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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.57 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Subvertendo o conceito de adolescência

 

Subverting the concept of adolescence

 

 

Cecília Coimbra; Fernanda Bocco; Maria Livia do Nascimento

Universidade Federal Fluminense (UFF). Departamento de Psicologia da UFF

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo analisa o conceito de adolescência, situando-o como uma construção histórica, em especial a partir da sociedade contemporânea de controle globalizado, na qual tal conceito vem servindo aos propósitos dominantes de homogeneização e padronização das práticas sociais e dos modos de existência. Também questiona a lógica desenvolvimentista e traz a noção de juventude como uma possível estratégia de enfrentamento dessa lógica.

Palavras-chave: Adolescência; Desenvolvimento; Juventude.


ABSTRACT

This article questions the concept of adolescence, placing it as a historical construction that begins in the contemporaneous society of globalized control, in which it serves the dominant purposes of homogenization and standardization of the social practices and of the ways of life. It also questions the development logic and presents the idea of youth as a possible strategy to face that logic.

Keywords: Adolescence; Development; Youth.


 

 

SUBVERTENDO O CONCEITO DE ADOLESCÊNCIA

"(...) é preciso desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou sob um aspecto datado como ela; pois é por isso que existe o que chamei acima, usando uma expressão popular, de "parte oculta do iceberg": porque esquecemos a prática para não mais ver senão os objetos que a reificam a nossos olhos".

(VEYNE, 1982: 154).

Como toda prática escrita, este trabalho também tem sua história, seus movimentos e se faz nos encontros. Em 2002, duas de nós escrevemos o texto Jovens pobres: o mito da periculosidade, publicado no ano seguinte (COIMBRA E NASCIMENTO, 2003). Dentre as várias questões presentes no artigo que nos inquietavam naquele momento, uma delas apenas se insinuou no início do texto, não o percorrendo totalmente. Tratava-se de nossa preocupação com a forma como, na contemporaneidade, vem sendo usado o conceito de adolescência ou de adolescente. Além de estar intensamente presente na mídia, nas conversas, nos textos acadêmicos e jurídicos, esse conceito atravessa algumas práticas em diferentes campos de atuação, em especial o da psicologia.

Em um outro momento, em um outro espaço físico, um outro grupo também se inquietava com a mesma questão. Em 2001, partindo da experiência de assessoria a um programa de profissionalização1 para jovens em cumprimento de medida socioeducativa e para jovens em medida protetiva2, a então equipe de psicologia3 - da qual participava a terceira autora deste artigo (Fernanda Bocco) - passou a se sentir desconfortável com o termo adolescente ao se referir ao público atendido. No decorrer dessa experiência, e com o início da assessoria a outro projeto de trabalho educativo4, em finais de 2002, o grupo foi se apropriando de um conceito-ferramenta que parecia mais próximo da forma como trabalhava: o conceito de jovem.

É importante ressaltar que essa discussão não pretende apresentar uma resposta/solução final à questão levantada, nem uma simples substituição de nomenclaturas. Sabemos que o termo juventude, também produzido pelas práticas sociais, não resolve os impasses que queremos discutir nem desfaz os instituídos. Entretanto, entendemos que a noção de adolescência necessita ser questionada precisamente pelos instituídos que carrega. Na contemporaneidade, a figura do adolescente costuma remeter a uma tendência ditada pelos teens estadunidenses - modelo de todo um estilo de vida a ser consumido pelo restante do mundo -, tendência essa presente em anúncios, conversas e notícias. Isto instaura uma determinada forma de ser adolescente como a única reconhecida5, a qual conta com o apoio de algumas práticas da própria psicologia - ainda hoje hegemônicas - na propagação e fortalecimento de tal modelo.

Em suas pesquisas, Margaret Mead (1951) já nos apontava, com sua experiência em Samoa, que a adolescência nada mais é que um "fenômeno cultural" produzido pelas práticas sociais em determinados momentos históricos, manifestando-se de formas diferentes e nem sequer existindo em alguns lugares. Apesar da difusão massiva da figura do adolescente como o grande ícone dos tempos contemporâneos, aprendemos com Mead que ela é totalmente engendrada pelas práticas sociais. De acordo com Lepre (2005), por exemplo, foi no século XVIII que surgiram as primeiras tentativas de definir, claramente, suas características. No século XX, embasado em pressupostos científicos, o adolescente moderno típico estabeleceu-se como um objeto natural com características e atributos psicológicos bem demarcados.

Diante disso, nossa inquietação hoje se atualiza em um novo encontro das três autoras, em um outro espaço, movidas pela preocupação com esse uso generalizado, indiscriminado e, portanto, naturalizado do conceito de adolescência, sobretudo em documentos e discursos/práticas oficiais que entendem essa construção como uma fase universal e a-histórica do desenvolvimento humano. A noção de adolescência emerge inteiramente vinculada à lógica desenvolvimentista, sendo uma etapa do desenvolvimento pela qual todos passariam obrigatória e similarmente. A psicologia, ou melhor, o pensamento psicológico que naquele momento predominava foi responsável por instituir algumas características que seriam inerentes a essa etapa da vida, com seus tempos e atributos específicos, diferenciando sujeitos normais e anormais de acordo com seu grau de aproximação às normas estabelecidas para cada período.

Dentro do princípio desenvolvimentista, a adolescência surge como um objeto exacerbado por uma série de atributos psicologizantes e mesmo biologizantes. Práticas baseadas nos conhecimentos da medicina e da biologia, em especial, vêm afirmando, por exemplo, que determinadas mudanças hormonais, glandulares, corporais e físicas pertencentes a essa fase seriam responsáveis por algumas características psicológico-existenciais próprias do adolescente. Tais características passam a ser percebidas como uma essência, em que "qualidades" e "defeitos" como rebeldia, desinteresse, crise, instabilidade afetiva, descontentamento, melancolia, agressividade, impulsividade, entusiasmo, timidez e introspecção passam a ser sinônimos do ser adolescente6, constituindo uma "identidade adolescente".

Tal visão desenvolvimentista, que enquadra pessoas em etapas/status padronizados, orienta, por exemplo, muitos aspectos de nossa lei específica para a infância e para a juventude: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Podemos observar tal lógica no texto dessa legislação:

"Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana [...] assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige [...] e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Art. 15º. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis [...].

Art. 53º. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa [...]" (BRASIL, 1990, grifos nossos)7".

Sem dúvida, o ECA trouxe, à época de sua implantação, significativos avanços, sobretudo no que se refere à desconstrução da lógica menorista presente nos códigos anteriores8. Entendemos que, apesar das análises críticas que aqui serão realizadas, essa legislação é, ainda hoje, um importante instrumento de contraposição às campanhas conservadoras que pregam o endurecimento de penas, a redução da idade penal e a implantação de uma política de tolerância zero9. Entretanto, não podemos deixar de colocar em análise alguns dos efeitos que a concepção desenvolvimentista presente no ECA vêm produzindo, uma vez que essa legislação é o principal texto jurídico que dirige as ações voltadas para a infância e para a juventude, e seu discurso está pautado pela noção de adolescência como período universal, idéia aqui questionada.

 

Atribuindo identidades e homogeneidades: a primazia da razão

"[Não se pode] interpretar o caráter geral da existência nem pela concepção de 'finalidade', nem pela de 'unidade', nem pela de 'verdade' [...]. Em uma palavra, as categorias: 'finalidade', 'unidade', 'ser', pelas quais demos um valor ao mundo, são retiradas por nós - e desde então o mundo tem o caráter de uma cousa sem valor [...]"

(NIETZSCHE, 1988: 90).

Um dos pressupostos que embasa o pensamento desenvolvimentista é a crença na primazia da razão, fortemente enraizada no modo de ser ocidental a partir dos pressupostos cartesianos. De acordo com esse princípio, os sujeitos seriam guiados pela consciência, que teria como função permitir uma apreensão do mundo de forma cada vez mais elaborada. Assim, à medida que se percorrem as diferentes etapas do desenvolvimento, haveria aprimoramentos, em especial o racional, que dariam aos sujeitos mais domínio e conhecimento sobre si e sobre o mundo.

No entanto, tal princípio é questionado por diferentes enfoques filosóficos - dentre eles o da Filosofia da Diferença e aquele proposto por Michel Foucault - ao mostrarem que não é a consciência que cria ou apreende o mundo, e sim que os objetos e os próprios sujeitos são gerados a todo momento a partir das diversas práticas que os atravessam. Não seria possível, então, pensar em termos de desenvolvimento, uma vez que não há ponto de partida ou de chegada, nem direção predefinida na qual se daria uma evolução. Essa idéia está presente na crítica feita à crença de que a humanidade "faz progressos e que ela se aproxima cada vez mais do alvo" (VEYNE, 1982: 165); neste caso, a maturidade adulta seria o objetivo a ser alcançado.

Dentro dessa visão cartesiana racionalista-desenvolvimentista, além da crença em uma "identidade adolescente", também se acredita que é nesse período que se constrói a identidade do sujeito. Por isso, tal etapa seria o momento inaugural da personalidade que definiria o sujeito para o resto de sua vida. Erik Erikson (1976: 14), um dos estudiosos do desenvolvimento psicossocial, afirmou ser a adolescência "um momento crucial, quando o desenvolvimento tem de optar por uma ou outra direção, escolher ou este ou aquele rumo, mobilizando recursos de crescimento, recuperação e nova diferenciação". A identidade do sujeito estaria, então, inevitavelmente atrelada à chegada a um determinado alvo: o nível de racionalidade madura. É a própria primazia da razão que produz a noção/necessidade dessa identidade do sujeito individual e, conseqüentemente, do seu desenvolvimento.

Além desse aprisionamento evolutivo, que determina que os sujeitos tenham uma identidade adulta, esta deve ser, necessariamente, homogênea e fixa para todos. Segundo Guattari e Rolnik (1986: 68-69):

"[...] a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência [...] é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável [...] o que interessa à subjetividade capitalística, não é o processo de singularização, mas justamente esse resultado do processo, resultado de sua circunscrição a modos de identificação dessa subjetividade dominante".

Quando se aceita a construção de uma identidade do sujeito na adolescência, além da produção de uma "identidade adolescente" - como referido no início deste artigo -,, afirma-se um determinado jeito correto de ser e de estar no mundo, uma natureza intrínseca a essa fase do desenvolvimento humano. Ao colarmos uma etiqueta referendada por leis previamente fixadas e embasada nos discursos científico-racionalistas, pode-se criar um território específico e limitado para o jovem, uma identidade que pretende aprisioná-lo e localizá-lo, dificultando possíveis movimentos. Ao se reafirmar a homogeneidade, nega-se a multiplicidade e a diferença.

Entretanto, tais forças homogeneizantes não podem ser consideradas intransponíveis, pois existem sempre derivas possíveis, linhas flexíveis, de fuga, como nos apontam Deleuze e Parnet (1998). Sempre existem espaços de fuga para a lógica identitária na qual a realidade está delimitada por quadros de referência. Assim é que, muitas vezes, os jovens operam na diferença, afirmando outras formas de funcionamento e de organização que fogem às práticas consumistas que lhes são impostas. Essa juventude, em muitos momentos, cria e inventa mecanismos, conseguindo, por vezes, escapar da lógica do capital, tomada como inexorável e imutável.

 

Psicoprofilaxia e subjetivação capitalística

" [...] as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento."

(FOUCAULT, 1996: 8).

A emergência das ciências humanas e sociais se dá em um momento histórico de transformação do capitalismo que Foucault chama de sociedade disciplinar. Tais saberes incidem sobre os sujeitos sob a forma de constante vigilância, tendo por objetivo determinar "se um indivíduo se conduz ou não como deve, conforme ou não à regra, se progride ou não, etc. Esse novo saber [...] se ordena em torno da norma [...]", instituindo modelos que irão guiar os pressupostos presentes, em especial nas teorias desenvolvimentistas (FOUCAULT, 1996: 88).

Na contemporaneidade uma série de saberes e de profissionais assumiu a função de tratar a adolescência, havendo psicólogos, médicos e pedagogos, entre outros, especializados em atender a essa faixa etária, pautados pela idéia de que existiria "uma 'crise de identidade' normativa à idade da adolescência e começo do período adulto" (ERIKSON, 1976: 15). A força desse pensamento produz e reproduz esse momento como sendo uma fase de transtorno, de grandes sofrimentos a serem superados, caracterizada como "um período de passagem, de reajustamento, de nova forma de adaptação" (BOHOSLAVSKY, 1977: 50).

Sob essa ótica de patologização, a adolescência, entendida como momento de sofrimento psíquico, pressupõe a necessidade de uma psicoprofilaxia definida como "toda atividade que [...] tende a promover o desenvolvimento das possibilidades do ser humano, sua maturidade como indivíduo e, em definitivo, sua felicidade" (BOHOSLAVSKY, 1977: 25). O foco dessas práticas está colocado no futuro, na forma como se dará o desfecho de tais crises e transtornos; o tratamento teria, então, o objetivo de garantir como resultado uma pessoa saudável e, sobretudo, útil à sociedade.

Se, por um lado, a lógica desenvolvimentista quer fazer acreditar em uma etapa homogênea e universal para todos os sujeitos, a chamada adolescência, a lógica individualista e culpabilizante da subjetivação capitalística vai dizer que o modo como cada um enfrenta e resolve tal fase será determinado pelo próprio indivíduo e por sua capacidade, ou falta dela, para lidar com as questões de seu desenvolvimento. É o modo de ser indivíduo intensificado pelo neoliberalismo, no qual predomina a figura do self made man: qualidades e defeitos, méritos e fracassos são atribuídos aos indivíduos como sendo inerentes à sua natureza. Vir a ser um adulto maduro, estável e integrante do mundo do trabalho ou vir a ser um desempregado sem família nem rede social dependeria exclusivamente de cada um e de suas competências individuais.

Dependeria, portanto, de cada sujeito a utilização de recursos que poderiam dar conta da tarefa de escolher equilibradamente seu futuro, contando, para tanto, com algumas práticas da psicologia como um potente instrumento de "ajuda". Assim, foi gerada uma rentável indústria de serviços especializados, coerente com o mercado do capital que tudo transforma em mercadoria. Crianças, adolescentes e, recentemente, os idosos têm funcionado, cada vez mais, como grandes geradores de empregos10, concentrando grande parte dos profissionais psi em atividades tanto terapêuticas como preventivas, para assegurar um modo de vida supostamente correto, adequado e saudável.

Podemos observar que o conceito de adolescência se acopla perfeitamente à lógica capitalística de duas maneiras. Primeiramente, por sua rentabilidade, visto que o negócio não se restringe apenas aos profissionais especializados, havendo todo um comércio que sobrevive à custa da adolescência, produzindo roupas, revistas, músicas e alimentos entre outros. Em segundo lugar, por sua força ao mesmo tempo massificante (etapa universal, a-histórica e homogênea para todos) e individualizante (a forma como cada um passa por tal etapa e como dela emerge depende dos méritos de cada sujeito).

 

Juventude, multiplicidade e devir

"Portanto, fundar, em outras bases, uma micropolítica de transformação molecular passa por um questionamento radical dessas noções de indivíduo como referente geral dos processos de subjetivação [...]. [Portanto] a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material".

(GUATTARI & ROLNIK, 1986: 20)

A partir das idéias de Foucault e da Filosofia da Diferença, defendemos que os sujeitos não possuem identidades fixas e impermeáveis, mas são atravessados por uma multiplicidade de forças11 que os subjetivam incessantemente. Dentro disso, a noção de desenvolvimento é uma construção, pois não há um conjunto de características a serem obtidas. Preferimos pensar em termos de processo, apostando que a vida se constrói a cada momento e não pode ser reduzida a qualquer modelo ou norma. Sujeitos e objetos se encontram em permanente devir (DELEUZE & PARNET, 1998), um vir a ser que nunca se concretiza em formas estanques nem pretende copiar ou decalcar moldes preestabelecidos. O que propomos e afirmamos são pensamentos e existências sem modelos a repetir, sem verdades a determinar o modus vivendi. Pensamentos e existências que exigem criação e invenção, que estão no plano dos acontecimentos e se evidenciam nos movimentos que possibilitam a inauguração de outras formas de vida.

Acreditamos que os conceitos de adolescência e desenvolvimento não são ingênuos. Servem aos propósitos dominantes de homogeneização e imobilização, reificando determinadas práticas e relações presentes na atual sociedade de controle globalizado. Os meios de comunicação de massa, por exemplo, estão entre os equipamentos sociais mais poderosos para difundir e reforçar a idéia de adolescência, oferecendo-a como produto a ser consumido, necessariamente, para se ingressar no mundo dos bem-sucedidos e dos que têm valor, tanto material como simbolicamente.

Sem a pretensão de encontrar uma resposta definitiva nem oferecer uma verdade, temos preferido usar os termos jovem e juventude em vez de adolescente e adolescência, uma vez que podem não se referir estritamente a uma faixa etária específica, nem a uma série de comportamentos reconhecidos como pertencendo a tal categoria. Pensar em juventude pareceu até agora a melhor forma de trazer uma intensidade juvenil em vez de uma identidade adolescente quando pensamos no público com o qual trabalhamos, ou seja, crianças e jovens caracterizados como perigosos em potencial12. Com isso, enfatizamos as forças que atravessam e constituem os sujeitos em vez das formas com que se tenta defini-los.

Subverter a noção de adolescência é uma ação política importante nesse momento em que há tanta insistência em individualizar e interiorizar as questões sociais, e em psiquiatrizar13 e criminalizar14os ditos desvios das normas impostas a todos nós. O conceito de juventude poderia permitir a abertura de espaços para a diferença que existe nos processos e nos acasos dos encontros, afirmando que cada sujeito

"[...] apenas se encontra no mundo uma vez, como um unicum e que nenhum outro azar, por insólito que seja, poderá combinar por uma segunda vez uma multiplicidade tão diversa e obter, com ela, a mesma unidade que ele é" (NIETZSCHE, 1999: 1, tradução nossa).

Sabemos que a simples troca de palavras, de adolescência para juventude, não nos garante a quebra de naturalizações, uma vez que, sendo o conceito de juventude uma construção social, pode também ser instituído e capturado. No entanto, a aposta nas multiplicidades e diferenças para questionar o conceito de adolescência pode funcionar como uma estratégia contra as capturas e produções impostas por saberes que se apóiam em uma realidade normatizada, que eliminam a possibilidade do acaso e que se pretendem neutros. Quando definimos alguém como adolescente, podemos estar colocando em suspenso suas multiplicidades de existência e construindo uma definição que impede que os desenhos de novos fluxos e de vida ganhem força de expansão. Por outro lado, ao operarmos, por exemplo, com o conceito de juventude em nossas práticas, constituído e atravessado por fluxos, devires, multiplicidades e diferenças, talvez possamos perceber não mais um adolescente infrator, mas sim um jovem no qual a linha da infração é apenas uma a mais dentre tantas outras que o compõem. Isso permite a certa prática de psicologia um trabalho de intervenção que afirme a abertura de espaços para que, tanto os jovens com quem trabalhamos como nós, psicólogos, possamos criar outras vias de relação com a vida e com nós mesmos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Prof.ª Cecília Coimbra
E-mail: gtnm@alternex.com.br

Fernanda Bocco
E-mail: fbocco@terra.com.br

Prof.ª Maria Livia do Nascimento
E-mail: livianascimento@cruiser.com.br

Recebido em: 28/10/05
Revisado em: 15/12/05
Aprovado em: 06/02/06

 

1Programa Integrado de Profissionalização Gráfica e Marcenaria, desenvolvido nas dependências da Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (Corag), na cidade de Porto Alegre - RS.
2De acordo com o ECA (Brasil, 1990), medidas socioeducativas são as medidas aplicadas a jovens entre 12 e 18 anos de idade incompletos, autores de alguma infração. As medidas socioeducativas são, em ordem crescente de severidade: advertência, obrigação de reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação, sendo as duas últimas em regime fechado. O ECA estabelece que os jovens não podem receber pena como os adultos por entender que ainda estão em processo de desenvolvimento. Medidas protetivas são as medidas aplicáveis a crianças e jovens até os 18 anos de idade incompletos que, segundo o ECA, estejam ameaçados ou violados por "ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; e em razão de sua conduta" (art. 98).
3Coordenada pela professora Gislei D. R. Lazzarotto por intermédio do projeto de extensão que hoje se chama ESTAÇÃO PSI - Estudos e Ações em Políticas de Subjetivar e Inventar, do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
4Projeto Abrindo Caminhos, realizado na Procuradoria da República no RS, também na cidade de Porto Alegre - RS.
5Essa análise e algumas outras presentes neste texto se encontram mais aprofundadas na dissertação de Mestrado Cartografias da Infração Juvenil, desenvolvida por Fernanda Bocco (2006).
6Ver Coimbra e Nascimento (2003).
7A palavra "desenvolvimento" aparece quatorze vezes ao longo do ECA.
8Código de 1927, também conhecido como Código Melo Matos, e Código de 1979, que introduziu o conceito de menor em situação irregular, fortalecendo a separação entre "criança" e "menor".
9Segundo Loïc Wacquant (2002: 20), na sociedade neoliberal "[...] o que mudou não foi a criminalidade mas a atitude dos poderes públicos com relação às classes pobres, consideradas como o centro irradiador do crime. Classes junto às quais o Estado Penal se encarrega de reafirmar cada vez mais enfaticamente os imperativos cívicos de trabalho e de moralidade".
10Enrique Martinez Reguera (2001; 2005) aponta e exemplifica com detalhes esse fenômeno.
11Guattari (1990) afirma que somos todos atravessados por linhas as mais diversas - econômicas, políticas, ecológicas, tecnológicas, afetivas, artísticas, filosóficas, sociais, idiomáticas, culturais, entre outras -, as quais nos constituem enquanto sujeitos historicamente referenciados.
12Sobre o assunto, consultar Coimbra (2001), que aponta como no Brasil foi sendo construída uma indissociável relação entre pobreza e periculosidade.
13A esse respeito, ver Vicentin (2005).
14Loïc Wacquant (2001) mostra como a pobreza vem sendo criminalizada pelas políticas neoliberais globalizadas.

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