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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.55 n.1 Rio de Janeiro jun. 2003

 

ARTIGOS

 

A construção da subjetividade infantil a partir da vivência com o adoecimento: a questão do estigma

 

The construction of child subjectivity in existence with chronic illness: discussions of stigma

 

 

Martha Cristina Nunes MoreiraI,II; Aline Duque de Macedo,III

IInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
IIInstituto Fernandes Figueira. Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Programa de Atenção Integral à Criança Hospitalizada "Saúde & Brincar"

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute a construção da subjetividade infantil, em situações de vivência com o adoecimento crônico e o estigma. Priorizamos a expressão lúdica como o mecanismo por excelência desse processo, que propicia, pela ludicidade, a elaboração do estigma por parte da criança. Utilizamos o estudo de caso como a estratégia metodológica para iluminar as conseqüências do estigma - entendido como o conjunto de marcas associadas à mieloemeningocele na vida de 5 crianças na faixa etária de 7 a 8 anos, que freqüentam e se tratam no Instituto Fernandes Figueira desde o seu nascimento. Além do trabalho direto com as crianças, entrevistamos suas respectivas mães a fim de recuperar e registrar as suas histórias com seus filhos, tendo como marcos cronológicos: a notícia da gravidez, o pré-natal, os exames diagnósticos e a constatação da anomalia em seus filhos, o nascimento e suas redes de sociabilidade, priorizando os contatos na família, na escola e no hospital. Como conclusão, apontamos que a ação técnica mediada pelo brincar na área de saúde da criança serve como potente instrumento para a construção de uma clínica ampliada - clínica essa que tem como qualificativo central o vínculo de confiança, estabelecido no encontro entre pessoas, e que vai possibilitar relações de convívio, e de troca social que transcendem o modelo reducionista de saúde.

Palavras-chave: Saúde da criança; Estigma; Subjetividade infantil.


ABSTRACT

The present article discusses the construction of the child subjectivity, in existence with situations of chronic illnesses and stigma. We prioritized play expressions as a mechanism of excellence for this process, which facilitates through play the elaboration of stigma by the child. We have utilized a case study as the methodological strategy to illuminate the consequences of stigma - defined as a collection of marks associated with myeloemeningocele in five children with ages ranging from 7 to 8 years. Such children visit and are treated at the Fernandes Figueira Institute from birth. Aside from the direct contact with children, their mothers were interviewed in order to recover and register their personal histories, having as the main chronological marks: the news of the pregnancy, the prenatal care, the diagnostical examinations and the verification of the anomaly in their children, the birth and finally, the sociability networks, prioritizing family, school and hospital interactions. It was concluded that the technical action mediated by Play in child health serves as potent instrument for the construction of an integral clinic. Such clinic has as its central epithet the bond of trust established in the encounter amongst people, and that it will facilitate their relationship and social exchange which transcends the reductionist health-care model.

Keywords: Child health; Stigma; Child subjectivity.


 

 

A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE INFANTIL A PARTIR DA VIVÊNCIA COM O ADOECIMENTO: A QUESTÃO DO ESTIGMA

A discussão aqui empreendida tem por base os resultados da pesquisa "Investigando o Estigma relacionado à Doença Crônica: o caso das crianças hidrocefálicas com mielomeningocele", realizada no campo de assistência, pesquisa e ensino do Saúde e Brincar - Programa de Atenção Integral à Criança Hospitalizada do Instituto Fernandes Figueira/IFF/FIOCRUZ. Ao discutir a construção da subjetividade infantil em crianças que vivem com mielomeningocele, recuperamos nas falas de suas mães a dimensão relacional no processo de ter um filho nascido com mielomeningocele. Dessa dimensão relacional faz parte um conjunto de significados que são construídos no processo de interação social das mães com as instituições de referência para seus filhos (hospital e escola). O estigma associado às marcas da doença com que seus filhos nasceram ocupa um papel importante nesse processo de interação entre a mãe, a criança e os profissionais de referência. é nesse contexto que as crianças e suas famílias vão aprender a viver e expressar suas diferenças frente aos padrões de normalidade socialmente compartilhados.

Sendo o hospital o primeiro local de referência para essas crianças e suas famílias, temos por pressuposto que os espaços lúdicos introduzidos no interior da organização hospitalar tornam-se locais propícios à interação efetiva entre as crianças, seus acompanhantes e a equipe de saúde, por meio da mediação produzida pelo convite para brincar. O convite para brincar pressupõe, como anterior ao prazer para brincar, a prerrogativa da liberdade para recusar esse mesmo convite (DANTAS, 2002). Assim, tal convite considera primeiro a liberdade da criança e sua condição de sujeito, o que abre a possibilidade para o encontro com uma equipe de saúde disposta a valorizar sua ludicidade. Esse processo acaba por contrastar com a tradição hospitalar que, mesmo em um hospital pediátrico, onde as crianças são a clientela por excelência, tende a desconsiderar e, por vezes, ignorar a singularidade infantil e suas expressões (brincar, recusar procedimentos de cuidado, choros, questionamentos da rotina, barulhos, reivindicações variadas, dentre outros). A imagem que fica ressaltada é a da técnica, das rotinas, dos procedimentos que se sobrepõem à singularidade do processo de adoecer e aderir ao tratamento por parte dos sujeitos. No caso das crianças, essa imagem reafirma a perspectiva que qualifica socialmente a infância como dependente do adulto, sem direito de escolha, caracterizada pelo desconhecimento e a irresponsabilidade com o que se passa ao seu redor (MOREIRA & CUNHA, 2003).

No curso do presente artigo, apresentamos a perspectiva teórico-metodológica que embasa nossas discussões acerca da construção da subjetividade infantil, na qual a expressão lúdica é o mecanismo por excelência e a criança, um sujeito digno de expressar-se. Utilizamos o estudo de caso como a estratégia metodológica para iluminar as conseqüências do estigma - entendido como o conjunto de marcas associadas à mieloemeningocele na vida de cinco crianças na faixa etária de 7 a 8 anos, que freqüentam e se tratam no Instituto Fernandes Figueira desde o seu nascimento. Além do trabalho direto com as crianças, entrevistamos as respectivas mães a fim de recuperar e registrar as suas histórias com seus filhos, tendo como marcos cronológicos a notícia da gravidez, o pré-natal, os exames diagnósticos e a constatação da anomalia, o nascimento e suas redes de sociabilidade, priorizando os contatos na família, na escola e no hospital.

 

O HOSPITAL, A RELAÇÃO COM OS PAIS E A ESCOLA: ESPAÇOS PARA A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE INFANTIL

No Instituto Fernandes Figueira - hospital terciário de referência para assistência, pesquisa e ensino na área de saúde da criança, do adolescente e da mulher, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde - trabalhamos com crianças que pertencem aos contextos mais diversos e guardam como traço de semelhança algum tipo de relação com o universo saúde/doença/tratamento; seja por se tratar de crianças portadoras de patologias, por serem crianças que convivem com outras pessoas portadoras de patologias (irmãos, primos, pais, vizinhos, etc), ou até mesmo por serem crianças que convivem com a suspeita de uma doença (e vão ao hospital para realizar um único exame).

Nesse universo, temos a possibilidade de acompanhar um momento da construção, exercício e ressignificação dos papéis sociais que se dá por meio dos encounters ou das chamadas relações face-a-face (GOFFMAN, 1988). é por meio desses encontros que a subjetividade é construída e se expressa. No caso das crianças, é fundamental a relação com as pessoas de referência, que são representadas pela mãe e seus cuidados primários, compartilhados com outras pessoas de referência para ela (o pai, os avós, os amigos, os vizinhos, por exemplo). Ao referir subjetividade, recorremos a Castoriadis (1999), que a define como "a capacidade de receber o sentido, de fazer algo com ele e de produzir sentido, dar sentido, fazer com que cada vez seja um sentido novo" (p. 35). A subjetividade, portanto, está relacionada à questão do sujeito, à questão do humano e das possibilidades do homem, não sendo justaposição de um corpo puramente biológico ou físico, mas também sociabilidade e historicidade.

Dentro do espaço hospitalar, as interações da mãe com seu bebê nascido com mielomeningocele dependem, em grande parte, da mediação dos profissionais de saúde. Dessa maneira, todas as falas, ações, olhares e cuidados vindos desses profissionais ganham um valor imenso. No trecho a seguir, a mãe se ressente de uma abordagem que discrimina seu filho pela anomalia que apresenta. O investimento da mãe em seu filho coloca-o na condição de um sujeito que entende seus carinhos e sua "música", o que contrasta com o desinvestimento do profissional de saúde; aos olhos da mãe, esse desvalor é interpretado como referido a uma diferença entre seu filho e os outros bebês, nascidos sem anomalia:

"Aí eu queria ficar com ele porque eu achava que me sentindo ali perto ele ia ficar animado para conseguir resistir àquilo tudo; nisso eu conversava com ele, o pai dele também, cantava musiquinha mesmo que não tava entendendo nada; porque ele tava pior que eu, chorando à-toa. Aí eu dizia: "canta que ele entende", passando aquilo normalmente, como se faz com bebê, era um bebê. Aí quando a enfermeira falou aquilo, como quem diz: "Vai morrer mesmo, é um monstrinho, não vai valer nada", eu entendi aquilo como um descaso; o que me doeu foi o modo dela fazer, porque ela tratava tão bem os outros, não é que ela tratasse mal a criança; mas o modo de falar, de limpar, trocar até mesmo as roupinhas, eu achava que não tinha importância. Eu acho que era por isso que não me chamava. Não me chamavam para dar mamá porque não tinha importância. As outras sim, tinham que vir, eu não" (Entrevista 01).

O trecho anterior reforça nosso argumento de que o estigma enquanto uma marca é um fato, mas as leituras realizadas pelos sujeitos envolvidos com os cuidados à criança é que vão atribuir a essa marca um sentido. Esse sentido pode desdobrar-se em diversos significados associados às expectativas, comparações, hierarquizações, desvalores, ou, por outro lado, na busca - como a que a mãe relata em sua vivência - de valorizar, de buscar acolher, de atribuir ao seu filho a qualificação de um sujeito de fato e de direito. Inquestionavelmente seu filho, apesar de todas as dificuldades, temores e diferenças de que pode se ressentir na relação com ele.

No caso de crianças com mielomeningocele, as mães e os pais vivenciam o receio relacionado ao desconhecimento real acerca do quanto uma lesão no tubo neural pode comprometer efetivamente as funções de interação, locomoção e cognição que representam a marca da autonomia no mundo humano. A preocupação com a independência de seus filhos se apresenta como o temor inicial, como bem ilustram os trechos das entrevistas a seguir, quando os pais fazem a primeira visita a seu bebê recém-nascido com mielomeningocele:

"Aí começou a chorar [o pai]: "ai meu Deus, e agora?", aí eu: "calma, não precisa ficar desesperado"; e ele naquele pânico dele: "Eu vou carregar um homem grande nos braços que não vai fazer nada".. E eu: "Não, ele vai fazer coisas sim"; assim que eu dizia, nem sabia o que ele podia fazer, "não, ele não vai ficar assim não, ele vai andar sim", dizia para ele... ai meu Deus, eu não sei se vai não, mas eu ia logo dizendo que vai, eu tenho essa mania..." (Entrevista 01).

"O que a gente nunca tinha visto, das crianças de mielo, qual a criança que andava, a maioria eram crianças que não andavam, de cadeira de rodas, então, a gente viu que o meu filho era um bebê, mas me assustava porque a gente só via criança de cadeira de rodas; e como a gente tava construindo a casa, né? porque a gente morava no Rio e fomos morar em Piratininga, e aí, a gente perguntou a ela como era o tamanho das cadeiras de rodas para poder fazer umas portas mais largas, essas coisas todas, um banheiro maior porque aí a gente ficou com medo de ele não andar e depois ficar mais difícil a vida dele por dentro de casa. E aí ela falou né? qual o tamanho e tudo, mas aí graças a deus o X. anda" (Entrevista 02).

O trecho anterior revela, portanto, a conjunção de dois tempos - o presente e o futuro - no momento em que o pai projeta para seu filho uma vida dependente em função da expectativa de uma deficiência, frente a uma "imagem de criança" que não sintoniza com o padrão de normalidade esperado. Esse encontro entre um filho nascido com uma anormalidade, adicionado ao fato de nunca ter visto uma criança com essa doença andar, e ainda a imprecisão do diagnóstico médico quanto à possibilidade de afirmar prognósticos e evoluções da doença quanto à locomoção e sobrevida, fazem parte desse campo dos encounters entre expectativas, exercícios de papéis sociais, modelos e padrões socialmente compartilhados. O momento do diagnóstico, ainda no pré-natal, revela uma imagem que para a mãe nada explica, e a explicação médica entra em um circuito onde falar sobre alguém que você ainda não viu, e que revela uma anormalidade, pode significar a identificação da anormalidade com a monstruosidade:

"Quando você recebe a notícia que você tem uma criança que tá com uma deformação que a cabeça tá crescendo na sua barriga, e o médico tinha desenhado o que era para gente, porque não sabia, não tinha nenhuma noção, então o médico fez a ultra-som e desenhou a cabeça, com as coisas, né? desenhou o neném com a cabeça grande a as costas, né? o volume nas costas, e aí o que que eu passei a ter? Um medo, como se eu tivesse criando um bicho, uma coisa assim estranha dentro do meu corpo, e eu não conseguia mais dormir porque eu ficava, eu já chorava porque eu não conseguia dormir, eu ficava deprimida" (Entrevista 02).

O conhecimento do profissional de saúde e a atribuição socialmente construída e compartilhada de seu mandato social sobre a doença, seu diagnóstico, seu prognóstico e sua evolução, desdobra-se em dois momentos para as mães: o do alívio em saber sobre o que seu filho tem, e o temor misturado à sensação de que o médico sela o seu destino e o de seu filho com a sua palavra. Os trechos a seguir retratam esse campo:

"Você que é a mãe daquele neném! Ela não sabia que eu era mãe de mais 2 filhos, eu achei que ela achou que eu ia desistir logo, que essa aí já era; ela olhou para mim e falou assim: Olha, vou logo avisando logo, seu filho nunca vai andar, ele tem paralisia, não vai sentar, não vai engatinhar; aí eu perguntei se ele tinha problema mental, essas coisas assim... Olha, pode ser que tenha sim, que ele venha a ter problemas mentais sim; e, ele vai ter doencinhas de criança; morrer, ele não vai morrer não; mas ele vai ser uma criança que vai vegetar porque ele não vai fazer nada; aí ela: resumindo: ele não vai fazer nada e eu tenho que fazer uma cirurgia correndo né? Ele não vai fazer nada, e foi fazer a cirurgia. Aí, eu olhei e falei assim: nossa, essa criança é bem pior que eu imaginava; e mesmo assim eu consegui passar por cima do que eu ouvi" (Entrevista 01).

"E aí, ele pegou falou: não vai sobreviver, geralmente essas crianças não sobrevivem e quando sobrevivem tem problema mental. Aquilo foi uma punhalada para mim e para o meu marido, né?" (Entrevista 02).

Ao mesmo tempo que o prognóstico é tão comprometedor, há uma cirurgia de correção a ser feita. Ou seja, há um investimento técnico, imperativo ético de investir em uma criança que, ao mesmo tempo, parece ser tão "desinvestida" para os padrões clínicos de normalidade. A mãe percebe claramente esse conflito que, nas ações de saúde, principalmente médicas, é revivido frente às crianças consideradas "fora de possibilidades terapêuticas". O ritmo hospitalar parece tocar uma música de notas extremamente graves quando nasce uma criança fora dos padrões de normalidade, e que precisa de cuidados. Esse ritmo não consegue enfrentar esses conflitos, talvez porque trabalhá-los pode significar desmontar uma racionalidade que precisa funcionar apesar de tudo que diz respeito ao humano: conflitos, dilemas, sentimentos, desafetos.

Na convivência com uma realidade dessa ordem, pais e mães são colocados, num primeiro momento, frente a situações-limite que envolvem a ambivalência de sentimentos e a contingência dos projetos. Ou seja, viver e conviver com uma doença de longo curso envolve o desafio de rever projetos que nem sempre englobam um ideal de autonomia, cuja temporalidade não é a das expectativas formais de inserção na sociedade, e de contemplação da diferença. O ideal do que seja um filho saudável - perfeitamente legítimo - é alimentado também por toda uma tradição científico-profissional que se baseia em padrões, rendimentos e critérios diferenciadores, que hierarquizam as pessoas. Essa tradição encontra ressonância no mundo da vida comum e se reproduz. O desconhecimento acerca de uma doença tão pouco comum, ou sobre a qual pouco se fala, é uma questão para os pais que têm a responsabilidade de cuidar dela, identificar possíveis problemas de saúde e buscar socorro. No entanto, a busca desse socorro na rede comum de saúde não encontra ressonância e, quando o conhecimento "falta" ao médico, ele revela de maneira pouco acolhedora e receosa esse desconhecimento, resvalando numa reação de senso-comum:

" (...) porque tudo eu corria com ele para o hospital; emergências. Quantas vezes eu fui parar no posto de saúde onde eu morava e o médico olhava para minha cara e falava: não vou nem botar a mão; é do Fernandes Figueira, tem mielo? Tinha médico que não sabia nem o que era mielo. Que que é isso? Aí eu explicava. Hidrocefalia? Olha. vai embora daqui!! essa criança pode pegar meningite eu não quero me responsabilizar. Também acho que teve um descaso, (...) eu briguei muito aqui dentro por causa do X., porque eu chegava aqui e diziam: Não tem emergência. Não tem emergência para uma criança que até eu para explicar o que ela tinha era difícil porque eu não sabia tudo" (Entrevista 01).

" Ah, é que a primeira vez que ela teve crise de bronquite ela era pequenininha, né? Aí eu peguei, levei, que aqui não tem emergência, né? aí tava com muita falta de ar, eu peguei e levei no posto, assim, que ela não tinha cadeira de rodas, então levei num carrinho, né? Aí falei que ela tinha problema; aí a moça falou que ela tinha que ir pro hospital onde ela se trata, porque a gente aqui não conhece esse problema, é mole? aí não quiseram atender ela (...) As vacinas dela, eles não queriam dar, mesmo quando ela era bebê, porque todo bebê tem que tomar, né? as de gotinha, sei que todas elas era o maior sufoco, "ah, tem que dar onde ela nasceu, porque ela tem uns problemas", aí não queriam dar..." (Entrevista 03).

O hospital é o primeiro locus de relações institucionais e de exercício de conhecimento, ambientação, troca de experiências e, portanto, de exercício de sociabilidade para essas crianças e suas famílias. Um lugar-ambiente, onde trocas de afetos, conflitos e impasses vão possibilitar as primeiras interações entre um bebê nascido com mielomeningocele e sua mãe. Nesse espaço, a mãe é uma mediadora, mas há a interveniência de uma série de outras pessoas que, com seus conhecimentos e expectativas, vão deixar registradas uma série de marcas nessa primeira história da mãe com seu bebê. é a partir dessas bases que vai ter início o processo de construção da subjetividade dessa criança, através da ressignificação e singularização da experiência de contato da mãe com a anomalia do filho, as reações das pessoas que o cercam, as possibilidades ou impossibilidades que lhes são apresentadas. A mãe reativa repertórios já conhecidos por ela, e tem a possibilidade de inovar, recriando estratégias no contato com a anormalidade na sua história enquanto mãe. Na realidade, enfrentar as dificuldades, recuar diante delas e buscar inovar em soluções é um circuito que não comporta uma opção única. A criação de outros filhos, a sua própria experiência enquanto filha e a oportunidade de rever certos padrões é algo que serve de material nesse processo de enfrentamento do estigma, e de reivindicação de um lugar para o próprio filho na sua vida, na de sua família e na sociedade.

Nesse processo de garantir direitos para seu filho, a educação formal não sai do foco e é valorizada, inclusive pelos profissionais de referência nos cuidados clínicos com a criança. A mielomeningocele não está associada necessariamente a uma deficiência mental; no entanto, dificuldades cognitivas podem derivar de interveniências como: infecções na válvula que drena o líquor da cabeça e que corrige a hidrocefalia, necessidade de uso de óculos para correção de desvios de visão, internações ou idas freqüentes ao serviço de saúde, principalmente nos primeiros anos de vida em virtude de infecções urinárias, que são comuns pela retenção e dificuldade de esvaziamento total da bexiga. Ou seja, interveniências de ordem clínica, conjugadas aos preconceitos sociais, podem dificultar a escolarização da criança. O desconhecimento identificado por uma das mães entrevistadas (e comum nas conversas entre as mães quando se reúnem informalmente) nos serviços de saúde da atenção básica ou da emergência se faz presente também nas escolas, como podemos perceber no trecho a seguir:

"É que o problema pior que eu tive com ela foi na escola, né? Que eles nem quis aceitar, onde eu moro, nem particular, nem pública. Aí eu tive que ir na prefeitura pra forçar, aí eles colocaram a bichinha numa sala de recursos, que só tinha crianças com problemas bem piores que é o caso dela, né? Porque a cabeça dela é boa, é o que a Dra. X fala, né? Aí pegaram e botaram ela na sala de recursos, as crianças batiam nela" (Entrevista 03).

As salas de recurso tornam-se "salas de depósito" ou salas para "crianças identificadas como sem recursos". Reúnem-se ali crianças "estranhas" ao ritmo escolar, que não se enquadram em uma série de formalidades requisitadas pelo processo de aprendizagem e relacionamento. No caso das crianças de mielomeningocele, elas são consideradas como "sem recursos" aprioristicamente, somente pelo fato de possuírem uma "válvula na cabeça" e até um aumento visível da cabeça em virtude da hidrocefalia corrigida.

O adoecimento crônico na infância apresenta desafios para uma população de crianças que vive com essa realidade e para os familiares que convivem com elas. No caso de crianças adoecidas em função de anomalias genéticas e cujas marcas corporais podem vir a provocar limitações de ordem física - como a mielomeningocele -, essa vivência e convivência, muitas das vezes, vem associada a uma distinção entre normalidade e diferença, com expectativas que antecipam limitações e impossibilidades, mas que também revelam possibilidades de enfrentamento da doença. Não só a possibilidade de explicitar os impasses vividos esteve presente nos discursos das mães, mas igualmente as construções criativas de vida, felicidade e enfrentamento dos preconceitos derivados do estigma.

As mães explicitam o desenvolvimento da percepção e de um certo feeling materno para diagnosticar, por exemplo, a infecção urinária dos filhos a partir do sinal fornecido pelo cheiro da urina, ou uma medula ancorada, a partir da mudança na marcha da criança. A atenção para com os detalhes e o resgate de um minimalismo no cotidiano da observação e cuidado de suas crianças permite a essas mães lidar com a realidade de uma doença que faz parte da vida de seus filhos, e as torna referências importantes no cuidado e na sobrevida dos mesmos. A febre pode não ser só um sinal comum de uma garganta inflamada, de uma gripe, mas um sinal importante para realizar uma revisão na válvula que drena o líquor da cabeça.

"Porque com o dia-a-dia da criança, com o dia-a-dia seu ali é que você vai vendo todas as coisas, todas as necessidades, eu sabia quando ele tava com infecção urinária pelo cheiro do xixi. Eu dizia "olha, ele tá com infecção urinária" ah, mas como é que você sabe? Eu sei que tá e tava; quando eu dizia que tava com infecção urinária, tava com infecção urinária. Você aprende a sentir todas as diferenças da criança, você percebe tudo, então tudo foi percebido" (Entrevista 03).

Salta aos olhos o nível de amadurecimento e consciência crítica que essas mães necessariamente têm que desenvolver, pois disso depende a existência civil e física de suas crianças, sua sobrevida e sua qualidade de vida presente e futura.

 

O BRINCAR COMO ESPAÇO DE CRIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE INFANTIL

Para se pensar nos contextos de vida de uma criança portadora de doença crônica e nas possíveis contribuições destes espaços para o processo de socialização da mesma, faz-se necessário ir além do conceito de socialização enquanto introjeção de valores e abordar a questão da sociabilidade (NERY, 2000) pensando nas interações sociais em si, na forma como se estabelecem essas interações através do encontro entre pessoas. Depois de algumas reflexões acerca deste processo, poderemos retomar questões envolvidas no processo de socialização infantil no que se refere ao espaço hospitalar.

A interação entre as crianças através de jogos, brincadeiras, representa um exercício de sociabilidade. Isto acontece porque a interação entre crianças não está diretamente ligada a uma finalidade; estando numa dimensão lúdica, este processo pode ser entendido como um espaço de exercício de sociabilidade, um processo que tem um fim em si mesmo, através da construção de laços afetivos, vínculos sociais, interações. O brincar, neste contexto, é uma atividade que se justifica por si mesma, é um momento de interação que amplia os significados do estar no hospital para além de um recorte que se faz da vida, facilitando os encontros. A sociabilidade pode ser entendida como a "função de jogo" da vida, idéia ressaltada por Huizinga (1980) ao afirmar que a cultura surge sob a forma de jogo. A criança vai crescendo num jogo social; brincar de faz-de-conta remete a esse sentimento de estar sociado (SIMMEL, 1983).

Ao pensarmos a questão da sociabilidade para crianças que trazem marcas acarretadas por uma doença crônica, é preciso atentar para alguns fatores. Focar apenas a marca que as crianças carregam só serve para continuar a desconsiderar o potencial destas crianças. O mais importante seria ver os recursos desenvolvidos pela criança marcada. E, quando isso consegue se sobrepujar à marca em si, os olhares para esta criança revelam outros sentidos, de aposta e investimento nas suas possibilidades. Portanto, a marca diferencia negativamente e são os recursos utilizados para lidar com a mesma que podem aproximar o indivíduo de uma "igualdade" (NERY, 2000: 122). Mas, ainda assim, tais indivíduos vão continuar com algo que os diferencia, só que agora, num sentido positivo.

Os indivíduos que vivem com um estigma provocado por uma marca têm a possibilidade, na interação com outras pessoas, de "transformar" a expectativa negativa decorrente da marca em uma diferença positiva, na medida em que apresentam recursos para lidar com seus problemas. No entanto, essa "transformação de expectativas" não depende só do indivíduo estigmatizado; é necessário também que as pessoas ao seu redor consigam deixar de lado o que esperavam - com base em "pensamentos" criados a priori - e não recusem a nova realidade apresentada pelo indivíduo no desempenho de atividades. Ou seja, é necessária uma receptividade/disponibilidade na relação dos indivíduos "não marcados" com os estigmatizados. Vale retomar aqui o conceito de sociabilidade no sentido de "ser um jogo onde se faz de conta que são todos iguais, e ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular" (SIMMEL, 1983 apud NERY, 2000: 122).

Acreditamos que, de um modo geral, as crianças portadoras de algum tipo de estigma - grupo do qual fazem parte as crianças com mielomeningocele, que participam dos campos do Saúde e Brincar nos ambulatórios do IFF, são vistas a partir da marca que carregam mais pelos adultos do que pelas outras crianças. Em muitos casos, percebemos que as crianças encaram com naturalidade a diferença da outra criança, e o que se destaca é o papel que aquela ocupa na brincadeira. Enquanto que, para o adulto, a marca ganha destaque, antecipando limites e/ou uma visão negativa da criança, o que pode ser passível de transformação caso sejam elaborados recursos para lidar com a mesma. Para as crianças esse processo é mais espontâneo e aponta um círculo onde ver/estranhar/incorporar/estar junto prescinde da mediação dos adultos: é possível brincar junto e ao mesmo tempo "brigar", voltar "às pazes", sem interferências ou preconceitos.

Frente a uma pessoa estigmatizada a postura dos adultos e a das crianças é bem diferente. A espontaneidade diante do que é estranho por ser diferente é só das crianças, os adultos já trazem um olhar discriminatório/classificatório para aquele indivíduo. Diante disso, podemos pensar na facilidade que as crianças têm em romper este estranhamento inicial provocado pela diferença, salientando que a brincadeira tem um papel fundamental neste processo. Para que o adulto rompa este estranhamento o outro tem que provar algo; e, este algo, no caso das crianças, já é provado naturalmente enquanto se brinca. Segundo Winnicott (1975) o brincar ocupa uma zona intermediária para além do psíquico e do comportamento. O brincar conduz à experiência cultural e constitui seu fundamento, tornando-se, portanto um componente fundamental na construção da subjetividade infantil.

A reação da maioria das crianças diante de uma marca é apontá-la, é falar sobre ela; e, a partir disso, muito pode ser desmistificado. O adulto não fala nada; e esse "não dito" do adulto denuncia muito mais a deficiência do outro. A diferença não é para ser negada. O adulto nega a diferença na tentativa de uma igualdade; isso não funciona porque o estranhamento permanece, denunciando o que não foi dito.

Tais colocações nos levam a pensar também a postura da equipe dos profissionais de saúde, voltando esta análise para nós mesmos, enquanto profissionais que atuam diretamente brincando com as crianças. Enquanto adultos e profissionais de saúde, incorporamos um repertório técnico explicativo acerca dos estigmas, das doenças, das dificuldades. Daí, nossa postura se diferencia da dos outros adultos "comuns" (os pais de outras crianças por exemplo); e se diferencia ainda mais porque nos valemos da via lúdica no contato com as crianças. Entretanto, mesmo agindo desta forma, não temos o olhar das outras crianças. Acreditamos que isto aconteça porque nós, adultos, já passamos por grande parte do processo de socialização, já introjetamos uma série de valores muitas vezes negativos; o olhar espontâneo de quando se é criança vai se perdendo à medida que se cresce, que preconceitos são criados. Então, a nossa postura atual é a de desconstruir os preconceitos; trata-se de um processo complexo onde o olhar classificatório construído ao longo da vida é substituído por outro olhar, a partir de novas informações, mas um olhar que continua sendo classificatório, ainda que a classificação seja outra - menos discriminatória e mais inclusiva.

Partindo do que foi observado acima, podemos introduzir a idéia de que no hospital vemos reunidas crianças diferentes em função de suas doenças, identificamos os preconceitos e sua correspondência negativa com o lugar das deficiências, mas ao mesmo tempo, pela interação lúdica, podem ser construídos e exercitados recursos para elaboração destas marcas (possibilidade de transformação de expectativas). Antunes (1989) nos apresenta tal idéia ao ressaltar o importante papel do hospital na sociedade urbana e sua posição ambígua, exercendo atração e repulsão simultâneas sobre as pessoas, pois ao mesmo tempo que se configura num lugar de cura, remete às doenças como um mal do qual todos querem se livrar.

O hospital assume um lugar de destaque na vida de crianças portadoras de doenças crônicas devido à intensidade com que estas freqüentam o mesmo. No caso do Instituto Fernandes Figueira (IFF), pode-se entender esta importância em um duplo sentido; pois, ao mesmo tempo em que o hospital é o lugar dos cuidados com a doença, dos procedimentos necessários e das medicações, é também um espaço de sociabilidade para estas crianças; neste ambiente se estabelecem novas relações, são criados espaços onde elas têm a possibilidade de agir como crianças "normais", brincando.

A percepção das crianças acerca do espaço hospitalar está relacionada também a suas posturas diante de suas enfermidades. Segundo Helman (2003), "pesquisas sugerem que apesar da idade, as crianças de fato têm entendimento que lhes são próprios sobre as enfermidades e as causas e o modo como devem ser tratadas" (p. 133). Tanto a criança assume um papel ativo na situação de adoecimento que, da mesma forma que os adultos, especula sobre o porquê de estar naquela situação e se inteira dos cuidados que estão sendo realizados com ela (HELMAN, 2003). Diante do fato de as crianças não serem meros espectadores de suas doenças, vale ressaltar que, de modo apropriado, "é importante dar explicações a elas que façam sentido, de acordo com seu único ponto de referência" (HELMAN: 136). Cumpre frisar que o brincar é a linguagem (Winnicott, 1975) que vai 'fazer sentido' para a criança. Ainda referida a esta visão, Santa Roza (1997), baseada em pesquisas da área de pediatria, reforça que "o brincar é uma importante forma de intervenção em saúde mental para crianças hospitalizadas, contribuindo de maneira significativa para o desenvolvimento da cognição, da linguagem, da área motora e da área social da criança" (p. 176-177).

Ao estudarmos os significados do estigma da hidrocefalia na história e no discurso das mães que têm filhos com mielomeningocele, percebemos que, na convivência com a doença de seus filhos, diversas estratégias de elaboração dessa realidade são concretizadas. Recorremos ao conceito de estigma (GOFFMAN, 1988) como uma forma de superar a possível identificação, muito comum, do estigma a um preconceito. Na realidade, o estigma identificado à marca desencadeada pela doença vai ser vivenciado de formas diversas, e uma das formas de vivenciar esse estigma é justamente não o deixar se resumir a um preconceito ou a sentimentos negativos de recusa, que interrompam o processo de socialização. Um aspecto importante diz respeito ao sentido que a doença vai adquirindo conforme a vivência que o indivíduo - seja o adulto responsável, seja a criança - tem a partir dela. O seu encontro com o mundo é mediado, entre outros aspectos, por sua patologia, no caso a mielomeningocele. O modo como o sujeito lida com sua doença, suas marcas e conseqüências, vai refletir em todos os campos de sua vida. No caso da infância, a família e a escola se configuram como os principais locais de socialização e, para crianças que vivem com mielomeningocele, esses espaços se apresentam também como os primeiros locais onde os recursos para se lidar com a doença começam a ser construídos e/ou elaborados.

Acrescentamos a esses dois espaços o hospital, como uma referência comum a essas crianças e suas famílias. Nesse sentido, dominar as explicações técnicas sobre a doença, elaborá-las e relê-las à luz de suas experiências como usuários do serviço torna-se essencial. Para as crianças portadoras de doenças crônicas, o hospital se torna um território de domínio comum, de encontros e desencontros, de referência e visibilidade de outras crianças e famílias com diagnósticos, tratamentos, temores e dúvidas semelhantes. Essa proximidade, que permite um compartilhamento e confronto de experiências, não deixa de provocar receios em algumas famílias. Receios referidos, muitas das vezes, a projetos futuros para essas crianças, marcados por incertezas quanto ao desempenho social, capacidade de desenvolver sua sexualidade, tornar-se independente, ter sua própria família e emprego.

É preciso, pois, ter em mente o papel do hospital não só como lugar de tratamento, mas como um espaço de sociabilidade, de criação de vínculos, de produção de interpretações que o fazem se tornar um espaço de produção de subjetividade para as crianças e suas famílias. O hospital está presente na vida destas crianças desde o seu nascimento, aparecendo para elas muito antes da entrada na escola ou até mesmo em creches. Portanto, mostra-se válido pensar qual o verdadeiro lugar que o hospital ocupa para estas famílias. é claro que ele está referido, em primeiro lugar, aos cuidados com a saúde da criança, mas, ao que parece, seu alcance vai além disto. E, para se chegar a este "papel" do hospital no processo de socialização destas crianças, é válido trazer, primeiramente, uma visão crítica a respeito do que seria o processo de socialização infantil.

Podemos, então, pensar nas discussões correntes acerca da socialização das crianças de um modo geral, do papel relegado às mesmas nesta discussão, e também no diferencial quando se fala em socialização de crianças portadoras de doenças crônicas. Para tanto, é possível partir do levantamento realizado por Montandon (2001) acerca de trabalhos referidos a uma sociologia da infância. Pode-se perceber que o papel atribuído às crianças, até mesmo quando o assunto é a socialização das mesmas, é de passividade. Em momento algum as crianças aparecem como "responsáveis" por alguma situação ou como atores sociais; até mesmo as transformações percebidas no que diz respeito à infância ao longo do tempo foram atribuídas à atuação dos pais e/ou ao papel da escola, ficando a criança mais uma vez "de lado". Percebe-se também que a chamada Sociologia da Infância por muitos anos teve seus estudos direcionados para a criança enquanto objeto de análise dentro de algum tipo de relação que a submete aos adultos, sejam estes os pais ou os professores, focando aí os conflitos de gerações, ou dentro de alguma instituição voltada para a criança, como a escola. Ainda são grandes os esforços no sentido de reconhecer as crianças como um grupo social e, conseqüentemente, como atores sociais e sujeitos de suas experiências.

A passividade atribuída à infância nos estudos sociológicos deixa a criança na posição de objeto, receptáculo de informações e até mesmo "paciente" de uma socialização "fornecida" pelas instituições de um modo geral - a família e a escola, entre outras. A criança só vai tomar para si a função de ator social quando é vista para além das instituições. O fato de a "escolaridade ser a ocupação principal da infância" (SIROTA, 2001) faz com que a criança seja resumida a aluno em muitos estudos sociológicos, desconsiderando os demais aspectos de seu contexto de vida. Na socialização de uma criança, a família, a escola, o hospital (no caso das crianças doentes crônicas) desempenham papéis importantes; entretanto, não se pode perder de vista que a criança é ator da própria socialização.

Vale ressaltar aqui que não se pode "fixar" um momento de socialização da criança. Falamos de espaços de socialização, como a família, a escola, incluindo, para este segmento, a importância do hospital, com a finalidade de situar o que se passa com a criança. No entanto, é claro que o "processo de socialização" é um processo contínuo (do nascimento à morte do indivíduo) na vida de todos. Como estamos falando de crianças, do desenrolar deste processo com elas, torna-se de extrema importância ter sempre em "primeiro plano" o caráter lúdico, a brincadeira, que vai perpassar todos os momentos/situações de vida, servindo como instrumento cultural de transmissão de valores, de construção de sociabilidade. Portanto, no caso de pesquisas direcionadas ao segmento infanto-juvenil, o brincar torna-se uma ferramenta tanto de pesquisa quanto de intervenção humanizadora nos espaços de atenção à saúde.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apresentação anterior nos permite afirmar que, no caso de crianças que vivem com doenças crônicas ou que possuem algum tipo de seqüela física associada, seus processos de construção subjetiva contam não somente com os espaços de sociabilidade primária, onde o núcleo familiar ocupa um papel importante, mas esses espaços são muito precocemente influenciados pelo dispositivo técnico representado pelo hospital e sua referência de gravidade.

Assim, se o hospital ocupa um lugar de destaque na construção da subjetividade de crianças portadoras de doenças crônicas, é preciso que se pense em torná-lo não só uma referência técnica, mas também uma referência afetiva importante. A partir da experiência relatada pelas mães acerca do contato com as instituições de saúde, podemos discutir a perspectiva da "referência" em duas dimensões: a dimensão técnica, assentada na perspectiva organizacional (perfil de clientela, conhecimento acumulado, expertise, área geográfica, etc.), papel ocupado pelo Instituto Fernandes Figueira e não compartilhado pela rede básica de saúde; e a dimensão afetiva da referência, dimensão essa que pode ser pensada a partir das discussões sobre clínica ampliada, integralidade e processo de trabalho. Essa última dimensão tem um alcance importante na reflexão sobre a cultura institucional e sobre as relações usuário/profissional de saúde. No caso do IFF, onde temos como usuários dos serviços, por exemplo, crianças que vivem com doenças crônicas e suas famílias, essa dimensão dos vínculos e do aprendizado sobre o processo de cuidado torna-se variável relevantes para a construção de uma atenção qualificada e de referência tanto organizacional quanto afetiva.

Portanto, uma reflexão no sentido da promoção da humanização neste ambiente se faz, mais uma vez, necessária. Nesta direção, podemos destacar a importância do elemento lúdico no trabalho com crianças hospitalizadas e/ou que freqüentem o hospital. A qualificação humana do espaço hospitalar significa resgatar que nesse espaço não somente imperam a técnica e a neutralidade das opções clínicas; pois sobretudo residem nas opções técnicas e no cuidado à saúde a elas associado as qualificações conflituosas, os interesses, as escolhas, os valores que organizam grupos e dão a esse espaço o qualificativo sócio-cultural.

Quando o brincar é associado às discussões sobre o lugar que a hospitalização ocupa na vida de crianças e adolescentes, ele se torna um instrumento que incorpora à rotina hospitalar componentes que permitem que essa clientela construa um saber sobre sua própria doença, enquanto protagonista (SANTA ROZA, 1997; MITRE, 2000). Tanto na perspectiva assistencial quanto na perspectiva de pesquisa, o brincar se apresenta enquanto um instrumento humanizador para práticas de atenção e assistência à saúde e enquanto um instrumento de produção de dados para as pesquisas cujos sujeitos sejam as crianças e suas compreensões acerca do próprio adoecimento. Na vida comum, uma criança que brinca é percebida como uma criança saudável.

A ação técnica mediada pelo brincar nasce da urgência de construção de uma clínica ampliada na atenção à saúde das crianças e adolescentes envolvidos com a realidade acima exposta. Por clínica ampliada entendemos uma atenção em saúde que tem como qualificativo central o vínculo de confiança que se estabelece no encontro entre pessoas e que vai possibilitar relações de convívio e de troca social que transcendem o modelo reducionista de saúde. Ou seja, a clínica ampliada prioriza e incorpora, nas suas formulações diagnósticas e terapêuticas, aspectos sócio-históricos, culturais e psíquicos do adoecimento. Nesse sentido, possibilita o resgate, o reconhecimento e reavaliação de nossos valores morais e éticos no trato com os pacientes, buscando desvelar percepções, experiências vividas por estes em suas relações cotidianas.

Com relação à escola, ressaltamos que para as mães e para as próprias crianças a escola é reconhecidamente um espaço não só de aprendizagem formal, mas de sociabilidade. Nesse sentido, ainda que portadoras de doenças crônicas e que, em função disso, apresentem um cotidiano e uma rotina em muito referidos às intercorrências e visitas ao hospital, a garantia de uma vaga na escola é valorizada e reivindicada. é preciso, portanto, refletir sobre a maneira como a escola absorve essas crianças, compreendendo suas demandas especiais, mas nem por isso discriminando-as ou privando-as de um convívio adequado aos seus potenciais de aprendizagem, desenvolvimento e autonomia.

 

REFERÊNCIAS

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WINNICOTT, D. (1975) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Martha Cristina Nunes Moreira
E-mail: moreira@iff.fiocruz.br

Aline Duque de Macedo
E-mail: alineduque@hotmail.com

 

Recebido em: 10/10/05
Revisado em: 21/10/05
Aprovado em: 07/11/05

 

 

Nota:

Este artigo, resultado de apresentação realizada no VI Encontro Clio-Psyché, foi gentilmente cedido pelo Programa de estudos e pesquisas em História da Psicologia - Clio-Psyché, da UERJ, para publicação nos Arquivos Brasileiros de Psicologia.

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