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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.16 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1808-5687.20200007 

RELATOS DE PESQUISAS RESEARCH REPORTS

 

Aspectos psicológicos relacionados à obesidade: relato de caso

 

Psychological aspects related to obesity: case report

 

 

Bárbara Wolff de-MatosI; Laura Morais MachadoI; Guilherme Scotta HentschkeII

IUniversidade Luterana do Brasil, Curso de Graduação em Psicologia - Cachoeira do Sul RS - Brasil
IIUniversidade do Porto, Interdisciplinary Centre of Marine and Environmental Research CIIMAR- Porto - Oporto - Portugal

Correspondência

 

 


RESUMO

A obesidade é um problema de saúde pública e sua causa pode estar associada a predisponentes genéticos e ambientais, além de sofrer influência de fatores mentais e emocionais. Estes fatores afetam principalmente as mulheres que utilizam o comer em excesso como estratégia compensatória, gerando incialmente alívio imediato e posteriormente sentimentos de culpa. O referente relato de caso buscou apontar a relação entre obesidade e fatores psicológicos a partir da perspectiva cognitivo comportamental. Foram utilizados no estudo uma ficha sociodemográfica e um roteiro semiestruturado de entrevista, que permitiram construir categorias temáticas sobre o funcionamento mental obeso, sendo elas: a relação entre sentimentos disfóricos e evidenciaram a relação entre a obesidade e fatores psicológicos, deixando claro o quanto a comida é utilizada como estratégia de enfrentamento e/ou compensatória. A partir dos resultados obtidos é fundamental que pacientes com obesidade recebam tratamento psicológico na abordagem cognitivo-comportamental com o intuito de desmistificar algumas crenças disfuncionais e desenvolver nos mesmos estratégias de enfrentamento mais eficazes.

Palavras-chave: Obesidade; Psicologia; Terapia Cognitivo-Comportamental.


ABSTRACT

Obesity is a public health problem and its cause may be associated with genetic and environmental predispositions, as well as being influenced by mental and emotional factors. These factors mainly affect women who use overeating as a compensatory strategy, initially generating immediate relief and later feelings of guilt. This case report sought to point out the relationship between obesity and psychological factors from the cognitive- behavioral perspective. A sociodemographic record and a semi-structured interview script were used in the study, which allowed the construction of thematic categories on obese mental functioning, namely: the relationship between dysphoric feelings and eating behavior and beliefs related to obesity, based on the Bar-din Content analysis. Both evidenced the relationship between obesity and psychological factors, making it clear how much food is used as a coping and / or compensatory strategy. From the results obtained it is essential that patients with obesity receive psychological treatment in the cognitive behavioral approach in order to demystify some dysfunctional beliefs and develop in the same strategies more effective coping.

Keywords: Obesity; Psychology; Cognitive Behavioral Therapy.


 

 

INTRODUÇÃO

A obesidade é um problema complexo e multifatorial, que envolve aspectos genéticos, comportamentais, socioeconômicos e ambientais, que causa aumento no risco de morbidade e mortalidade (Hruby & Hu, 2015).Também sofre influência de fatores de ordem mental- emocional (American Psychiatric Association, 2014; Finger & Oliveira, 2016), assim, desconsiderar estes último sem sua origem ou manutenção é visualizar de forma simplificada o problema (Oliveira & Cunha, 2008).

Disfunções emocionais, sociais e cognitivas agem na manutenção da compulsão alimentar, frequentemente presente em indivíduos obesos (Hilbert, 2018). A maior parte dos indivíduos com transtorno de compulsão alimentar (TCA) apresenta um histórico de tentativas de fazer dieta e repetidos fracassos no que se refere a perda e manutenção do peso. É comum que esses pacientes, mas também os obesos sem o transtorno, relatem que, ao sair da dieta, se sentem como se nunca conseguissem fazer nada certo (Finger & Oliveira, 2016). Comer proporciona um alívio imediato, mas, assim que o indivíduo cessa esse comportamento, surge o sentimento de culpa (De Lima & Oliveira, 2016).

As mulheres são as que mais sofrem com o aumento da obesidade em todo o mundo, principalmente as de baixa renda, atingindo taxas 10% superiores às dos homens (OPAS, 2017). As mulheres obesas comem em exagero como recurso compensatório para situações de tristeza, depressão, ansiedade e raiva. A pressão social pela busca da magreza incentiva o esforço de se submeter a um tratamento a qualquer custo, o que desencadeia reações psicológicas e fisiológicas que aumentam a obesidade (De Lima & Oliveira, 2016).

Nesse contexto, o entendimento sobre a relação entre fatores psicológicos, compulsão alimentar e obesidade é importante para o desenvolvimento de técnicas cada vez mais eficazes de tratamento. Faz-se necessário interromper o círculo vicioso (tensão-comer-culpa-restringir-comer...) e avaliar as intensas demandas psicológicas causadas pela história de restrição alimentar e pela pressão social para ser magro (Bernardi, Cichelero, & Vitolo, 2005). Em acréscimo, essa restrição pode levar o indivíduo a desejar por comida, o que atua como potente fator de risco para o comer em excesso e acaba servindo como gatilho para o desenvolvimento do comportamento de compulsão alimentar (Verzijl, Ahlich, Schlauch, & Rancourt, 2018).

Partindo-se dessas informações, o presente relato de caso objetivou apontar a relação entre obesidade e fatores psicológicos de uma mulher obesa conforme a perspectiva cognitivo-comportamental. Para tanto, visou-se a verificação da influência de aspectos psicológicos na obesidade, a identificação das crenças relacionadas à condição e o apontamento das principais estratégias de enfrentamento.

 

MÉTODO

Esta pesquisa qualitativa exploratória de estudo de caso (Gil, 2002) foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Seres Humanos sob o número CAAE 87136618.9.0000.5349, de acordo com a Resolução nº466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012), e pelos critérios da Resolução do Conselho Federal de Psicologia, nº 16, de 20 de dezembro de 2000 (CFP, 2014).

Descrição da Participante

Mulher, obesa, integrante o grupo de pré-bariátrica do Sistema Único de Saúde (SUS), da cidade de Cachoeira do Sul (RS). A fim de preservar sua identidade, ela foi identificada como P. Aos 38 anos de idade, P. mora com os pais, está desempregada, cursa o último semestre de licenciatura em Filosofia, com vistas a continuar os estudos em pós-graduação. É a caçula de três irmãos. Sua mãe tem 69 anos e necessita de cuidados de saúde, e seu pai, 75 anos. Ambos recebem um salário mínimo, renda dividida pelos três.

P. não tem certeza quanto ao seu peso atual e infere que seja 150 quilos. Esse peso, em relação a sua altura, 1,64m, compreende IMC 55,8, indicador de obesidade. Em relação ao histórico de doenças endócrinas, afirma ter utilizado medicação para hipotireoidismo entre os 32 e os 37 anos, suspensa atualmente. Sofre de hipertensão, o que demanda uso contínuo de medicamentos e dores constantes nas articulações e na coluna. Diagnosticada com depressão quando estava com, aproximadamente, 20 anos de idade, utiliza Citalopram desde os 26 anos. No período das entrevistas, encontrava-se em tratamento para Pioderma Gangrenoso (inflamações na pele da barriga de difícil cicatrização).

Instrumentos

Para a coleta de dados pessoais, sociodemográficos, de histórico psiquiátrico e de doenças endócrinas e problemas de saúde relacionados à obesidade, a participante da pesquisa preencheuuma ficha confeccionada pela pesquisadora (Anexo 1). Em conjunto, foram realizadas duas entrevistas a partir de roteiro semiestruturado (Anexo 2), que, mediante autorização da entrevistada, foram gravadas e transcritas para posterior análise. Os dados reunidos permitiram construir a categoria temática sobre funcionamento mental obeso a partir da análise de conteúdo (Bardin, 2016), subdividida em duas subcategorias: relação entre sentimentos disfóricos e comportamento alimentar, e crenças relacionadas à obesidade.

 

RESULTADOS

O funcionamento mental obeso

Relação entre sentimentos disfóricos e comportamento alimentar

Um ambiente familiar percebido como pouco aberto à expressão de sentimentos e emoções parece contribuir de forma significativa para um comportamento alimentar mais desadaptado nas crianças (Coelho & Pires, 2014). Os pais, ao utilizarem a comida como reguladora das emoções de seus filhos, podem aumentar comportamentos alimentares obesogênicos nas crianças, levando-as a associar emoções negativas ao comer (Larsen et al., 2015).

Essas informações vão ao encontro do próprio entendimento da participante da pesquisa sobre uma das causas de sua obesidade:

Eu fui abusada pelo meu tio e tive que engolir... naquela época tinha 8 anos, foi que eu comecei a engordar... não tive reação e me culpo por isso, por não ter rejeitado... me senti suja... lembro que me isolei...

Experiências traumáticas durante a infância, incluindo abuso sexual, estão associadas a sobrepeso e obesidade (Chu et al., 2019). O histórico de tentativa de abuso sexual por um familiar na infância é somado ao histórico de agressões físicas praticadas pelo pai, o que configura o ambiente primário em invalidante e hostil que P. relata: "Meu pai assim era muito agressivo, violento, me batia... ele me derrubava no chão, me chutava o rosto."

Assim, percebe-se a falta de apoio emocional no contexto familiar em relação às angústias da entrevistada. Queixa-se de não ter sido amparada pelo pai e, apesar de reconhecer ter recebido cuidados da mãe, atualmente ainda temum sentimento de "falta", "vazio", que tenta "preencher" com comida.

No contexto familiar, como lugar de partilha de afetos, cuidados e padrões culturais, constroem-se os processos psicológicos e as características individuais a partir da intersubjetividade das relações. Segundo Coelho e Pires (2014), para a criança, comer pode ser a forma que encontra para se estruturar nesse sistema vazio de afetos, mas também um modo de usar o corpo como proteção de um ambiente familiar disfuncional.

Pensamentos inadequados contribuem para a etiologia e para a manutenção da obesidade, já que pensamentos disfuncionais acerca do peso, da alimentação e do valor pessoal desencadeiam sentimentos e comportamentos inadequados em indivíduos obesos (Finger & Oliveira, 2016), como pode ser percebido na fala de P.: "Antes eu me sentia um horror. Eu agregava tudo, puxava tudo pra mim, como sendo a pior pessoa do mundo, como sendo um horror... uma catástrofe.".

A pressão social para perda de peso pode fazer com que mulheres obesas se tornem mais propensas a se envolver em comportamentos de compulsão alimentar, os quais ocorrem em funçãodo estresse desencadeado por essa pressão, mas também pela busca de dietas/restrição. O mecanismo de estresse contribui para aumento de consumo de alimentos e bebidas, ganho significativo de peso e início da obesidade (Chu et al., 2019).

Como exemplo disso, P. relata histórico de tentativas frustradas de perda de peso desde a adolescência: "Todas as vezes que eu provoquei a restrição [foram seguidas pela compulsão] [...] Na tentativa de perder peso... perdi muito, só que eu recuperei muito depois.".

Isso pode ser entendido como um fracasso e uma incapacidade do sujeito, contribuindo para a consolidação de pensamentos disfuncionais em relação a si e para a busca por uma solução mágica (uso de medicamentos), bem como para crenças de desamparo ("Sou incapaz", "Sou fracassado", "Sou incompetente"). P. traz esse contexto na frase:"Nunca consegui [emagrecer]. Mais do que isso não [...]. Eu me frustrei, daí eu tive o caminho inverso, que eu comecei a engordar."

O uso de alimentos como forma de reduzir temporariamente a angústia, sem buscar remover ou reduzir o estímulo estressor, é considerado como estratégia de enfrentamento disfuncional (evitação), mas também como fonte de sofrimento mental (Rand et al., 2017). Essa forma de alimentação pode ser compulsiva, normalmente seguida por sentimentos como culpa e angústia, gerando um ciclo de retroalimentação (Vaz, Conceição & Machado, 2009).

A participante já passou por vários episódios de compulsão alimentar, todos seguidos por arrependimento: "Eu fico muito arrependida [após a compulsão]. [...] Fica tudo muito ruim depois que eu como muito. Não fica bom como eu penso...eu ainda estou frente aquele problema, só que agora mais fragilizada, agora eu tô mais pesada.".

P. reconhece a busca por comida como estratégia para amenizar seu sofrimento, como relata:"Quando sou rejeitada... parece que a comida é um aconchego, ela é quente, ela acolhe. Então, quando tá doendo muito, que eu tô muito angustiada, muito sozinha... parece que comendo... preenche.".

A participante também percebe a disfuncionalidade dessa estratégia utilizada em momentos de sofrimento, que pode fazer com que sua carga psicológica aumente:"Quando eu tô preparando [a comida] assim, pra satisfazer esse momento... parece que eu fico bloqueada, só tô pensando em comer...".

Há vieses interpretativos disfuncionais que impedem o engajamento em padrões alimentares saudáveis ou manutenção do peso, como pensamentos críticos recorrentes ("Sou um fracasso por não conseguir emagrecer"), justificativa ("Mereço comer porque tive um dia muito difícil") e regras rígidas ("Preciso comer tudo o que está no prato"). Tais distorções fazem com que condições emocionais disfuncionais sejam antecedentes, mas também consequentes do comportamento alimentar (Deluchi, Souza & Pergher, 2013).

Como exemplo, P. relata: "Era uma ansiedade muito forte, eu não conseguia dormir. Aí me vem aquela... um vazio, aí aquele... aquela comida toda parece que me preenchia, me aquecia e eu conseguia até dormir."

No discurso, destacam-se os sentimentos de "nada" e "vazio", bem como o acúmulo de "mágoas", que podem estar relacionados ao seu diagnóstico de depressão:

A gente vai moldando o corpo de acordo com o formato que tá nosso sentimento... sinto que, quando a gente tá uma bagunça emocional ou retendo muita coisa, muito sentimento, rancor, mágoa, a gente incha, engole sapo. A gente enche... engorda...

Além das consequências físicas, a obesidade tem efeitos psicológicos negativos. As principais consequências psicológicas podem incluir depressão, imagem corporal prejudicada, baixa autoestima, transtornos alimentares, estresse e baixa qualidade de vida (Chu et al., 2019).

O entendimento próprio da participante corrobora essas informações, visto que acredita haver relação entre a sua condição de obesa e seu sofrimento psicológico:

Era mais fácil eu dizer que atribuo só ao sobrepeso, mas penso que é algo mais ainda... se é só sobrepeso, eu tiro, mas não é... é emocional... os dois estão de mãos dadas, é o sobrepeso e o emocional.

Crenças relacionadas à obesidade

As crenças são desenvolvidas na infância a partir da predisposição genética para determinados traços de personalidade e da interação com pessoas significativas (Beck, 2014). A obesidade pode ser considerada um tipo de comportamento aditivo que inclui um padrão de crenças disfuncionais aditivas relacionadas à alimentação. Tais crenças podem ser antecipatórias, com expectativas relacionadas ao efeito da alimentação; facilitadoras, que autorizam o comer como "merecimento"; e de alívio, resultantes do engajamento no padrão alimentar (De Lima & Oliveira, 2016).

"Eu interpreto [a comida] como um alívio. Pra aliviar aquele terror que eu tô passando [...] É o que vier... Nem importava o gosto, sabe?" Nesse relato, evidencia-se a crença de alívio relacionada ao comer, não por prazer, já que "não importava o gosto", mas como estratégia para amenizar o desconforto emocional e psicológico:

"Eu acabo comendo muito, muito mesmo assim. E isso que me sufocava. Logo vinha o sufocamento. Só que daí o pensamento tava travado. Por causa que a barriga tá cheia, eu não conseguia pensar direito... muito pesada.".

As crenças disfuncionais a respeito da alimentação e do peso em indivíduos obesos podem gerar sentimentos de culpa, ansiedade, raiva, preocupação, tristeza, impotência e estresse, tendo como consequência problemas de relacionamento interpessoal, familiar e conjugal (Neufeld, Moreira, & Xavier, 2012). Esse fato é constatado no período após a grande ingesta de alimentos de P., que pode levar à confirmação de suas crenças de desamparo e desamor: "Quando as pessoas me rejeitam, a minha autoestima fica muito baixa. A rejeição baixa muito a minha estima.[...] E aí, eu como, eu choro, eu como, eu busco sempre esse conforto.".

Nessa fala, pode-se identificar a crença de desamor que, de acordo com Beck (2014), inclui não ser gostado ou desejado, estando relacionada à rejeição, baixando sua autoestima e reconfirmando essa crença. "No relacionamento amoroso não existe lugar pra mim, então eu nasci pra ser uma boa amiga. Se eu quero ter alguém na minha vida, eu tenho que ter amigos".

As rejeições nos relacionamentos amorosos colaboram para sua rigidez evidenciada pela crença-regra ao verbalizar:

"Ao mesmo tempo em que há a crença de desamor, há a crença-regra de que "Se não consigo namorar, então tenho de ser uma boa amiga" ou "Se eu quero alguém na minha vida, então terei de ser boa amiga".

Somado a isso, P. parece não atribuir valor a si pelo fato de não trabalhar e depender financeiramente dos pais. Assim, além da crença de desamor, há a de desamparo, como "Sou um fracasso" e "Sou incompetente". "Eu não tenho sorte pro emprego, eu não tenho sorte com relacionamento... eu já vi outras pessoas gordinhas casando, namorando, tendo filhos, comigo não dá, não rola, não emplaca, não acontece..."

Crenças típicas de desamparo envolvem ser ineficiente em conseguir fazer as coisas (Beck, 2014). Os arrependimentos sentidos após os episódios de compulsão alimentar as nutrem ainda mais. P. verbaliza o significado desse fato e se reconhece como frustrada, sendo possível acessar novamente a crença de desamparo: "[Comer grandes quantidades e arrependerse significa] que eu tô com mais acúmulo de frustrações, de tristezas, eu sou muito frustrada.".

A mesma crença também é evidenciada quando relata ter buscado por uma "solução mágica" para sua condição, já que "sozinha não era capaz", porém esta última fracassou: "A princípio [a medicação] parecia ser uma fórmula mágica que ia me tirar daquele problema e eu... sem ter uma fórmula assim, eu não me sentia capaz. Ainda tenho dificuldade de me sentir.".

As crenças centrais influenciam o desenvolvimento deatitudes, regras e pressupostos (Beck, 2014). Outras crençasregra de P. incluem "Se sou gorda, então serei rejeitada" e "Se fosse magra, então seria desejada", as quais se estruturaram na adolescência devido a experiências nos relacionamentos amorosos:

Já pensei [que ser magro é sinônimo de felicidade, sucesso e realização] Nas minhas tentativas de namoro, de me dizerem que não gostavam de mim porque eu era gorda, achava que não tinha solução se não fosse magra.

Esse pressuposto relacionado à rejeição nos relacionamentos está diretamente associado à crença central de desamor como "Sou incapaz de ser amado", já que não foi amada por completo em taisexperiências: "Cada um deles [namorados que a rejeitaram na adolescência] me amou um pedaço, ninguém me amou inteiro.".

Outro aspectomantenedor dessa crença central é desacreditar em sua capacidade para ser amada: "Várias vezes [já fui abandonada]. Indigna de ser amada... descrente... descrente no amor do ser humano [...] Esse é o vazio, isso que eu senti.".

 

DISCUSSÃO

Como destacado anteriormente, P. utiliza a comida de forma disfuncional, o que a faz permanecer na rigidez de suas próprias crenças, as quais são confirmadas a cada "frustração" sentida. Esses tipos de crenças podem levar o indivíduo obeso a criar tendências disfuncionais de raciocínio a partir do desenvolvimento de pensamentos dicotômicos: "Se não estou completamente com o controle, significa que perdi todo o controle, que está tudo perdido; então, posso me fartar" relata P. (Vasquez, Martins & Azevedo, 2004).

Pessoas obesas buscam por ganhos imediatos sem considerar possíveis perdas futuras, o que gera impacto nas tomadas de decisão. Os déficits de tomada de decisão se dão a partir de estilo rígido de pensamento, podendo contribuir para a incapacidade de regular a ingestão de alimentos (Perpiñá, Segura & Sánchez-Reales, 2017), caracterizada entre "dois extremos" - privação e compulsão. Em relação a P., após períodos "sem controle", sente-se frustrada e arrependida. Esse sofrimento emocional acaba por retroalimentar a manutenção da obesidade.

Assim como as crenças facilitadoras, que motivam e autorizam o comer, atuandona facilitação do comportamento alimentar disfuncional, mas na dificuldadede engajamento em padrões alimentares saudáveis (Deluchi et al., 2013).

Durante o contato com a participante, houve necessidade de sugerir que ela buscasse por atendimento psicológico devido ao sofrimento relatado. Apesar de não se caracterizar como atendimento psicológico, o próprio processo de escuta disponibilizadonos momentos de entrevista parece ter sido terapêutico, o que foi reconhecido pela participante.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apresentados vão ao encontro de achados literários sobre a relação entre obesidade e fatores psicológicos, também reconhecida pela participante da pesquisa, que atribui como uma das causas de sua obesidade, como, por exemplo, algumas experiências invalidantes em seu ambiente familiar primário. Essas, ainda hoje, sentidas como um "vazio", que é "preenchido" com comida - estratégia de enfrentamento disfuncional.

Este relato de caso poderá auxiliar no entendimento integral da obesidade e favorecer o uso de estratégias de intervenção. A partir da reestruturação cognitiva, técnica amplamente utilizada pela terapia cognitivo-comportamental, caso relatado associado à obesidade. A partir da identificação e correção de erros de processamento e das crenças disfuncionais, podem ser desenvolvidas e mantidas alterações cognitivas e comportamentais que auxiliem na conquista de hábitos saudáveis, com impacto positivo na obesidade.

 

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Correspondência:
Bárbara Wolff de-Matos
E-mail: barbara.wmatos@gmail.com

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 28 de Julho de 2019. cod. 32.
Artigo aceito em 27 de Agosto de 2020.

 

 

 

 

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