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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687

Rev. bras.ter. cogn. vol.7 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

ENTREVISTA INTERVIEW

 

Entrevista com Dr. Vicente E. Caballo

 

 

 

O professor Vicente E. Caballo é Doutor em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri e Catedrático de Psicopatologia na Universidade de Granada (Espanha). Fundador e diretor da revista Behavioral Psychology/Psicologia Conductual, da Associaçã o Psicológica Ibero-americana de Clínica e Saúde (APICSA) e do grupo de pesquisa Avanços na Psicopatologia e Terapia do Comportamento (APYTEC). Tem 16 livros publicados, dos quais 9 foram traduzidos ao português e 1 para o inglês. Tem numerosos artigos e capítulos de livros e ministrou conferências e cursos em 14 países. Recebeu também diversos prêmios e condecorações e, atualmente, seus interesses de pesquisa se centram na ansiedade/fobia social, no bullying e nos transtornos da personalidade.

1. Como foi o início de sua carreira e os motivadores para a escolha da psicologia como área de atuação?

Na verdade eu não tinha pensado em estudar psicologia. Era uma carreira pouco conhecida e eu nem sabia que existia. Comecei o ensino superior estudando engenharia química com uma bolsa de estudos, mas, como não gostava muito, passava muito tempo lendo livros diversos na biblioteca da universidade. Um desses livros foi sobre psicologia, um livro direcionado ao público em geral, não a profissionais, e comecei a gostar.

Ao final do primeiro ano de graduação, decidi estudar psicologia, mesmo perdendo a bolsa de estudos. Meus pais não gostaram, mas eu tinha decidido ser psicólogo. Depois de trabalhar todo o verão como garçom, para conseguir o dinheiro e começar a estudar psicologia, entrei na Universidade de Barcelona (era a que ficava mais perto de onde eu estudava química).

Naqueles anos, o enfoque era principalmente psicanalíticoepara mim era difícil entender e aplicar conceitos tão vagos e abstratos, especialmente havendo estudado matérias tão científicas como a química, a física e a matemática. Depois de três anos de estudo com a abordagem psicanalítica, mudei para a Universidade Autónoma de Madri, onde o enfoque era principalmente comportamental. Este novo enfoque tinha muito mais afinidade com meus estudos prévios e, a partir daí, achei que valia a pena seguir o estudo da psicologia.

Dois anos depois, terminei a graduação e comecei a me preparar como psicólogo clínico num centro privado em Madri para abrir, posteriormente, o meu próprio centro clínico. Um ano mais tarde, e antes de poder abrir meu consultório, segui o conselho do meu orientador e me apresentei a um concurso para ser professor na Universidade de Granada.

Apesar de nunca haver pensado em trabalhar na universidade e de que o princípio tenha sido duro, ministrando muitas matérias que não tinham nada a ver com a psicologia clínica,estes anos têm sidomuito reforçadores.

2. Quais são os autores (não necessariamente da área de saúde mental) que mais influenciaram seu pensamento e seus estudos?

Eu me lembro de ter lido muito a Wilhelm Reich na minha etapa "psicanalítica" na Universidade de Barcelona, porque ele escrevia sobre assuntos sociais e dos jovens. Além disso, parte de seus escritos estava proibido na Espanha do ditador FranciscoFranco,o que os tornavam ainda mais atraentes.

Outros autores, como Isaac Asimov, que não tinham a ver diretamente com a psicologia, eram foco de meu interesse. Mas quando mudei de universidade e comecei com a estudar a abordagem comportamental, houveautores na área da psicologia como A.Lazarus, J.Wolpe, A. Kazdin,F. Kanfer,F. Skinner, ou mesmo o autor espanhol J. A. Carrobles,que influenciaram o minha maneiraatual de abordar a psicologia clínica.

Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente a maioria deles. De Lazarus me chamou a atenção o seu "ecletismo técnico".Wolpe eKazdinvieram a um congresso em Granada e nesta ocasião realizei uma entrevista com Wolpe, que foi publicada na revista Psicologia Conductual.Lembro-me que lheperguntamos o que ele considerava o pior defeito de um psicólogo clínico e ele nos respondeu que era ter como principal objetivo"fazer muito dinheiro".

3. Até hoje, quais foram os momentos mais significativos em sua jornada profissional?

Habitualmente, quando as coisas acontecem da primeira vez, elastem um significado especial. Como quando foram publicados o primeiro artigo, o primeiro capítulo de livro, ou o primeiro livro. Teve especial importância a publicação do livro Técnicas de terapia e modificação do comportamento em espanhol (primeira edição no ano 1991) que foi utilizado como livro de base (principal referência da matéria) em muitas universidades espanholas e na América Latina. Em 1996, também foi publicado no Brasil pela Editora Santos.

Este livro fez com que as pessoas me conhecessem e soubessem do meu trabalho, mas não foi fácil a sua publicação. É difícil publicar um livro quando não nos conhecem. Depois do êxito deste livro, não foi difícil publicar os seguintes, inclusive em versões em português e inglês.A publicação da versão deste livro em inglês International hand book of cognitive and behavioural treatments for psychological disorders, no ano 1998, pela editora Elsevier, foi também um passo importante para minha jornada profissional.

Também tem sido importante na minha carreira a produção científica da revista BehavioralPsychology/Psicologia Conductual(www.behavioralpsycho.com), da qual sou diretor desde o seu primeiro número e que foi lançada no ano de 1993. Atualmente, no âmbito internacional, ela é considerada uma das mais importantes revistas de psicologia clínica com publicações em espanhol e inglês.

A formação da Associação Psicológica Ibero-americana de Clínica e Saúde (APICSA) (www.apicsa.org), no ano de 1998,colaborou muito a estabelecer laços com os colegas de profissão dos países da América Latina e também foi uma etapa significativa da minha jornada profissional. Por meio da APICSA organizamos congressos em diferentes países (incluindo o Brasil, no ano de 2001) e que este ano de 2012 acontecerá na Argentina em setembro (VII Congresso da APICSA).

No ano de 2008, alcancei a categoria máximada carreira docente como "catedrático", o que me proporcionou grande satisfação pelo reconhecimento de meu trabalho na área acadêmica.

Finalmente, outro trabalho que considero muito significativo, são as pesquisas transculturais que estamos realizando desde o ano de 2003 com muitos países da América Latina incluindo o Brasil,das quais já começamos a publicar os resultados com a equipe CISO-A.

4. Pode nos contar em que está trabalhando atualmente?

Como dito na resposta anterior, estamos trabalhando em colaboração com muitos países latino-americanos em vários tópicos de pesquisa: ansiedade/fobia social, transtornos de personalidade e bullying. Nesta última área, começamos a trabalhar há pouco tempo e ainda não temos resultados transculturais.

Sobre os transtornos de personalidade, ainda estamos analisando os resultados obtidos em uma pesquisa feita com mais de dez países e, simultaneamente,aprofundando o estudo do transtorno de personalidade borderline.

Sobre ansiedade/fobia social, estamos trabalhando com a equipe CISO-A desde o ano de 2003 e, em 2008, começamos a publicar os resultados desta pesquisa. Dando continuidade a este trabalho, foi desenvolvido um novo questionário de ansiedade/fobia social (Questionário de ansiedade social para adultos, CASO-A30) com propriedades psicométricas sólidas, que conta com a participação de mais de 45.000 sujeitos e que pode ser utilizado em todo mundo,especialmente da América Latina. Esse questionário foi publicado completo,em espanhol, no ano de 2010, na revista Behavioral Psychology/Psicologia Conductuale será publicado em inglês neste ano na revista Behavior Therapy.Tentaremos publicá-lo em português proximamente.

Estamos desenvolvendo também um novo programa de tratamento para a fobia social baseado nos resultados obtidos com o questionário CASO-A e temos planos de adaptá-lo também ao português.

O que posso dizer de uma maneira geral é que boa parte das pesquisas que estamos realizando atualmente são transculturais e incluem muitos países latino-americanos.

5. O que considera necessário para que a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) continue em desenvolvimento?

Acho que é necessário manter a visão científica, ou seja, que os dados empíricos sejam a base do desenvolvimento do TCC. Penso que isto é o mais importante, além de desenvolver pesquisas emáreas que não tenham sido muito estudadas pela TCC. Acho que a área das emoções, por exemplo,deveria receber muito mais atenção, mas não somente através dos pensamentos, como fazem as terapias cognitivas mas, sim, abordando as emoções diretamente (p.ex., com a imaginação, com exercícios corporais, etc.). Existem outros enfoques que já fazem isso e acho que a TCC deveria desenvolver o mesmo desde uma perspectiva empírica, demonstrando aquilo que é útil e o que não, através da pesquisa, com dados e resultados.Também tem que abordar com mais sucesso os transtornos que, atualmente, são considerados difíceis de tratar, como os transtornos de personalidade. A maioria deles tem problemas quanto ao tratamento e somente o transtorno da personalidade borderline tem um tratamento cognitivo-comportamental com sucesso evidenciado.

6. Como editor e revisor de periódicos científicos, percebe a carência de algum tema importante nos estudos baseados em TCC?

Como falei na resposta à pergunta anterior, acho que tem poucos artigos de tratamento de transtornos da personalidade com a TCC. Somente o transtorno da personalidade borderline apresenta publicações de algum tratamento eficaz. Mas, por exemplo, é necessário encontrar e difundir tratamentos eficazes para o transtorno antissocial da personalidade que, até o momento, não apresentou dados de que funcione. O mesmo acontece com o transtorno esquizoide de personalidade, o transtorno narcisista, etc.

Também acho que há poucos artigos avaliando as habilidades do psicólogo, com provasdo que "funciona" mais e o que não funciona no ambiente terapêutico. Além de aspectos específicos da TCC e o que serve para alguns transtornos e para outros não.

7. Desde a década de noventa o senhor vem publicando estudos em parceria com autores brasileiros. Como se iniciou essa rede de colaborações?

A rede de colaboração com autores brasileiros começou no ano de 1993, durante o I Congresso da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental. O contato com a psicóloga Liliana Seger teve como fruto o começo da tradução do libro Técnicas de terapia e modificação do comportamento. Em 1996 o livro foi lançado no congresso da ABPMC em Águas de Lindoia e nesta ocasião estabeleci boas relações com muitos psicólogos brasileiros, lembrando especialmente a Maria Luiza Marinho, Cristina Miyazaki, Edwidges Silvares, entre outros. Com a ajuda da Maria Luiza e da Cristina começamos a construir a Associação Psicológica Ibero-Americana de Clínica e Saúde (APICSA) que foi legalizada no ano de 1998. Elas foram as primeiras representantes da APICSA no Brasil e conseguiram organizar com esta associação o II Congresso Ibero-Americano de Psicologia Clínica e da Saúde em Guarujá no ano 2001.A minha participação em congressos e cursos no Brasil continua frequente até hoje e também mantemos a colaboração com muitos psicólogos brasileiros que conheci ao longo desses anos.

8. Como percebe o desenvolvimento da Terapia Cognitivo-Comportamental no Brasil?

Na minha percepção,o desenvolvimento da TCC no Brasil está indo por um bom caminho, e por outro lado, a psicanálise está perdendo cada vez mais espaço. Mas acho que os psicólogos cognitivo-comportamentais devem se explicar melhor ao seu público alvo, para que os pacientes vejam que a psicologia científica é a melhor forma de abordar os problemas das pessoas.

Tenho a impressão de que, às vezes, psicólogos comportamentais entram em conflito com psicólogos cognitivos e vice-versa, defendendo somente um rótulo contra o resto do mundo. Mas o que eles todos tem que defender é a psicologia científica. No Brasil, ainda vemos a prática de muitas "opções" não científicas e de eficácia duvidosa que as pessoas deveriam saber que não são melhores que o placebo. A TCC deveria se apresentar como a melhor opção para muitos problemas psicológicos baseando-se nos dados de trabalhos científicos.O método científico é o melhor (e talvez o único) método para o avanço da psicologia clínica.E as pessoas (muitas delas futuros pacientes) deveriam saber isso.

9. O que é necessário para se formar um bom terapeuta cognitivo-comportamental?

É necessário, ao menos, treinar três aspectos essenciais. O primeiro deles é mostrar ao futuro terapeuta como se relacionar com o paciente no consultório. Uma boa relação com o paciente é essencial para que um tratamento possa ter sucesso. Às vezes, o treinamento dos futuros terapeutas não dedica muita atenção a este tópico. Acho que um terapeuta que não saiba se relacionar com os pacientes tem poucas possibilidades de sucesso ao longo prazo.

Outro aspecto importante é que o futuro terapeuta saiba com clareza como fazer uma análise funcional dos problemas psicológicos. Isto é essencial para planejar o tratamento. Todos os instrumentos de avaliação (entrevista, questionários, autorregistros, etc.) que o terapeuta aplica ao paciente deveriam ter como objetivo fazer uma boa análise funcional.

Finalmente, os futuros terapeutas devem dominar as técnicas da TCC. Isto é, habitualmente, o aspecto mais treinado nos programas de formação clínica e talvez o que as pessoas saibam mais.Mas sempre devem ter presente que a técnica que vai utilizar deve ser sugerida a partir da análise funcional e dentro de um bom relacionamento com o paciente.

Outras observações:

Gostaria agradecer à RBTC e especialmente a sua diretora, Cristina Miyazaki, a oportunidade dar minha percepção sobre alguns tópicos da psicologia clínica para o Brasil. A minha relação com este país e sua gente tem sido sempre muito especial. Tão especial que tive uma namorada brasileira, tive nove livros publicados em português e viajo frequentemente a diferentes lugares do país. Mesmo não dominando "ainda" o português, acho que posso falar e escrever em "portunhol" a um nível adequado. Espero que, apesar dos obstáculos colocados pelos políticos espanhóis e brasileiros, as pessoas destes dois lados do mundo possam seguir fomentando as relações pessoais que tanto enriquecem e beneficiam ao ser humano.

 

Dr. Vicente E. Caballo

 

 

Entrevista realizada por Randolfo dos Santos Jr, doutorando em Ciências da Saúde pela FAMERP, chefe do Serviço de Psicologia do Hospital de Base.