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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.56 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Neutralidade na relação terapêutica - reflexões a partir da abordagem gestáltica

 

Neutrality in therapeutic relationship: reflections based on Gestalt-therapy

 

 

Mariana Miranda Autran Sampaio

IMS/UERJ
Dialógico. Núcleo de Gestalt-terapia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende abordar o tema da neutralidade do psicólogo na prática clínica, discutindo sua viabilidade e sua necessidade. Seu objetivo é estabelecer uma reflexão acerca da atuação do psicólogo como terapeuta e como ser humano na prática psicoterápica. Se, por um lado, a neutralidade tão falada se mostra muito distante e inatingível, por outro, um psicólogo que esteja na sessão terapêutica falando de sua vida, tomando o espaço da sessão com problemas, sentimentos e opiniões próprias também é igualmente inoportuno. A Gestalt terapia utiliza a fenomenologia como visão de homem e como metodologia, levando os conceitos dela oriundos para a prática clínica. Desta forma, ela estabelece alguns conceitos, alicerçados na fenomenologia, no humanismo e no existencialismo, que possibilitam uma direção da atuação do psicólogo.

Palavras-chave: Relação terapêutica; Neutralidade; Fenomenologia; Gestalt-terapia.


ABSTRACT

This paper intends to contemplate the theme of psychologist neutrality in clinician practice, discussing its feasibility and necessity. Its objective is to reflect about psychologist's action as a therapist and as human being in the psycotherapic practice. If the neutrality seams to be too distant and unattainable, on the other hand, a psychologist that talks about his or her life, using the therapy setting with his or her own problems, feelings and opinions would be inopportune as well. Gestalt-therapy uses phenomenology as human seeing and as a method, taking its concepts to clinician practice. This way, it establishes some concepts, founded on phenomenology, humanism and existentialism that give a direction to the psychologist’s practice.

Keywords: Therapeutic relationship; Neutrality; Phenomenology; Gestalt-therapy.


 

 

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é estabelecer uma reflexão acerca da atuação do psicólogo como terapeuta e como ser humano na prática psicoterápica. Se, por um lado, a neutralidade tão falada se mostra muito distante e inatingível, por outro, um psicólogo que esteja na sessão terapêutica falando de sua vida, tomando o espaço da sessão com seus problemas, sentimentos e opiniões próprios também é igualmente inoportuno.

A Gestalt-terapia vai permear as reflexões sobre o tema escolhido. Ela utiliza a fenomenologia como visão de homem e como metodologia, levando seus conceitos para a prática clínica. Desta forma, o Gestalt-terapeuta busca que o cliente amplie seu nível de consciência sobre seus comportamentos, atitudes e sentimentos, possibilitando um maior contato (RODRIGUES, 2000) com eles, a fim de que possa estar no mundo de uma forma mais satisfatória. Neste contexto, a fenomenologia, com sua proposta de descrição de fatos, que acontecem não somente fora ou dentro da pessoa, mas na relação entre eles, mostrou-se bastante útil para a psicoterapia, bem como com a proposta do conceito de intencionalidade, que, segundo Forghieri (1993), seria a capacidade inerente ao ser humano de dar sentido aos fatos do mundo de maneira singular.

Mas como, na sessão terapêutica, o psicólogo deve atuar? Ele é igualmente provido de intencionalidade, assim como o cliente. No entanto, o cliente é quem vai direcionar o processo terapêutico, devendo o terapeuta apenas acompanhar as possibilidades do cliente, facilitando o processo deste em direção a uma ampliação de sua consciência. É essa a discussão que será abordada ao longo do trabalho.

Fenomenologia

A fenomenologia nasceu com a tentativa de Husserl de dar à filosofia um caráter científico. Para tanto, Husserl (1947/2000) elaborou o método fenomenológico, que buscava dar exatidão à descrição da realidade. Em vez de buscar explicar a realidade, a fenomenologia procura simplesmente descrevê-la. A atitude fenomenológica consiste em indagar o que é percebido, abstendo-se dos conhecimentos a priori; consiste em questionar o que se apresenta no mundo como natural, um mundo que não tem sentido sem uma consciência para lhe dar sentido (RIBEIRO, 1999).

O mundo que interessa à fenomenologia é o mundo como é percebido pela consciência de cada pessoa. Nem o mundo nem o sujeito existem isoladamente, o que existe é uma consciência do mundo, um mundo para uma consciência, em que um não pode ser compreendido sem o outro, fora da relação que estabelecem (FORGHIERI, 1984). O mundo fora da consciência não é negado, mas é considerado sem significado para a filosofia, para a ciência, uma vez que não há acesso a ele (HUSSERL, 1947/2000).

A fenomenologia estabelece o princípio da intencionalidade da consciência, em que a consciência é entendida como doadora de sentido/significado ao mundo. Esse princípio estabelece uma nova relação entre sujeito e objeto, já que consciência e mundo só são compreensíveis em relação, integrando consciência e objeto, sujeito e mundo (DARTIGUES, 1992; FORGHIERI, 1993). A intencionalidade dirige a atenção para o significado do objeto sem considerar sua presença real, imaginária ou categórica.

No método fenomenológico, mesmo fazendo parte da vivência, o "eu" fica suspenso, colocado entre parênteses, em um processo chamado de redução fenomenológica. As influências de tudo o que existe a priori na consciência são minimizadas para que o fenômeno que aparece seja compreendido. Para que uma pessoa possa compreender a vivência de uma outra, precisa deixar de lado seus próprios valores e tentar entender como a outra pessoa, com suas próprias experiências, enxerga o mundo, um mundo que não é absoluto, mas resultado das vivências desta pessoa, filtrado pela sua consciência. O mundo deixa de ser existente para ser fenômeno da existência (GILES, 1937/1975).

Após sua fundação por Husserl, a fenomenologia influenciou outros autores. Heidegger criou a fenomenologia existencial (GILES, 1937/1975). Seu método consistia em interrogar as coisas a fim de revelar o objeto à sua própria luz, em busca do ser das coisas.

A questão do ser é o ponto central do estudo de Heidegger (GILES, 1937/1975). O ser está no modo de aparecer e desaparecer das coisas. O ser, ao mostrar-se, esconde-se. Isto é inerente ao seu modo de aparecer. Diante das diversas possibilidades do ser de se revelar, ele revela uma, deixando as demais encobertas. É como se estivéssemos olhando para uma face de um dado, enquanto as outras faces estariam escondidas. Não é possível ver todas ao mesmo tempo.

O ser acontece no mundo, ele é no mundo. Não de uma forma determinada, mas fazendo escolhas diante das diversas possibilidades de ser no mundo. Ele se constitui no mundo a partir das relações que estabelece com as pessoas, com as coisas; ao contrário dos demais entes (seres e objetos) da natureza, que não têm a possibilidade de interferirem no seu vir-a-ser, isto é, que só podem ser de uma única maneira. O homem é o único ente que se dá conta de seu próprio ser, do ser de outros entes e da diferença que há entre o ser de ambos (CRITELLI, 1996). O homem percebe que tem que dar conta de seu próprio ser; é sua responsabilidade transformar possibilidade em acontecimento. Desta forma, não poderia nunca ser absoluto e definitivo, pois ele se transforma a cada instante. O ser no mundo dos homens é um eterno vir-a-ser, está constantemente em processo de construção. Ele é responsável por seu próprio ser.

O que pode ser destacado como fundamental para a fenomenologia, considerando as contribuições tanto de Husserl quanto de Heidegger, é que pretende ser um método descritivo, procurando descrever a experiência, em vez de explicá-la. Desconsidera, desta forma, o modelo de causa e efeito vigente durante muitos anos no meio científico. Entende que os fenômenos precisam ser compreendidos como são, sem serem retirados do mundo para o lugar de objetos, mas inseridos no mundo onde estão presentes, em sua relação com ele, pois é desta relação que emergem seus significados.

 

Gestalt-terapia/abordagem gestáltica

A Gestalt-terapia pode ser considerada uma aplicação da fenomenologia. É uma abordagem psicológica que surgiu nos EUA no início dos anos 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial, como parte do "boom" das psicoterapias humanistas, sendo voltada para uma postura existencial-fenomenológica. Teve Perls como seu principal autor e criador e chegou ao Brasil na década de 1970.

Seu objetivo é possibilitar que o cliente encontre formas mais satisfatórias, mais saudáveis de estar no mundo, por meio do aumento de sua capacidade de estar aware. Awareness é um dos principais conceitos da Gestalt-terapia e "compreende o conhecimento do ambiente, a responsabilidade pelas escolhas, o autoconhecimento, a auto-aceitação e a capacidade de contato" (YONTEF, 1998: 37). Difere do conceito tradicional de consciência por não se limitar ao conhecimento de âmbito racional, ou seja, é uma consciência organísmica, que inclui a dimensão corporal e sensorial. Segundo Frazão (1997), "awareness se refere à capacidade de aperceber-se do que se passa dentro de si e fora de si no momento presente, tanto a nível corporal, quanto a nível mental e emocional. É a possibilidade de perceber simultaneamente o meio externo e interno através dos recursos perceptivos e emocionais" (p. 65). É ainda a possibilidade de perceber e integrar criativamente uma situação, produzindo desenvolvimento (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997).

A Gestalt-terapia vê o homem como um ser no mundo. O homem age ativamente no mundo, transformando-o, e também recebe influências dele, em uma relação recíproca. O homem dá significado ao mundo por meio de sua consciência intencional. Ele é sempre parte de um contexto. Neste sentido, a teoria do campo de Kurt Lewin foi uma grande influência para a Gestalt terapia, por conter a noção de um campo com diversas forças atuando simultaneamente, em que mesmo alterações de pequenas forças em pequenas partes podem ser percebidas por alterar a totalidade do campo onde estão inseridas (RODRIGUES, 2000). Desta forma, a Gestalt-terapia considera que o ser humano não pode ser concebido como partes isoladas ou como uma pessoa destacada de seu contexto, mas que deve ser visto como uma totalidade. "Esta maneira de ver o ser humano como um todo é chamada de holismo" (RODRIGUES, 2000: 48).

Essa visão de homem da Gestalt-terapia traz implicações em sua prática clínica. Ao ver o homem como um todo, não só o que é dito em terapia serve como material para ser trabalhado, mas qualquer situação emergente do que o cliente vive no momento. Assim, todas as informações são consideradas - seu discurso, seus gestos, seus olhares, sua respiração etc. - tudo o que terapeuta e cliente acharem que deva ser avaliado (YONTEF, 1998). Os sentidos, o movimento e a linguagem verbal são chamados pelo casal Polster de "funções de contato" (POLSTER & POLSTER, 1979) - são os meios pelos quais o ser humano é capaz de realizar trocas com o mundo ao seu redor. Por intermédio das funções de contato, a pessoa expressa-se ao mundo, inclusive quanto às dificuldades ou impossibilidades momentâneas de fazer contato com ele e com o que há de novo nele. A Gestalt-terapia introduz o trabalho com o corpo, mas não exclui as outras formas que aparecem no campo vivencial do cliente, pois fazer isso seria uma outra forma de redução do cliente a apenas uma de suas partes.

A Gestalt-terapia propõe que, em vez de explicar o comportamento do cliente, o terapeuta pode ajudá-lo a compreender o que o impede de alcançar o que almeja e voltar a ter uma vida satisfatória, por meio da descrição do que ele observa no cliente. Quando o terapeuta faz uma descrição, está ligado ao momento presente, nem antes (buscando as causas) nem depois (antecipando conseqüências), porque não é possível agir no passado ou no futuro, só no presente, no "aqui-e-agora". Não há uma tentativa de encaixar a fala do cliente em uma teoria; o terapeuta vai trabalhar com a vivência do cliente naquele momento, considerando que cada vivência é única. Esta estratégia visa a evitar a substituição da experiência pela explicação da experiência. O que é de antemão conhecido deve ficar entre parênteses, para que seja possível perceber novas formas, novas possibilidades. Ao descrever os temas e processos do cliente, o Gestalt-terapeuta permite que o próprio cliente possa atribuir um significado a eles, considerando sempre que será apenas um entre vários significados possíveis. O significado vem da experiência e não do terapeuta.

A capacidade que o cliente tem de estar consciente de si e de sua relação com o contexto, permitindo-lhe fazer escolhas satisfatórias, é inerente a todo ser humano. Ela é chamada de auto regulação (RIBEIRO, 1985). Nesse movimento de auto-regulação, é preciso que a pessoa perceba, entre as diversas forças atuando em seu campo, suas necessidades predominantes. Não há como focalizar todas as forças que atuam em um campo de uma só vez; não temos como prestar atenção ao mesmo tempo em todas as nossas funções biológicas (respiração, batimentos cardíacos), em todos os nossos pensamentos, em tudo o que está acontecendo ao nosso redor. Então, é preciso verificar com o cliente qual situação é percebida como prioritária, levando-o a observar como uma força se destaca no meio de uma imensidão de forças diferentes. Para tratar destes aspectos, a Gestalt-terapia absorveu a influência da área de pesquisa chamada de "psicologia da Gestalt" ou gestaltismo.

Apesar da herança do nome, a Gestalt terapia distingue-se da psicologia da Gestalt, sendo esta apenas uma de suas influências. Algumas das descobertas da psicologia da Gestalt afetam tremendamente a forma como a Gestalt terapia entende o nosso processo de fazer contato com o mundo. O conceito de "figura e fundo" (RODRIGUES, 2000), por exemplo, propõe que tudo o que conhecemos só conhecemos dentro de um contexto, que é chamado de fundo. Toda vez que nossa atenção se volta para algo - figura -, essa busca realiza-se sobre um fundo. Quando a necessidade figural é satisfeita, ela retorna ao fundo, para que novas necessidades venham a se tornar figura.

A satisfação das necessidades acontece na interação com o mundo, por meio das funções de contato. Mas existem limites que podem impedir que as pessoas entrem em contato com algo novo, o que, na Gestalt-terapia, é chamado de "fronteiras de contato" (RODRIGUES, 2000). As fronteiras de contato são o local onde o contato é realizado. Segundo Polster & Polster (1979), "é o ponto em que a pessoa experiencia o 'eu' em relação àquilo que não é 'eu' e, através deste contato, ambos são experienciados de uma forma mais clara" (p. 104). É como o contorno que uma figura recebe pelo fundo em que está inserida. As fronteiras de contato exercem um importante papel na existência do indivíduo, protegendo-o contra forças nocivas e dando-lhe contorno. São seletivas, na medida em que absorvem algo do mundo, mas não tudo. No entanto, em alguns momentos, pode acontecer de essas fronteiras se cristalizarem, impedindo que a pessoa entre em contato com novas experiências, o que limita seu desenvolvimento. A fronteira de contato não está nem na pessoa nem fora dela, mas entre a pessoa e o mundo, mediando os diálogos que ela estabelece.

Segundo Hycner (1997): "Entende-se por dialógico o contexto relacional total em que a singularidade de cada pessoa é valorizada" (p.29). Para que possa haver um real "encontro" entre cliente e terapeuta, é necessária uma atitude de abertura ao outro, ao seu mundo. Buber (apud JACOBS, 1997) considera três elementos para que o diálogo aconteça: a presença, a comunicação sem reservas e a inclusão. A presença é a possibilidade de estar na relação sem tentar influenciar a outra pessoa. Na terapia, o terapeuta deve desistir de tentar mudar o cliente e aceitar verdadeiramente suas possibilidades, deve estar em contato também com suas próprias dificuldades e com sentimentos de potência e impotência. A comunicação sem reservas diz respeito à capacidade da pessoa de se envolver honestamente na tarefa, "dizer o que acredita que servirá para criar condições para o diálogo ou para promover o diálogo em andamento, mesmo temendo a forma como isso será recebido" (BUBER apud JACOBS, 1997: 79). No entanto, isso não significa que o terapeuta deve dizer qualquer pensamento que lhe ocorra, agindo impulsivamente, mas somente comunicar o que for pertinente ao processo de desenvolvimento de seu cliente, mesmo que isso signifique permanecer em silêncio. A qualidade do contato depende também de uma atitude de inclusão. A inclusão é exatamente não se deter no significado das palavras, mas procurar, para além das palavras, compreender o outro como o outro, tentando ver o mundo com os olhos destes (JACOBS, 1997).

Segundo Jacobs (1997), na psicoterapia a relação dialógica assume uma forma particular, na medida em que não é uma relação inteiramente mútua. O terapeuta deve ser capaz de encontrar seu cliente de forma autêntica, estando presente, comunicando-se com ele sem reservas e sendo capaz de praticar a inclusão. No entanto, não é esperado que o cliente faça o mesmo. Ele é o foco da terapia e deve estar voltado para seu próprio desenvolvimento, facilitado pela postura de inclusão do terapeuta. Por isso, pode-se falar em uma inclusão unilateral, do terapeuta com relação ao cliente. Embora assumindo papéis distintos, terapeuta e cliente assumem uma relação não hierárquica, em que ambos são figuras atuantes no processo psicoterápico.

Um encontro que permita a plena comunicação das partes envolvidas ultrapassa a dicotomia observador/observado. Segundo Yontef (1998), o papel do Gestalt-terapeuta é observar o comportamento aqui-e-agora do cliente e facilitar sua experimentação fenomenológica. O cliente aprende experimentando na "emergência segura da situação terapêutica" (PERLS, 1966 apud YONTEF, 1998: 75). Essa relação só é atingida quando existe a presença do cliente e sua exposição e também a presença do terapeuta e sua participação, desde que tal participação contemple a prioridade da relação que se estabelece: que esta possa servir ao indivíduo que procura a terapia, para que ele alcance, autonomamente, sua satisfação, seu reequilíbrio organísmico.

A singularidade da relação terapêutica dialógica permite que o cliente entre em contato com o novo e com as novas possibilidades de se relacionar com o mundo, em um processo de sucessivas experiências, que dão sentido a sua existência. Este sentido é sempre provisório, pois vai se transformando à medida que novas vivências acontecem, nunca chegando ao fim, pois está em permanente desenvolvimento. Na Gestalt-terapia, para que haja processo, é preciso haver contato com o novo, com algo que vai ganhando sentido, apontando uma direção a cada passo dado, onde o que passou interage com o que virá, mas não o determina. Cliente e terapeuta vão se construindo a cada momento na relação.

 

O papel do psicólogo

Já foi dito que o Gestalt-terapeuta trabalha com uma atitude fenomenológica, no aqui e agora, utilizando a descrição como forma de facilitar o processo de aumento da awareness do cliente. Esta só ocorre quando o cliente é capaz de fazer contato. O contato é uma função inerente a todo o ser humano, que permite que ele realize trocas com o meio, com objetos, com outros seres humanos, outros seres vivos, além de com ele mesmo (POLSTER & POLSTER, 1979).

O contato é feito mediante os cinco sentidos, a fala e os movimentos. Pode ser realizado completamente ou desviado de alguma forma, quando a função se encontra obstruída. Quando ele é feito completamente, a necessidade satisfeita retorna ao fundo e abre espaço para que novas necessidades possam emergir. Para visualizar melhor o processo de contato, Zinker (apud RODRIGUES, 2000) propôs o ciclo do contato. Este ciclo começa com a sensação de um estímulo, depois a pessoa toma consciência do que sentiu, mobilizando energia, a fim de realizar uma ação em função do que sentiu, fazendo contato com seus sentimentos e sensações neste momento, podendo, enfim, retrair-se para dar espaço a novos ciclos, a partir de novas necessidades emergentes.

Segundo Polster & Polster (1979), o simples fato de fazer contato propicia mudanças. Seja aceitando ou rejeitando o novo, a mudança simplesmente acontece, porque a relação eu/mundo se transforma. Desta forma, para que a pessoa mude, basta que ela faça contato com suas necessidades mais emergentes e com os sentimentos que provêm de suas relações.

O papel do psicólogo é facilitar o processo de contato do cliente com suas experiências, acompanhando o cliente em seu foco. Para isso, o trabalho precisa ser sempre na fronteira de contato do cliente, nem além nem aquém. O terapeuta não pode forçar que o cliente perceba algo que ele não está percebendo, porque assim estaria indo além de suas possibilidades, nem deixar de intervir em momentos em que o cliente esteja apto para lidar com a situação, senão não existe mudança.

Para experienciar e descrever o que acontece no espaço terapêutico, o terapeuta precisa utilizar suas próprias funções de contato. Para tanto, é preciso que tenha suas funções de contato desobstruídas. Assim, o terapeuta pode manter seu foco no cliente. Quando o terapeuta não tem um prévio trabalho psicoterápico profundo e não sabe se diferenciar do cliente, podem ocorrer erros de avaliação sobre qual é a demanda a ser trabalhada - a do terapeuta ou do cliente. Como o Gestalt-terapeuta é ativo e bastante participante dentro da relação com o cliente, como ele faz parte do processo, seu cuidado para que o foco permaneça sempre no cliente se torna essencial. Isso implica em um profundo senso de diferenciação entre o "eu" e o "outro".

"O terapeuta também, como o artista, age a partir dos seus próprios sentimentos, utilizando-se do seu estado psicológico como um instrumento de terapia. (...) Algumas vezes o terapeuta está aborrecido, confuso, bem humorado, com raiva, surpreso, excitado sexualmente, amedrontado, embaraçado, bloqueado, oprimido, e daí por diante. Todas estas reações podem dizer alguma coisa a respeito tanto do cliente quanto do terapeuta e podem compreender muitos dados vitais da experiência terapêutica" (POLSTER & POLSTER, 1979: 35)

Ao incluir-se no encontro terapêutico, o terapeuta reconhece sua própria presença e as forças inerentes às suas próprias fronteiras e inferências sobre seus próprios pontos cegos, com cuidado necessário para avaliar se há algo interferindo na relação que se estabelece com o outro.

O terapeuta pode compartilhar sua experiência com o cliente para acompanhar seu efeito nele, pode agir segundo sua experiência, expressando seus sentimentos na relação, ou pode ficar com o fato para si caso não ache pertinente expor isso no momento terapêutico. No entanto, deve estar constantemente acompanhando as possibilidades do cliente para decidir a forma de intervenção a ser realizada (POLSTER & POLSTER, 1979).

 

CONCLUSÃO

O Gestalt-terapeuta utiliza a fenomenologia como método de atuação na clínica. É por meio dela que ele vai criar técnicas e ser ele mesmo um instrumento no espaço terapêutico. A terapia de base gestáltica visa a facilitar o processo de awareness do cliente, acreditando que o fato de fazer contato consigo e com o mundo por si só trará para ele mudanças, possibilitando formas mais satisfatórias de estar no mundo. Da mesma forma, é o contato que o terapeuta é capaz de fazer com o seu cliente no momento terapêutico que vai facilitar o processo deste em direção ao seu desenvolvimento - potencialidade que todo ser humano carrega desde o nascimento.

Cabe ao terapeuta descrever o que é capaz de perceber durante o encontro terapêutico. Ele participa da terapia, não se isentando de nenhuma responsabilidade, mas também não se esquecendo de que o cliente é capaz de se auto-regular e encontrar o caminho de seu desenvolvimento, sendo o terapeuta um coadjuvante neste processo, que acompanha a trilha que o cliente vai percorrendo a cada momento. É o cliente que, com sua própria intencionalidade, vai dando sentido para os acontecimentos de sua vida.

O terapeuta também tem sua própria intencionalidade. Assim, como qualquer outro ser humano, ele confere significado aos fenômenos que observa e dos quais participa. Como o Gestalt-terapeuta é ativo e presente dentro do processo terapêutico, evidentemente não é neutro. Ele participa do processo relacional juntamente com o cliente. A terapia é uma relação em que terapeuta e cliente estão em situação de igualdade, embora assumindo papéis distintos. Justamente por exercer um papel específico na terapia, nem todos os significados e interpretações feitos internamente pelo terapeuta devem ser expressos para o cliente no momento da terapia, pois este é o espaço em que o cliente vai fabricar seus próprios significados.

Por meio da redução fenomenológica, as vivências do terapeuta, seus conceitos, suas atitudes são colocados "entre parênteses" para que o cliente seja capaz de realizar suas próprias escolhas. Como bem diz o nome, a redução fenomenológica não é capaz de eliminar completamente as crenças, valores e atitudes do terapeuta em suas intervenções, ela apenas reduz esses fatores. Usando a redução fenomenológica, o terapeuta vai descrever, sem interpretar, as questões que o cliente traz para a terapia. Cabe ao terapeuta permitir que o cliente dê sentido a suas vivências e se responsabilize por isso. O terapeuta pode até fazer intervenções em que participe algumas interpretações para o cliente, mas nunca uma única e verdadeira. Ao cliente cabe decidir, entre muitas possibilidades, o significado que faz sentido para ele no momento que ele está vivenciando.

Para que o terapeuta seja capaz de fazer a redução fenomenológica, ele precisa estar aware de sua própria intencionalidade. Caso contrário, irá misturar seus próprios conteúdos com os do cliente, sem perceber. Por isso, o terapeuta não deve parar nunca seu processo de auto conhecimento, de awareness de si próprio, e deve buscar estar em contato com suas necessidades para satisfazê-las em sua vida particular. Isso é necessário para que ele não tome as rédeas do processo do cliente e para que possa facilitar que este seja o condutor de seus próprios caminhos. É preciso que o psicoterapeuta esteja em contato com as necessidades que emergem no campo do cliente, impedindo que suas próprias necessidades se tornem prioridade na terapia. Se o terapeuta tem necessidades que precisam urgentemente ser satisfeitas durante o momento da terapia ou se não conhece suas próprias necessidades, inevitavelmente não vai conseguir manter seu foco no cliente.

Mesmo com todo o cuidado para que o cliente seja o condutor do processo terapêutico, o ser do terapeuta sempre vai estar presente. Cada um tem um modo próprio de estar no mundo e isso vale para a terapia também. O modo como o terapeuta fala, as intervenções que faz, como se veste, seus olhares, a disposição dos objetos na sala: tudo isso diz da individualidade do terapeuta. Ele vai estar presente como uma parte do fundo da relação terapêutica, em que o cliente representa sua figura.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Mariana Miranda Autran Sampaio
E-mail: m.autran@gmail.com.br

 

Recebido em: 26/07/05
Revisado em: 04/11/05
Aprovado em: 18/02/06

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