeiros estudos das ciências sociais da década de 1970, voltados para os fenômenos chamados “positivos” das relações humanas, denominados condutas pró-sociais em oposição às condutas anti-sociais.

Relacionando-se tanto com a psicologia evolutiva (do desenvolvimento) quanto com a psicologia social, a pró-socialidade se propõe como um meio e uma técnica das ciências sociais para que os processos do entendimento humano, no qual intervêm elementos racionais e emocionais acompanhados de autoconsciência, permitam regular fluxos de comunicação para a facilitação desses processos. Roche (2004) vem elaborando, há mais de 20 anos, um modelo teórico e uma metodologia para desenvolvimento, aplicação, intervenção, ensino e aprendizagem, que levem à otimização da pró-socialidade em diversos âmbitos da atividade humana.

Para Roche (2004), a pró-socialidade é um sistema de pensamento orientado para a investigação, formação e difusão, na vida real, dos valores, atitudes e condutas que beneficiam outras pessoas, grupos ou metas sociais objetivamente positivas, sem que existam recompensas materiais, externas e extrínsecas. Esse sistema aumenta a probabilidade de gerar uma reciprocidade positiva de qualidade e solidariedade nas relações interpessoais ou sociais conseqüentes, com salvaguarda da identidade, da criatividade e da iniciativa dos indivíduos e dos grupos aplicados (Roche, 2004).

A pró-socialidade fica configurada como um conjunto integrado de ações e atitudes que podem voluntariamente ser exercitadas e vividas, contribuindo para a solidariedade humana, funcionando como um eixo para a reciprocidade positiva nas relações interpessoais e para o desenvolvimento do que Roche (2004) chama saúde emocional e mental.

O conceito de pró-socialidade liga-se diretamente ao conceito de valores (Gil, 1998), mas distingue-se do que chamamos “altruísmo”. A diferença desses dois constructos encontra-se na figura do “outro”. Diferente do altruísmo, a pró-socialidade inclui aceitação e comunicação pelo outro envolvido na interação, o que contribui para que o comportamento pró-social possa ser aprendido e ensinado (Roche, 2004).

A importância atual de estudos e intervenções em pró-socialidade é sua aplicabilidade como alternativa para lidar com os comportamentos chamados anti-sociais, tanto individuais como coletivos.

Há questões críticas envolvidas no conceito (da mesma forma que o constructo da resiliência), no que tange à sua vinculação com a ideologia. Nesse sentido, treinamentos em pró-socialidade podem ser considerados estratégias para uma “pedagogia” do comportamento social (e pró-social), que seria criticada como uma questão de controle social causador de submissão por parte do indivíduo. Trata-se do problema de quem é legítimo e legitimado para intervir em questões dessa natureza. O próprio Roche (2004) debate essa questão e também discute a crítica de que o treinamento (ensino/aprendizagem) em comportamentos pró-sociais possa restringir a criatividade e a espontaneidade humanas. Ele defende que o que chama desenvolvimento da “inteligência pró-social” não acarreta restrição ao indivíduo e ao grupo social; enquanto adesão voluntária, a pró-socialidade aumentaria a capacidade empática e promoveria a melhoria da auto-estima, contribuindo para o desenvolvimento integral da pessoa, e não sua opressão. (Roche, 2004).

Para ele, o aumento de ações pró-sociais produz diminuição de comportamentos violentos. Dessa forma, a pró-socialidade constitui-se num potente redutor da violência, enquanto fenômeno social, e num eficaz construtor da reciprocidade, auxiliando a consolidação de um tecido social baseado na cultura da empatia, da generosidade, do serviço, da gratuidade e da solidariedade.

Roche (2004) afirma que a pró-socialidade pode ser aprendida e ensinada. Os modelos de treinamento usados pelo autor, inicialmente voltados para crianças e jovens em situação escolar, foram depois expandidos para professores, familiares, pessoas de um bairro e situações de lazer, além de aprimorados e ajustados a situações culturais específicas.

No Brasil, ainda não são encontrados estudos específicos sobre pró-socialidade. Em língua portuguesa, trabalhos similares de Portugal sobre prevenção de conflitos em jovens encontram-se empreendidos principalmente pelo grupo da pesquisadora Margarida Matos (Matos, Simões & Carvalhosa, 2000). Os trabalhos brasileiros que mais se aproximam da temática da pró-socialidade são estudos sobre habilidades de vida, habilidades sociais e competência social (Aznar-Farias, 2000; Gorayeb, Neto & Bugliani, 2003; 2005; Koller, 2004; Bandeira & Quaglia, 2006; Bolsoni-Silva et al., 2006; Bolsoni-Silva & Marturano, 2006; Del Prette & Del Prette, 2006; Del Prette, Del Prette & Barreto, 2006; Gerk & Cunha, 2006; Pacheco & Rangé, 2006; Weber, Salvador & Brandenburg, 2006).

Esses termos — competência social, comportamentos pró-sociais, competência sociocognitiva, condutas socialmente adaptadas —, muitas vezes usados como sinônimos, pertencem aos novos esquemas chamados de modelos de competência, surgidos como resultado da ênfase na conceituação positiva de saúde, em sua doutrina da proteção e promoção de saúde.

Ao lado desses conceitos (em especial o da resiliência, a seguir considerado), a pró-socialidade também vem se tornando uma forte referência da denominada “psicologia positiva”, que, em oposição à psicologia tradicional (e sua ênfase nos aspectos psicopatológicos), focaliza situações que visam o desenvolvimento sadio e positivo, como um movimento de investigação dos aspectos potencialmente saudáveis dos seres humanos (Yunes, 2003).

 

Resiliência e Psicologia Positiva

Há uma década, a resiliência tornou-se temática de crescente interesse para muitos pesquisadores do Brasil e de outros países (Tavares, 2001). Em 1997, a Organização Pan-americana de Saúde (OPS) definiu novo marco conceitual numa agenda baseada na resiliência e na promoção de saúde e desenvolvimento humano.

Muitas publicações sobre o tema resiliência da própria OPS, iniciadas na década de 1990, em artigos sobre saúde e desenvolvimento na infância e adolescência (Grotberg, 1996; Slap, 2001), foram acompanhadas por diversas investigações brasileiras com crianças, jovens e famílias em situações de vulnerabilidade (Moraes & Rabinovich, 1996; Alvarez, Moraes & Rabinovich, 1998; Vicente, 1998; De Antoni & Koller, 2000a; 2000b; Hutz, 2002; Cecconello & Koller, 2003; Junqueira & Deslandes, 2003; Koller, 2004; Pesce, Assis, Santos & Oliveira, 2004; Pinheiro, 2004; Poletto, Wagner & Koller, 2004).

Apesar de serem diferentes os referenciais teóricos e metodológicos que baseiam os estudos mundiais sobre resiliência (Yunes, 2006), a maioria dos estudos brasileiros sobre o tema trabalha com a referência da teoria dos sistemas ecológicos do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1998) e também com a denominada psicologia positiva. A teoria dos sistemas ecológicos do desenvolvimento estuda interconexões ambientais e seu impacto sobre as forças que afetam o crescimento psicológico. A psicologia positiva, como já considerada acima, apresenta o movimento de ressaltar os aspectos positivos do desenvolvimento, indicativos de uma vida saudável. É dentre esses fenômenos considerados positivos no desenvolvimento humano que se encontra a resiliência — uma adaptação positiva a despeito das adversidades. Para Luthar (2006), investigadora destacada no estudo do tema, a resiliência abrange processos atípicos, nos quais uma adaptação positiva manifesta-se em circunstâncias da vida que conduziriam geralmente ao desajustamento.

Segundo a OPS, os enfoques de risco (centrados nos modelos de enfermidade, sintoma e naquelas características que se associam a uma elevada probabilidade de dano biológico e social) e de resiliência são complementares. O modelo da resiliência mostra que as forças negativas, expressas em termos de danos ou riscos, não encontram uma criança ou um jovem inerte no qual se estabelecerão inevitavelmente danos permanentes.

O conceito de resiliência tem importância tanto de perspectivas teóricas — dentro desse novo movimento da psicologia positiva — quanto de aplicabilidade, em especial, frente a questões de pobreza e violência das sociedades atuais.

Entretanto, o conceito é identificado como amplo, polêmico, dinâmico, e ainda está em fase de construção. Na Física e na Engenharia, chama-se resiliência a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica. Assim, por exemplo, o termo é muito referido em pesquisas da área de saúde, no âmbito da odontologia, quando se consideram as resistências e resiliências de materiais de uso em restaurações dentárias. Nas ciências sociais, o termo resiliência apareceu numa cadeia de significados relacionados ao que se chamava “invencibilidade” e/ou “invulnerabilidade”, atributo de certos indivíduos considerados mais resistentes diante de situações adversas de desenvolvimento. Nesse sentido, estavam os estudos precursores de Werner e Smith, iniciados em 1954, no Havaí (Werner & Smith, 1982) e também pesquisas com filhos de esquizofrênicos, realizadas nas décadas de 1960 e 1970, como as de Anthony e Cohler, e de Garmezy (1987; 1999 citados por Yunes, 2006).

Essa metáfora com a resistência dos materiais trouxe aspectos polêmicos referentes ao conceito, já que os materiais seriam mais ou menos resistentes, e tal comparação levaria a um enfoque mais naturalista do desenvolvimento, considerando alguns indivíduos mais resistentes do que outros, em vez de privilegiar as contingências em que tais resistências despontam.

Yunes (2006) indica que há basicamente três tipos de discursos sobre a temática, que dão diferentes pesos a aspectos individuais, processuais e críticos da resiliência.

Nas contribuições de Rutter (1985), pode ser exemplificada a evolução do conceito de resiliência, ou seja, passando de atributo individual a processo dinâmico. Na década de 1980, o conceito era referido como uma competência e adaptação da pessoa para ultrapassar, com sucesso, o estresse e a adversidade. Após 20 anos de trabalho com o tema, Rutter passa a caracterizar a resiliência como um conjunto de processos sociais e intrapsíquicos que possibilitam ter uma vida “sã” em um meio insano. Esses processos se realizariam através do tempo, com positivas combinações entre os atributos da criança e seu ambiente familiar, social e cultural (Rutter, 1985 citado por Yunes, 2006).

A importância dos fatores ambientais e processuais para a resiliência também está presente em Slap (2001), que a define a partir da interação de quatro elementos: fatores individuais, contexto ambiental, acontecimentos ao longo da vida e fatores de proteção. Esses elementos comporiam um “banco de recursos” para proteção contra danos e possibilidade de bem-estar.

Em recentes publicações da OPS (Adolescência Latinoamericana, 2001), a temática da resiliência passou a ser associada a fatores de proteção diante de condições de vulnerabilidade, através dos quais há uma mudança na resposta da pessoa, frente a uma situação de risco, em um sentido adaptativo. Os fatores de proteção moderam a relação entre os riscos e o desenvolvimento do sujeito, como influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos, operando indiretamente com seus efeitos, apenas quando houver interação com as variáveis de risco e associação à vulnerabilidade (aumento da probabilidade de um resultado negativo na presença de risco). Nesse sentido, a resiliência não está no fato de se evitarem experiências de risco, mas se compõe como um fator de proteção diante delas.

Já a crítica do conceito de resiliência refere-se a seu envolvimento com a ideologia do sucesso individual e da adaptação passiva às normas sociais, podendo a resiliência ser vista como uma capacidade desenvolvida apenas pelos mais “competentes”, e, por isso, uma característica de certa forma estigmatizadora.

Os pesquisadores brasileiros que vêm trabalhando com os modelos de resiliência, já anteriormente referidos, alertam, de diferentes maneiras, que promover a resiliência não substitui formas políticas de combate à miséria e à desigualdade social e nem representa uma conformidade e adaptação passiva diante de situações adversas de vida, como as situações de violência, por exemplo. Essa visão crítica, também presente nos maiores nomes atuais de estudo sobre o tema (como Michel Rutter), indica que replicar características dadas como “resilientes” (através da mensuração de um conjunto de traços) é negar que a resiliência possa ser contingente/provisória, imprevisível e dinâmica.

 

Desenvolvimento de crianças e jovens em territórios chamados de risco

A consideração de que o desenvolvimento humano é um produto da interação entre o organismo humano em crescimento e seu meio — quase um lugar-comum na psicologia — apresenta destaque especial em contextos ambientais de vulnerabilidade, que associam pobreza, carência de recursos culturais, territórios de violência e criminalidade. Uma questão de ordem prática que se coloca nesses casos é saber como essas condições ambientais são devidamente levadas em conta, por exemplo, em estudos e intervenções junto a crianças e jovens em situações de vulnerabilidade por prejuízos ambientais de pobreza.

Privilegiando aspectos saudáveis do desenvolvimento, estudos em ambientes naturais e focalizando a pessoa em desenvolvimento no maior número possível de ambientes, a abordagem de Bronfenbrenner (1998), em sua ecologia do desenvolvimento humano tem-se apresentado como uma opção inovadora para o trato desses desafios teóricos e metodológicos.

Segundo a teoria ecológica de Bronfenbrenner, proposta a partir da década de 70, o desenvolvimento humano relaciona-se com um conjunto de processos, pelos quais as particularidades do indivíduo e do ambiente interagem, para produzir constância e mudança nas características da pessoa no curso de sua vida. Trata-se de mudanças duradouras na maneira pela qual uma pessoa percebe e lida com seu ambiente.

Para Bronfenbrenner, o desenvolvimento irá se relacionar com competências — aquisições e desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e capacidades para conduzir e direcionar seu próprio comportamento através de situações e domínios evolutivos, tanto isoladamente como através de uma combinação entre eles (domínios: intelectual, físico, socioemocional, motivacional e artístico). As disfunções de desenvolvimento seriam manifestações recorrentes de dificuldades em manter o controle e a integração do comportamento através de situações nesses diferentes domínios.

Essas competências e disfunções emergiriam de interconexões ambientais e de seu impacto sobre as forças que afetam o crescimento psicológico, dentro do meio ambiente chamado de ecológico, que é estabelecido pela interação de quatro níveis — os sistemas: micro, meso, exo, macro (Bronfenbrenner, 1998). O sistema micro refere-se ao ambiente imediato (nas relações face a face estáveis); o sistema meso é um conjunto de microssistemas (incluindo vizinhos, parentes, escola, bairro); no exossistema, a pessoa em desenvolvimento não está presente (rede de apoio social, comunidade, trabalho), e o sistema macro inclui os valores e crenças que são assimilados no desenvolvimento.

Valorizando processos psicológicos (sistemas em que o indivíduo é apenas um dos elementos) em sua relação com essas diferentes e múltiplas determinações ambientais, a teoria ecológica acaba, assim, por sugerir diversificadas possibilidades de prevenção e intervenção junto ao desenvolvimento humano. Crianças e jovens podem ser beneficiados pelas condições favoráveis nos diferentes níveis ambientais, tanto no sistema próximo em que o sujeito está inserido, o microssistema, quanto de forma indireta, nos meso, exo e macrossistemas.

Específicas dificuldades de desenvolvimento de crianças e jovens que vivem em territórios chamados de risco seriam tratadas, a partir desse vértice de Bronfenbrenner, com propostas particulares também voltadas às diferentes condições ambientais inter-relacionadas nos contextos de vulnerabilidade.

Desde as últimas décadas do século XX, grandes centros urbanos brasileiros evidenciam um assustador crescimento de fenômenos de violência e criminalidade, especificamente ligados ao tráfico de entorpecentes, em nível de crime organizado. Essas formas de contravenção, que movimentam forças de corrupção, de poder e de capital, atingem sobremaneira crianças e adolescentes.

Nas periferias das grandes cidades, principalmente nas regiões de favelas, há espaços considerados de risco, com normas e fronteiras próprias ditadas por lideranças do tráfico de entorpecentes. No cotidiano desses territórios, onde habita grande parte da pobreza urbana, a infância e a juventude são cercadas pelo mundo das drogas e têm grande vulnerabilidade diante das possibilidades de trabalho com o tráfico, uso abusivo ou vitimização.

As grandes preocupações referentes ao desenvolvimento da infância e juventude pobre e urbana brasileiras referem-se a essa vulnerabilidade, diretamente associada aos perigos da exclusão, da desqualificação social, da criminalidade e da morte. Os índices de mortalidade dos jovens do sexo masculino são maiores nessas populações pobres e periféricas, e as taxas de nascimento de filhos de mães adolescentes pobres são também aí mais expressivas.

A partir da teoria ecológica, diferentes alternativas de aplicabilidade apresentam-se para o trato dessas problemáticas. O uso do referencial dos sistemas ecológicos pode ocorrer para detecção e sistematização, por exemplo, de fatores de risco e de proteção, diante de determinados problemas.

Num exemplo específico, o da gravidez e maternidade de adolescentes, pode ser verificada a utilização dessa proposta.

No microssistema, estão fatores de risco relacionados à questão da procriação de adolescentes pobres: problemas na vinculação e nas práticas parentais, patologias, drogas, violência, prostituição, crenças distorcidas sobre desenvolvimento da criança e do adolescente, abandono e negligência. Nesse mesmo microssistema, também existem fatores de proteção: bons vínculos e boa comunicação, reciprocidade, equilíbrio de poder e afeto. No mesossistema, fatores de risco estariam: nos problemas com a escola, dificuldades para vagas em creches, territórios violentos (tráfico, criminalidade), mudanças de moradia e isolamento social; os fatores de proteção desse mesossistema seriam: boa relação com familiares e escola, vagas em creches para filhos das mães adolescentes, acesso a equipamentos culturais e esportivos e a lazer, e inclusão nas redes informatizadas. Já fatores de risco do exossistema referem-se a: empecilhos para matrícula e transferência escolar, pobreza, desemprego dos adultos da casa, prejuízos no pré-natal, na maternidade (parto e nascimento) e no atendimento pediátrico. Fatores de proteção do exossistema estariam relacionados ao apoio de pré-natal e atenção integral à saúde. E, finalmente, fatores de risco do macrossistema poderiam ser localizados nos mitos sobre infância e adolescência, na cultura de culpabilização da procriação na adolescência e na deficiência das políticas públicas voltadas para desenvolvimento psicossocial; enquanto que fatores de proteção desse último nível ambiental poderiam ser encontrados numa cultura de proteção integral aos seres em desenvolvimento — as crianças e os muito jovens.

Em termos desse macrossistema, ainda deve-se considerar que as condições de crianças e jovens das periferias sociais de grandes cidades, próprias de uma inserção na pobreza e, muitas vezes, no desamparo social, são mescladas com componentes de referências de riqueza, fragmentos e símbolos da sociedade globalizada. Pela mídia, esses jovens têm conexão com modelos de vida em que determinadas necessidades são tidas como fundamentais — que poderiam e deveriam ser abastecidas. No entanto, esse abastecimento só será possível nos segmentos sociais fora da condição ou dos territórios da pobreza.

A chamada “juventude popular urbana” (Costa, 1996) vai possuir modelos de identificação com referências similares às das elites — padrões de sucesso profissional, social e de gratificações por consumo de bens presentes no macrossistema ecológico da cultura e da ideologia.

A possibilidade da aprendizagem da pró-socialidade como ação preventiva e interventiva em crianças e jovens em situação de vulnerabilidade

Se a resiliência pode ser recurso ou condição mobilizada no sujeito pelo ambiente, tanto em seu nível micro como nas instâncias meso, exo e macro, existem necessidades próprias desses particulares níveis ambientais que devem ser consideradas para promoção da resiliência na prevenção e intervenção junto a problemas próprios das etapas do ciclo vital.

Muitas dessas necessidades podem ser atendidas por modelos de desenvolvimento da pró-socialidade, enquanto esta se apresenta como uma potencial alternativa para a mobilização de processos de resiliência, com condições de atingir todos os diferentes níveis ambientais. Isso seria de particular relevância na prevenção e intervenção junto ao desenvolvimento de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade por ambientes socialmente violentos.

A aprendizagem da pró-socialidade poderia ser proposta em programas de treinamento em escolas, grupos de bairros e unidades básicas de saúde. Atenderia, assim, às proposições constantes da teoria ecológica de Bronfenbrenner e da resiliência, contribuindo para promover a difusão de uma cultura ética da não violência e da esperança.

 

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Endereço para correspondência
Avenida Conselheiro Nébias, 300.
CEP: 11015-002.
E-mail: maznar@unisantos.br.

Recebido em: 04/11/2006
Aceito em: 17/12/2006

 

 

Notas

1 O presente trabalho é resultado do interesse das autoras pelo tema, que deu origem à elaboração de projetos de estudo e intervenção, em aliança com professores da Universidade Autônoma de Barcelona – Espanha.

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