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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.57 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A interação social de crianças no jogo de regras

 

Children's social interaction game with rules

 

 

Christiany Maria Bassetti Cavalcante; Antonio Carlos Ortega; Maria Margarida Pereira Rodrigues

Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-graduação da UFES

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho teve por objetivo analisar as formas de interação social de crianças em situações de competição e não-competição, por meio do jogo Matix. Os participantes da pesquisa foram quatro alunos da quarta série do ensino fundamental de uma escola pública de Vitória (ES). Na primeira etapa da pesquisa, cada criança jogou três partidas com o objetivo de conhecer e explorar o jogo. Na segunda, os participantes formaram duplas e competiram entre elas. Em seguida, houve um rodízio entre eles, até que todos tivessem formado duplas entre si e competido. Na terceira etapa, os participantes formaram apenas uma dupla que resolveu situações-problema. Os resultados indicaram a existência de sete categorias de interação na situação de competição. Entretanto, houve uma variação dessas categorias na situação de não-competição, indicando que as formas de interação social de crianças estão relacionadas com as características da situação-problema, do funcionamento cognitivo e da dinâmica sociocognitiva apresentada.

Palavras-chave: Construtivismo piagetiano; Interação social; Jogo de regras.


ABSTRACT

This paper analyzed forms of children's social interaction in competitive and non-competitive situations, by means of the Matix game. The participants of the research were four fourth-grade Junior High students studying in a public school in Vitória (ES). Firstly, each child played three matches aiming to recognize as well as explore the game. Secondly, the participants worked in pairs and competed among themselves. There was a rotation of students, until everyone had worked and competed with each other. Finally, the participants worked only in pairs in problem solving dynamics. The results indicated the existence of seven categories of interaction in the competitive situation. However, there was a variation of these categories in the non-competitive situation indicating that forms of children's social interaction are related to characteristics of problem solving, cognitive functioning and socio-cognitive dynamics.

Keywords: Piagetian constructivism; Social interaction; Game with rules.


 

 

INTRODUÇÃO

Na área de desenvolvimento cognitivo, o tema da interação social tem tido maior relevância nas últimas décadas. Porém, o assunto já se mostrava presente nas investigações dos pesquisadores desde o final do século XIX (MOURA, 1993).

Pesquisas sobre a influência da interação social no desenvolvimento cognitivo também têm interessado a autores de diferentes perspectivas teóricas. Nos anos 1970, surgiram os trabalhos de um grupo de investigadores da área da psicologia social genética com o objetivo de estudar o papel da interação social na construção cognitiva. A idéia do grupo era investigar a influência da interação social na cognição a partir do referencial teórico de Piaget. O grupo acreditava que o construtivismo piagetiano proporcionava espaço para este estudo.

Assim, autores como Willem Doise, Gabriel Mugny e Anne-Nelly Perret-Clermont realizaram pesquisas em um modelo pré-pós-teste com grupo controle, com o objetivo de estudar as realizações individuais de crianças, depois de terem participado de sessões de exercício em grupo. A partir desses trabalhos, estes autores desenvolveram a concepção de conflito sociocognitivo, "que amplia a idéia piagetiana de desequilíbrio e conflito intra-individual levando a equilibração majorante para o plano interpessoal" (MOURA, 1993: 40).

Perret-Clermont (1984) propôs que, em determinadas condições, a interação social de crianças pode contribuir para o desenvolvimento das estruturas cognitivas. O processo da interação social pode possibilitar aos sujeitos a coordenação das ações entre si ou o confronto de opiniões divergentes, o que poderia ocasionar conflitos cognitivos, que, por sua vez, produziriam progressos na estrutura cognitiva dos indivíduos. De acordo com esta autora, várias pesquisas realizadas demonstraram que a estruturação cognitiva dos grupos possui maior intensidade que a estruturação cognitiva dos indivíduos. Isto se deve à natureza da interação social, que proporcionaria divergências de pontos de vista dos sujeitos, gerando uma reorganização em suas perspectivas cognitivas.

Ainda segundo Perret-Clermont (1984), no conflito de centrações, que os sujeitos compartilham durante as interações, está a causa dos progressos cognitivos. Ao precisar coordenar suas ações com as dos outros, o sujeito é levado a um processo de descentração que o lança a um conflito entre suas opiniões e a dos outros. Entretanto, a autora ressalta que o conflito sociocognitivo desencadeia desequilíbrios, mas não é condição suficiente para produzir progressos na estrutura cognitiva. Dessa maneira, o sujeito precisa ter alcançado certo nível de competência para que sua participação em uma situação de interação social possibilite um progresso em seu desenvolvimento.

Ao analisarem os efeitos do contexto social na aprendizagem, Light & Perret-Clermont (1991) remontam aos trabalhos de Doise, Mugny e Perret-Clermont realizados em meados da década de 1970. Estes estudos experimentais serviram para avaliar o papel da interação entre pares no desenvolvimento cognitivo. E os resultados mostraram que, sob certas circunstâncias, as crianças que participaram da sessão de interação tiveram progressos maiores do que aquelas que trabalharam individualmente; e que interagir com um companheiro que respondia corretamente às questões não era condição necessária para progredir. A explicação para tais descobertas foi interpretada, principalmente, a partir do conflito sociocognitivo.

Porém, segundo Gilly, Fraisse & Roux (1992), as observações dos comportamentos das crianças na resolução de tarefas em díades demonstraram que a co-elaboração (como eles denominaram a interação observada entre os pares) obtém seus benefícios de diferentes tipos de funções que os parceiros propiciam uns para com os outros; e não é necessário que ela sempre se estabeleça conforme a tese do conflito sociocognitivo. A partir dos resultados de suas pesquisas, observou-se que em numerosos casos não foi necessário que a co-elaboração tivesse um conflito sociocognitivo para ter efeito. Os autores observaram dinâmicas interativas eficazes, nas quais se constatou modalidade social exclusivamente cooperativa sem a ocorrência de oposição entre as díades. Mas, mesmo que não se tenha conflito social evidenciado, isto não elimina que a ação de um dos dois sujeitos possa ser perturbadora para o desenvolvimento da ação ou do pensamento do outro.

Gilly, Fraisse & Roux (1992), a partir de suas pesquisas sobre a resolução de problemas em díades e progressos cognitivos em crianças de 11 a 13 anos, constataram os efeitos da interação, mas salientaram que, além de constatar estes efeitos, é preciso compreendê-los. Para compreender os mecanismos pelos quais a interação pode beneficiar os sujeitos envolvidos, é necessário considerar três fatores: 1) as condições de apresentação do problema (ou as características da tarefa); 2) o tipo de funcionamento cognitivo individualizado gerado; e 3) o tipo de funcionamento sociocognitivo da díade. Entre estes três fatores existe uma relação estreita e indissociável.

Na pesquisa dos referidos autores, foram observados quatro tipos de co-elaboração, podendo, às vezes, uma mesma seqüência de interação estar composta por várias delas. Elas são assim classificadas:

1 - co-elaboração aquiescente: quando uma das crianças elabora uma solução ou seu início e a propõe ao parceiro, que, sem oposição ou desacordo, proporciona respostas de concordância, o que possibilita um verdadeiro acordo cognitivo. Estas respostas possuem valor de controle e de reforço positivo para quem propôs a solução;

2 - co-construção: neste tipo, também não há manifestações de desacordo ou contradições. Uma das crianças inicia uma ação ou frase, que é retomada pela outra; segue-se, então, um intercâmbio das ações entre elas. Percebe-se que as crianças elaboram simultaneamente uma solução entre elas, reforçando uma à outra;

3 - confrontações com desacordo: quando uma criança propõe algo que não é aceito pela parceira. Esta exprime desacordo, mas não argumenta nem propõe outra coisa. À criança que propôs, resta apenas trabalhar individualmente ou procurar justificar sua ação repetindo-a ou exprimindo-a de outra forma;

4 - confrontações contraditórias: quando uma das crianças propõe uma ação que é respondida pela parceira com um desacordo argumentado e/ou outra proposta de ação. Ocorre, então, uma oposição de respostas que desencadeia uma fase de confrontação. Esta fase pode acarretar um impasse ou um acordo.

Segundo Moro (2000), trabalhos mais recentes do referido grupo de pesquisadores de psicologia social genética mostram que as realizações dos sujeitos dependem, além do seu desenvolvimento pessoal, "de um encontro negociado e complexo de significações, de pontos de vista e de percepções diversas conforme o contexto social em que as capacidades cognitivas individuais desenvolvem-se" (p. 296). Com isso, os pesquisadores produzem um olhar sob outra ótica em suas pesquisas, passam do estudo das interações sociais de pares como colaboradoras na construção cognitiva para o estudo da interdependência dos fatores sociocognitivos que se encontram nas interações sociais. E acreditam "que as habilidades lógicas viriam de uma co-construção social, conforme um modelo de interação tripolar (sujeito-sujeito-objeto)" (p. 296).

No Brasil, o papel da interação social no desenvolvimento cognitivo tem sido investigado por alguns pesquisadores, entre os quais destacamos os estudos realizados por Moro (1987; 1991; 2000).

Com base nas pesquisas realizadas por Perret-Clermont, Inhelder, Bovet e Sinclair, Moro (1987) realizou um trabalho no qual desejou confrontar as propostas dessas autoras. Assim, ela comparou os efeitos quantitativos e qualitativos de duas modalidades de exercícios operatórios: em situação de troca social entre crianças e em situação de troca adulto-criança, na construção da quantificação da inclusão e de seriação e na conservação de quantidades numéricas. Os resultados encontrados sugerem que houve efeitos de aprendizagem das noções empregadas nas duas modalidades de interação social pesquisadas, sendo, então, considerados efeitos complementares e não excludentes.

Ao prosseguir com suas pesquisas, Moro (1991) continuou a estudar o papel da interação social de crianças no processo de aprendizagem operatória. Assim, realizou três estudos com crianças de idade entre 5 e 9 anos. A proposta principal desta nova pesquisa foi corrigir as deficiências dos exercícios operatórios anteriores, que limitaram a expressão de formas mais variadas e adiantadas de interação social. Outro ponto revisto foi o número de crianças participantes dos pequenos grupos. Pesquisou-se o papel da quantidade de participantes nos pequenos grupos de crianças na expressão e na organização das formas de interação, como também na possibilidade de avanços cognitivos.

Alguns resultados sugeriram uma evolução, no decorrer do tempo, de formas de interação social menos organizadas para formas mais avançadas de atividade dos participantes nos pequenos grupos. Esta transformação acontece de maneira mais rápida em pequenos grupos com menos participantes. Porém, percebeu-se que ela também surge em pequenos grupos com mais participantes com uma idade maior, o que não ocorre em idade menor. Moro (1991) salienta que a idade pode contribuir no processo de desenvolvimento com formas mais avançadas de atuar com o outro na resolução de uma tarefa. Sobre a possibilidade de passagem de formas de interação menos avançadas para as mais adiantadas, a autora considera que isso se dá a partir do confronto entre ações ou verbalizações opostas realizadas pelos sujeitos.

A partir dos resultados obtidos em suas pesquisas anteriores, Moro (2000), que se baseava nos trabalhos da psicologia social genética, buscou responder sobre o tema da interação social utilizando-se das proposições da epistemologia genética. A autora ressalta que as interações sociais simétrica (criança-criança) e assimétrica (criança-adulto) são condições necessárias para a construção da cognição do indivíduo, mas não são preponderantes diante do conflito individual. Ela acredita que a teoria da epistemologia genética tem muito a contribuir para a discussão do papel da interação social de crianças.

Assim, Moro (2000) realizou um estudo sobre as relações da interação social de crianças com suas construções cognitivas individuais de aprendizagem, tendo como hipótese a existência de "uma inter-relação das interações sociais de crianças e destas com o adulto no contexto de um pequeno grupo de aprendizagem, com as construções individuais infantis ali ocorrentes, relativas ao conceito a ser apreendido" (p. 299). Seus resultados demonstraram que há um modelo cíclico complexo de inter-relações das construções realizadas pelas crianças e destas com as intervenções do adulto.

O papel da interação social tem sido bem estudado no processo de desenvolvimento cognitivo em uma perspectiva construtivista, mas poucos estudos têm investigado a inter-relação da interação social de crianças em um contexto de jogos de regras. Dentre eles, destacamos os trabalhos de Abreu (1993), Magalhães (1999) e Silva (2001).

Apesar de não investigar diretamente a interação de crianças em seu trabalho, Abreu (1993), ao realizar a análise da construção do sistema de resolução do Jogo da Senha em dezesseis crianças, constatou a relevância da interação entre elas para o desenvolvimento do jogo. As evoluções mais acentuadas obtidas no jogo aconteceram durante a sessão em que as crianças jogavam em duplas, indicando, com isto, a importância dessa interação.

Magalhães (1999), por meio do jogo Cara-a-cara, observou a interação entre crianças nas partidas realizadas em duplas, principalmente em relação à participação delas ou não nos momentos de tomada de decisão das jogadas. A autora analisou se houve cooperação entre elas e em que nível ela ocorreu. A partir da análise dos recortes, foram encontradas seis categorias, sendo a quinta delas - "as crianças se alternam, e quem não está jogando acompanha o parceiro, dando sugestões ou criticando suas decisões" (p. 55) - o modo de interação que mais se aproxima da cooperação. Mesmo assim, não há uma discussão entre as crianças, com cada uma delas expondo e defendendo sua estratégia para a jogada.

Mais recentemente, Silva (2001) pesquisou a influência da interação social na solução de problemas contidos no Jogo das Quatro Cores. Os resultados obtidos mostraram que o tipo de interação social mais utilizado pelos participantes que jogaram em dupla foi a co-elaboração aquiescente (GILLY, FRAISSE & ROUX, 1992). Observou-se também que a melhora conseguida no desempenho do jogo não pôde ser atribuída a esta interação.

Neste contexto, desenvolvemos uma pesquisa com o objetivo de investigar, em uma perspectiva microgenética, as formas de interação social de crianças em díades em uma situação de competição e não-competição, por meio do jogo Matix1

 

MÉTODO

Participantes

Participaram deste estudo quatro meninos, Luc, Dav, Fab e Rap, com idades de 10 e 11 anos, que cursavam a 4ª série do ensino fundamental de uma escola pública da cidade de Vitória (ES). Após o sorteio de qual gênero faria parte da pesquisa, foi realizada, também por sorteio, a escolha das crianças participantes. Todas elas eram da mesma sala de aula e já se conheciam havia pelos menos dez meses. A escolha de crianças que já se conheciam foi baseada na literatura, que indica melhor desempenho na resolução de tarefas em duplas de amigos do que de não-amigos (FRAISSE apud MORO, 2000).

A escolha de crianças nessa faixa etária foi baseada em estudos de Piaget (1935/1998) sobre a evolução do trabalho em grupo. Ele constatou que é entre 10 e 11 anos de idade que uma cooperação mais completa está presente. Trabalhos sobre interação social têm sido realizados com diversas faixas etárias, mas, segundo Piaget, apesar de crianças de até 8 anos apresentarem interação social, esta não produz uma modificação evidente em sua atitude individual. Isto se deve, ainda, ao predomínio do egocentrismo. Dos 8 aos 10 anos, o interesse por estar em grupo intensifica-se, mas a cooperação não é suficiente para a permanência no grupo.

O número de quatro crianças participantes da pesquisa justificou-se por proporcionar uma análise microgenética: dos procedimentos e estratégias cognitivas de cada criança; da compreensão do desempenho das crianças no jogo; e das formas da interação social das crianças.

As quatro crianças foram divididas em duplas, pois, segundo Moro (2000), o processo de inter-relações de interações sociais tende a surgir primeiro em díades e tríades do que em políades.

Instrumento

A pesquisa foi realizada utilizando como instrumento o jogo de regras Matix. Este é ainda pouco pesquisado (MARCO, 2004; TORRES, 2003) e isso também justifica sua escolha para avaliar os procedimentos e estratégias cognitivas utilizados pelos participantes e necessários para que se tenha a compreensão e desempenho adequados.

O Matix é um jogo de tabuleiro criado na Alemanha e possui duas versões: uma com 36 casas (Figura 1) e outra com 64. Optou-se pela versão de 36 casas em razão do tempo disponível das crianças para a pesquisa.

 

Figura 1: Foto do jogo Matix

 

As casas do jogo são preenchidas por um número correspondente de peças assim compostas:

  • - 0 (três peças)

  • 1, 2, 3 e 4 (duas peças de cada)

  • 5 (quatro peças)

  • 6 (uma peça)

  • 7, 8 e 10 (duas peças de cada)

  • 15 (uma peça)

  • -1, -2, -3, -4, -5 e -10 (duas peças de cada)

  • uma peça curinga

O jogo inicia-se com todas as peças distribuídas aleatoriamente sobre as casas, estando os números e a peça curinga virados para baixo. Deve ser jogado por, no mínimo, duas pessoas. Uma pessoa joga no sentido horizontal (linhas) do tabuleiro e a outra, no sentido vertical (coluna).

Após a decisão de quem inicia a partida, é feita a escolha do sentido em que cada um jogará. Com isto, todas as peças são viradas para cima. Cada jogador movimenta a peça curinga até a casa cuja peça deseja retirar para si, visando obter o maior número possível de pontos ao final da partida.

O jogo termina quando todas as peças forem retiradas ou quando o curinga cair em uma linha ou coluna onde não haja mais nenhuma peça.

Ao final, contam-se os pontos, subtraindo os valores negativos dos positivos.

Procedimento

A pesquisa foi realizada em um espaço cedido pela escola e no período em que as crianças estudavam. Para isso, conversou-se, anteriormente, com a professora sobre os períodos em que elas poderiam se ausentar da sala de aula. Além disso, os responsáveis assinaram um termo de consentimento, permitindo a participação das crianças na pesquisa.

A presente pesquisa foi realizada em três etapas:

Primeira etapa

Nesta etapa, cada um dos participantes jogou três partidas com o experimentador, com o objetivo de conhecerem e explorarem todos os aspectos do jogo.

Segunda etapa

Os quatro participantes (Luc, Rap, Dav e Fab) formaram duplas entre si, por sorteio, e competiram jogando três partidas. Informou-se que eles deveriam jogar juntos e que poderiam fazer o que quisessem para isso. Após o término dessas três partidas, houve mudança de parceiros entre as duplas, que novamente competiram jogando mais três partidas. A mudança de parceiros ocorreu até que todos os participantes tivessem formado duplas entre si. O esquema abaixo mostra o que foi realizado:

LucRap x DavFab : jogaram três partidas

LucFab x DavRap : jogaram três partidas

LucDav x FabRap : jogaram três partidas

O objetivo desta etapa foi identificar as formas de interação dos participantes na dupla, enquanto jogavam em uma situação de competição com outra dupla.

Terceira etapa

Por sorteio, os participantes foram divididos em duplas, sendo que cada um formou apenas uma dupla. As duplas resolveram, cada uma em separado, três situações-problema propostas pelo experimentador. Deu-se a mesma instrução da segunda etapa, ou seja, que eles deveriam jogar juntos e que poderiam fazer o que quisessem para isso.

Pretendeu-se, nesta etapa, avaliar como as duplas interagem ao buscarem uma solução à situação-problema, agora em um ambiente de não-competição.

Os procedimentos de coleta dos dados consistiram na gravação em vídeo e áudio das segunda e terceira etapas da pesquisa e registro de todas as jogadas realizadas pelos participantes em um protocolo próprio.

Na segunda e na terceira etapa, ocorreram os episódios de interação com as duplas. Estes foram transcritos e analisados com base nas categorias propostas por Gilly, Fraisse & Roux (1992) já explicitadas anteriormente. A análise dos dados, de ordem qualitativa e quantitativa, e de caráter microgenético, centrou-se nos episódios de interação das duplas ocorridos durante a elaboração e realização das jogadas nas partidas da segunda etapa e na resolução das três situações-problema da terceira etapa.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise das jogadas realizadas pelos participantes, verificamos que a classificação dos tipos de interação proposta por Gilly, Fraisse & Roux (1992) não se adequava, suficientemente, ao contexto de jogos de regras. Assim, propusemos uma ampliação em suas categorias, desenvolvendo outras que melhor correspondessem à nossa necessidade. No total, observamos - e descrevemos a seguir - sete categorias de interação entre os participantes das duplas:

1 - execução isolada: um dos participantes elabora e faz a jogada sozinho, sem ter conversado antes com seu parceiro, que apenas observa sem fazer oposição ou desacordo (concordância implícita).

Rap (10) elabora e faz a jogada sem discuti-la com Dav (10). Este observa , mas não diz nada.

2 - execução isolada com negação: um dos participantes elabora e faz a jogada sozinho, sem ter conversado antes com seu parceiro, que reclama ou faz algum comentário, opondo-se, por meio de verbalização ou gestos, à jogada realizada.

Dav (10) elabora e faz sozinho a jogada sem discuti-la com Fab (11). Este reclama, apontando outra jogada que poderia ter sido feita.

3 - elaboração aquiescente: um dos participantes propõe uma jogada ou faz alguma observação sobre ela ao parceiro, que escuta e proporciona ou não uma resposta de acordo (verbalização ou gestos); em seguida, um dos dois faz a jogada, enquanto o outro observa.

Dav (10) fica assustado após a jogada do adversário. Rap (10) fala com ele e mostra uma jogada. Rap fala no ouvido de Dav e, depois, faz a jogada, enquanto o outro observa.

4 - exclusão: um dos participantes elabora e faz a jogada, enquanto seu parceiro tenta participar de algum modo (querendo fazer a jogada ou comentar algo sobre ela), mas não consegue espaço.

Fab (11) aponta uma jogada, e Luc (10) retira seu braço, parecendo recusar sua opinião. Luc elabora e faz a jogada sem conversar sobre ela com Fab.

5 - cooperação: um dos participantes comenta uma jogada com seu parceiro, que escuta e faz observações e/ou comenta sobre outra jogada. Neste tipo de interação, um comenta com o outro, por meio de verbalização e/ou gestos, uma ou várias possibilidades de jogada. Ao final, um deles faz a jogada, enquanto o outro observa.

Dav (10) fala das jogadas para Rap (10). Este escuta, comenta e mostra várias peças e jogadas. Rap faz a jogada; parece ser uma sugerida por Dav.

6 - execução isolada com comentário: um dos participantes elabora e faz a jogada sozinho, sem conversar com seu parceiro; após a jogada, um dos dois faz algum comentário para o outro.

Rap (10) elabora e faz a jogada sem falar com Fab (11), que observa. Após a jogada, Rap comenta algo com Fab, que responde: "vamos pegar menos iguais".

7 - confrontação: um dos participantes sugere uma jogada, ao que o parceiro reage discordando, comentando ou não o porquê da discordância e propondo outra jogada. Há uma discordância entre eles com oposição de jogadas. Ocorre um momento de confrontação, que termina com um deles aceitando a jogada proposta do outro ou fazendo a jogada, mas sem a aprovação do outro.

Fab (11) e Rap (10) observam o tabuleiro. Fab vai fazer a jogada sem ter conversado com Rap antes. Na hora da jogada, Fab pega a peça e Rap diz: "pega a 5". Fab responde: "deixa". E depois completa: "se eu pegar a 5, eles pegam a 10". Rap diz: "ah é!" (concordando).

Fab (11) vai logo fazer a jogada e Dav (10) diz que ele é apressado, os adversários concordam. Fab fica irritado. Os dois discutem, confrontando as jogadas opostas entre eles. Ao final, Dav faz a jogada e Fab reclama.

Com base nas sete categorias propostas, no Gráfico 1 são mostrados os episódios de interação social mais freqüentes para o grupo como um todo na segunda etapa, na qual os participantes jogaram em dupla competindo com outra dupla, ou seja, em uma situação de competição.

 

Gráfico 1: Freqüência das categorias de interação social para todo o grupo na 2ª etapa do procedimento

 

Podemos observar que a categoria de maior incidência foi a da execução isolada, sendo seguida pela cooperação e pela aquiescente. É interessante notar que as categorias de maior freqüência são de características opostas. Em primeiro, aparece a categoria execução isolada, cuja característica é a não-cooperação entre os participantes, com o isolamento na elaboração e execução da jogada. Em segundo lugar, a cooperação, na qual se observa uma explícita construção conjunta da resolução da jogada. Em terceiro, está a categoria aquiescente, na qual, apesar de não haver uma cooperação clara, parece haver uma concordância que sugere uma construção da jogada em paralelo com seu parceiro. Gilly, Fraisse & Roux (1992), autores nos quais nos baseamos para propor estas categorias, declaram que, neste tipo de interação, o sujeito que escuta não é passivo: ele parece construir em paralelo uma resposta parecida com seu parceiro.

Duas hipóteses tentam explicar a freqüência destas categorias. A primeira pode ser encontrada em Gilly, Fraisse & Roux (1992), que salientam, a partir de suas pesquisas, "uma alternância entre as seqüências de trabalho cognitivo individual e as seqüências de trabalho interativo" (p. 81). Os sujeitos iniciam, cada um, a elaboração da jogada, mas, em alguns momentos e por diversas razões, um deles propicia uma ação que se torna uma seqüência interativa, pois determina uma reação por parte do outro. Terminada está seqüência, há o retorno à elaboração individual. A segunda hipótese é dada por Moura (1993), que acredita que a busca de acordos intersubjetivos em tarefas cognitivas - "um processo natural do desenvolvimento" (p. 43) - pode ser, desde cedo, bloqueada pela influência do sistema escolar, que não procura estimular a participação da criança em grupos no processo de aquisição da aprendizagem, dando ênfase na transmissão estática do conhecimento. Verificamos que as duas hipóteses encontram respaldo em nossa pesquisa.

Em quarto lugar, aparece a categoria execução isolada com comentário, que se inicia sem nenhum contato entre os participantes; este contato se estabelece quando um dos participantes faz alguma observação ao parceiro após a jogada. Já com menos incidência, aparece a categoria confrontação. É importante ressaltar que a freqüência encontrada para esta categoria está de acordo com as pesquisas de Gilly, Fraisse & Roux (1992), que também encontraram baixo nível de freqüência nessa categoria.

Para melhor análise dos dados, apresentaremos, agora, os resultados de acordo com cada dupla formada nessa segunda etapa.

 

Tabela 1: Freqüência das categorias de interação social apresentada pelo primeiro par de duplas

 

A Tabela 1 mostra o número de vezes que cada categoria de interação social foi registrada no primeiro par de duplas formado e que competiram uma contra a outra em três partidas realizadas. Observa-se que a dupla Rap/Luc apresenta quatro categorias de interação, sendo que a categoria execução isolada com comentário aparece apenas nas 2ª e 3ª partidas. Desde o início, quem mais executou as jogadas foi Luc, com apenas duas jogadas feitas por Rap no total de cinqüenta e duas jogadas. Nota-se que, com o decorrer das partidas, o número de episódios da categoria execução isolada vai aumentando nesta dupla e o inverso acontece com a categoria cooperação. Ocorre, com o desenvolvimento das partidas, uma dominância de Luc na elaboração e execução isoladas das jogadas. Rap parece deixar esta elaboração por conta do parceiro. Apesar do número de episódios da categoria cooperação diminuir nas partidas, é grande sua freqüência, chegando a ser, na 1ª partida, maior do que a categoria execução isolada, que obteve uma freqüência expressiva em toda a segunda etapa. Pela observação da interação dessa dupla, o que podemos apreender é que Luc vai deixando de solicitar a cooperação de Rap e que este também não força esta presença, parecendo confiar nas jogadas feitas pelo parceiro, já que eles ganham as primeiras partidas.

Na dupla Dav/Fab, ao contrário da dupla Rap/Luc, há a diminuição da freqüência da categoria execução isolada e um pequeno aumento da categoria cooperação. Nesta dupla, há o comparecimento de cinco categorias de interação, sendo que a categoria execução isolada com negação aparece apenas na 1ª e 2ª partidas e a categoria aquiescente, na 1ª e 3ª partidas. No início, a dupla quase não se comunicava, eles se intercalavam na execução das jogadas, mas com poucos episódios de cooperação. Com o decorrer das partidas, os episódios de execução isolada diminuíram e eles passaram a interagir mais pelas categorias aquiescente, de cooperação e mesmo pela confrontação.

É significativo o aumento acentuado desta última, passando de um episódio na 1ª partida para cinco na 3ª partida. A explicação para isto talvez esteja no comportamento do participante Fab. Ele queria, na maioria das vezes, fazer as jogadas de forma rápida, com o que não concordava seu parceiro Dav, que o interrompia nessas execuções ligeiras e o confrontava nas jogadas. Em muitas delas, apesar de Fab escutar a intervenção de Dav, que lhe explicava não ser boa a jogada proposta por ele, ele parecia não se importar, mas, na maioria dos casos, acabava aceitando essas intervenções. De acordo com a literatura pesquisada, as situações de confrontação de estratégias entre os participantes podem ser mais eficazes no avanço cognitivo individual (GILLY, FRAISSE & ROUX, 1992; MORO, 2000).

 

Tabela 2: Freqüência das categorias de interação social apresentada pelo segundo par de duplas

 

Como mostra a Tabela 2, os episódios de execução isolada foram constantes e de alta freqüência em todas as partidas da dupla Luc/Fab, com um domínio de Luc na elaboração e execução das jogadas. As tentativas de Fab de executar as jogadas, também de caráter isolado, eram sempre barradas por Luc, que dizia: "Espera Fab, tem que pensar". Mas essas intervenções nunca produziam um episódio de cooperação ou confrontação, eram sempre seguidas por execuções isoladas de Luc. Em toda a pesquisa, obtivemos somente seis episódios da categoria exclusão, sendo cinco deles nesta dupla. Talvez isto se explique pelo receio, por parte de Luc, das jogadas sempre feitas com rapidez por Fab na dupla anterior e que, na maioria das vezes, produziam pontos altos para a outra dupla. Além disso, supomos a presença de fatores socioafetivos: Luc dominou em todas as duplas das quais participou, talvez por achar que jogava melhor do que os outros, pois venceu a maioria das partidas que jogou.

Os episódios das categorias cooperação e aquiescente compareceram apenas da 2ª partida em diante, sendo que a cooperação só se apresentou nesta partida. Eles se iniciaram após muitas reclamações de Fab, que se sentiu excluído por não ter muitas chances de participar, chegando, muitas vezes, a se afastar da posição que estava, ao lado de Luc.

É interessante observar o protocolo de categorias de interação da dupla Rap/Dav. Na 1ª partida, houve apenas dois episódios de execução isolada e alta incidência das categorias aquiescente e cooperação. A dupla interagiu bastante; em apenas duas jogadas não tiveram contato. Na 2ª partida, ocorreu o contrário: treze episódios da categoria execução isolada e apenas dois da aquiescente e da cooperação. Os episódios de execução isolada ocorreram em uma intercalação entre Dav, com quatro episódios, e Rap, com nove. Na 3ª partida, há um retorno da alta freqüência dos episódios de interação e uma baixa freqüência da categoria execução isolada. A incidência da categoria cooperação é maior do que a da aquiescente, indicando troca de estratégia de jogadas. Esta alternância entre os episódios de interação e execução isolada vai ao encontro da observação feita por Gilly, Fraisse & Roux (1992), de que, na ocorrência de uma seqüência de interação, há, também, seqüência de trabalho individual, o que também foi observado por Moro (2000).

 

Tabela 3: Freqüência das categorias de interação social apresentada pelo terceiro par de duplas

 

No terceiro par de duplas, como mostra a Tabela 3, houve pouquíssimos episódios de interação social por parte de ambas as duplas; o número de execuções isoladas de jogadas foi bem elevado.

Na dupla Luc/Dav, houve uma completa dominância de Luc na elaboração e execução das jogadas, como já visto nas duplas anteriores de que ele fez parte. Dav executou apenas duas jogadas em todo o jogo. Na elaboração de apenas cinco jogadas ocorreu cooperação entre eles; e, nos episódios da categoria aquiescente, cinco deles foram feitos por Dav, mas sem uma resposta visível de acordo por parte de Luc, que executou todas as jogadas. O mesmo aconteceu com os episódios da categoria execução isolada com comentário: em um total de quatro, três foram realizados por Dav. Uma explicação para estes episódios é que, além do mencionado anteriormente sobre a dominância de Luc, Dav permitiu que as jogadas fossem feitas pelo parceiro; Dav pareceu dar apoio, acreditar nas realizações de Luc, talvez pelo desempenho deste nas partidas anteriores.

Com a dupla Rap/Fab, na 1ª partida, os episódios de execução isolada das jogadas foram intercalados pelos participantes, com leve dominância de Rap. Nas duas partidas seguintes, contudo, houve um total domínio das execuções isoladas por parte de Fab. Parece que Rap foi permitindo que Fab comandasse o jogo: mesmo quando tinham jogadas conflitantes com a outra dupla, ele pouco interferia, deixando que Fab discutisse sozinho. Talvez isso tenha acontecido por Rap não querer se confrontar com Fab, já que este, desde o início da pesquisa, reclamava de tudo e se opunha a tudo, chegando a ser criticado e ironizado pelos outros. Por implicar com quase tudo, Fab era o centro das brincadeiras do grupo.

Os episódios das categorias aquiescente e cooperação foram de baixa freqüência e iniciados tanto por Rap como por Fab. A baixa freqüência destas categorias foi surpreendente, já que Rap, nas duplas anteriores, mostrou-se sempre cooperativo. Talvez a mesma explicação dada acima sirva aqui como resposta, acrescentando o fato de Fab mostrar preferir jogar sozinho; em questões formuladas às duplas, Fab foi o único que falou preferir jogar sozinho. Ele disse: "jogar em dupla é chato, porque o outro quer se achar melhor que eu. Afinal, eu sou o melhor de todos".

As categorias de interação social apresentadas na terceira etapa do procedimento da pesquisa, na qual os participantes, em dupla, resolveram juntos as situações-problema propostas pelo experimentador, variaram um pouco das encontradas na segunda etapa. Na literatura, encontramos comprovação em estudos que ressaltam que a variação da tarefa proporciona, também, variações na forma de interação social organizada pelas crianças (FRAISSE apud MORO, 1991).

A terceira etapa foi realizada com duas duplas, que resolveram, isoladamente, três situações-problema; nesta etapa, diferentemente da anterior, não houve um ambiente de competição.

Na resolução do problema (indicar qual jogada faria), as categorias foram as mesmas apresentadas na segunda etapa. Contudo, no momento de explicar o porquê da escolha, surgiram duas novas formas de organização de interação entre os participantes: 1) solicitar que o outro responda as questões feitas pelo experimentador; 2) complementar as respostas dadas pelo outro, às vezes ocorrendo uma verdadeira intercalação de resposta entre os participantes.

Com base nas nove categorias propostas, verificamos que os episódios de interação social mais freqüentes nesta etapa, para as duas duplas formadas, são indicados no Gráfico 2.

 

Gráfico 2: Freqüência das categorias de interação social para todo o grupo na terceira etapa do procedimento

 

Vejamos como isso se apresenta na formação das duplas, formadas aleatoriamente, resultando nas duplas Luc/Rap e Dav/Fab.

A primeira dupla a resolver as três situações-problema foi a de Luc/Rap. Na primeira situação proposta pelo experimentador, a solução é sugerida por Rap a Luc, que nada responde, parecendo concordar. Com isso, Rap dá a resposta e explica o porquê de sua escolha. Na proposição de confirmação da resposta feita pelo experimentador aos dois, eles confirmam a escolha e, ao responder o porquê, é Luc quem fala, sendo complementado por Rap em alguns momentos. O seguinte extrato da análise ilustra o ocorrido.

O experimentador (exp) propõe a situação-problema1. Depois de observarem o tabuleiro com a situação proposta, Rap comenta com Luc: "-1, né?"; Luc não responde nada e eles continuam a observar o tabuleiro. Rap, então, diz: "A -1, por que, se a gente pegar a 5, alguém pode pegar a 10"; exp: "É a -1?"; Rap e Luc juntos: "É"; exp: "Por quê?"; Luc: "Porque se a gente pegar a -3, os outros pegam a 15. Se pegar a -2..."; Rap fala: "Eles não pegam nada"; exp: "E a -1, por quê?"; Luc: "Porque não tem outra peça, outra peça maior. A gente pode pegar -1 ou a 3"; Rap: "A -1por que a gente pode pegar a -1, alguém pode pegar a 8 e a gente pega o 10".

Em nenhum momento da terceira etapa, Luc e Rap conversaram para achar uma resposta às situações-problema, ou seja, não houve nenhum episódio de cooperação entre eles. As categorias que apareceram, nesta dupla, foram: execução isolada, aquiescente, exclusão, complementação de resposta e solicitação de que o outro responda às questões.

Com a dupla Fab/Dav, também não ocorreu nenhum episódio de cooperação. O resultado das categorias de interação apresentado por eles foi: execução isolada, aquiescente, execução isolada com comentário, confrontação, complementação de resposta e solicitação de que o outro responda às questões.

Apesar de os dois não apresentarem nenhum episódio de cooperação, eles interagiram por meio das categorias aquiescente, execução isolada com comentário e confrontação. Os episódios da categoria confrontação ocorreram na procura pela solução das três situações-problema, mostrando uma repetição de interação da dupla ocorrida na segunda etapa. A seguir, temos um extrato de um período de interação com confrontação.

Após o experimentador (exp) expor a situação-problema, Fab logo responde sem conversar com Dav: "8"; Dav: "8?"; Dav não concorda e aponta o -3; Fab diz: "É claro que é 8"; Dav: "-3"; Fab: "8"; Dav diz: "Nós somos horizontal e eles vão pegar a vertical" (ele fala mostrando as posições); Fab: "Deixa"; Dav: "Ai meu Deus", Fab: "Eles pegam o 10 e a gente pega o outro 10, mané"; o exp pergunta se eles estão discordando; Fab diz: "A gente tá indefinido, ele quer que pegue a -3 e eu a 8"; Dav, então, diz: "Vai 8. A ganância e tanta"; Dav acaba aceitando a jogada mais elaborada de Fab, mas parecendo ainda não concordar, apesar de depois confirmar e explicar o porquê da escolha.

Um elemento que poderia nos ajudar na compreensão dessas novas formas de organização da interação entre os participantes é o proposto por Gilly, Fraisse & Roux (1992). Estes autores afirmam haver relações de dependência entre as características da tarefa apresentada, o funcionamento cognitivo individual e a dinâmica sociocognitiva. Em suas pesquisas, eles observaram que as variações nas condições de apresentação das situações-problema induziam a modos de funcionamento cognitivo individuais diferentes, e que este funcionamento influenciava na forma de organização das trocas sociocognitivas.

Mas como pensar a não-incidência de nenhum episódio de cooperação entre as crianças nessa última etapa? Será que podemos pensar que o contexto de não-competição contribuiu para esse resultado? Será que um ambiente de competição proporciona uma interação mais cooperativa entre os participantes das duplas?

Morais (2004) considera que a competição e a cooperação estão presentes na interação social do ser humano. Charlesworth (apud MORAIS, 2004: 56) afirma "que a cooperação deve ser vista como uma variante da competição e não como oposta a ela". Pode haver competição em uma situação cooperativa quando um dos participantes tem mais recursos que o outro. Da mesma forma, pode ter competição quando duas crianças cooperam para conseguir mais recursos que uma outra. Estas afirmações parecem corroborar os resultados encontrados em nossa pesquisa. Encontramos cooperação em um ambiente competitivo; e competição entre os participantes em uma situação cooperativa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos resultados da pesquisa, constatamos que o estudo da interação social é bastante complexo. Procuramos investigar como a interação comparece em um ambiente de competição explícita e em um ambiente não competitivo. Verificamos que as formas de interação social são muito dependentes das características da situação-problema proposta, do funcionamento cognitivo de cada criança participante dessa interação e da dinâmica sociocognitiva apresentada. Vale ressaltar que todas as duplas exibiram episódios de cooperação no contexto de competição. No entanto, não houve nenhum episódio de cooperação nas duplas que participaram das tarefas em um ambiente não competitivo. Esse fato poderia indicar que o tipo de tarefa proposta é um fator relevante na forma de organização da interação social das crianças.

No entanto, uma outra variável que não foi controlada poderia ser levada em consideração na discussão desses dados. Trata-se da interpretação que as crianças podem ter feito das situações propostas na pesquisa. Nomeamos as segunda e terceira etapas como situações de competição e de não-competição, respectivamente; mas as crianças podem ter percebido essas situações de uma maneira diferente. Assim, a partir dessa reflexão, poderíamos colocar a seguinte questão: "será que essa interpretação poderia ter interferido na forma de interação entre as crianças?". Sugerimos que esta questão seja incluída em futuras investigações.

A partir da análise das formas de interação social de crianças em díades, conseguimos propor categorias que possibilitam a análise da atuação dos parceiros em situações de competição e não-competição. Com isso, além de ampliarmos as categorias proposta por Gilly, Fraisse e Roux (1992), verificamos sua adequação no estudo com o jogo Matix. Assim, propomos que outras pesquisas sejam realizadas a fim de verificar se essas categorias de interação propostas para o contexto do jogo Matix se mostram adequadas para outros jogos, bem como para outras situações de aprendizagem.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Christiany Maria Bassetti Cavalcante
E-mail: cmbcavalcante@uol.com.br

Antonio Carlos Ortega
E-mail: acortega@uol.com.br

Maria Margarida Pereira Rodrigues
E-mail: mariampr@zaz.com.br

Recebido em: 20/12/05
Revisado em: 01/08/06
Aprovado em: 21/08/06

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