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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.15 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20190018 

COMUNICAÇÕES BREVES

 

A espiritualidade na flexibilização de pensamentos e crenças de uma paciente ansiosa

 

Spirituality for flexibilizing anxious patient's thoughts and beliefs

 

 

Lilian C. Prado Jacintho Mendonça RibeiroI; Aline Gerbasi BalestraII; Êdela Aparecida NicolettiIII; Mariana Fortunata DonadonIV

ICentro de Terapia Cognitiva Veda de Ribeirão Preto – CTC VEDA RP – (Psicóloga Clínica)
IICentro de Terapia Cognitiva Veda de Ribeirão Preto – CTC VEDA RP – (Psicóloga Clínica)
IIICentro de Terapia Cognitiva Veda – (Coordenadora geral CTC VED)
IVMestrado em Ciências Médicas pela FMRPUSP – (Doutoranda na FMRP-USP) – Ribeirão Preto – SP – Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A espiritualidade e/ou religiosidade pode exercer uma importante influência em diversos aspectos da vida do paciente, como, por exemplo, atuar na flexibilização de pensamentos e crenças disfuncionais. A proposta deste artigo foi descrever os aspectos psicológicos e espirituais de uma paciente ansiosa submetida a 19 sessões individuais de terapia cognitivo-comportamental (TCC). Como metodologia, utilizouse psicoeducação, questionamento de pensamentos e crenças, intervenções sobre ciclos de manutenção específicos. Foram também aplicadas as escalas Beck para avaliação do humor da paciente ao longo das sessões. Os dados deste estudo indicam que, em relação ao humor, foi possível observar a melhora dos sintomas de ansiedade, depressão e desesperança. Além disso, a paciente conseguiu utilizar a dimensão espiritual/religiosa como recurso de enfrentamento e flexibilização de pensamentos/crenças diante das dificuldades enfrentadas, sublinhando a importância de psicólogos clínicos estarem atentos à influência da dimensão religiosa na vida dos pacientes.

Palavras-chave: Terapia cognitivo-comportamental; Espiritualidade; Ansiedade.


ABSTRACT

Spirituality and / or religiosity can exert an important influence on several aspects of the patient's life, for example, acting as an important resource on flexibilization of dysfunctional thoughts and beliefs. In this sense, the proposal of this article was to describe the psychological and spiritual aspects in an anxious patient submitted to 19 individual sessions of Therapy in the Cognitive-Behavioral approach (CBT). As a methodology, psychoeducation, questioning of thoughts and beliefs, and interventions on specific maintenance cycles were used. Beck scales were also applied to assess the patient's mood throughout the sessions. The data of this study indicate that in relation to humor, it was possible to observe the improvement of the symptoms of anxiety, depression and hopelessness. In addition, the patient was able to use the spiritual / religious dimension as a coping and flexibilization of thoughts / beliefs in the face of the difficulties faced, underlining the importance of clinical psychologists being attentive to the influence of the religious dimension on patients' lives.

Keywords: Cognitive behavior therapy; Spirituality; Anxiety.


 

 

INTRODUÇÃO

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) apresenta-se como uma abordagem efetiva no tratamento de quadros de ansiedade (Beck, 2013; Savoia & Bernik, 2018) por ser direcionada a metas, colaborativa e ter como foco psicoeducar e modificar pensamentos e crenças que interferem diretamente nos estados ansiosos e nas respostas comportamentais (Clark & Beck, 2014).

Sendo assim, para a TCC, não são as situações que nos despertam ansiedade, e sim a forma como interpretamos os eventos por meio de pensamentos e crenças disfuncionais e/ou distorcidas (Beck, 2007). Tais interpretações são processadas por esquemas de crenças que foram desenvolvidos ao longo da vida do indivíduo e que podem ser adaptativos ou desadaptativos (Beck, 2013; Knapp & Beck, 2008). Um dos pilares da TCC, portanto, é a reestruturação de pensamentos e crenças disfuncionais, que contribuem para a manutenção dos transtornos emocionais, com o uso de técnicas como análise de evidências e questionamento socrático (Beck, 2007).

Clark e Beck (2012) descrevem, ainda, que o modelo cognitivo da ansiedade é a relação entre a avaliação de risco e os recursos percebidos diante das situações consideradas perigosas. Assim, os indivíduos ansiosos tendem a superestimar o risco das situações e, ao mesmo tempo, subestimar suas capacidades de enfrentamento.

Considerando o perfil cognitivo da paciente e sua busca incessante por caminhos livres de incertezas, ansiando proteger-se de um mundo cheio de ameaças por meio de recursos supostamente ineficazes, a espiritualidade aparece como um recurso de enfrentamento e flexibilização (de Miranda, dos Anjos Lara, & Felippe, 2015). Além disso, para Fernandes e Oliveira (2016), a inclusão dos problemas religiosos ou espirituais como uma categoria diagnóstica na penúltima versão do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV; APA, 2002) é o reconhecimento de que a espiritualidade pode ser foco do tratamento psiquiátrico/ psicológico. O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo também salienta que a religião e a psicologia transitam em um campo de interesse comum, sendo fundamental estabelecer um diálogo entre elas (CRPSP, 2016).

Segundo Smeltzer e Bare (2012), a espiritualidade é definida como uma conexão entre o eu, os outros e uma força de vida ou Deus, permitindo às pessoas uma experimentação da autotranscendência e do encontro com o significado da vida. É uma propensão humana a buscar significado para a vida e um sentido de conexão com algo maior que si mesmo (de Miranda, dos Anjos Lara, & Felippe, 2015; Volcan, Sousa, Mari, & Horta, 2003).

O termo espiritualidade abrange crenças sentidas profundamente pelas pessoas e que dão sentido à vida. Ademais, embora possa ser incorporada em uma orientação religiosa, a espiritualidade também pode ser compreendida como um compromisso dos seres com ideais amplas e nobres ou com o bem-estar dos demais (Araújo Alves et al., 2016; Mesquita et al., 2015).

Cada vez mais a psicologia tem se voltado ao estudo da espiritualidade/religiosidade, demonstrando a importância da prática religiosa e de reconhecê-la e valorizá-la como recurso que favorece a saúde mental (Oliveira & Junges, 2012).

Em adição, o estudo de Mueller, Plevak e Rummans (2001) mostrou que envolvimento religioso e espiritualidade estão associados a melhores índices de saúde, incluindo maior longevidade, habilidades de manejo e qualidade de vida, assim como menor ansiedade, depressão e suicídio. Já Panzini e Bandeira (2007) afirmam que coping (enfrentamento) religioso e/ou espiritual é o modo como as pessoas utilizam sua crença religiosa para reduzir ou suportar situações de estresse e dificuldade em suas vidas, oferecendo recursos para o enfrentamento de problemas e para a adaptação ao estresse por meio da proposta de novas crenças.

Tendo em vista todos esses aspectos acerca do tema da espiritualidade, que envolvem um conjunto de crenças acerca de Deus/força de vida e do que acontece no mundo, bem como a importância de se conhecer e avaliar as crenças sobre si mesmo, o mundo e o futuro considerando a abordagem da TCC, o objetivo do presente trabalho foi verificar o papel/influência da prática da espiritualidade na flexibilização das crenças centrais em um caso de ansiedade.

 

HISTÓRICO DO CASO

A. Dados de identificação

Ana é uma mulher branca de 23 anos, solteira e sem filhos, que trabalha eventualmente em uma escola como professora substituta e reside com seus pais e um irmão no interior de São Paulo.

B. Queixa principal

Ana buscou tratamento porque acreditava estar confusa, desanimada e perdida em relação à profissão. Encontrava-se insegura na área profissional e com receio de ter perdido tempo por haver feito uma faculdade cuja profissão não exercia.

Histórico da doença atual

Formou-se na faculdade em 2014 e procurava um emprego em sua área. Trabalhava eventualmente como professora, porém não se considerava realizada.

Sentia-se perdida, pois seu pai e seus dois irmãos passaram em concursos públicos e pensava que deveria fazer o mesmo. Alegava que não conseguia estudar da mesma forma que seu irmão mais velho e sentia que seu pai tinha expectativas de que ela se empenhasse mais para passar em um concurso.

Pensava ser incapaz e vulnerável, o que a deixava ansiosa e a fazia evitar sair de casa, diminuindo os contatos sociais. Também relatou se apegar muito à opinião do pai.

Desenvolveu um quadro de ansiedade, constantemente superestimando o risco das situações e subestimando seus próprios recursos, o que gerava ansiedade e a levava a evitação, procrastinação e perfeccionismo. Tinha as seguintes regras: "Se eu evitar, não me sentirei um fracasso", "Se eu fizer tudo perfeito, não me sentirei incapaz" e "Se eu agradar, todos irão gostar de mim".

Histórico psiquiátrico

Ana já esteve em tratamento psiquiátrico devido a depressão em 2013. Foi medicada com o antidepressivo venlafaxina durante seis meses. O tratamento foi bem-sucedido, e ela recebeu alta da medicação.

C. Histórico pessoal e social

Ana, a filha caçula, cresceu em uma família católica praticante que participava de trabalhos na igreja. Residia com os pais e um de seus dois irmãos. Relatou que sempre fora a primeira aluna na escola, recebia elogios e, durante dois anos consecutivos, foi líder de sala, sendo que, por esse motivo, seus amigos achavam que ela era nerd e começaram a rechaçá-la. Sofreu bullying também por ser magra, diferente, "fora do padrão" e não ter o corpo tão desenvolvido quanto o de suas amigas, o que contribuiu para um retraimento social. Aos 13 anos, descobriu que sofria de uma doença chamada displasia, o que fez com que seus pais tivessem uma postura de maior proteção e cuidado em relação a ela. Entretanto, recebeu o tratamento adequado e o problema foi sanado sem deixar sequelas.

Ana se engajou em um relacionamento de dois anos durante a faculdade. Nesse período, começou a questionar a existência de Deus. Relatou, ainda, diminuição em seus contatos sociais, aumento da necessidade de agradar as pessoas a sua volta e dificuldade de dizer "não". Nesse período de sua vida, ela buscou ajuda terapêutica, com a principal meta da terapia sendo retomar a atividade espiritual.

Acreditava que nesse momento de sua vida havia ocorrido o ápice de sua depressão. Teve muita dificuldade para se desvincular do namorado, apesar de várias tentativas sem sucesso. Ele se dizia ateu e era uma pessoa instável, e Ana sentia grande necessidade de ajudá-lo. No final do namoro, concluiu que estava em uma relação tóxica e que precisava se afastar dele. Deu início, então, ao seu primeiro tratamento psicológico e medicamentoso. Teve algumas crises de desespero e nervosismo, e sentia-se fora do controle em relação aos seus pensamentos e ao seu comportamento. Seus pais estavam presentes durante as crises e davam o apoio e o suporte necessários.

D. Histórico médico

Ana não relatou problemas médicos que poderiam ter afetado seu funcionamento psicológico.

E. Observações do estado mental

Ana se apresentou bem vestida na sessão. Demonstrou ansiedade, porém estava com as faculdades mentais preservadas.

 

FORMULAÇÃO DO CASO

A. Precipitantes

Os sintomas de ansiedade tiveram início após o término da faculdade. Segundo Ana, "deveria estar trabalhando". Além do fato de estar desempregada, achava que deveria estudar horas seguidas, o que intensificava o quadro de ansiedade. A cobrança e o perfeccionismo foram os combustíveis para manter sua ansiedade. Aos poucos, foi deixando de sair de casa para evitar gastos e não se sentir um peso para os pais.

B. Visão transversal de cognições e comportamentos atuais

Ana apresentou comportamentos de evitação, ruminação e esquiva que podem ser ilustrados pelas seguintes situações:

Na faculdade, efetuando a matrícula para o curso de licenciatura, Ana pensou:"E se eu não der conta?", "E se eu não for tão boa?", "E se eu não gostar do curso?". Sentiu-se ansiosa, e seu comportamento foi ruminar após se retirar do local;

Pensando a respeito do concurso no qual havia se classificado, porém não convocada:"Será que vão me chamar?", "Será que eu daria certo no serviço?","Será que vou conseguir aprender?". As emoções foram desespero e ansiedade, já o comportamento foi ruminar.

Recebendo o convite de uma diretora de escola para substituir uma professora: "Será que devo aceitar?","E se os alunos ficarem caçoando de mim?","Será que irão rir de mim?". Nessa situação, Ana se sentiu triste e ansiosa e seu comportamento foi se esquivar, recusando o convite.

C. Visão longitudinal de cognições e comportamentos

No primário, Ana era a primeira aluna da sala e recebia prêmios e elogios. Nessa época, foi desenvolvendo crenças de que deveria ser perfeita.

No início da adolescência, foi diagnosticada com displasia facial (lesão celular leve) e relatou que, na época, desenvolveu crenças relacionadas a incapacidade e desamor. Acreditava que, ao se dedicar ao máximo e fazer tudo perfeito, seria considerada capaz e digna de ser amada.

Ana teve comportamentos de esquiva para evitar ser "evidenciada" como incapaz e utilizava essas estratégias para prevenir ser abandonada e/ou rejeitada. Suas estratégias compensatórias eram perfeccionismo, esquiva, evitação, ruminação e agradar as pessoas. O esquema que estava ativado inicialmente era o desamparo, porém, foram trabalhadas também as crenças de desamor e desvalor.

A descoberta da displasia potencializou a crença de incapacidade e desamor, pois seus pais ficaram preocupados e a superprotegeram. O rompimento do namoro também contribuiu para que essas crenças se consolidassem e reforçassem comportamentos de agradar ou fazer tudo perfeito a fim de evitar que a crença de desamparo fosse ativada e, consecutivamente, o receio de ser rejeitada e não se sentir amada.

Além disso, a separação wculminou em outras cognições e regras no que diz respeito aos relacionamentos: evitar relacionamentos para não se sentir não amada e evitar situações para não se sentir incapaz e desamparada.

D. Potencialidades e recursos

Ana era esforçada, dedicada, inteligente, amável, proativa, divertida e simpática. O fato de estar muito engajada no tratamento e empenhada em colocar em prática todo o aprendizado favoreceu o êxito da terapia.

 

PLANO DE TRATAMENTO

A. Lista de metas

Retomar a prática da oração

Ser menos autocrítica

Ser menos perfeccionista

Não evitar situações sociais

Ter mais proximidade com o pai

Realizar atividades sem a presença da mãe

B. Objetivos do tratamento

Realizar experimentos comportamentais com a prática da oração

Psicoeducar e reduzir a ansiedade

Reduzir comportamentos disfuncionais (evitação, esquiva, procrastinação, agradar excessivamente)

Avaliar os erros cognitivos (p. ex., catastrofismo)

Melhorar a autovalorização e a autoimagem

Reestruturar pensamentos e crenças disfuncionais

Treinar a resolução problemas (p. ex., melhorar o estudo)

C. Plano do tratamento

O plano para o tratamento de Ana deu ênfase a: (i) redução de sintomas de ansiedade com psicoeducação para pensamentos disfuncionais ligados às crenças de incapacidade e perfeccionismo; (ii) aumento do senso de autoeficácia com a meta social de aceitar convites e sair, com vantagens e desvantagens de se tornar mais independente e experimentar passeios sem a presença da mãe; (iii) redução de comportamentos compensatórios como esquiva, evitação, procrastinação e agradar excessivamente; (iv) desenvolvimento de habilidades de empatia e assertividade com relação ao pai; (v) flexibilização dos esquemas de desamparo, desvalor e desamor; (vi) retomada da prática da oração.

No início do tratamento, os objetivos foram retomar a prática da oração, instilar esperança, aliviar os sintomas de ansiedade, diminuir pensamentos catastróficos e engajar Ana na terapia, além de aumentar os contatos com amigos e sair mais de casa, questionando seus pensamentos automáticos disfuncionais, utilizando técnicas de meditação e prática do treino de respiração a fim de estabilizar seu humor. Algumas técnicas empregadas para alcançar esses objetivos foram o questionamento socrático, a seta descendente, o registro de pensamento automático, a elaboração de cartão de enfrentamento e a resolução de problemas.

Na fase intermediária do tratamento, o enfoque foi na flexibilização das crenças intermediárias (como regras, atitudes e pressupostos) e centrais, por meio da análise de evidências, "continuum" cognitivo, custo/benefício e experimentos comportamentais. Nessa fase também foi treinada a assertividade da paciente. Na fase final, objetivou-se a prevenção de recaída, elencando os ganhos da terapia e a identificação de possíveis gatilhos e recursos que a paciente havia adquirido.

 

CURSO DO TRATAMENTO

A. Relacionamento terapêutico

Foi desenvolvida uma boa aliança terapêutica entre a paciente e a terapeuta, o que ficou evidenciado pela adesão às tarefas propostas e o envolvimento nas sessões. Ana sempre foi muito gentil e divertida, o que enriquecia as sessões, criando grande sintonia no ambiente terapêutico.

B. Resultados

Em relação ao humor, foi possível observar a melhora dos sintomas de ansiedade, conforme mostra a Figura 1. Os sintomas de depressão e desesperança permaneceram baixos do início ao final da terapia.

 

 

Segundo relato da paciente, o fato de ter cultivado uma vida espiritual mais ativa contribuiu para que desenvolvesse maior sintonia consigo mesma e com os acontecimentos ao seu redor, auxiliando na identificação das próprias emoções e cognições, o que atuou como um aliado às estratégias de flexibilização de pensamentos e crenças usadas durante as sessões de terapia.

Avaliar seus pensamentos e desenvolver pensamentos menos pessimistas e catastróficos propiciou maior enfrentamento das situações cotidianas e trouxe discernimento acerca de outras vivências, principalmente auxiliando na redução da estratégia compensatória de busca de segurança. A persistência na prática da oração deu a Ana a resiliência advinda da sua espiritualidade.

Ana obteve grandes insights como resultado de sua perseverança e disciplina na oração, assim como confiança, esperança e otimismo. Além do apoio advindo de sua espiritualidade e de sua família, a dedicação constante à vida de oração favoreceu e aumentou sua resiliência, tornando-se, assim, um fator de proteção, visto que suas crenças religiosas eram também evidências para pensamentos mais realistas e menos catastróficos. A paciente frequentava grupos religiosos (catecumenato), contribuindo também para aumentar sua rede de apoio social e favorecer a aproximação e o cultivo de novas amizades.

Foi observado que, quando realizava as práticas de oração durante a manhã, Ana se sentia mais focada, mais capaz de realizar tarefas, mais esperançosa e otimista. Orar antes de agir diminuía sua preocupação, pois assim se sentia mais animada, pensava de forma mais realista e buscava resolver seus problemas – "Eu fico mais tranquila porque entrego. Orar me ilumina e me leva a pensar que não posso ficar parada esperando algo acontecer. E pude ver os resultados do dia que rezo e o que acontece quando não rezo".

As metas propostas foram atingidas com êxito. Também foi possível observar a flexibilização das crenças centrais, pois a paciente passou a pensar: "Tem coisas nas quais sou boa, me esforço e consigo e em outras eu não tenho tanta habilidade", "Posso me esforçar e aprender coisas novas","Eu me vejo diferente, mas não como algo ruim...","Acho interessante ser diferente; hoje eu sei ser diferente e fazer a diferença!".

 

DISCUSSÃO

Há um acúmulo de evidências demonstrando os benefícios da espiritualidade/religiosidade na vida e na saúde das pessoas, desempenhando um papel importante na maneira como o indivíduo lida/enfrenta as adversidades (Brito, 2011; Fernandes & Oliveira, 2016; Panzini & Bandeira, 2007; Oliveira & Junges, 2012; Taranu, 2011). Neste estudo de caso, a espiritualidade permeou todo o processo psicoterapêutico, já que constantemente a paciente fazia inter-relações entre as conquistas alcançadas na terapia relacionadas a flexibilizações de crenças e pensamentos e suas crenças espirituais.

A confiança e a dedicação que a paciente depositou na terapia, com o auxílio da espiritualidade, remetem aos estilos explicativos de Seligman (2011). O autor sugere que as pessoas têm estilos explicativos para as situações que podem ter caráter permanente, pessoal e abrangente. Tais estilos de pensamentos (otimista ou pessimista) conduzem o indivíduo a interpretar positiva ou negativamente um evento de vida. Esses estilos são aprendidos e podem ser desaprendidos, e o objetivo da TCC é justamente focar nesses pensamentos disfuncionais e ressignificá-los e/ou flexibilizá-los. Além disso, sabe-se que na ansiedade ocorre um viés de atenção voltado para situações de perigo nas quais o indivíduo tende a apresentar, no conteúdo de seus pensamentos, atribuições catastróficas, reduzindo, assim, seus recursos de enfrentamento. Dessa maneira, estilos explicativos mais otimistas podem potencializar os resultados adquiridos na terapia, ajudando a reduzir sintomas de ansiedade, como pode ser observado na terapia de Ana.

Os resultados deste estudo de caso foram alcançados a partir da fé que a paciente tinha, aliada a técnicas de descatastrofização, experimentos comportamentais, análise de evidências e flexibilização de pensamentos e crenças. Dessa maneira, o recurso da religiosidade já incorporado ao repertório prévio da paciente somou-se como uma vantagem no tratamento, auxiliando desde a adesão até a alta. Segundo Moreira-Almeida, Sharma, Van Rensburg, Verhagen e Cook (2016), as crenças e práticas religiosas podem reduzir o medo de perda de controle e desamparo ante situações de estresse, facilitando a atribuição de um novo significado às interpretações. Ainda nesse sentido, segundo Pargament (2001), a religiosidade pode colaborar com a diminuição da desconfiança e da necessidade de controle, além de aumentar o senso de autoeficácia. Posto isso, o indivíduo pode, assim, beneficiar-se mais dos resultados e potencializar os efeitos positivos.

Como exposto neste relato de caso, a espiritualidade desempenhou um papel importante na relação terapêutica e deveria ser tratada como uma variável clínica por parte dos terapeutas (Brito, 2011; Borges, Santos, & Pinheiro, 2015; Soratto, da Silva, Zugno, & Daniel, 2016). No caso da paciente em questão, ficaram claramente demonstrados, pela diminuição do quadro de ansiedade e dos pensamentos pessimistas e catastróficos, um maior enfrentamento das adversidades, clareza e discernimento no pensamento e redução das estratégias compensatórias de busca de segurança.

Cabe, por fim, mencionar algumas limitações encontradas no presente estudo, as quais se referem às poucas pesquisas publicadas sobre o assunto na literatura científica, o que dificulta a comparabilidade dos resultados com outros estudos de caso da mesma abordagem psicoterápica, bem como à impossibilidade de generalização dos resultados devido a este trabalho ter sido um estudo de caso.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência:
Mariana Fortunata Donadon
Instituição: Centro de Terapia Cognitiva Veda de Ribeirão Preto – CTC VEDA RP
Av Heraclito Fontoura Sobral Pinto, 1855
Ribeirão Preto - SP CEP: 14022-000
E-mail: marianadonadon@hotmail.com

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 3 de Dezembro de 2017. cod. 560
Artigo aceito em 6 de Maio de 2019

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