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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.55 n.1 Rio de Janeiro jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Habilitar-se em saúde mental: observações críticas ao conceito de reabilitação

 

Habilitation in mental health: critical remarks about the concept of rehabilitation

 

 

Ernesto VenturiniI; Alba GalassiII; Annalisa RodaIII; Ennio SergioII

IOrganização Mundial de Saúde (OMS)
IIAzSL Imola
IIIConsórcio Serviço Social Imola

 

 


RESUMO

A reabilitação no panorama da psiquiatria atual é uma proposta destacada por sua abrangência e constitui sua própria questão. Esta noção, tomada de empréstimo da medicina geral, carrega aspectos pesadamente negativos, pela incompatibilidade interpretativa e evolutiva entre os fenômenos do psiquismo e do corpo, a separação dos âmbitos terapêuticos, entre outros. Propõe-se aqui, em seu lugar, a idéia de habilitação em que o passado não constitui estigma, em que a experiência da doença não seja rejeitada e sustente o começo de um novo processo. Com isso, valorizam-se práticas reabilitantes que afirmam as potencialidades dos sujeitos e alargam as possibilidades de sua identidade positiva. O terreno do habilitar é o das práticas e envolve diferenciais em relação à reabilitação, dando ênfase ao exercício dos direitos, ao desenvolvimento de trocas e à cooperação. A habilitação se afirma como uma forma de democracia acabada, constituída a partir das necessidades do sujeito.

Palavras-chave: Reabilitação; Habilitar; Psiquiatria.


ABSTRACT

In the landscape of contemporary Psychiatry, rehabilitation is a proposal that stands out for its reach and implies a question itself. This notion, borrowed from Medicine at large, is laden with negative aspects, due, among other causes, to the interpretive and evolutional incompatibility between the psychic and the bodily phenomena, and the separation between distinct therapeutic spheres. Instead, a different proposal is submitted here: an idea of habilitation according to which past condition is not seen as a stigma, and the experience of past malady is not rejected, but, on the contrary, becomes the starting point of a new process. By these means one values those rehabilitating practices that affirm the individual’s potentialities, and broaden the possibilities of his or her positive identity as well. The proper ground of habilitation is the ground of practices, and it involves differentials vis-à-vis the rehabilitation, in that it emphasizes the exercise of individual rights, the development of exchanges and cooperation. The habilitation affirms itself as a form of accomplished democracy, that arises from the subject’s very necessities.

Keywords: Rehabilitation; Habilitate; Psychiatry.


 

 

"&– Perché si muore?
&– Forse perché non si sogna abbastanza."

Fernando Pessoa

INTRODUÇÃO

Firmou-se, em psiquiatria, a assim chamada hipótese multifatorial, segundo a qual, na gênese e na evolução do evento psiquiátrico, concorrem vários fatores. Na realidade de muitos serviços psiquiátricos porém, este reconhecimento não é mais do que uma abstração, a despeito do quanto as leis de reforma e as práticas de transformação tenham-no evidenciado nos últimos anos. O peso representado por alguns fatores, em relação a outros, é profundamente diferente e determina as orientações do projeto terapêutico: o saber biológico é hegemônico, enquanto outros saberes desempenham papel marginal. Há uma psiquiatria hard &– centrada na clínica &– e há uma psiquiatria soft, que compreende, confusamente, todo o resto. A primeira é dominante e acompanha os interesses econômicos dos laboratórios farmacêuticos, a segunda é dominada e privada de um verdadeiro poder institucional.

Na psiquiatria "menor" estão alocadas a prevenção, a promoção à saúde, a reabilitação, a desinstitucionalização, a psicoterapia. Estes setores são atravessados (ou devemos, talvez, dizer "contaminados"?) por outras disciplinas; os conhecimentos se interligam com os da psicologia, da sociologia, da antropologia, da filosofia, da medicina social. Há uma certa sintonia entre todos esses setores, na medida em que eles parecem mover-se em direção a um horizonte científico comum, mas esta união não faz a força, e a prática psiquiátrica continua a pensar e agir em termos de neurotransmissores, de dosagens farmacológicas, de diagnósticos formais, de controle de comportamentos.

 

ELOGIO DAS PRÁTICAS REABILITANTES

Nos últimos anos, a reabilitação, através de significativos reconhecimentos, conseguiu o próprio resgate. Há muito tempo ela estava presente no panorama psiquiátrico, mas era, substancialmente, considerada uma disciplina menor (ANTHONY et al., 1986). Hoje, a reabilitação se encontra na atividade de muitas sociedades e associações nacionais e internacionais inspiradas pela idéia de reabilitação, na produção de numerosos trabalhos científicos e na difusão de experiências de indiscutível valor. Passou-se de uma forma espontânea, naif, de intervenção a reflexões cada vez mais elaboradas, de um estímulo autoreferencial à capacidade de ler a experiência à luz de métodos de evidência científica (SIANI; SICILIANI & BURTI, 1990).

A linguagem usada pelos operadores da reabilitação é particularmente empática, rica e criativa, fortemente contaminada por outras disciplina.

Os seminários, os encontros realizados sobre o tema da reabilitação constituem as poucas ocasiões nas quais os usuários dos serviços psiquiátricos estão presentes e podem intervir diretamente. Esta consideração, no nosso modo de ver, já bastaria para dar valor a todo o processo!

 

CRÍTICA DA REABILITAÇÃO

O nosso entusiamo pelas práticas reabilitantes é acompanhado, porém, de uma forte crítica à ideologia que sustenta a idéia de reabilitação (VENTURINI, 1996). A crítica se funda nas reflexões que nascem das interrogações que deveriam orientar sempre o nosso agir cotidiano e permitir-nos individualizar os pontos cardeais do nosso ser no mundo: Quem? O quê? Como? Quando? Onde?

De forma preliminar, começaremos a refletir sobre o significado do termo "reabilitação". O termo foi tomado de empréstimo da medicina geral, no âmbito da qual subentende-se o uso de métodos e técnicas direcionadas à recuperação de uma função ou de um órgão. A assimilação tout court da terminologia de um contexto orgânico por um psíquico ignora ou minimiza a incompatibilidade interpretativa e evolutiva entre os fenômenos da psique e os do corpo (PICCIONE, 1995). O paradigma sobre o qual se fundam a cura e a reabilitação no âmbito orgânico é um modelo linear que assume, como conseqüência lógica, o concatenar-se da etiologia, da patogênese, da sintomatologia, da diagnose e da prognose.

Este modelo, como numerosos autores evidenciaram, é inaplicável, ou pelo menos, inadequado à leitura dos distúrbios psíquicos (DI PAOLA, 2000). A definição terminológica da reabilitação contém portanto um bias conceitual, uma espécie de "pecado original", que acompanha o pensamento e as práticas reabilitantes.

 

O "QUANDO?", OU O PROBLEMA DO TEMPO

O tempo e o espaço constituem dois temas recorrentes da psiquiatria: um tipo de obsessão que permeia as práticas e as representações conceituais da disciplina (VENTURINI, 1994).

O tempo da reabilitação é a questão mesma da psiquiatria: o reabilitar significa corrigir, prospecta a "restitutio ad integrum" do paciente, a sua re-normalização, pretende o re-torno à condição inicial de saúde. Mas nada é mais equivocado do que esta abordagem, seja do ponto de vista conceitual, seja do científico! É ilusório olhar o passado para restituir a "normalidade", como se fosse possível voltar atrás e agir sobre a dimensão temporal. Aflora neste pensamento uma dimensão psicológica e mitológica da temporalidade, um valor abstrato, uma ficção intelectual do tempo físico.

É ilusório referir-se ao passado ou ao futuro: existe apenas o presente. Torna-se difícil imaginar identidades imóveis no tempo, que possam ser agitadas novamente, através da re-abilitação. Talvez seja mais correto pensar, como disse Eráclito, que pánta rhêi ("tudo passa") e que não podemos nos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio. A ciência decretou a crise da temporalidade estática, com a descoberta, na física moderna, da irreversibilidade dos fenômenos termodinâmicos. Cada instante é heterogêneo em relação ao precedente e a série não pode ser invertida. Não existe um tempo universal para todos os eventos físicos: Minkowski (7) fala de uma unificação do tempo e do espaço em um continuum quadridimensional e Einstein (8) enuncia a tese da unidade espaciotemporal.

Por todas estas razões, propomos substituir a palavra "reabilitação" pela palavra "habilitação".

A idéia de re-abilitação, na sua dimensão referente ao passado, configura

  • a tensão em relação a um passado, que não existe;
  • a referência a um conceito abstrato &– a cura &–, que revela insistência de normalização e de controle social;
  • a exigência de um resgate, que inevitavelmente reproduz um estigma (neste caso a culpa para redimir é a doença, a própria experiência, a própria diversidade: a loucura é vista como um oposto negativo que deve ser cancelado!);
  • a separação dos âmbitos terapêuticos (cura, reabilitação, prevenção) e a colocação artificiosa dos pacientes em âmbitos descontínuos, constituídos de protocolos, instituições, poderes.

 

O pensamento de habilitar, referido atualmente, compreende:

  • a idéia de um passado que não pesa de modo negativo sobre o presente;
  • a idéia de uma tensão confiante em relação ao futuro;
  • a idéia que a própria experiência da doença não seja rejeitada e que tenha um valor intrínseco;
  • o começo de um novo processo, que observa também outros sujeitos e em relação aos quais ninguém se encontra em condições de clara desvantagem.

 

É necessário, portanto, libertar-se da idéia da "re-abilitação" e falar, simplesmente, de "habilitação". Esta re-definição comporta:

  • poder olhar para um presente que contém, sem dúvida, as feridas e os condicionamentos do passado, mas que se abre a perspectivas melhores do que aquelas produzidas pelos settings terapêuticos, que se referem somente às doenças e aos seus determinantes;
  • poder voltar-se, como já se disse, à parte saudável e não àquela doente do paciente, desenvolvendo as potencialidades, alargando as possibilidades de identidade positiva dos sujeitos.

 

O "QUEM?", OU OS SUJEITOS DO PROCESSO

A correção conceitual operada com a mudança do "re-abilitar" em "habilitar" não é, porém, suficiente. A idéia de habilitar não significa, necessariamente, a valorização das pessoas, por reter ainda uma nota pedagógica, fortemente prescritiva: "Eu decido aquilo que você deve fazer". Quase nunca é ressaltada a vontade do outro de decidir sobre ser habilitado e de escolher o momento mais oportuno para ele.

Não pretendemos negar &– que fique bem claro! &– o valor de uma fase de proteção voltada a um paciente em graves dificuldades psicológicas, ligada à construção de um setting terapêutico; fase necessária para escandir a passagem de uma situação de regressão e de grande dificuldade de planejar, em direção a um plano de maior autonomia. Entendemos que se evidencia o limite da intervenção "habilitante" quando se mantém, no processo terapêutico, uma unidirecionalidade "terapeuta versus paciente", em vez de ativar uma fecunda reciprocidade entre os sujeitos. Acreditamos oportuno repetir que, na nossa maneira de ver, não se pode realmente habilitar ninguém. É ilusório acreditar numa mudança da subjetividade do outro sem a participação ativa do interessado. Apenas o sujeito pode habilitar a si mesmo! O terapeuta pode oferecer instrumentos para permitir este processo, pode oferecer a sua experiência, a sua competência (o que não é pouco!), mas não pode colocar-se como o protagonista da terapia.

Os slogans que usamos no final dos anos 1980, no processo de superação do Hospital Psiquiátrico de Imola, eram: "Reabilitar-se" e "Reabilitar a cidade". O vedadeiro problema, de fato, sempre nos pareceu aquele de reabilitar a des/habilidade da psiquiatria, o reducionismo das práticas; o primeiro passo de uma estratégia reabilitante sensata nos pareceu sempre aquele de reabilitar as instituições da reabilitação.

 

O "COMO?", OU O RECONHECIMENTO E O CRESCIMENTO DAS NECESSIDADES

Do nosso ponto de vista, é muito mais produtivo acompanhar o processo terapêutico em um contexto de normalidade (que podemos chamar o "setting da cotidianidade"), ainda que atrevessado de contradições e conflitos, em vez de referir-se a espaços reabilitatantes ou a um setting artificialmente construído, onde fosse possível decompor as fases da intervenção, controlando-a e corrigindo-a, examinando-a através de um espelho unidirecional, quase como se estivéssemos na frente da tela de um computador e pudéssemos usar o "corta" e "cola" da psique. A força decisiva das relações interpessoais é sensata e operante somente dentro de uma transformação do real, que não vive apenas (bastaria pensar em nossos gestos cotidianos!) de relações terapêuticas (tanto mais se fortemente condicionadas e limitadas pelo setting), mas necessita de atividades, de matérias novas, de modificações das estruturas e das culturas.

Além disso, é necessário afirmar uma cultura baseada nos êxitos. Na rotina da psiquiatria não é quase nunca claro o fim do tratamento, não há uma real verificação dos resultados. As instituições reabilitantes induzem, freqüentemente, à dependência dos sujeitos da reabilitação (BASAGLIA, 1982). As instituições materiais ou virtuais da reabilitação avançam progressivamente no vórtice do "intretenimento"(SARACENO, 1995): sustentam, ainda que inconsciente e involuntariamente, a impossibilidade de uma verdadeira cura e não refletem sobre a falência do próprio paradigma terapêutico.

Às lógicas institucionais e aos processos de "desinstitucionalização", contrapuseram a subjetividade e as práticas. As práticas são, de fato, o verdadeiro terreno do habilitar. A nossa idéia de habilitação corresponde a estes processos de desinstitucionalização e se reconhece na reflexão sobre as práticas, formulada por Agostinho Pirela (1999). Analogamente à sua análise, habilitar significa para nós:

  • a construção material do exercício dos direitos,
  • o desenvolvimento das trocas, interpessoais e sociais,
  • a cooperação (versus obra social).

É óbvio o relevo que, nesta ótica, têm as estrátegias de auto-ajuda, as redes sociais, o envolvimento dos não profissionais.

A experiência destes anos nos mostrou o quanto é mais eficaz, do ponto de vista do outcome, uma reabilitação que emancipa, ao invés de uma reabilitação que normaliza(12). Parece-nos claro, em suma, que a discriminação fundamental consiste em aceitar uma idéia que a muitos parece impossível: que a loucura esteja dentro da normalidade, que a pertença não seja a sua negação, mas somente um processo necessário seu.

Por esta razão, sempre procuramos favorecer algumas escolhas habilitantes nos contextos onde estávamos trabalhando:

  • a constituição de cooperativas de inserção de trabalho (de tipo B), ao invés da criação de cooperativas de serviço (de tipo A), sobretudo a constituição de cursos de treinamento profissional, visando a inserção efetiva no mundo do trabalho;
  • a criação de habitações para familiares e pacientes fundadas sobre a idéia de "casa-lugar de vida", em vez de "residência-lugar de cura"; casas concentradas na valorização da banalidade do cotidiano, ao invés de fundadas sobre formulações de processos específicos para aquisição de competências sociais;
  • o desenvolvimento de atividades de socialização, direcionando a intervenção no sentido de dar suporte ao sujeito portador de momentânea inabilidade de relação com o exterior, de relação com redes formais e informais da comunidade (escolas, associações, voluntariado), em vez do desenvolvimento de atividades no interior de um espaço reabilitante;
  • a promoção de intervenções marcadas pela função de "mediação cultural" com o contexto (familiar, social); intervenções de cura visando a uma valorização dos espectos saudáveis do sujeito, em vez da remoção de suas validades patológicas;
  • a atenção aos conflitos de poder, imanentes ao desenvolvimento da doença e que acabam sobredeterminando o destino e o sucesso do paciente;
  • a ênfase sobre a liberdade como risco concebível, como possibilidade de escolha, espaço onde se pode colocar a hipótese de um encontro além da doença e de uma almejada reciprocidade. (Neste sentido deveremos consentir a eventualidade de que a oferta habilitante possa ser recusada pelo paciente e que seja solicitada somente quando for fruto de um verdadeiro insight).

 

O "O QUÊ"?, OU A PRÁTICA DOS DIREITOS

Qual é, em definitivo, o objetivo da habilitação? A nossa reflexão nos leva a considerar &– e o dizemos com grande pudor &– que a habilitação não seja nada mais do que uma forma de democracia acabada, uma prática dos direitos, construída a partir das necessidades do paciente. É a tomada de consciência do vínculo que une o caminho do paciente em direção à sua cura com a experiência e a história da comunidade (BASAGLIA, 2000).

Para refletir sobre estas simples obviedades, parece-nos oportuno recordar algumas palavras de Franco Rotelli (1994). Para Rotelli, devemos preocupar-nos em efetuar algumas estratégias fundamentais habilitantes:

  • as estratégias que incidem sobre intervenções sociais, sobre tratamentos, sobre a obrigação da cura, lugares de asilo, direitos dos usuários. Os direitos sociais são o terreno concreto das práticas de habilitação;
  • as estratégias que incidem sobre a disponibilidade dos recursos: a posse efetiva de uma casa, de um trabalho, o uso de contextos formativos e de lugares onde se realizam relações sociais significativas, o direito reconhecido de acessá-los;
  • as estratégias direcionadas para produzir capacidade de acesso ao trabalho &– autonomia pessoal, instrução, formação profissional, capacidade social, exercício de poder, capacidade de exprimir os próprios pontos de vista.

Resumindo, pode-se dizer que o conteúdo verdadeiro da habilitação seja criar os pressupostos para o exercício da contratualidade social: habilitar-se quer dizer tornar-se capaz de ser cidadão, reconhecer-se como parte de um processo social, poder desempenhar um papel de protagonista.

A habilitação, analogamente ao processo de desinstitucionalização, consiste na capacidade do paciente de realizar-se, em oposição ao simples perceber-se, que é próprio das psicoterapias: um "sich-wahrmachen", ao invés de um "sich-wahrnehmen" (CASTELFRANCHI; HENRY & PIRELLA, 1995).

 

CONCLUSÕES

Ao término destas reflexões, podemos medir a distância do ponto de partida &– a reabilitação do paciente psiquiátrico &– com relação ao ponto de chegada, que podemos sintetizar em "as práticas da emancipação".

Talvez valha a pena gastar ainda algumas palavras em atenção à idéia de emancipação à qual freqüentemente nos referimos. De qual emancipação estamos falando? Referimo-nos à capacidade de libertar-se de uma alienação, historicamente produzida pelas contradições sociais, culturais, econômicas, que no paciente se revela com mais intensidade, mas que nos atravessa a todos.

Há uma passagem nas Fábulas italianas de Italo Calvino (1956) em que o autor fala de "liberar-se, liberando". A metáfora da fábula pode nos ajudar. Ao longo da narrativa, é possível encontrar o sentido do contato e da relação humana, é possível reencontrar o direito à própria palavra. De um lado há um processo que se move através da pobreza da diagnose e dos instrumentos do setting &– a reabilitação; de outro, há um processo que se desenvolve na riqueza das histórias e das experiências e que, no conto e na reflexão, liberta libertando &– a habilitação. A essência da terapia e da habilitação deveria ser uma espécie de narrativa coral, feita de atenção recíproca e de respeito. A narração entre pessoas conduz à empatia e recompõe, através do valor da diferença, a unidade da experiência. Aprender a ser e repensar o mundo, é reapropriar-se do próprio destino, é aprender a viver a nossa condição humana, é o caminho que combina o "louco" e o "saudável" e dá valor à normalidade e à loucura que a todos atravessa.

Mas a transformação se constrói no observar, no conectar, no colocar em discussão; a transformação se constrói através de um pensamento capaz de consentir o concomitante, de induzir à solidariedade, de mudar o olhar lançado sobre a realidade. A habilitação se constrói no aprender a esperar, no aprender a ter medo, no alimentar-se de sentimentos criativos, em assumir a responsabilidade dos nossos atos e das nossas idéias, constrói-se no agir, no participar ativamente de um grande projeto de transformação. O processo se funda sobre paixão e sobre esforço de pensamento, sobre a capacidade de colocar-se em questão, funda-se sobre a dureza do empenho cotidiano e sobre a capacidade de torná-lo leve e prazeroso.

Esta metamoforse necessita, porém, de um tempo seu, e por esta razão devemos "destruir todos os relógios", como disse Leonce a Lena (BÜCHNER, 1978) &– "proibir todos os calendários e contar as horas e as luas apenas com o relógio das flores, apenas segundo as florações e os frutos". Deveremos liberar-nos dos tempos do mercado, das ficções virtuais do nosso alienado modo de existir… porque a narativa das nossas histórias necessita de um grande silêncio para escutar, sem pressa.

O tempo narrado pela fábula é um átimo de magia e de poesia… Ele nos permite compreender uma simples verdade: a emancipação do outro é a ocasião para satisfazer uma necessidade fundamental nossa &– aquela de tornar-se hábil, finalmente, à compreensão do nosso viver!

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 03/11/05
Revisado em: 22/11/05
Aprovado em: 26/11/05

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