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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.10 no.1 Rio de Janeiro jun. 2014

http://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20140003 

RELATOS DE PESQUISAS

 

Processos de mudança cognitivos e comportamentais em usuários de crack em tratamento

 

Cognitive and behavioral change processes in crack cocaine users in treatment

 

 

Karen Priscila Del Rio SzupszynskiI; Laisa Marcorela Andreoli SartesII; Ilana AndrettaIII; Margareth da Silva OliveiraIV

IPsicóloga, Doutora, Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados; Reitoria, Faculdade de Ciências Humanas
IIPsicóloga, Doutora, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora; Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Psicologia
IIIPsicóloga, Doutora, Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Centro de Ciências da Saúde
IVPsicóloga, Doutora, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Faculdade de Psicologia

Correspondência

 

 


RESUMO

A compreensão da motivação e do processo de mudança entre dependentes de álcool e outras drogas tem sido foco de grande interesse nas últimas décadas. A gravidade das consequências relacionadas ao consumo de crack aumenta a preocupação com os elementos relacionados ao processo de tratamento. O objetivo deste estudo foi avaliar o construto dos Processos de Mudança (cognitivos e comportamentais) em uma amostra de 395 usuários de crack em tratamento por meio da exploração de variáveis sociodemográficas, estágio de motivação, tempo de tratamento e abstinência e de rastreio cognitivo. Os modelos obtidos pela regressão linear mostraram que variáveis como idade, estágio motivacional, tempo de abstinência e triagem cognitiva estão associados a cada etapa dos processos cognitivos e comportamentais. Semelhanças e diferenças com a literatura internacional e com o Modelo Transteórico de Mudança (MTT) são discutidos.

Palavras-chave: cocaína crack, motivação, terapia cognitiva.


ABSTRACT

Comprehension of motivation and change process among alcohol and other drugs users has been the focus of great interest in recent decades. The severity consequence of crack cocaine-related use increase concerns with treatment process elements. The aim of this study was to evaluate the building blocks of change processes (cognitive and behavioral) in a sample of 395 crack cocaine users in treatment through the exploitation of socio-demographic variables, stage of motivation, duration of treatment and of withdrawal, and cognitive screening. The models obtained by linear regression showed that variables such as age, motivational stage, duration of withdrawal, and cognitive screening, are associated with each stage of cognitive and behavioral processes. Similarities and differences with the international literature and the Transtheoretical Model of Change (TTM) are taken into account.

Keywords: cognitive behavior therapy, crack cocaine, motivation.


 

 

No Brasil, a dependência de crack é um problema de saúde pública, evidenciando o aumento considerável de consumidores de substâncias químicas nos últimos anos. A pesquisa encomendada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), publicada em 2013, sobre a estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas capitais do País, teve como resultado que 35% dos consumidores de drogas ilícitas nessas cidades usam a cocaína e seus derivados, como o crack, como sua droga de preferência. O Segundo Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Laranjeira, 2014) mostrou que, ao contrário da maioria dos países da Europa e os Estados Unidos, o Brasil é apontado como emergente no uso de cocaína em suas diversas formas de consumo. Tais dados demonstram a relevância da problemática da dependência de cocaína e/ou crack que se apresenta no contexto nacional.

É percebido que, no Brasil, a maioria dos dependentes de crack tem uma trajetória anterior de uso de outras drogas, incluindo principalmente álcool, tabaco, maconha e cocaína (Duailibi, Ribeiro, & Laranjeira, 2008). Segundo pesquisas, os principais motivos da busca pela cocaína e/ou crack são a curiosidade, seguida pela fuga dos problemas e frustrações (Diehl, Cordeiro, & Laranjeira, 2011; Duailibi et al., 2008). Também é percebida a existência de alguns fatores que se apresentam como de risco para recaídas após tratamentos, como presença de comorbidades psiquiátricas, altos níveis de estresse e motivação para mudança que oscila durante o processo do tratamento.

A compreensão do processo de mudança em pacientes com dependência química tem-se tornado foco relevante em pesquisas sobre o tema nas últimas décadas. Construtos como o MTT e a entrevista motivacional tiveram destaque mundial ao focar seus modelos explicativos no processo de como o paciente muda ou busca sua motivação.

O MTT, criado por Prochaska e DiClemente (1982), desenvolveu dois principais construtos: os Estágios de Mudança e os Mecanismos de Mudança. Os estágios de mudança são uma dimensão do modelo bastante conhecida, e representam o aspecto temporal e de constância da motivação de um indivíduo. De acordo com os estudos sobre o tabagismo, cinco estágios de mudança foram delineados: pré-contemplação (pessoa sem consciência do problema e resistente a mudanças), contemplação (pessoa ambivalente em relação à mudança, refletindo sobre os prós e contras de mudar), preparação (a tomada de decisão é feita, mas nenhuma ação efetiva ocorre), ação (a mudança ocorre e há ações propriamente ditas) e manutenção (consolidação e continuação de uma mudança positiva por um tempo mínimo determinado e sem recaídas) (Carey, Purnine, Maisto, & Carey, 1999).

Em contraponto, os mecanismos de mudança são formados por construtos internos e externos que interferem diretamente no processo de mudança e no movimento da pessoa entre os estágios. Os mecanismos de mudança são divididos em autoeficácia, tentação para o uso, balança decisional e processos de mudança, além de fatores externos que podem interferir em um processo pessoal de mudança.

Os processos de mudança constituem um dos construtos mais estudados do MTT na atualidade. Assim como os estágios de mudança formam uma dimensão temporal do modelo, permitindo compreender as atitudes e intenções ante as mudanças, os processos de mudança formam uma dimensão que permite compreender como essa mudança ocorre. Prochaska e DiClemente (1982) afirmaram que determinados processos básicos seriam os responsáveis por mudanças tanto em pessoas submetidas a tratamento como naquelas que mudam sem o auxílio terapêutico. Os processos de mudança são variáveis independentes, manipuláveis, que acessados quando a pessoa inicia uma mudança de comportamento. Podem ser pensamentos ou comportamentos que são executados durante o processo de mudança como um todo (Prochaska, DiClemente, & Norcross, 1992).

Os processos de mudança são divididos em dois fatores: processos cognitivos e processos comportamentais. Cada um tem cinco subconstrutos (Prochaska, Velicer, DiClemente, & Fava, 1988). Os dos processos cognitivos são: ampliação da consciência, alívio emocional, reavaliação circundante, deliberação social e autorreavaliação; e os dos processos comportamentais são: autodeliberação, contracondicionamento, controle de estímulos, gerenciamento de reforço e relações de ajuda (Velasquez, Maurer, Crouch, & DiClemente, 2001).

A comprovação da correlação teórica dos construtos do MTT tem sido foco de pesquisas que utilizam as escalas citadas anteriormente para avaliar o desempenho dos conceitos em diversas populações, como tabagistas, alcoolistas e usuários de drogas ilícitas (Carbonari & DiClemente, 2000; NaarKing et al., 2006; Schumann et al., 2005). Outras áreas, além da dependência química, também têm investido em pesquisas para correlacionar os construtos, obtendo resultados positivos dos construtos do MTT em diferentes comportamentos (Finnell et al., 2011; Jezewski et al., 2009).

No entanto, são raros os estudos conduzidos com usuários de crack. Em um estudo realizado por Timpson e colaboradores (2001) com indivíduos que usavam crack e cocaína, foi identificada a correlação entre os processos de mudança e os estágios de mudança. Conforme explicitado pelos autores, os participantes utilizavam mais processos cognitivos nos estágios iniciais de mudança e mais processos comportamentais nos estágios finais.

Considerando a gravidade dos problemas associados ao consumo de crack e os desafios associados ao tratamento da população usuária dessa substância, faz-se importante conhecer os elementos associados aos processos de mudança do comportamento de usar droga em pacientes em tratamento.

Diante disso, este artigo teve como objetivo a compreensão do construto dos processos de mudança em uma amostra de usuários de crack em tratamento, buscando identificar especificamente as possíveis associações entre os aspectos cognitivos e comportamentais e as variáveis sociodemográficas, os estágios de motivação, o tempo de tratamento e abstinência e a triagem de variáveis cognitivas (capacidade semântica, atenção auditiva, memória de trabalho, percepção e organização perceptual e capacidade de reprodução visual) nesses participantes.

 

MÉTODO

Delineamento

O método do presente estudo é observacional transversal de abordagem descritivo-analítica, sendo apresentadas comparações independentes sobre o grupo investigado.

Participantes

A amostra pesquisada foi composta por 395 participantes usuários de crack internados em unidades de tratamento para dependência química na cidade de Porto Alegre e região metropolitana. A média de idade foi de 29,8 (± 8,3) anos e, entre os participantes, predominou o sexo masculino, correspondendo a 88,6% (n = 350) do total. Os critérios para exclusão usados no estudo compreendiam a presença de diagnóstico de transtornos psiquiátricos com funcionamento psicótico ou delirante e a de prejuízos cognitivos significativos.

Instrumentos

Para a avaliação dos sujeitos, foram utilizados os seguintes instrumentos:

1) Questionário de dados socioeconômicos: para obter perfil da amostra (idade, escolaridade, atividade ocupacional e dados socioeconômicos).

2) Screening Cognitivo do WAIS-III (Escala de Inteligência Wechsler) (Cunha, 2000): para avaliar possíveis déficits cognitivos graves. No estudo, foram aplicados os subtestes Vocabulário, Cubos, Dígitos e Código. O subteste Vocabulário avalia o funcionamento anterior ao uso de drogas, aferindo capacidade de aprendizagem, principalmente a semântica; o subteste Cubos identifica a formação de conceitos e a organização visuomotora; Dígitos avalia memória sensorial e atenção concentrada; e Código avalia a capacidade de organização visuomotora e a reprodução psicomotora.

3) URICA (University of Rhode Island Change Assesment Scale) (Szupszynski & Oliveira, 2008): para avaliar o estágio de motivação para mudar o comportamento. Essa versão reduzida contém 24 itens, sendo as alternativas respostas do tipo Likert. É dividida em quatro subescalas: Pré-contemplação (seis itens), Contemplação (seis itens), Ação (seis itens) e Manutenção (seis itens). Na versão brasileira, o coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,657.

4) Escala de Processos de Mudança (EPM) (Szupszynski, 2012): para avaliar os processos cognitivos e comportamentais. Os participantes respondem de acordo com a frequência em que ocorre cada pensamento ou situação referente ao consumo de substâncias psicoativas (SPAs). É um inventário de autorrelato composto de 20 itens, respondido por uma medida de 5 pontos, tipo escala Likert, que avalia os 10 processos, dos quais 5 são cognitivos e 5 comportamentais, conforme citado. Na versão brasileira, o coeficiente alfa de Cronbach foi de 0,732.

5) Régua de Prontidão: para medir analogia, em formato de régua, na qual o paciente avalia sua prontidão para mudança de 0 a 10 (Velasquez et al., 2001).

Coleta de dados

Inicialmente foi realizado contato com instituições especializadas no tratamento de pacientes dependentes químicos em Porto Alegre e região metropolitana para realizar o estudo. O convite foi feito a cada participante, sendo explicada a proposta de trabalho. Aos pacientes que optaram em participar e que obedeciam aos critérios de inclusão, foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para que fosse lido e assinado. As entrevistas foram realizadas individualmente nos locais de tratamento (internação ou ambulatório), e cada encontro durava aproximadamente 120 minutos. Os instrumentos foram aplicados na ordem descrita anteriormente. A equipe que realizou a entrevista foi devidamente treinada sobre a forma de aplicação de cada instrumento. Em relação aos aspectos éticos, é importante ressaltar que o estudo foi encaminhado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), segundo número 11/05322.

Procedimentos estatísticos

As informações coletadas foram organizadas no Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0 (SPSS, 2007). Na comparação dos escores dos processos comportamentais e cognitivos em relação às variáveis que compuseram o perfil da amostra, foram utilizados os testes t de Student para comparação de dois grupos independentes, bem como Análise de Variância (One Way) - Post Hoc Tukey nas situações em que ocorreu a comparação entre três ou mais grupos independentes. Na avaliação do grau de linearidade, foi utilizado o Coeficiente de Correlação de Pearson. Para determinação dos fatores com maior representatividade para descrever os totais dos processos cognitivos e comportamentais, foi implementada a Análise de Regressão Linear Múltipla com o procedimento de exclusão progressiva das variáveis independentes que menos respondiam pela variabilidade dos dois processos (Bacward).

A significância do modelo final foi avaliada pelo teste F da análise de variância, e a qualidade do ajuste, pelo coeficiente de determinação ajustado (R2). Foi verificada a possível ocorrência de interações significativas entre as variáveis que permaneceram no modelo final.

 

RESULTADOS

Entre os 395 usuários de crack investigados, os níveis de instrução mais frequentes foram ensino médio, 41,6% (n = 161), e fundamental, 39,8% (n = 154). A raça/etnia branca correspondeu a 65,8% (n = 258), e mulato/pardo/afrodescendente, a 26,5% (n = 104), as quais foram as mais frequentes. A situação de viver sem companheiro (solteiro, divorciado, separado, viúvo) foi confirmada por 71,4% (n = 279). Quanto à renda familiar, houve concentração nas faixas com mais de cinco salários mínimos, correspondendo a 273% (n = 108), e de até dois salários mínimos, referente a 26,8% (n = 106). A religião católica foi a mais citada na amostra, representando 48,4% (n = 191), seguida daqueles que informaram não ter religião, correspondente a 19,7% (n = 78). Com relação a trabalho e estudo, 66,7% (n = 262) trabalhavam e 14,4% (n = 56) estudavam antes do início do tratamento.

Em relação à droga que levou o participante a procurar tratamento, 67,6% (n = 267) informaram ter sido pelo crack, 26,8% (n = 106) pela cocaína e 5,6% (n = 22) por outras drogas (entre elas, álcool e maconha). No entanto, os indivíduos eram poliusuários de drogas, já que as porcentagens de diagnósticos de abuso somadas às de dependência foram elevadas. Na amostra, 73,2% (n = 289) preenchiam critérios de abuso ou dependência para tabaco, 579% (n = 228) para álcool, 573% (n = 225) para cocaína em pó e 42,7% (n = 168) para maconha. Isso demonstra que a amostra procurou tratamento para o uso de crack, apesar de apresentar dependência para outras drogas. Esses resultados também são observados em outros estudos (Bastos & Bertoni, 2013; Oliveira & Nappo, 2008).

O tempo de tratamento mediano da amostra foi de 12 dias (1º - 3º quartil: 7 - 45 dias), enquanto a mediana para o tempo de abstinência foi de 15 dias (1º - 3º quartil: 9 - 50 dias). Em relação ao escore total de cada estágio de motivação avaliado pelo URICA, na Ação a média foi de 26,01 (DP ± 3,10); na Manutenção, 22,73 (DP ± 2,82); e na Contemplação, 23,68 (DP ± 2,47). Já em relação à EPM, os resultados obtidos para o total dos processos cognitivos e comportamentais foram 36,53 (DP ± 6,31) e 35,20 (DP ± 7,46), respectivamente. Sobre a Régua de Prontidão, em que o máximo eram 10 pontos, a pontuação média alcançou 7,65 (DP ± 2,20). Os resultados relativos à triagem cognitiva obtidos pelas subescalas do WAIS (escores ponderados) mostraram que, para o Vocabulário, a média foi de 7,81 (DP ± 2,37), para os Códigos, 8,51 (DP ± 2,36), e para os Dígitos, 9,18 (DP ± 2,30).

Visando realizar uma exploração de variáveis explicativas dos processos cognitivos e comportamentais, as variáveis que caracterizaram o perfil dos investigados, tanto de cunho socioeconômico-demográfico quanto relacionado a tempo de abstinência e estágio de motivação, foram comparadas aos escores totais de ambos os processos. De acordo com os resultados apresentados na Tabela 1, considerando apenas as relações que se mostraram significativas, verificou-se que a questão do gênero apontou diferença significativa na pontuação dos processos cognitivos (p < 0,05), em que a média foi mais elevada no sexo feminino (m = 3; DP = ± 0,75) quando comparada ao masculino (m = 3,49; DP = ± 0,74). A idade mostrou-se significativamente correlacionada às pontuações dos processos cognitivos, em que ocorreu correlação positiva de grau fraco (r = 0,190; p < 0,001).

O nível de instrução mostrou-se representativo quando comparado aos processos comportamentais (0,05 < p < 0,10), sugerindo que, quanto mais elevada a instrução, maior tende a ser a pontuação média desse processo (ensino fundamental: m = 3,44; DP = ± 0,74; ensino médio: m = 3,51; DP = ± 0,76; ensino superior e pós-graduação: m = 3,68; DP = ± 0,67).

O fato de estar trabalhando no momento do estudo mostrou-se relevante para os processos cognitivos, de forma que aqueles que estavam trabalhando (m = 3,70, DP = ± 0,59) apresentaram pontuação significativamente mais elevada (p < 0,05) em relação ao grupo que não trabalhava (m = 3,55; DP = ± 0,70). Sobre a pontuação dos processos comportamentais, foram detectadas correlações significativas, positivas de grau fraco com os tempos de tratamento (0,128; p = 0,014) e de abstinência (0,185; p < 0,001).

Entre os indivíduos que também consomem cocaína em pó, foi detectada diferença significativa nas pontuações médias dos processos comportamentais (p < 0,05), apontando que quem é abusador (m = 3,35; DP = ± 0,77) ou não usa (m = 3,42; DP = ± 0,72) apresentou médias significativamente menores que aqueles definidos como dependentes (m = 3,63; DP = ± 0,77; p < 0,01) ou que relataram o uso esporádico (m = 3,59; DP = ± 0,64; p < 0,05).

Sobre a pontuação da Régua de Prontidão, foi detectada correlação significativa e positiva com os processos cognitivos (r = 0,156; p = 0,002) e os comportamentais (r = 0,277; p < 0,001). Resultado semelhante foi obtido para o resultado ponderado do Vocabulário (WAIS) (cognitivos: r = 0,121; p = 0,020)/comportamentais: r = 0,137; p = 0,008). No entanto, em relação à pontuação nos Códigos (WAIS), a correlação mostrou-se significativa com os processos comportamentais (r = 0,137; p = 0,008), assim como com a pontuação dos Dígitos (WAIS) (r = 0,156; p = 0,003).

As variáveis significativas nas análises bivariadas foram incluídas no modelo inicial da regressão linear como possíveis variáveis explicativas de processos cognitivos e comportamentais.

Processos cognitivos

O modelo inicial da regressão linear apresentou um R2 de 24,6% e um R2 ajustado de 21,7%, indicando que 21,7% da variabilidade dos dados nos processos cognitivos podem ser explicados pelas variáveis do modelo inicial. Após a seleção das variáveis relevantes, o modelo final (em que foram eliminadas sucessivamente as variáveis com menor poder explicativo) apresentou R2 de 45,4% e R2 ajustado de 42,3%. A partir desses resultados, verificou-se que o modelo final apresentou maior poder de explicação sobre as variações da média dos processos cognitivos.

Dessa forma, de acordo com o modelo estimado, a variável que apresenta maior relevância para responder pela variabilidade da média dos processos cognitivos foi o escore total da Ação (Bpadronizado = 0,271; p < 0,001). Em seguida, mantiveram-se no modelo a idade do paciente (Bpadronizado = 0,185; p = 0,001) e o escore total da Contemplação (Bpadronizado = 0,135; p = 0,023) (Tab. 2).

Processos comportamentais

De forma simultânea, buscou-se identificar variáveis que pudessem responder de maneira relevante sobre a variabilidade dos processos comportamentais. Observa-se na Tabela 3 que, no modelo inicial, foram estimados 27,4% da variabilidade observada pelos escores dos processos comportamentais (R2 ajustado). No modelo final, no qual foram selecionadas as variáveis que responderam de forma significativa por esses processos (ou seja, foram eliminadas sucessivamente as variáveis com menor poder explicativo), o R2 ajustado passou a ser de 56,7%. As variáveis Escore Total de Ação (Bpadronizado = 0,143; p = 0,002), Vocabulário Ponderado (Bpadronizado = 0,129; p = 0,008), Tempo de Abstinência (Bpadronizado = 0,262; p < 0,001) e Régua de Prontidão (Bpadronizado = 0,113; p = 0,022) mostraram-se relevantes para responder pela variabilidade detectada nos processos comportamentais.

 

Tabela 2

 

 

 

DISCUSSÃO

Os resultados do estudo trouxeram elementos para uma melhor compreensão dos construtos relacionados aos processos de mudança do comportamento de consumo de drogas entre usuários de crack em tratamento, considerando que são raros os estudos com essa população. Esse estudo propôs a exploração de variáveis sociodemográficas, estágios de motivação e triagem cognitiva como possíveis variáveis explicativas associadas aos processos cognitivos e comportamentais, trazendo avanço na compreensão desses construtos, uma vez que há pouca evidência da associação dessas variáveis aos processos de mudança em usuários de drogas e, especificamente, usuários de crack (Fernandez-Serrano, Perez-Garcia, Perales, & Verdejo-García, 2010).

Com relação ao perfil sociodemográfico dos participantes do estudo, constatou-se que a maioria era composta por adultos do sexo masculino que tinham ensino médio completo, sem companheiro, e que, no momento da internação, trabalhavam e estudavam. Freire, Santos, Bortolini, Moraes e Oliveira (2012) realizaram um estudo em Porto Alegre que objetivou avaliar o perfil de usuários de crack, e encontraram entre 221 dependentes uma média de idade semelhante (27,7 anos). No Paraná, na pesquisa de Ferreira, Capistrano, Maftum, Kalinke e Kirchhof (2012), a média de idade de participantes internados por problemas com crack foi de 35,8 anos, e a maioria estava solteira e sem trabalho fixo no período da internação. Estar sem trabalho também foi uma característica da população estudada por R. L. Horta, B. L. Horta, Rosset e Horta (2011), que objetivaram avaliar usuários de crack que buscavam atendimento psicossocial. Esses resultados sugerem que a amostra estudada é semelhante às observadas em outros estudos de usuários de crack em tratamento.

Com relação aos processos cognitivos do MTT, o modelo final de regressão demonstrou que estar no estágio de Ação ou no de Contemplação e ter maior idade são variáveis associadas à utilização dos processos cognitivos entre usuários de crack. Os resultados mostraram que os processos cognitivos são bastante utilizados na Contemplação e Ação, e menos significativos na Manutenção, corroborando-se ao esperado teoricamente pelo Modelo.

Prochaska e colaboradores (1992) descrevem a ocorrência dos processos entre os diferentes estágios motivacionais de mudança: a ampliação da Consciência, o Alívio Emocional e a Reavaliação Circundante ocorrem entre os estágios de Pré-contemplação e Contemplação; a Autorreavaliação ocorre entre a Contemplação e a Preparação; a Autodeliberação ocorre entre a Preparação e a Ação; e o Gerenciamento de Reforço, as Relações de Ajuda, o Contracondicionamento e o Controle de Estímulos ocorrem entre a Ação e a Manutenção. A descrição desses processos demonstra que os processos cognitivos se concentram em períodos anteriores aos da Ação.

Essa correlação corrobora os resultados dos estudos de Perz, DiClemente e Carbonari (1996), que realizaram uma pesquisa com tabagistas em tratamento. Os resultados do estudo longitudinal mostraram que a identificação do estágio de mudança e o uso adequado de processos relacionados ao estágio proporcionaram resultados mais positivos e efetivos para a cessação do uso do tabaco. Outro resultado relevante foi que os participantes que não conseguiram progredir em seu processo de mudança e entre os estágios apresentaram maior tendência de utilizar os processos cognitivos em excesso, em vez de progredir ao uso de processos comportamentais. Isso demonstra a correlação direta entre os construtos, salientando a relevância de avaliação e o uso do MTT em tratamentos para dependência química.

O modelo final de regressão relativo aos processos comportamentais mostrou que estar no estágio de Ação e ter alto escore de Vocabulário (resultado ponderado), maior Tempo de Abstinência da droga e maior escore na Régua de Prontidão são variáveis que explicavam a utilização dos processos comportamentais quando usuários de crack estavam em tratamento. Teoricamente, os processos comportamentais ocorrem após os cognitivos, momento em que o paciente já está em maior tempo de abstinência, o que, por sua vez, interfere em sua capacidade cognitiva, definição em relação à resolução de problemas e tomada de decisão.

A alta correlação entre a Régua de Prontidão e o estágio de Ação era esperada, confirmando também o encontrado em outros estudos (Szupszynski, 2012). No entanto, a correlação entre os processos comportamentais e o estágio de Manutenção não se mostrou significativa, o que foi surpreendente e contrariou o postulado pelos criadores do MTT. Não são evidentes as explicações para esse achado, mas outros estudos já apresentaram dificuldade em comprovar correlações teóricas como essa, podendo ser explicadas pelas dificuldades de fidedignidade das escalas em relação a essa subescala (Harvey et al., 2001).

Os dados apresentados demonstraram correlações importantes para a compreensão do construto do MTT. Os resultados obtidos mostram a validade prática do modelo, constatando-se relações significativas com inúmeros dados. Os processos de mudança constituem as ferramentas fundamentais para a modificação do comportamento e o avanço entre os estágios motivacionais.

Ao discutir esses dados relacionados aos processos de mudança do MTT e considerando que são variáveis independentes e manipuláveis no processo de mudança de um paciente, fica clara a necessidade de investir em pesquisas com estratégias cognitivas e comportamentais nos tratamentos direcionados a essa população. A partir do perfil avaliado nessa amostra, os profissionais poderão estar atentos às características de seus pacientes e perceber possíveis fatores protetores ou que interfiram negativamente no desenvolvimento de crenças e reações (comportamentos) em relação ao risco de uma recaída. Os processos de mudança desenvolvidos no MTT tratam exatamente dessa oportunidade de intervir, facilitar e assistir de forma adequada ao tratamento do dependente químico. Cabe ressaltar que tanto o construto dos processos de mudança quanto o do MTT como um todo são aplicáveis em diferentes comportamentos e podem ser utilizados para diferentes demandas. O trabalho com a questão da motivação, atrelado às estratégias cognitivas e comportamentais, tem-se configurado como importante, e possivelmente eficaz, fator para tratamentos de maior sucesso.

Agradecimentos: Esse estudo recebeu financiamento do CNPQ (nº 402767/2010-1).

 

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Leitura sugerida

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Correspondência:
Margareth da Silva Oliveira
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Artigo submetido em 01 de outubro de 2014.
Artigo aceito em 20 de julho de 2015.

 

 

UFGD - Unidade 2, Faculdade de Ciências Humanas - Programa de Pós-graduação de Psicologia

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