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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.56 n.1 Rio de Janeiro jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Kant e Piaget: articulações discursivas entre a filosofia transcendental e a epistemologia genética

 

Kant and Piaget: discursive articulation between transcendental philosophy and genetic epistemology

 

 

Pablo Severiano Benevides; Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Universidade Federal do Ceará. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa apresentar uma discussão teórica que problematiza supostas evidências de contrastes entre os pensamentos de Kant e Piaget. Procura-se extrair um aspecto em comum, presente na obra de ambos os autores, que fundamente a articulação discursiva aqui feita. Isso ocorrerá tanto no sentido de estabelecer uma semelhança discursiva entre os mesmos, como de estabelecer uma diferença entre ambos no que diz respeito à circunscrição de suas idéias nos diferentes planos do conhecimento. Portanto, à medida que se estabelece uma diferença entre Kant e Piaget pelo fato de suas teorias estarem postas em planos distintos, verifica-se, por esse mesmo motivo, que estas não podem ser mutuamente excludentes. Logo, uma suposta atividade originária, pondo sujeito e objeto nas devidas condições para que daí surja um conhecimento, e a circunscrição ou não da atividade do sujeito na dinâmica do tempo, consistem, respectivamente, nos aspectos semelhantes e dessemelhantes entre Kant e Piaget.

Palavras-chave: Atividade originária; Tempo; Sujeito-objeto.


ABSTRACT

This article presents a theoretical discussion which causes problems when considering the supposed evidence of contrasts between the thoughts of Kant and Piaget. There is an attempt to extract a common aspect. This aspect is something which is present in both thinkers and which is the base of the discussion here. The discussion will establish a likeness between the two as well as finding evidence of differences between them, regarding the circumscription of their ideas in different planes of knowledge. To the point to which a difference is established between Kant and Piaget by the fact that their theories are placed in distinct planes, one can see that they are not necessarily mutually exclusive. As a result, there is a supposed original activity, placing subject and object in certain condition for knowledge to arise as well as a circumscription, or lack thereof, of the activity of the subject in the dynamic of time. They consist, respectively, in similar aspects and differences between Kant and Piaget.

Keywords: Original activity; Time; Subject-object.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo, ao apontar os aspectos semelhantes entre os pensamentos de Kant e Piaget, construir um espaço no qual a divergência entre ambos os autores constitui expressão de uma crítica ilegítima. A ilegitimidade aqui colocada se refere à impossibilidade de transferência de uma questão, ou de uma categoria, de um plano (esfera) do conhecimento para outro por meio de uma crítica que não vislumbre uma passagem entre esses planos, mas sim uma redução de um ao outro. Ao positivar o pensamento de Kant e Piaget, no sentido de suspender qualquer crítica e mostrar o que eles apresentam de fundamental, encontra-se uma atividade originária a organizar a disposição sujeito-objeto, para que daí possa surgir um conhecimento. Ao investigar detalhadamente a crítica de Piaget a Kant, será configurada a emergência destes três planos fundamentais do conhecimento, a saber, metafísica, epistemologia e ciência, bem como os equívocos oriundos de uma não-demarcação de tais planos.

Portanto, a exposição aqui feita será dividida em duas partes: uma evidenciando aspectos semelhantes e outra apresentando aspectos dessemelhantes entre Kant e Piaget, embora os aspectos conclusivos da exposição apontem para a impossibilidade de aspectos fundamentalmente divergentes entre os mesmos.

 

Atividade como motor constituinte da relação sujeito-objeto: aspectos semelhantes entre Kant e Piaget

Muito embora um dos aspectos centrais, que à primeira vista aponta para uma certa concordância de pensamento entre Kant e Piaget, seja a universalidade alcançada por alguns modos de conhecimento, convém ressaltar um outro de importância bem maior, uma vez que nele está contido o fundamento do estatuto universal das categorias por meio das quais o conhecimento científico se faz e progride.

Não basta a uma metafísica, a uma filosofia teórica, a uma epistemologia e mesmo a uma ciência simplesmente postularem a existência de determinados princípios universais sem que os mesmos passem por modos de demonstrações os mais claros possíveis. Na medida em que se suprime a imposição pura e simples de princípios universais do conhecimento para se exigir uma demonstração que nos convença da pertinência e validade dos mesmos, põe-se como elemento constitutivo do próprio princípio o seu modo de demonstração. Ao estreitar tais laços, evidencia-se o caráter constitutivo do conhecimento, não em virtude de um decreto epistemológico, mas da aspiração à universalidade de tal princípio coincidindo com uma proposta universal de exposição.

A partir do que foi dito, surgem dois elementos que aparecem de forma central, tanto na proposta kantiana de uma filosofia teórica a fundamentar de modo transcendental o conhecimento científico, quanto na piagetiana de investigar cientificamente a gênese e o desenvolvimento do conhecimento: a atividade do sujeito e o caráter constitutivo da relação sujeito-objeto. Esses aspectos se justificam pelo fato de que a indissociabilidade entre o princípio universal e o processo que assim o realizou evidencia dois elementos essenciais para a reconstrução conceitual que aqui se propõe. Por um lado, o caráter constitutivo da relação sujeito-objeto, uma vez que a incidência do princípio (categoria) nos objetos resulta na constituição dos mesmos em virtude das possibilidades de demonstrações de tal aplicação, por outro, a atividade do sujeito, na medida em que a realização dos objetos não pode ser outra coisa senão a própria atividade de explicitação dos mesmos. No que diz respeito ao campo no qual se circunscreve tal atividade, a saber, se a mesma está submetida já à dinâmica do tempo e dos fenômenos empíricos, e, portanto, só é dada a posteriori, ou se jaz fora dessa teia como o fundamento a priori de sua tessitura, isso é uma questão a ser abordada posteriormente.

A partir de então, serão buscados nas obras de Kant e Piaget elementos que tragam consigo tanto o caráter constitutivo da relação sujeito-objeto como o seu princípio ativo. Com isso, justificar-se-á o que desde já se anuncia de antemão: tanto no pensamento de Kant como no de Piaget a atividade é o motor de constituição não só dos objetos, mas do próprio sujeito. Tal atividade, enquanto originária e constitutiva de uma realidade epistêmica e/ou fenomênica, não está polarizada em uma única fonte (no sujeito ou nos objetos) como uma unilateralidade no fundamento do conhecimento. Não se nega, com isso, que ambos os autores acabaram polarizando, em um momento seguinte, o motor da atividade no sujeito, seja como eixo da configuração transcendental e subjetiva da experiência, seja como fonte dos esquemas de ação. Todavia, será dada ênfase a uma outra atividade que se denominará, aqui, de atividade originária do conhecimento. Esta, ao atuar originariamente em uma suposta realidade fictícia, desdobrar-se-ia constituindo analogicamente os três planos fundamentais do conhecimento: metafísica, epistemologia e ciência. Ao inserir as questões aqui apresentadas no interior desses três planos, e mesmo nas passagens de um para o outro, realiza-se o essencial para a constituição de qualquer metafísica, qualquer epistemologia e, mesmo, qualquer ciência que aspirem rigor e clareza em suas demonstrações públicas, a saber, a separação entre sujeito e objeto.

A tese relativa à atividade constitutiva da relação sujeito-objeto será defendida, inicialmente, a partir de uma crítica a Oliveira (2004), no momento em que este aponta como aspectos antagônicos entre Kant e Piaget a ênfase na especulação conferida à filosofia do primeiro, em contraponto à ênfase na ação percebida no pensamento do segundo. Nas palavras do autor:

"Os pontos em comum, reconhecidamente presentes dentro do processo relacional e da devida ênfase e delimitação dadas à experiência e especulação, tendem a minimizarem-se ou mesmo sumirem quando tais autores são profundamente analisados quanto ao processo relacional que dá origem à experiência e ao conhecimento. Pois em um, a ênfase recai nas ações do sujeito, que irão formar, inclusive, o próprio pensamento; em outro, na presença e constância das formas a priori, pertencentes a uma razão pura e que antecedem qualquer experiência ou mesmo ação por parte do sujeito cognoscente" (Oliveira, 2004: 63).

Esta concepção, portanto, faz o autor concluir que: "(...) I. Kant, apesar de também defender a relação intrínseca entre ser conhecedor e ser conhecido, entende que tal se dá pela percepção e razão pura, e não pela atividade e ação do sujeito sobre o objeto" (OLIVEIRA, 2004: 61).

Oliveira, ao conferir a Kant o primado da especulação, o faz no sentido de atribuir à mesma o estatuto de meio pelo qual o filósofo funda a relação entre sujeito e objeto, relação esta que não estaria posta por atividade constitutiva alguma, mas pelas formas a priori da razão pura. Coloca-se aí patente a confusão feita pelo autor entre o sujeito Kant e o sujeito transcendental de que Kant fala, pois se o primeiro utilizou-se de especulações, reflexões, associações, ou do que quer que seja, para construir seu sistema filosófico, isso nada tem a ver com o modo como o sujeito transcendental se refere à experiência. Todavia, este problema se ofusca diante de um equívoco maior no que diz respeito àquilo que o autor mesmo viu como uma questão kantiana essencial em sua comparação com Piaget: a relação sujeito-objeto. Adiantando a essência da crítica que aqui será feita: no que diz respeito ao sujeito transcendental, a primazia não está nem na especulação, nem na reflexão, e muito menos na análise, mas em um processo de síntese.

Será posto agora em cena, portanto, o sujeito transcendental, com todas as suas peculiaridades metafísicas que possibilitam a instauração da epistemologia, para que deste possam ser extraídos seus aspectos fundamentais. Espera-se, daí, esclarecer a pertinência e toda a significância que há em se admitir que, no sujeito transcendental, a primazia é a síntese.

Começaremos pela unidade sintética originária da apercepção, vista por Kant (1781/1983) como "o ponto mais alto ao qual se tem que prender todo o uso do entendimento, mesmo a Lógica inteira e, depois dela, a filosofia transcendental" (p. 85). O aspecto sintético da referida unidade é aquilo que marca, nas palavras do próprio Kant (cuja semelhança com Piaget se faz óbvia), uma "operação do entendimento", que lhe é própria e independente de toda referência à sensibilidade. Quando se remete a tal independência, entende-se que esta síntese, ou "operação do entendimento", consiste em uma espontaneidade do próprio modo de funcionar do entendimento, ou seja, de reunir em uma unidade intelectual (não-sensível) o múltiplo dado na intuição pura. Se, no que diz respeito às condições sensíveis a priori, não há atividade alguma para pôr a multiplicidade na intuição pura (já que tais condições nos são dadas como uma afecção imediata), todavia, uma vez que tal multiplicidade possa ser reunida em uma consciência, impõe-se a necessidade de uma atividade por parte do entendimento que não é ela mesma extraída dos objetos, muito embora, por esse mesmo motivo, dirija-se a eles no sentido de referi-los a uma unidade.

A consciência à qual é dirigida sinteticamente a multiplicidade da intuição pura não é, de modo algum, a consciência empírica, mas a consciência transcendental. Isso terá fundamental importância no que diz respeito à elaboração da síntese como processo determinante de um conhecimento a priori, e não só factual a posteriori. Por um lado, a unidade sintética originária da apercepção, enquanto síntese coincidente com o ato da apercepção "eu penso", é posta por Kant (1781/1983: 87) como o "primeiro princípio". Por outro, tal apercepção, enquanto relativa a uma consciência transcendental, não abrange, pela onipresença do ato "eu penso" em todas as representações, uma consciência empírica de todas elas. Portanto, antes de constituir-se como fundamento de todas as representações, esta unidade da apercepção ("eu penso") é simplesmente um veículo necessário para o endereçamento dessas representações a uma consciência transcendental.

"A saber, esta identidade completa da apercepção de um múltiplo dado na intuição contém uma síntese de representações, e só é possível pela consciência desta síntese. Pois a consciência empírica que acompanha diferentes representações é em si dispersa e sem referência à identidade do sujeito. Essa referência não ocorre pelo simples fato de eu acompanhar com consciência toda representação, mas de eu acrescentar uma representação à outra e ser consciente de sua síntese." (KANT, 1781/1983: 85).

Não é, portanto, na consciência das representações, que nos aparecem enquanto fenômenos, que reside a referência destas como necessária à unidade/ato da apercepção "eu penso", mas sim na consciência do acréscimo de uma representação qualquer a outra qualquer. Entenda-se, por isso, não um acréscimo empírico de adicionar uma representação x a uma outra y, mas sim a atividade a priori do sujeito transcendental de pôr-se sucessivamente, enquanto espontaneidade pura do entendimento, em uma síntese que é dirigida a uma consciência que pode vir a ser empírica.

Em outro momento, Kant coloca esta consciência como consciência possível destas representações dadas na intuição pura, sendo tal possibilidade relativa à configuração do campo sob o qual atuam os processos a priori da subjetividade transcendental, que não é o campo da experiência bruta, empírica e factual, mas o da "experiência possível". Esta deve fazer concordar os dados empíricos com o que o filósofo chama de "cânone da razão, cuja forma possui a sua prescrição segura que, sem tomar em consideração a natureza particular do conhecimento nela usado, pode ser compreendida a priori mediante o simples desmembramento das ações da Razão em seus momentos" (KANT, 1781/1983: 101, grifo nosso).

Uma vez posta claramente, em todos os termos, a atividade sintética como motor e instrumento primeiro do sujeito transcendental, torna-se simples justificar também seu caráter constitutivo tanto em relação a este como ao objeto (experiência possível). Vejamos, primeiramente, ditos do próprio Kant em um outro contexto, a saber, quando o filósofo se propõe a refutar a possibilidade de uma psicologia racional que prove a priori a permanência da alma como substância (o que seria conferir-lhe auto-suficiência) para além da morte.

"Com efeito, deve-se observar que, denominando a proposição 'eu penso' uma proposição empírica, não quero com isso dizer que o eu em tal proposição seja uma representação empírica; é antes puramente intelectual porque pertence ao pensamento em geral. No entanto, sem qualquer representação empírica que fornece a matéria do pensamento o ato 'eu penso' absolutamente não ocorreria, e o eu empírico é apenas a condição da aplicação ou do uso da faculdade intelectual pura" (KANT, 1781/1983: 210, grifo nosso).

A proposição 'eu penso', enquanto unidade analítica da consciência (porque idêntica em todos os estados), esvazia-se em relação à consciência se não lhe subjazer o ato 'eu penso' que pressupõe objetos em geral para poderem ser pensados. Ora, se o princípio é a síntese, o "eu", enquanto unidade sintética originária do entendimento, perde, com isso, sua razão de ser e desaparece, uma vez que seu fundamento sintético não encontra, no mundo, material algum para realizar a ação necessária para constituir objetos. Essa mesma ação constitui o próprio sujeito, representado analiticamente para si como idêntico e distinto dos objetos graças a uma abstração meramente possível do 'eu' que pensa. Contudo, tal abstração não é o dado primeiro, mas é subsidiada pela imposição de uma realidade (seja esta de que natureza for) que obriga o sujeito a se pôr em atividade de sintetizá-la para si. Portanto, se o sujeito transcendental é uma síntese, fica fácil demonstrar a impossibilidade da constituição de tal sujeito independentemente dos objetos por meio da impossibilidade lógica de se pensar em uma síntese sem material algum a ser sintetizado. Se tal sujeito não subsiste independentemente dos objetos, fica claro que a síntese, como atividade transcendental, constitui tanto o sujeito como o objeto do conhecimento. Conceba-se, então, que esta atividade, enquanto não polarizada nem no sujeito nem no objeto, constitui um modo de expressão mais próximo da referida atividade originária do conhecimento.

A exposição da forma como a atividade vem a se instalar constitutivamente sobre a relação sujeito-objeto no pensamento de Piaget terá início por meio da explicitação da própria constituição do sujeito e do objeto, explicitação esta efetivada em uma esfera ficcional, na qual ambos se encontravam supostamente em estado de completa indiferença.

Partindo desse ponto, caracteriza-se a referida esfera como uma estrutura de realidade na qual o estado simbiótico dos termos que a compõem dissolve-se em uma totalidade indiferenciada, ausente de qualquer referência a um sujeito enquanto marca de oposição relativa a um objeto. "Numa estrutura de realidade que não comporta sujeito e objetos, é óbvio que o único vínculo possível entre o que virá mais tarde a ser um sujeito e objetos é constituído pelas ações, mas por ações de um tipo particular, cuja significação epistemológica parece instrutiva" (PIAGET, 2002: 10).

Uma vez que é por meio da ação que aparece o sujeito como protagonista atuante na cena epistemológica da constituição dos objetos, tal momento, enquanto constitutivo da estrutura epistêmica do mesmo, não deve ser pensado como um instante místico ou mágico no qual emerge, de uma realidade monolítica, o sujeito como ponto diferencial ou elemento heterogêneo de uma solução, até então, homogênea da qual se pensava que nada poderia surgir. Muito embora esteja presente esta referência à tal "estrutura de realidade", isto parece ser mais um recurso analógico para pensar a constituição de um sujeito epistêmico que não pode ser pensado desde sempre para todo o sempre do que a descrição fiel de uma fase específica do surgimento e/ou desenvolvimento desse sujeito.

Quando se diz que é por meio da ação que se dá a constituição do sujeito, convém explicitar de modo mais específico o que isto quer dizer e implica.

No que diz respeito à indiferenciação entre sujeito e objeto, a mesma parece refletir no sujeito em potencial (no bebê) uma centralidade absoluta, cuja expressão Piaget (2002: 10) denominou de "egocentrismo radical". Tal centralidade, enquanto reflexo desse estado de "egocentrismo radical", nada tem a ver com a autonomia e domínio do bebê sobre si e os objetos, mas, ao contrário, é antes de tudo inteiramente cega, haja vista que o mesmo não se percebe como fonte de seus atos. O rompimento com esse estado de indiferenciação conseqüente do fato de que o bebê não dispõe de meios para livrar-se dessa centração cega é dado não pura e simplesmente pela ação em si descontextualizada de qualquer referência epistemológica e constitutiva, mas pela coordenação de ações realizada por tal sujeito. Nas palavras de Piaget (2002): "É, então, que se constitui o sujeito enquanto fonte de ações e, portanto, de conhecimento, visto que a coordenação de duas dessas ações pressupõe uma iniciativa que supera a interdependência imediata entre uma coisa exterior e o próprio corpo com a qual as condutas primitivas satisfaziam-se." (p. 11).

A superação referida por Piaget, coincidente com o descentramento do sujeito, encontra-se, a exemplo de Kant, expressa sob a forma de uma "revolução copernicana", todavia em termos distintos. O descentramento aqui em jogo é relativo ao próprio corpo, e consiste na ação de se pôr, enquanto ser orgânico e corporal, sobre o qual nada relativo à dimensão do conhecimento encontra feedback, na condição de objeto. Ora, isto que encontra seu estatuto potencial de sujeito, unicamente graças ao seu limite corpóreo, só pode colocar-se na posição de objeto e, portanto, descentrar-se de si mesmo, uma vez que emerge um outro sujeito a funcionar como fonte da ação de "descentrar-se". Este é, pois, o sujeito epistêmico, que se mantém enquanto tal na circunstância em que o outro potencial sujeito (o bebê enquanto corpo) é posto na condição de objeto.

"(...) nesse intervalo de um a dois anos consuma-se, com efeito, mas ainda somente no plano dos atos materiais, uma espécie de revolução copernicana que consiste em descentrar as ações em relação ao próprio corpo, em considerá-lo um objeto entre outros no espaço que os contém a todos, e em ligar as ações dos objetos sob o efeito das coordenações de um sujeito que começa a conhecer-se enquanto fonte ou mesmo enquanto senhor de seus movimentos" (PIAGET, 2002: 11).

Se, então, estamos diante da mesma revolução copernicana em planos distintos do conhecimento, ou de "revoluções" distintas, isto certamente estará em função do que se compreende por "constituição da relação sujeito-objeto" em Kant e em Piaget. Ora, visto que - muito embora seja deveras arriscado fazer equivaler ambas as "revoluções" como referidas ao mesmo modo de organização sujeito-objeto - algo aí parece evidenciar uma semelhança entre os processos constitutivos da referida relação, o elo encontrado para tal amarração discursiva não foi outro senão uma dada atividade que origina a possibilidade de um conhecimento. Portanto, uma vez ciente de que esta referida relação não traz as mesmas implicações nem significa a mesma coisa - haja vista, por exemplo, que, em Kant, não há nada relativo ao próprio corpo que interfira na ação sintética da unidade da consciência (sujeito), ao passo que, em Piaget os esquemas corporais entram em cena na modificação de si mesmo e dos objetos pelos processos de acomodação e assimilação -, parece, todavia, inegável a existência de certas semelhanças relativas à atividade que age na constituição da relação sujeito-objeto.

É importante assinalar que este sujeito, muito embora seja caracterizado por epistêmico, ainda não é o que efetivamente coordena suas ações de modo a interiorizá-las e conferir-lhes reversibilidade, o que é sua conquista última. Não se trata, portanto, nesse momento, do advento de um sujeito que conhece, mas sim de um sujeito que entra em cena para conhecer, posto que o processo necessário para a construção do conhecimento está apenas no início.

Por meio da assimilação - em oposição à associação, que postula um plano exterior aos elementos no qual estes são interligados -,essas ações, uma vez coordenadas, integram-se a esquemas já existentes e chegam mesmo a fundar esquemas novos. As ações que ocorrerem nesse estágio, chamadas por Piaget (2002: 13)de "ações primitivas", compõem um esquema e utilizam o mesmo por sucessivos modos de assimilação, desde uma assimilação reprodutora, passando por uma assimilação recognitiva até culminar em uma assimilação generalizadora.

O outro momento da atividade do sujeito, correlato à assimilação, é a acomodação. Esta consiste nas modificações ocorridas nos esquemas de assimilação que, se por um lado ocorrem em virtude de novos objetos assimilados, por outro modifica o modo com o qual outros objetos serão assimilados posteriormente. Piaget (apud MONTANGERO & MAURICE-NAVILLE, 1998: 97) ainda a define como "resultado das pressões exercidas pelo meio" e, em sua relação com a assimilação, dirá que esta "jamais pode ser pura porque, ao incorporar os elementos novos aos esquemas anteriores, a inteligência modifica sem cessar esses últimos para ajustá-los aos novos dados" (PIAGET, 1977: 13).

Portanto, longe de ser um processo mecânico unilateral, assimilação e acomodação consistem na produção do conhecimento por uma via de mão dupla que é correlata precisamente à concepção piagetiana acerca da relação sujeito-objeto. Se o conhecimento é fruto de um ato epistêmico, não estaríamos de acordo com Piaget se disséssemos que a fonte desse ato é o sujeito ou o objeto. A disjunção entre ambos é característica não de uma epistemologia construtivista formulada pelo cientista suíço, mas de uma concepção diádica de compreensão acerca do modo como se dá o conhecimento em função dos termos epistemologicamente fundamentais - sujeito e objeto. Se assimilação e acomodação integram um só corpo a fim de buscar uma equilibração, tal concepção se fundamenta na postulação de uma realidade epistemologicamente comum a sujeito e objeto. Isso quer dizer que, por mais que haja tal diferenciação entre ambos, esta se circunscreve ao campo comum da atividade constitutiva do conhecimento como processo bilateral que impede o isolamento de sujeito e objeto como entidades no meio das quais jaz um abismo intransponível. Segundo Lajonquière (1997):

"Em suma, o objeto e a inteligência do sujeito constituem uma mesma e única realidade interativa e não, como às vezes se pensa, duas materialidades heterogêneas onde uma delas possuiria a capacidade de vir a complementar a evolução potencial da outra. Como Piaget sempre sustentou, o objeto e o sujeito são os dois pólos da interação ou de uma realidade intelectual que se autoconstrói" (p. 6).

Evidenciados, como um ponto em comum entre os pensamentos de Kant e Piaget, tanto o aspecto constitutivo da atividade quanto a primazia da dependência mútua entre sujeito e objeto no que diz respeito à produção de um conhecimento, a simples postulação da semelhança entre os referidos pensadores ancorada unicamente na concepção, comum a ambos, de que o conhecimento científico possui um estatuto universal perde sua importância diante de um fato constitutivo do próprio conhecimento. Ressalte-se, ainda, que atribuir a realidade da universalidade do conhecimento a um modo de construção do mesmo não implica outra coisa senão promover a indissociabilidade entre modos de exposição e o aspecto final da construção.

Não deixa de ser curioso o fato de que, muito embora à primeira vista a filosofia kantiana não encontre na atividade e na construção alicerces fundamentais para o seu sistema, o que ocorre visivelmente na epistemologia piagetiana, o uso de expressões como "operações do entendimento", "ações da razão", "ato da apercepção" e "síntese" parece evidenciar uma série de modos de procedimentos, de ênfases e mesmo de pressupostos comuns entre Kant e Piaget. Tal semelhança se faz perceptível no pensamento de Piaget (1978) desde o momento em que o mesmo fala, por exemplo, da ação como "fonte do próprio ato de inteligência" (p. 112) até aqueles nos quais enfatiza a "passagem da ação à operação" (p. 114).

A noção de que, mesmo em uma esfera transcendental, ou seja, relativa ao uso a priori das faculdades referentes à razão pura, pode-se pensar em uma construção, o que pode parecer paradoxal não só para Oliveira (2004) como para toda análise mais superficial da proposta kantiana, encontra nesta exposição uma pertinência e significatividade das quais muitas outras questões interessantes podem ser extraídas. A idéia de uma construção a priori do conhecimento, à medida que aproxima Kant e Piaget, também os distancia, não no sentido de instaurar uma oposição ou discordância entre os mesmos (e é isso que se defenderá a seguir), mas de circunscrever a atividade constitutiva em esferas diferentes e, por esse mesmo motivo, não-excludentes.

 

Tempo: referência distintiva do a priori entre as questões kantianas e piagetianas

A noção kantiana de que há uma construção transcendental do conhecimento parece expressar-se de modo mais claro na Crítica da Razão Pura nos momentos em que o filósofo dirá que o conhecimento só progride mediante proposições sintéticas a priori. Caso se pense, ao contrário, que todo o conhecimento progride como um desdobramento dos termos que nele já estavam contidos sem acréscimo algum, diríamos que possui um caráter analítico. Por outro lado, na suposição de que o conhecimento atinge os objetos segundo princípios puramente empíricos, não se teria critério algum de validade do mesmo, já que da experiência, que é sempre contingente, não se pode extrair universalidade ou necessidade alguma; neste caso, dir-se-ia que o conhecimento se desenvolve somente a posteriori. Que alcance possui, então, conceber que o conhecimento não avança nem sob a primeira forma, nem sob a segunda, mas sim sob um acréscimo transcendental por parte do sujeito, fundamentado por uma atividade originária?

Piaget, por sua vez, julga a si mesmo construtivista em oposição a um modelo apriorista e a outro empirista. Segundo o cientista, no instante em que o conhecimento estiver posto sob formas a priori, nega-se o caráter verdadeiramente construtivo do mesmo, já que o "reduz a uma assimilação pura, visto que as estruturas intelectuais são consideradas (...) como exclusivamente endógenas" (PIAGET, 1977: 25). Todos os argumentos da epistemologia piagetiana vão no sentido de mostrar que qualquer concepção apriorista - chamada muitas vezes pelo autor de inatista ou ainda pré-formista - põe o conhecimento já pronto, porque polarizado no sujeito, sem levar em conta a resistência ou a pressão imposta pela realidade, pelos objetos. Esta resistência dos objetos é referida diversas vezes na obra de Piaget, seja como acomodação dos esquemas (modificação dos mesmos em virtude da assimilação de outros objetos) ou como perturbação (incongruência entre dois juízos entre si, ou entre o juízo e a realidade), ambos em função da equilibração, que é um processo de busca de congruência e harmonia entre os esquemas subjetivos e a realidade posta. Surgem, portanto, as seguintes questões: sob que aspectos a crítica de Piaget a esse modelo chamado por ele de apriorista está dirigida a Kant? E se está, sob que aspectos se encontra pertinente, em função do já explicitado caráter sintético e construtivo do conhecimento em Kant?

Espera-se que, esclarecida inicialmente a primeira questão, relativa ao alcance da concepção kantiana acerca dos juízos sintéticos a priori, possa-se mais facilmente responder à segunda, referente à pertinência da crítica de Piaget a Kant; e, desse modo, caso se estabeleça um espaço no qual tal crítica não alcance legitimidade, buscar em Piaget aspectos de sua obra que, à luz da análise que agora será feita, justifiquem o possível equívoco. Como adiantamento daquilo que após esta exposição esperamos explicitar, temos o seguinte: as esferas nas quais Kant e Piaget constroem seus esquemas, categorias e formas do conhecimento são distintas, haja vista que uma se encontra fora de uma série temporal (enquanto síntese do entendimento necessária à reunião da multiplicidade fenomênica em um conhecimento conceitual ou como a própria organização a priori da sensibilidade), ao passo que a outra está submetida à dinâmica temporal e consiste, pois, em uma aquisição paulatina do conhecimento, enquanto assimilações e acomodações no sentido de uma equilibração como otimização do mesmo. Ao supor que o a priori restringe o conhecimento, Piaget situa-o dentro da série da determinação empírica do tempo e, assim, assume uma dada concepção acerca do conhecimento, cuja conseqüência epistemológica mais clara em sua obra é a concepção de que alguns eventos, como a constituição do sujeito e a formação de algumas categorias, ocorrem somente como uma tomada de consciência (empírica e temporal) relativa aos processos constitutivos destes. Isso está diretamente comprometido com a noção piagetiana de que, muito embora exista uma atuação epistêmica do sujeito, esses processos, bem como todos os outros relativos ao conhecimento, ocorrem somente a posteriori.

A exposição do argumento será iniciada pela recorrência à estética transcendental, de onde se espera evidenciar tanto a concepção kantiana acerca do tempo como a possibilidade, oriunda de tal concepção, de formulação de juízos sintéticos a priori.

"O tempo é uma representação necessária subjacente a todas as intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos. Os fenômenos podem todos cair fora, mas o próprio tempo (como a condição universal de sua possibilidade) não pode ser supresso" (KANT, 1781/1983: 44).

Por intuição, entenda-se aqui a referência epistemológica imediata do sujeito a um objeto, uma vez que o mesmo lhe for dado. Todas as nossas intuições pertencem unicamente à sensibilidade, já que o entendimento, como faculdade de ligar representações a uma unidade, trabalha por intermédio de tal atividade, cuja expressão é o próprio pensamento. O entendimento, portanto, não intui, haja vista que os objetos não são dados ao entendimento imediatamente, mas este tem que buscá-los precisamente na fonte em que estes objetos aparecem. Esta fonte de referência ao entendimento é o dado primeiro (não temporal ou ontológico, mas epistemológico) da subjetividade, e consiste na intuição sensível.

Como os propósitos da filosofia transcendental não coincidem de modo algum com os da psicologia (empírica), interessa a Kant aquilo que da intuição sensível resta, caso se abstraiam os efeitos dos objetos enquanto sensações. Excluindo, portanto, tudo quanto de empírico (porque particular e proveniente dos objetos) se apresenta intuitivamente à sensibilidade, ainda restam suas formas puras, a saber, espaço e tempo.

Centrando o foco na intuição pura "tempo", tem-se que este exerce a primeira função constitutiva dos objetos, uma vez que os mesmos só se apresentam ao sujeito conforme regras a priori postas por este modo de afecção como intuição interna. Enquanto o espaço oferece ao sentido externo a possibilidade de representações dessemelhantes do sujeito e, portanto, fora do mesmo - nas quais se inclui a percepção de seu próprio corpo -, o tempo oferece ao sentido interno a possibilidade de representação de todos os fenômenos como equivalência de uma intuição de nós mesmos em nosso estado interno. É, portanto, a condição primeira que o sujeito tenha de pôr-se naquilo que lhe é dessemelhante e aparece sob a forma pura da intuição externa "espaço". Por isso se entende não um idealismo no sentido solipsista, pois ao passo que Kant nega a realidade objetiva do tempo no que diz respeito à existência das coisas-em-si, afirma sua realidade objetiva no que diz respeito ao que dele está contido nos fenômenos. Isso porque, para que a representação de um objeto nos afete sob a forma da intuição pura, é necessária uma pressão ou imposição de algum modo de realidade, conhecido somente enquanto intuído. A "idealidade transcendental do tempo" (KANT, 1781/1983: 46) é, desta forma, uma via de mão dupla: se o tempo não possui uma realidade absoluta (nenhum objeto lhe corresponde) e é, portanto, unicamente o modo como somos imediatamente afetados por objetos, está também, em parte, contido nos fenômenos, uma vez que a forma pura da intuição interna os circunscreve no campo epistêmico do sujeito. É isso, então, que chamamos de realidade objetiva do tempo: "a forma real da intuição interna" (KANT, 1781/1983: 47).

O aspecto transcendental do tempo em Kant ganha ainda mais legitimidade e força na referência do mesmo ao seu modo de constituir uma organização própria da experiência de algo que jamais pode ser encontrado na mesma. Isso é precisamente o que fundamenta as proposições sintéticas a priori. Ora, quando o filósofo diz que "[s]omente no tempo, isto é, sucessivamente, duas determinações opostas contraditoriamente podem ser encontradas numa coisa" (KANT, 1781/1983: 45, grifo no original), o tempo cumpre a função de permitir, além da condição básica sob a qual algo muda fenomenicamente, a possibilidade transcendental mais elementar de representar logicamente ao sujeito os movimentos discursivo e epistêmico opostos a uma suposta inércia, ao mesmo tempo mística e vazia, de uma coisa-em-si. Se a coisa-em-si consiste naqueles pontos que a intuição pura não atinge, isto se deve menos a uma incapacidade das mesmas, como uma falta de força para atingi-las, do que a uma necessidade puramente lógica de que na organização de um limite (uso da categoria a fenômenos) jaza fora dele tanto os elementos não atingidos por tal organização (coisa-em-si) como os outros responsáveis pela constituição do próprio limite enquanto tal (caráter transcendental).

Insistindo ainda nas funções transcendentais do tempo, tem-se o seguinte:

"O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência. Com efeito, a simultaneidade ou sucessão nem sequer se apresentaria à percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente à priori. Somente a pressupondo pode-se representar algo que seja num e mesmo tempo (simultâneo) ou em tempos diferentes (sucessivos)" (KANT, 1781/1983: 44).

As proposições referentes à dinâmica constitutiva do tempo e do espaço em relação aos fenômenos, como, por exemplo, 'diversos tempos não podem ser simultâneos, mas sim sucessivos', 'tempos diferentes são apenas partes de um mesmo tempo' ou 'diversos espaços não são sucessivos, mas simultâneos', são juízos a priori, porque não se comprovam em experiência alguma por não se encontrarem na mesma. São, do mesmo modo, sintéticos, porque quando o entendimento elabora tal juízo extrai a universalidade do conceito (unidade de referência de um juízo) "tempo" somente por meio da intuição pura - tempo - que se encontra não no entendimento, mas no que o mesmo sintetizou da sensibilidade. Portanto, todas as demais proposições sintéticas a priori, sejam as da matemática ou os princípios do entendimento puro, devem unicamente seu caráter sintético (em oposição ao analítico) à referência do entendimento a outra faculdade que não ele mesmo.

Com isso, conclui-se que a própria organização transcendental do tempo não está ela mesma submetida ao tempo, posto que se encontra fora da série sucessiva de eventos do estado interno, ou seja, dos fenômenos. Se tal organização fosse temporal, estaria, portanto, submetida a uma outra regra mais geral (cujo fundamento transcendental teria que ser buscado de outro modo) ou seria fenomênica e não serviria como fonte necessária aos juízos sintéticos a priori. Tais demonstrações, como Kant (1781/1983) mesmo dirá, não são epistemológicas e nem científicas; ao contrário: "essa exposição é, porém, metafísica quando contém aquilo que representa o conceito enquanto quadro a priori" (p. 41).

No que diz respeito à síntese realizada pelo entendimento na formação da categoria, a explicitação de que a mesma não se submete empiricamente à série temporal se dá de forma muito mais simples. Ora, posto que a atividade sintética do entendimento não depende de qualquer referência da sensibilidade, mesmo do tempo como intuição pura, esta (a intuição pura), por não se inscrever no tempo como fenômeno, ocorre de modo inteiramente a priori e fora da série temporal.

Espera-se que, até então, tenha sido provado aquilo com o qual será confrontada a epistemologia de Piaget. Tal confronto, todavia, não está a serviço da revelação de uma oposição radical entre este e Kant, sob a forma de uma alegação infundada de que os pensamentos se chocam em um ponto - apriorismo x construtivismo -, mas de uma concordância entre ambos, caso se efetue o estabelecimento de distintos planos - metafísico, epistemológico, científico - nos quais Kant e Piaget armariam suas questões e respostas. Para tal, convém ressaltar os equívocos oriundos de uma não-demarcação de tais campos, para que se possa, com isso, dar uma solução legítima ao pessimismo de Oliveira (2004) no momento em que o mesmo concebe que "existe 'um imenso fosso aparentemente sem fundo', tornando difícil o entendimento nesse ponto particular, de ambas as teorias ou dos mais fiéis representantes das mesmas" (p. 47, grifo no original).

Se, por um lado, Piaget deixa claro o caráter necessário e universal alcançado pelas categorias, isso se deve unicamente ao modo funcional com que os esquemas se desenvolvem, acomodando-se diante dos objetos assimilados, e não a uma imposição inicial de qualquer ordem. Tal concepção é certamente um dos pontos mais centrais que marcam a disjunção entre Kant e Piaget no que diz respeito aos seus domínios teóricos, e consiste em uma peça fundamental na montagem híbrida que aqui se faz com alguns fragmentos do pensamento de Kant e Piaget. Todavia, para que as peças se encaixem, é preciso modificar a estrutura geral do quebra-cabeça, e é isso que será feito agora, sob a forma de crítica a algumas concepções tanto piagetianas quanto kantianas.

Tem-se, no pensamento de Piaget, como expressão mais legítima daquilo sobre o qual se incidirá toda a atenção, o seguinte: "É indispensável dissociar o preliminar e o necessário, pois se todo conhecimento e sobretudo toda experiência supõe condições preliminares, não apresentam nenhum repente de necessidade lógica ou intrínseca e se várias formas de conhecimento conduzem à necessidade, esta se situa no final e não no início" (PIAGET, 1978: 12).

Embora esteja clara a rejeição por parte de Piaget de que o conhecimento se desenvolva sob formas a priori, na citação acima parece que o autor admite a existência de condições preliminares relativas a todo conhecimento e toda experiência, todavia não ainda necessárias. Levantam-se, portanto, duas questões cujas respostas devem colocar o cientista suíço em certo embaraço: sob que aspecto tais condições seriam preliminares, já que não logicamente necessárias? Visto que tudo o que se segue a partir das referidas condições se situa no plano da experiência, de que fonte tais condições extrairiam sua necessidade, posto que tudo aquilo que a experiência nos fornece não pode conter nela mesma algo de necessário?

Em um primeiro momento, a resposta piagetiana certamente seria dada no seguinte sentido: a fonte da necessidade não é única, não está nem nas condições preliminares subjetivas nem na experiência bruta, mas ocorre na circunstância em que o nível de desenvolvimento da inteligência (progressivas equilibrações, generalizações e abstrações) vai se tornando complexo e constituindo operações mentais diretamente correlatas com proposições lógicas que, estas sim, uma vez acabadas, atingem a necessidade em sua maturidade. Estas proposições lógicas, antes de serem impressas ao sujeito (permanecendo como uma necessidade potencial), são elas mesmas possibilitadas graças à abstração de relações postas por operações mentais que o estudo psicogenético da inteligência revela. Se há, ainda, condições preliminares sem repente de necessidade e universalidade, tais seriam unicamente de ordem biológica e, portanto, epistemologicamente vazias de significados, muito embora posteriormente preenchidas.

Há, todavia, que se ater a uma questão em relação à qual Piaget pareceu não conferir a devida importância. Quando este retira a necessidade do "início" e a põe no "final", imagina-se que a referência que possibilita tal deslocamento, na medida em que isto se constitui como uma crítica à noção kantiana de a priori, seja o tempo. O que o autor diz com isso é que a necessidade e universalidade não se situam no início de uma série temporal, conforme pensariam os precursores do apriorismo, mas sim no final desta série - recorrendo, para tal, à natureza lógica da coordenação de ações no sentido de progressivas equilibrações. Ora, o fato de que tal coordenação das ações só tem efetivação a posteriori (muito embora o que esteja em jogo para Piaget sejam as possibilidades lógicas de composição destas ações com vistas a um conhecimento) implica, todavia, que têm de ocorrer já submetidas ao tempo (uma vez que se considere o tempo como forma da intuição pura, segundo Kant). É, portanto, somente neste sentido que argumentamos sobre a existência de um deslocamento da necessidade do final para o início tendo como veículo o tempo como forma pura da intuição sensível, a saber, na medida em que se vislumbra, com isso, uma crítica à noção kantiana de a priori. Tal deslocamento, portanto, levaria o cientista suíço a crer que, quando se fala em condições preliminares ou a priori, estas se referem a condições inatas e, ainda, endógenas. Se isto está ou não dirigido a Kant, deixemos falar o próprio Piaget:

"Para o célebre etologista K. Lorenz, o inatismo das estruturas do conhecimento é generalizado de acordo com um estilo que ele considera explicitamente kantiano: as 'categorias' do saber seriam biologicamente pré-formadas a título de condições anteriores a toda experiência, à maneira como os cascos do cavalo e as nadadeiras dos peixes se desenvolvem na embriogênese em virtude de uma programação hereditária e muito antes de que o indivíduo (ou o fenótipo) possa fazer uso dela." (PIAGET, 2002: 61).

E ele continua: "É evidente que, se esses a priori conservam a noção kantiana de 'condições preliminares', eles sacrificam o essencial, que é a necessidade intrínseca de tais estruturas, assim como sua unidade, e Lorenz reconhece-o honestamente, porque as reduz à categoria de simples 'hipóteses inatas de trabalho'" (PIAGET, 2002: 61).

A direção da crítica piagetiana a Kant parece, pelo que foi citado, bastante explícita. Tentar-se-á agora evidenciar o quão inapropriada se mostra. Ora, o que está biologicamente pré-formado, como em uma programação genética e hereditária, não são condições anteriores a toda a experiência, mas sim à experiência particular do sujeito que ainda não nasceu. O que está pré-formado (em relação ao sujeito que nasce) está, portanto, formado em um outro campo ainda pertencente à experiência, se por experiência se entende aquilo que é dado a uma consciência transcendental (e não individual) como fenômeno. Aí reside a sutileza não levada em consideração por Piaget: o que é inato somente o pode ser por estar biologicamente programado, sendo, portanto, temporalmente datado e, ainda, circunscrito no plano da experiência. Isso porque a experiência kantiana, bem como as categorias e as formas da sensibilidade a priori de que o mesmo fala, não é uma experiência dirigida ao sujeito singular por meio de uma consciência empírica, mas uma "experiência possível" ou "experiência em geral" jamais específica a sujeito algum, mas pertencente a uma consciência transcendental e universal que, se por um lado é subjetiva, de modo algum se mostra como sendo individual. Em resumo, a experiência para Kant não consiste naquilo que é dado pelos sentidos, mas no que preenche as condições formais da possibilidade da experiência em geral como objeto para uma consciência transcendental.

Se o campo geral da experiência não é dirigido a uma consciência empírica, portanto a um sujeito individual, não se deve entender com isso que sujeitos específicos não sejam tocados, mesmo empiricamente, por este. O que ocorre é que tal campo não se restringe às experiências particulares ou às aquisições específicas nem, chegando às últimas conseqüências, à aquisição alguma, haja vista que sua constituição como "experiência" se deve a uma consciência transcendental não-consciente empiricamente de si. O fato de não considerar esta distinção entre consciência empírica e consciência transcendental impediu Piaget de separar a consciência do sujeito da constituição do sujeito, mesmo porque o autor se punha somente no referencial empírico e temporal, no caso, o de uma consciência individual que se percebe como sujeito em um determinado ponto da série do tempo.

Se, ainda, em seu livro Epistemologia Genética, Piaget (2002) fala que não se pode pensar em qualquer disposição a priori (no sentido kantiano) do sujeito e, portanto, em um sujeito a priori, somente porque o sujeito não está "consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos" (p. 8, grifo no original), o que o autor realiza com isso é uma coincidência entre as disposições a priori do sujeito e a consciência empírica do mesmo.

Tais concepções, pelo que aqui se expôs, seriam todas oriundas de uma não-demarcação piagetiana acerca daquilo que diria respeito ao campo da metafísica, e, no seu encontro com a epistemologia, à noção de a priori. Como foi dito antes, por definição, esta não pode estar circunscrita em espaço algum da experiência, e Piaget a coloca no campo da experiência tanto nos momentos em que nega a possibilidade de elementos a priori quando não há ainda uma consciência empírica destes, como nos momentos em que identifica a posição kantiana ao inatismo. Tudo isto se deve ao fato de o cientista suíço não levar em consideração que tanto o "sujeito transcendental" quanto a "experiência possível" se encontram fora do tempo, o que é, portanto, fundamentalmente metafísico, e não puramente epistemológico ou científico. Como em Piaget não há tal distinção entre o que está submetido à série temporal e aquilo que não está, o mesmo se vê obrigado a interpretar o "anterior à experiência" kantiano como temporalmente precedente à experiência. E, ainda, como a experiência é somente a de um sujeito individual - haja vista o descentramento como conscientização do mesmo constituir no seu próprio advento e constituição epistêmica -, o máximo que se pode recuar é em direção às programações hereditárias presentes no sujeito. Por "anterior à experiência", todavia, não se entenda em relação ao tempo, mas sim ao "não originário da experiência", já que essa origem não é ontológica e nem temporal, mas fundamentalmente lógica e transcendental.

 

CONCLUSÃO

Com isso, conclui-se que, em virtude das distinções por meio das quais se configuraram os três planos fundamentais do conhecimento - metafísica, epistemologia e ciência -, é possível a emergência de questões equivocadas, caso transfiram os argumentos de um plano e estabeleçam, em outro, sua crítica. Isso seria não levar em conta a radicalidade destas distinções e, portanto, fazer fluir uma crítica arrancando pilastras fundamentais, as quais, para poderem um dia vir a ser supressas, necessitam da legalidade de uma crítica mais cônscia dos pontos que pode atingir.

No caso aqui mencionado, o modo como Piaget, objetivando a construção de sua epistemologia, visou fazer, por meio da ciência, uma crítica à metafísica de Kant parece prestar-se à seguinte formulação: Piaget, investigando cientificamente o desenvolvimento da inteligência infantil (desde os esquemas sensório-motores até as operações mentais mais complexas), acabou adotando, para a construção de sua epistemologia, um princípio de investigação genética que lhe pareceu incongruente com uma filosofia cuja metafísica postula funções a priori em relação ao conhecimento. Neste caso específico, como o princípio adotado por Piaget para passar da ciência à epistemologia foi de ordem genética, a crítica à metafísica oriunda deste princípio pareceu evidenciar problemas em relação à transposição da categoria "tempo" de um plano do conhecimento para outro.

Todavia, o que foi colocado no decorrer de todo o trabalho não se compromete com a postulação de uma disjunção entre o pensamento de Kant e o de Piaget. A ênfase aqui é dada no sentido oposto: há uma atividade originária que, do mesmo modo que separa sujeito e objeto pondo-os em função de uma síntese, de onde emergem o seu material e a unidade sintética referente, o faz também por meio de um instante em que o bebê passa a perceber-se como fonte de suas ações. O que ocorre é que, por circunstâncias históricas, o modo de compreender essa atividade originária tomou caminhos diversos, configurando distintos, porém não divergentes, planos do conhecimento. Não há, portanto, legitimidade alguma em suprimir a perspectiva de um desses planos em função de uma crítica inteiramente circunscrita no outro. A denúncia de tal ilegitimidade não visa, por momento algum, enfraquecer ou minar as bases do pensamento de J. Piaget, muito menos opô-lo radicalmente ao de I. Kant. O que se pretende, a partir do que foi dito, é positivar o pensamento de ambos no que possuem de mais fundamental. E, por fim, houve uma surpresa de extrema importância na percepção do fato de que, na positivação que aqui foi feita em relação ao pensamento dos dois autores, emergiu o processo fundamental, comum a ambos, em relação à dinâmica sujeito-objeto relativa ao conhecimento, impedindo a anulação de um pensamento por outro, bem como instaurando uma diferença de perspectiva compreensível unicamente em função da semelhança expressa pelo referido processo constitutivo do conhecimento: a atividade originária.

 

REFERÊNCIAS

KANT, I. (1781/1983) Crítica da razão pura. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações.        [ Links ]

LAJONQUIÈRE, L. (1997) Piaget: notas para uma teoria construtivista da inteligência. Psicologia USP, 8 (1). Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php>. Consulta efetivada em 2005.        [ Links ]

MONTANGERO, J. & MAURICE-NAVILLE, D. (1998) Piaget ou a inteligência em evolução. Porto Alegre: ArtMed.        [ Links ]

OLIVEIRA, S. C. (2004) Kant e Piaget: inter-relação entre duas teorias do conhecimento. Londrina: EdUEL.        [ Links ]

PIAGET, J. (1977) Psicologia da inteligência. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

______. (1978) Psicologia e epistemologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária.        [ Links ]

______. (2002) Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Pablo Severiano Benevides
E-mail: pabloseveriano@hotmail.com

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
E-mail: verianac@uol.com.br

 

Recebido em: 29/09/05
Revisado em: 20/02/06
Aprovado em: 24/03/06

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