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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.57 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Trabalho e subjetividade: intervenção psicossocial envolvendo uma equipe de profissionais do "Programa Saúde da Família"

 

Work and subjectivity: psychosocial Intervention in a Group of Professionals of the "Family's Health Program"

 

 

Camila Mugnai Vieira; Mariana Prioli Cordeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute uma experiência de intervenção psicossocial, com base na psicologia organizacional, envolvendo uma equipe de profissionais do Programa Saúde da Família de uma Unidade Básica de Saúde da periferia de Londrina, Paraná. Os objetivos foram investigar as relações de trabalho e suas implicações para a subjetividade dos profissionais; intervir, possibilitando aos profissionais estabelecer relações saudáveis com sua atividade. Foram realizadas visitas à unidade e entrevistas semi-estruturadas. Após isso, foram realizados cinco encontros quinzenais para investigar o sentido do trabalho e sua influência na saúde e subjetividade dos membros da equipe, e criar alternativas para superação de suas dificuldades no desempenho de suas funções. As temáticas abordadas foram relacionamento interpessoal, comunicação e organização do trabalho. Os dados foram analisados em seu conteúdo nos planos institucional, organizacional, do grupo e individual. A experiência realizada na Unidade Básica de Saúde foi pontual e apenas deu início a um processo de discussões e reflexões que deve ter continuidade.

Palavras-chave: Programa saúde da família; Trabalho; Equipe.


ABSTRACT

This article discusses a psychosocial intervention, based on organizational psychology, carried out within a group of professionals of the "Programa Saúde da Família" (Family's Health Program), an out-patient basic health service which takes place on the periphery of Londrina - PR. The objectives were: to investigate the labour relations and their implications in the subjectivity of the professionals, and to undertake an intervention that would make possible for those professionals to establish a healthy relationship with their working practices. Visits to the unit and semi-structured interviews have been made. After that, five fortnightly meetings were held with the group, aiming at investigating the meaning of their work and its influence on their health and subjectivity, and at creating alternatives to overcome their difficulties on the job. The issues discussed in these meetings were: interpersonal relationships, communication and the methods of labour organization. The data have been analyzed considering the institutional, individual and group aspects. The investigation and work accomplished at this health unit was punctual, and it only started a process of discussions and debates that must continue.

Keywords: Family's health program; Labour; Team work.


 

INTRODUÇÃO

O presente artigo discute uma experiência de intervenção psicossocial em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), com uma equipe de profissionais do Programa Saúde da Família (BRASIL, 2002). Inicialmente são apresentados referenciais teóricos que contemplam conteúdos sobre políticas públicas em saúde, aspectos organizacionais do trabalho em instituições de saúde e o papel do psicólogo nessa área. Em seguida, o trabalho de diagnóstico e intervenção é descrito e seus principais resultados discutidos à luz da literatura apresentada.

 

Políticas públicas: Sistema Único de Saúde (SUS) e Programa Saúde da Família (PSF)

O modelo de assistência à saúde que predominou no Brasil nas últimas décadas foi inaugurado no início e consolidado no decorrer do século XX. Ele voltava-se para ações curativas, era centrado na figura do médico e nos hospitais, apresentava uma visão biologista do processo de saúde e doença, e não considerava as dimensões socioeconômicas e culturais envolvidas. A crise desse modelo se revelou na insatisfação de todos: usuários, profissionais, instituições de prestação de serviços e governo. Nesse contexto, fez-se urgente o surgimento de propostas no âmbito da saúde coletiva que transformassem o processo de trabalho em saúde (TRAD & BASTOS, 1998).

Nesse contexto, estabeleceu-se, na Constituição de 1988, uma nova formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de saúde. Assim, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse sistema se caracteriza por um conjunto de unidades, serviços e ações, sob a responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal, que interagem em prol dos objetivos de promoção, proteção e recuperação da saúde.

Entre as doutrinas do SUS estão universalidade, eqüidade e integralidade, que se baseiam no direito de todo cidadão à saúde. Os princípios que regem o SUS são regionalização e hierarquização, resolubilidade, descentralização com comando único em cada esfera do governo, participação dos cidadãos e complementaridade do setor privado (BRASIL, 1990).

O SUS exige um modelo integral de atenção à saúde, baseado no princípio da universalidade. Assim, em 1994, o Ministério da Saúde criou o Programa Saúde da Família (PSF) com o propósito de substituir o modelo tradicional e reorganizar a prática de saúde em novas bases. As equipes do PSF são multidisciplinares, compostas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS) (BRASIL, 2006). O atendimento é realizado nas UBSs ou nos domicílios, sendo que cada equipe é responsável pelo cadastramento e acompanhamento da população de um território definido. De acordo com o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002), as equipes do PSF são capacitadas para conhecer a realidade das famílias por intermédio do diagnóstico de suas condições sociais, demográficas e epidemiológicas; identificar os principais problemas de saúde e situações de risco; elaborar com a comunidade um plano local para promover saúde; prestar assistência integral à demanda organizada ou espontânea na UBS, na comunidade ou nos domicílios; e desenvolver ações educativas e intersetoriais para enfrentar os problemas de saúde identificados.

O PSF deve estar em conformidade com os princípios do SUS. A saúde deve ser vista como um direito à cidadania e à qualidade de vida. Deve-se buscar a humanização do atendimento, por meio do relacionamento das equipes com a comunidade. O atendimento no setor de saúde deve ser ampliado; a comunidade, incentivada a se organizar para o efetivo controle social. Para que esses objetivos sejam alcançados, os profissionais precisam ter acesso à supervisão, à educação continuada, aos cursos de capacitação e aos treinos de aprimoramento.

Uma das características importantes do Programa Saúde da Família é o estabelecimento de equipes formadas por profissionais de diferentes áreas. Ao falar em equipe, surge a necessidade de considerar o relacionamento interpessoal, o trabalho em grupo, a inter e a multidisciplinaridade.

Segundo Almeida Filho (1997 apud PORTO & ALMEIDA, 2002: 343), o conceito de multidisciplinaridade refere-se ao "conjunto de disciplinas que se agrupam em torno de um dado tema desenvolvendo investigações e análises isoladas por diferentes especialistas, sem que se estabeleçam relações conceituais ou metodológicas entre elas". Ou seja, a multidisciplinaridade corresponde a uma estratégia mais limitada, na qual, apesar da incorporação das múltiplas dimensões de um problema, as práticas fragmentadas da ciência normal continuam a ser reproduzidas. Já a interdisciplinaridade é definida pelo autor como "a reunião de diferentes disciplinas articuladas em torno de uma mesma temática com diferentes níveis de integração". Sendo assim, é possível dizer que um trabalho interdisciplinar é um trabalho conjunto na busca de soluções para um dado problema.

No Programa Saúde da Família, a unidade produtora dos serviços de saúde não é um profissional isoladamente, mas sim uma equipe; e o foco central da atenção não é o indivíduo exclusivamente, mas a família e seu contexto. As intervenções necessárias à saúde devem considerar as determinações biopsicossociais da saúde-doença e o cuidado na autonomia e na responsabilização dos profissionais perante os usuários, famílias e comunidade. Desse modo, a assistência à saúde passa a ter a característica central de um trabalho coletivo, complexo e que busca a interdisciplinaridade (ALMEIDA & MISHIMA , 2001).

A criação do SUS não foi um acontecimento isolado ou uma construção apenas do setor de saúde. O movimento pela reforma sanitária foi fundamental para a reconstrução da democracia representativa e para o reconhecimento político das camadas populares organizadas. Mas, segundo Junqueira & Terence (1999), esses objetivos se perderam e, diante das condições de saúde cada vez mais precárias de grande parte da população, o que seria um projeto nacional de transformação, passou a ter um caráter "reformista" e remediador. Nesse contexto, desenvolve-se a "abordagem epidemiológica", que, a partir de uma expectativa de redução dos custos, promove ações simplificadas de prevenção individual.

As experiências de organização dos sistemas locais de saúde vêm sendo abandonadas, assim como as possibilidades de intervenção sobre os determinantes do processo saúde-doença, na interação da população com as equipes multiprofissionais. O vínculo entre as equipes e as famílias se dá exclusivamente pelo PSF, ainda centrado na figura do médico. Assim, torna-se difícil a prática da concepção de saúde do SUS.

Devido aos seus princípios e bases operacionais, o PSF é considerado uma estratégia importante na transformação do atual modelo assistencial. é necessário ressaltar, porém, que as mudanças do modelo assistencial dependem de componentes técnicos, mas também de componentes políticos (TRAD & BASTOS, 1998). No Brasil, a mobilização e a participação social de muitos grupos, especialmente das classes populares, são muito restritas. Essas devem ser ampliadas, para que suas demandas se tornem coletivas e públicas e tenham que ser atendidas (MENDONçA, 2002).

Segundo Franco & Merhy (1999), a implantação do PSF por si só não garante a transformação do modelo assistencial. O programa precisa assumir uma configuração diferente que considere especialmente o processo de trabalho e reorganize a atividade dos diferentes profissionais.

A gestão do programa deveria ser menos centralizada, e este deveria ter um caráter menos prescritivo. Só assim deixaria de ser médico-centrado, estaria atento às diferentes realidades de seus usuários, tornaria possíveis as mudanças que o próprio PSF propõe e abriria espaço para o surgimento de modelos alternativos de assistência, cada vez mais efetivos.

 

O processo grupal, o trabalho em equipe e as relações de poder nas instituições de saúde

Nas UBS, a unidade produtora dos serviços de saúde não é um profissional isoladamente, mas sim uma equipe; e o foco central da atenção não é o indivíduo exclusivamente, mas a família e seu contexto. As intervenções necessárias à promoção de saúde devem considerar as determinações biopsicossociais do binômio saúde-doença, além do cuidado com a autonomia e a responsabilização dos profissionais perante os usuários, famílias e comunidade. Assim, a assistência à saúde passa a ter a característica central de um trabalho coletivo e complexo.

Segundo Lane (2001), para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo, é importante compreender a estrutura do grupo no qual ele está inserido, já que "toda ação transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam" (p. 78). Para a autora, ao analisar a estrutura de um determinado grupo, deve-se buscar compreender o lugar que esse grupo ocupa dentro da instituição.

"Nesse sentido, é fundamental a análise do tipo de inserção do grupo no interior da instituição; se foi um grupo criado pela própria instituição, com que funções e finalidades o foi; se surgiu espontaneamente, que condições presidiram seu surgimento, se foi no sentido de manutenção ou de contestação dessa mesma estrutura institucional" (p. 85).

Ao analisar o processo grupal, deve-se, também, considerar a história de vida de cada membro do grupo, já que cada uma dessas histórias está presente nas formas concretas por meio das quais os indivíduos agem, se colocam, se posicionam, se alienam.

O Sistema de Saúde Pública brasileiro enfatiza o trabalho desenvolvido em grupos, na medida em que estabelece a criação de equipes multiprofissionais como fundamental para o desenvolvimento do trabalho no Programa Saúde da Família.

Segundo Almeida & Mishima (2001), a proposta do Programa Saúde da Família possibilita ir além do trabalho técnico hierarquizado, pois promove maior interação social entre os trabalhadores, maior horizontalidade e flexibilidade dos diferentes poderes, o que possibilita maior criatividade e autonomia dos agentes, além de maior integração da equipe.

Essa integração é a base do sucesso desse projeto, pois, se ela falhar, corre-se o risco de repetir-se o modelo de atenção fragmentado, desumanizado, centrado na recuperação biológica individual, com uma divisão de trabalho rígida e desigual valoração dos diferentes profissionais. Portanto, é necessário que a equipe construa um projeto comum, no qual os trabalhos especializados de cada profissional se complementem.

é nessa relação de interdependência, complementaridade e ao mesmo tempo de autonomia relativa com um saber próprio que se dá o trabalho dos diferentes agentes de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde) no Programa Saúde da Família. Segundo Almeida & Mishima (2001), articular esses aspectos distintos é uma tarefa árdua que requer esforço contínuo e colaboração de todos os membros do grupo. Apesar de difícil, é um esforço que vale a pena, pois permite a integração dos conhecimentos disponíveis nos espaços de trabalho, de formação, de produção de conhecimento e, acima de tudo, nos espaços de construção da cidadania.

A formação de equipes e a integração dos conhecimentos de seus membros levam à maior horizontalidade de poderes, tirando assim do médico o papel central e hegemônico na equipe de saúde.

Apesar dessa maior horizontalidade, os cargos de uma Unidade Básica de Saúde ainda obedecem a certa hierarquia, sendo que o papel de coordenação cabe à equipe de enfermagem. Cada classe de trabalhadores tem suas funções definidas e uma chefia a qual deve submeter-se. Entretanto, segundo Foucault (1979), as relações de poder não se dão unicamente de forma unilateral, de cima para baixo, pois o poder não é algo fixo, um objeto ou algo que alguém possui, mas sim um verbo, uma ação. Ou seja, um indivíduo não possui poder, mas exerce uma forma de controle ou influência (ele "pode"). Geralmente, o senso comum relaciona a concepção de poder aos governantes e a todos aqueles que o exercem de uma forma mais explícita (como professores, policiais, chefes). Porém, deve-se pensar o poder não como algo unilateral e que respeita a hierarquia formal, mas como uma relação de forças que estão em constante movimento e tentativa de equilíbrio. O poder não é exclusivo de um pequeno grupo, mas é característico de qualquer relação interpessoal.

O poder é "múltiplo, automático e anônimo. A vigilância funciona como uma rede, de alto a baixo, de baixo para cima e lateralmente" (Guirado, 1996: 65), ou seja, as pessoas do mesmo grupo ou patamar controlam-se entre si. Em uma UBS, há cargos cuja função também exige a vigilância dos colegas, como os coordenadores das unidades, por exemplo, que estão sempre verificando se os demais profissionais estão realizando suas tarefas adequadamente. Uma outra forma de controle, comum nos serviços de saúde, é a presença de funcionários especializados, cuja principal tarefa é perguntar aos pacientes se eles estão sendo bem atendidos, ou se têm alguma reclamação a fazer. Mas a vigilância e o poder ocorrem, também, entre os próprios funcionários: um observa, vigia, denuncia e controla o outro. Nesse sistema de poder disciplinar, a violação das regras não é punida pelo castigo corpóreo, mas sim pela "perda" do emprego ou de algum benefício.

 

O papel do psicólogo nas instituições de saúde

Compreender a constituição e o papel do grupo na instituição, bem como as relações de poder que o permeiam, é um dos importantes papéis do psicólogo do trabalho. Dutra (2002) relata que esse profissional pode assumir diversos papéis, mas resume todos em uma única função, que seria a de facilitador. Seu trabalho constituiria em facilitar, entre outros aspectos: (1) a gestão das mudanças pelas quais a organização tem e terá sempre que passar; (2) o relacionamento interpessoal, buscando mediar os conflitos e levar as pessoas a perceberem que podem encontrar soluções coletivas; (3) o desenvolvimento pessoal e profissional, identificando, estimulando, direcionando e criando possibilidades para que as pessoas percebam em que aspectos podem melhorar; (4) a satisfação pessoal, procurando, por meio de pesquisas e intervenções compatíveis, contribuir para que a organização seja um ambiente propício à satisfação das necessidades individuais, alocando as pessoas em atividades que correspondam ao seu perfil e às suas expectativas; e (5) o ajustamento/integração do indivíduo à cultura organizacional.

Spink (2003) afirma que o psicólogo tem dois possíveis níveis de atuação nas instituições de saúde: trabalhar com a instituição como totalidade ou trabalhar com o paciente, que é o cliente dessa instituição. O primeiro nível visa compreender os atores institucionais como constitutivos e constituídos pelo conjunto de relações concretas que aí se estabelecem. O segundo nível de atuação é mais comum e enfoca a ação do psicólogo na relação com o paciente/cliente da instituição. Como a maioria dos cursos de psicologia privilegia a formação clínica, muitos profissionais vão trabalhar nas instituições de saúde sem o preparo adequado, e acabam transpondo o referencial teórico que estudam nas universidades para esse contexto bastante diferente, não levando em conta que se tratam de realidades sociais distintas.

Para a autora, o trabalho em instituições necessita de uma expansão do referencial adotado em dois sentidos: 1) uma expansão do referencial contextual, ou seja, o psicólogo deve buscar dados que permitam melhor localizar o seu papel e o do cliente na dinâmica social e/ou institucional; e 2) uma expansão do referencial teórico para poder trabalhar com a alteridade, ou seja, para compreender um "outro" definido culturalmente como sendo diferente do "eu".

Spink (2003) afirma que ao analisar uma instituição, o psicólogo deve atentar para a função de aparelho ideológico a ela atribuída, bem como deve compreender a instituição como uma cultura organizacional. Para entender a instituição como aparelho ideológico é necessário compreender sua constituição histórica. é preciso analisar o contexto em que ela foi criada, quais foram os objetivos de sua fundação, quais as transformações que sofreu no decorrer de sua história. Já para entender a instituição como cultura é necessário recorrer a um nível mais micro de análise, ou seja, deve-se buscar compreender seus rituais, mitos e representações que sustentam a ação conjunta. Deve-se, portanto, compreender as semelhanças e as diferenças no comportamento dos atores e, como tal, as hierarquias. O psicólogo, como pesquisador das relações de trabalho, deve buscar uma abordagem metodológica que contextualize o levantamento e a análise dos dados na realidade estudada.

 

Intervenção psicossocial realizada em uma Unidade Básica de Saúde: objetivos e método

Os objetivos gerais da intervenção realizada foram investigar as relações de trabalho na UBS e suas implicações para a subjetividade dos seus profissionais; produzir intervenções que possibilitassem aos profissionais de saúde estabelecer relações com seu trabalho da forma mais saudável possível, proporcionando a qualidade do atendimento aos pacientes.

Pode-se dizer que entre os objetivos específicos estavam: caracterizar o ambiente da UBS, atentando para a organização do trabalho (formal e informal), as condições ambientais, as relações de poder, as funções desempenhadas por cada categoria, a atividade e o relacionamento interpessoal das equipes; verificar como se dão as relações dos profissionais de saúde com as funções que exercem: suas principais dificuldades, satisfações, expectativas, angústias, necessidades; investigar qual o sentido que eles atribuem ao que fazem e como essa atividade influencia a vida pessoal; criar grupos ou outras formas de intervenção que lhes possibilitassem um "espaço de palavra", dentro do próprio trabalho, com o objetivo de construir alternativas para a superação das dificuldades individuais e coletivas, buscando garantir a saúde desses profissionais no desempenho de suas funções.

O trabalho foi realizado com funcionários de uma Unidade Básica de Saúde da periferia de Londrina-PR. Participaram médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentistas, auxiliares de dentistas e técnicos em higiene bucal.

Nesse estudo, utilizamos uma abordagem qualitativa, pois os fenômenos trabalho e subjetividade se desenvolvem socialmente, em um contexto complexo e, portanto, só podem ser compreendidos pelos instrumentos que capturam não só o que as pessoas pensam e conhecem, mas também o que "faz sentido" para elas (Sato, 1997). Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, com questões abertas acerca das condições de trabalho, organização, relações interpessoais etc. Além disso, foram utilizadas dinâmicas de grupo e atividades para levantar as necessidades dos profissionais e intervir nas temáticas necessárias.

O trabalho foi realizado em três etapas. Na primeira, foram feitas visitas à UBS, para observar seu ambiente e rotina de trabalho. Nessas ocasiões, houve conversas informais e as equipes do PSF foram acompanhadas em visitas domiciliares. Foram realizadas, também, entrevistas semi-estruturadas com membros de diferentes categorias da Unidade.

Na segunda etapa, foi organizado um grupo quinzenal com os funcionários interessados a fim de: 1) investigar o sentido do trabalho e sua influência na saúde e subjetividade dos membros da equipe; 2) criar alternativas para superação/redução de suas dificuldades no trabalho.

O desenvolvimento dos encontros quinzenais deu-se por meio de discussões, jogos, produções artísticas, entre outros. Os profissionais tiveram um espaço para expressar seus sentimentos e pensamentos em relação ao seu trabalho. A intervenção realizada com os grupos propiciou a discussão sobre as conseqüências da organização do trabalho para a saúde e subjetividade dos membros da equipe e sobre as possibilidades de construírem alternativas para superação de suas dificuldades. Foram realizados cinco encontros, no horário de trabalho dos profissionais e na própria unidade. De um modo geral, participaram dos encontros os mesmos profissionais, totalizando uma média de quinze a vinte pessoas por reunião. As temáticas, os conteúdos e as atividades desenvolvidas partiram das necessidades, interesses e problemáticas apresentadas pelos participantes. Durante a primeira e a segunda etapa, os dados coletados eram analisados para encaminhamento dos encontros posteriores. A terceira etapa caracterizou-se pela organização, análise e discussão mais sistemática dos dados levantados.

As entrevistas foram gravadas e transcritas; as visitas à unidade e os encontros foram registrados em um diário de campo elaborado pelas psicólogas logo após as atividades, havendo também registros feitos no momento em que os eventos e falas ocorreram.

Os dados levantados nas entrevistas, nas visitas à instituição e nos próprios encontros foram analisados em seu conteúdo, abrangendo os planos institucional, organizacional e do trabalho.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Serão discutidos a seguir alguns dos resultados obtidos nas entrevistas e especialmente nos encontros com o grupo de intervenção. Serão realizadas algumas reflexões a partir de exemplos práticos de atividades desenvolvidas com o grupo e de teorias sobre o tema.

As temáticas priorizadas pelo grupo e trabalhadas nos encontros foram: relacionamento interpessoal, comunicação e organização do trabalho. Entendendo-se que essas temáticas estão inter-relacionadas, para a organização e discussão dos resultados esses temas foram distribuídos nos tópicos a seguir: aspectos da organização do trabalho e aspectos institucionais.

Aspectos da organização do trabalho

Os participantes do grupo de intervenção psicossocial apontaram o relacionamento entre os profissionais de saúde, a comunicação entre os membros das equipes e a organização do trabalho como as principais dificuldades enfrentadas no trabalho em uma UBS.

Por meio dos relatos dos participantes durante a realização das atividades em grupo, pôde-se perceber que o conceito de equipe interdisciplinar, proposto pelo serviço de atenção básica à saúde, ainda não foi incorporado pelos profissionais da área. Observou-se que ainda predomina o trabalho fragmentado, isto é, cada membro da equipe parece preocupar-se em exercer sua tarefa individualmente, o que pode comprometer o resultado final do atendimento. Sendo assim, o atendimento oferecido por uma UBS é apenas multiprofissional, e não interdisciplinar como na proposta original e de acordo com a definição de Almeida Filho (1997 apud PORTO & ALMEIDA, 2002), pois é feito por profissionais de diversas áreas que trabalham independentemente uns dos outros, fragmentando o ser humano de acordo com suas especialidades.

Uma representação realizada por alguns participantes do grupo pode servir como exemplo dessa distorção do conceito de equipe interdisciplinar. Ao serem solicitados a representar cenicamente a questão do relacionamento entre os membros das equipes, eles apresentaram uma situação em que uma pessoa chegava sentindo-se mal à unidade de saúde. Na cena seguinte, era atendida e encaminhada para outro profissional, que, por sua vez, também passava a tarefa adiante. A paciente permanecia horas na sala de espera, sem que ninguém assumisse a responsabilidade de atendê-la. Todos os participantes do encontro relataram que essa é uma situação comum na unidade, e que acaba por prejudicar o atendimento oferecido ao paciente.

Um dos fatores que pode contribuir para a dificuldade de trabalhar em equipe é a falta de comunicação entre seus membros. Os participantes do grupo apontaram que muitas vezes acabam não passando informações relevantes sobre pacientes ou sobre questões organizacionais (como mudança na elaboração de planilhas, trocas de turnos etc.) em virtude da falta de tempo. Com o propósito de tentar diminuir essa falta de comunicação, os integrantes do grupo decidiram, após uma discussão levantada em um dos encontros, realizar periodicamente "reuniões-relâmpago" (sic), nas quais pretendem falar, entre outras coisas, sobre mudanças na organização do trabalho, divisão de tarefas, trocas de experiências e de informações sobre pacientes que são atendidos por vários profissionais.

A proposta do PSF, como descrita por Almeida & Mishima (2001), sugere menor hierarquização; porém, pôde-se perceber que o modelo centrado no médico e no enfermeiro ainda prevalece. Observou-se que os membros do grupo atribuíram a "culpa" pelo mau atendimento à coordenadora da unidade. Da mesma forma, nas atividades em que uma pessoa era eleita para representar o grupo, geralmente eram escolhidos os profissionais destas duas categorias: médicos ou enfermeiros.

A atribuição de culpa por algum erro a um só indivíduo é um outro fator que parece demonstrar a fragmentação do serviço. Em um trabalho em equipe, todos são responsáveis pelas tarefas de todos. No entanto, podem ocorrer situações em que alguns membros não queiram se responsabilizar por erros de conduta. Além disso, essa pode ser uma das formas sutis de desenvolver o controle mútuo e de manifestar o poder de modo horizontal descritas por Guirado (1996).

Essa tendência para achar um único culpado pôde ser claramente percebida em uma atividade realizada durante o terceiro encontro. Em um exercício, os participantes foram orientados para não se comunicarem verbalmente, e apresentaram dificuldade em concluir a tarefa proposta. Sendo assim, após um certo tempo, permitiu-se que falassem. Em vez de tentarem se organizar para atingir o objetivo proposto, quando as verbalizações foram permitidas, os participantes empenharam-se em descobrir quem estava "boicotando" (sic) a atividade. Todos atribuíram a culpa a um agente comunitário de saúde, que, por sua vez, ouviu quieto as acusações. Quando perguntado se havia tido a intenção de dificultar a "brincadeira", o agente respondeu que não e que, pelo contrário, estava tentando encontrar um modo de ajudar o grupo.

Esse fato originou uma discussão sobre a razão pela qual o "acusado" não havia tentado explicar-se. Diante disso, vários participantes relataram não se sentir à vontade para expor suas opiniões, pois temem ser criticados ou criar conflitos; sendo assim, acabam se omitindo e ocultando os problemas que percebem. Não são consideradas, portanto, as histórias e opiniões individuais que, segundo Lane (2001), são essenciais para a formação de um grupo. Essas dificuldades comprometem a integração da equipe, citada por Almeida & Mishima (2001) como sendo fundamental para o atendimento em saúde. E uma equipe cujos membros não se sentem livres para expressar-se e, portanto, não estão integrados não pode ser considerada interdisciplinar.

No quarto encontro foi realizada uma atividade denominada "Abrigo Subterrâneo", na qual os participantes foram divididos em dois grupos menores e foi contada uma estória, que, por sua vez, continha um problema. Cabia aos participantes dos subgrupos discutir sobre o problema e chegar a um consenso. O problema era o seguinte: deviam imaginar que haveria a explosão de uma bomba nuclear e apenas cinco pessoas poderiam ser salvas, de uma lista de doze pessoas, havendo em uma folha uma breve descrição de cada uma destas. Os grupos deviam decidir quais pessoas iriam salvar. Em um dos subgrupos, praticamente não houve discussão, pois uma das participantes sugeriu que cada um escolhesse uma pessoa. Esta sugestão foi acatada prontamente pelo resto do grupo. Quando questionados sobre a forma por meio da qual o grupo se organizara para tomar a decisão, a maioria dos participantes relatou ter sido de forma democrática, justa e sem liderança alguma.

Por meio dessa atividade, pôde-se perceber a fragmentação do trabalho das equipes de saúde. Para esses profissionais, o fato de cada um ter emitido uma opinião (ter "feito sua parte") foi suficiente para caracterizar um trabalho em grupo, mesmo não havendo grande interação entre seus membros. Nesse caso, como não houve discussão para a escolha dos personagens, muitos dos participantes não concordavam com a decisão final do grupo; porém, acataram-na, pois tinham que respeitar a vontade alheia.

Essa situação parece evidenciar também o conceito de liderança adotado pela maioria desses profissionais. Para eles, um líder é aquele que dá ordens, e não aquele que simplesmente pode representar o grupo. Como os membros do grupo puderam emitir suas opiniões durante a realização da atividade, e como a decisão final não foi imposta por ninguém, eles concluíram que não houve nenhum líder. Ou seja, de um lado, consideraram que puderam expressar sua opinião; de outro, apresentaram discordância quanto à decisão final. Esta contradição pode ser explicada pelo fato de estes profissionais não encontrarem um ambiente confiável para expressar seus verdadeiros sentimentos, ou por não se sentirem suficientemente autônomos para decidir sobre quais atitudes tomar diante das situações com as quais se deparam. Pode-se dizer, então, que a hierarquização dos profissionais de saúde ainda é bastante presente no cotidiano da UBS, o que pode fazer com que o papel do líder, que toma decisões e organiza o trabalho das equipes, seja assumido apenas pelo enfermeiro ou médico da unidade.

Um exemplo dessa atribuição da função de líder ao profissional de enfermagem ocorreu durante o quarto encontro. Como a coordenadora da UBS não estava presente naquele dia, houve bastante dificuldade em dar início às atividades programadas. Mesmo sabendo que as estagiárias de psicologia já haviam chegado, muitos profissionais continuaram a realizar suas tarefas, pois geralmente era a coordenadora quem ia chamá-los para iniciar a reunião.

A falta de compromisso no trabalho por parte de alguns membros da equipe também foi uma queixa apontada nos primeiros encontros. Em uma outra atividade, um grupo representou a situação de uma médica ginecologista que dizia que seu plantão havia acabado e perguntava quem a substituiria. Nesse caso, ninguém se prontificou, pois uma pessoa estava ao telefone, outra tomando café ou folheando uma revista. Segundo os participantes do grupo que encenou essa situação e os membros do outro grupo que assistiu à apresentação, essa também é uma situação comum no cotidiano da UBS. Diante deste panorama, pergunta-se: será que esta falta de compromisso pode significar falta de consciência da importância do papel que cada um desempenha na equipe?

Em uma outra atividade, os profissionais foram divididos em quatro subgrupos a fim de elaborar um cartaz contendo a representação social que tinham da UBS. Dois membros de um desses subgrupos não participaram da elaboração do painel: um foi embora antes do término da atividade e o outro permaneceu o tempo todo lendo revistas. Porém, quando os participantes desse grupo foram questionados sobre o processo de execução da tarefa, afirmaram que todos os membros haviam participado. Quando lhes foi apontado que duas pessoas não haviam participado efetivamente, o grupo argumentou dizendo que eles tinham o direito de não querer expressar-se, e que aquilo não significava que não tinham participado.

Pode-se concluir que, para os integrantes deste grupo, a qualidade do trabalho em equipe é medida pelo seu resultado final, e não pelas relações interpessoais que permeiam seu processo de execução. Segundo eles, houve trabalho em equipe, pois foi possível cumprir a tarefa proposta, não importando o fato de dois de seus membros não terem ajudado na elaboração do painel.

Esse tipo de organização do trabalho não propicia que a relação sujeito-objeto produza um significado, pois o trabalhador não se reconhece no produto de sua atividade, na medida em que não participa efetivamente de sua constituição. E é essa ausência de significado que transforma o trabalho em alienação, sendo esta uma das principais causas do sofrimento mental dos trabalhadores (DEJOURS, 1991).

Em contrapartida à falta de significado em alguns momentos, o trabalho do profissional de saúde também possui uma característica que pode diminuir essa alienação: seu caráter imaterial. Pode-se dizer que o trabalho desses profissionais produz algo abstrato, que não pode ser visto, tocado ou sentido fisicamente: afeto, sentimento de conforto e bem-estar. Ou seja, sua atividade produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação (HARDT & NEGRI, 2001).

Uma das características importantes do trabalho imaterial é que a interação e a cooperação sociais são imanentes à própria atividade laboral, e não impostas ou vindas de fora, como ocorre nas outras formas de trabalho. Segundo Hardt & Negri (2001: 315), a "produtividade, a riqueza e a criação de superávits sociais hoje em dia tomam a forma de interatividade cooperativa mediante redes lingüísticas, de comunicação e afetivas. Na expressão de suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar". Nos serviços de saúde, o "trabalho é imaterial, mesmo quando físico e afetivo, no sentido de que seus produtos são intangíveis, um sentimento de conforto, bem-estar, satisfação, excitação ou paixão" (HARDT & NEGRI, 2001: 313). Ou seja, apesar de o trabalho desses profissionais estar diretamente relacionado ao corpo, ao somático, os afetos que produz são imateriais.

Vários auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde comentaram que muitas vezes os pacientes procuram a UBS não para tratar um problema ou prevenir alguma doença, mas para conversar e receber um pouco de atenção. Esse "carinho" é um dos produtos do trabalho desses profissionais e não pode ser imposto por um chefe ou por uma política de saúde. é algo que depende somente da pessoa, que acaba por expressar sua subjetividade nas suas relações. Esses aspectos serão retomados posteriormente.

Aspectos institucionais

Muitos dos dados obtidos nas entrevistas e no trabalho com o grupo de diagnóstico-intervenção e muitas das discussões realizadas em âmbito grupal ou mesmo individual remetem a aspectos institucionais, referentes a políticas públicas - aspectos políticos e sociais que não podem ser ignorados.

Várias questões referentes ao trabalho em equipe ou ao relacionamento interpessoal estão intimamente ligadas à proposta do PSF, suas contradições e desafios. Ao discutir saúde, deve-se considerar essas questões, uma vez que esse é um tema complexo e multifacetado. "Ao analisar a saúde em suas dimensões como um processo dinâmico e complexo, evita-se que aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais sejam tomados como simples externalidades" (NUNES, 2002: 256).

A implantação do PSF por si só não garante a mudança no modelo assistencial. Isso pôde ser observado na UBS estudada sob diferentes aspectos: o conceito tradicional de saúde se mantém, o trabalho continua fragmentado, ainda há uma preocupação maior com o produto final do trabalho e negligência com relação ao processo, além da permanência de uma hierarquia cristalizada, centrada no médico ou na enfermeira.

Segundo Franco & Merhy (1999), há importantes contradições no PSF, que acabam por comprometer muitos de seus objetivos e gerar problemáticas, como as exemplificadas na UBS estudada. Os autores apontam para o fato de não haver uma preocupação com as mudanças nas concepções de saúde e com a construção de uma nova subjetividade dos profissionais da área e dos usuários. O programa propõe uma nova relação paciente-profissional, baseada não na cura e na técnica, mas na interação social, no vínculo, na humanização, na prevenção e na educação. Nessa nova relação, ambos são sujeitos do processo de promoção de saúde, já que o paciente não é mais um mero receptor dos procedimentos médicos, como no modelo tradicional. O que ocorre, porém, é que o programa não vem sendo entendido como uma mudança de paradigma e uma estratégia, mas sim como uma "técnica", ou um novo modelo, capaz de resolver a crise do sistema de saúde. Essa distorção da proposta do programa se dá porque os profissionais e a comunidade em geral não são preparados para essas mudanças, e continuam a agir de acordo com o modelo tradicional.

Outra questão essencial é que a implantação do programa não envolve o processo de trabalho em si, pois não busca reorganizar as funções de diferentes profissionais, redefinir seus papéis ou atuar nos processos decisórios que ocorrem no próprio ato da promoção da saúde (FRANCO & MERHY, 1999). Sendo assim, a falta de compreensão do papel de cada profissional faz com que as equipes permaneçam em conflito. Os agentes comunitários de saúde, por exemplo, constituem uma nova categoria profissional, cujas funções não foram suficientemente esclarecidas e, por isso, acabam realizando atividades que competem a outras categorias, deixando muitas vezes de cumprir seu real papel, como pôde ser observado na UBS estudada.

Um dos grandes problemas da implantação do PSF, de um modo geral, foram as carências quantitativa e qualitativa de profissionais para atender às novas necessidades. Os profissionais de saúde, em especial os médicos, possuem uma formação ainda voltada para o atendimento individual, curativo, hospitalar, em uma relação técnica (BELISáRIO & CAMPOS, 2001).

Segundo os entrevistados, em virtude da necessidade de contratação de um grande contingente de funcionários para a implantação do programa, foram realizadas seleções e admissões em processos apressados. Além disso, foram feitos convênios com instituições públicas e privadas de saúde, gerando diferentes vínculos empregatícios dentro de uma mesma equipe. A partir desses aspectos, pode-se compreender algumas problemáticas apontadas como geradoras de conflitos entre os profissionais da unidade, como a diferença de salários e de garantia do emprego entre funcionários concursados e contratados. Além disso, é possível ainda formular a hipótese de que a ineficácia da efetivação da proposta, em alguns momentos, decorre do despreparo de muitos profissionais para atender às necessidades colocadas pelo programa.

A proposta da interdisciplinaridade exige transformações no processo e na organização do trabalho, pois pressupõe uma soma de diferentes conhecimentos e atuações. Todavia, como citado, o programa não age nessa esfera, nos papéis dos diferentes profissionais e sua inter-relação. O que percebemos na intervenção em questão, de um modo geral, foi a manutenção da competitividade, do trabalho fragmentado e da culpabilização individual pelo fracasso, entre outros aspectos. Isso se dá entre diferentes categorias profissionais e dentro de uma mesma categoria, revelando que a proposta da interdisciplinaridade e do trabalho em equipe ainda não foi efetivada. Os cursos de formação oferecidos pelos Pólos de Capacitação (SECRETARIA DE SAÚDE DE SERGIPE, 2006) muitas vezes acabam por comprometer ainda mais essas relações. Eles oferecem oportunidade de aprimoramento profissional apenas a alguns funcionários, geralmente aos atendentes e ACSs, proporcionando-lhes, muitas vezes, uma formação semelhante à dos auxiliares de enfermagem. Porém, apesar de serem formados e capacitados, não podem atuar ou realizar os procedimentos para os quais se prepararam, uma vez que não há reais perspectivas de mudança de cargo ou novas contratações.

A gestão do PSF é bastante centralizada, com suas práticas ainda controladas pelo Ministério da Saúde. O formato da equipe, funções de cada um dos membros, estrutura dos cadastramentos, levantamento dos problemas etc. são determinados por "órgãos superiores". Há um caráter prescritivo nessas determinações, sendo os locais de atendimento e as atividades da equipe definidos a priori. Desse modo, dificulta-se a compreensão e a intervenção nas diferentes realidades encontradas nos trabalhos com a comunidade, que seriam alguns dos grandes objetivos do PSF. Os profissionais são obrigados a preocupar-se demasiadamente com as normas a seguir, os prontuários a preencher e os resultados em saúde que devem apresentar, o que faz com que, muitas vezes, o próprio diagnóstico e relação com o usuário fiquem em segundo plano.

Na UBS estudada, foi levantada a questão de que as políticas e "orientações" vêm "de fora e de cima" (sic). Assim, sem que haja qualquer discussão, todos devem acatar as imposições quanto às formas de se organizar, atender, trabalhar. Um médico da unidade exemplificou essa questão com atribuições que vêm sendo dadas aos médicos plantonistas da rede pública, pela Secretaria Municipal de Saúde, de passar a emitir atestados de óbito, o que nunca fora sua função. Ele disse que não terão tempo e condições de fazê-lo, mas que não foram consultados sobre isso e terão que obedecer, sem questionar.

Esse modelo de imposição e gestão centralizada parece se repetir dentro da própria unidade. Durante a discussão sobre as propostas vindas da Secretaria e do Ministério, sem possibilidades de contestações, surgiram reclamações acerca da postura de um médico e de uma enfermeira ao modificar as planilhas de consultas, sem discutir a questão com as atendentes que fazem e organizam a agenda de atendimentos. Essa atitude dentro da unidade reflete o tradicional centralismo das políticas de saúde, ainda presente no PSF. Este processo se mantém, inclusive, porque não há qualquer abertura para um trabalho desenvolvido com gestores, a fim de discutir as questões aqui elucidadas e as realidades vivenciadas na prática do programa.

A discussão levantada a respeito da reprodução, por parte do médico e da enfermeira, da centralização do "poder", remete à questão da hierarquia, que ainda se mantém na unidade. Isso pôde ser evidenciado em vários momentos do trabalho, como a tomada da liderança por esses profissionais, a imposição de suas opiniões aos outros ou a falta de organização da equipe na ausência da coordenadora. De todo modo, são indicadores de que a proposta do PSF continua sendo médico-centrada. Por não operar nos processos de trabalho, no cotidiano de cada profissional, todas as intervenções, mesmo as visitas domiciliares, organizam-se a partir dos saberes e atos médicos (FRANCO & MERHY, 1999). Percebe-se que, em vários momentos, a figura do médico vem sendo substituída pela da enfermeira, em virtude do seu papel de gerenciamento e direção. No entanto, só muda a figura, pois os princípios médicos permanecem, e a centralização do poder também.

Pode-se dizer que a centralização do poder em uma única categoria ocorre, em parte, pelo despreparo dos profissionais envolvidos no processo para democratizar o poder. Isso é fruto de uma longa história, que evidencia a facilidade de controle de todo processo a partir de um poder centralizado, que assim desmobiliza ações coletivas. De todo modo, preocupações desse âmbito devem ser incluídas nas discussões sobre saúde, uma vez que só a partir de uma maior participação política e social dos profissionais e usuários, especialmente de classes economicamente desfavorecidas, serão possíveis mudanças que estejam focadas em suas necessidades (MENDONÇA, 2002).

Os profissionais da UBS estudada, de um modo geral, manifestaram potencial para transformações nesse sentido. Nas discussões estabelecidas, a partir do momento em que se abriu espaço para debate, tentativas de democratizar o poder e diminuir a hierarquia puderam ser percebidas. Além disso, há indícios de um processo ainda não cristalizado, que permite que ordens e prescrições sejam seguidas, mas com algum questionamento, evidenciado por propostas de constantes discussões e reuniões para se debater as mudanças necessárias. Essa prática cria a possibilidade do surgimento de alternativas diferentes e cada vez mais eficazes de trabalho, que venham ao encontro da realidade daquela equipe e da comunidade a que atende, podendo, assim, melhorar sua qualidade de vida.

Uma das principais discussões realizadas por Franco & Merhy (1999) com relação ao PSF é que ele atua apenas na vigilância em saúde e pouco se preocupa com a incursão clínica, o que faz com que não tenha forças para reverter o modelo assistencial, tornando-se apenas uma linha auxiliar ao modelo médico hegemônico. Uma vez que se ocupa apenas da saúde coletiva, atua apenas no ambiente e lida com a saúde individual como se esta fosse algo separado, que devesse receber apenas o atendimento médico tradicional. Não há um esquema para o atendimento da demanda espontânea, permanece a burocratização nos serviços, e os atendimentos emergenciais não são vistos como prioridade, o que demonstra que, na realidade, o programa não está centrado no usuário.

Muitos profissionais da UBS referiram-se às suas dificuldades em lidar com os usuários. Isso acontece porque muitas das pessoas que procuram o posto ou que recebem as visitas domiciliares apresentam "problemas" de ordem "emocional" ou social, "carência", ou "solidão", em especial os idosos. Os profissionais relataram o quanto é difícil e desgastante ter que ouvir os problemas das pessoas, lidar com pacientes que resistem ao tratamento, que são agressivos ou estão em depressão. Novamente, é possível perceber aqui características do trabalho imaterial desenvolvido.

A dificuldade dos profissionais de saúde para lidarem com os aspectos afetivos e a demanda por um trabalho da psicologia voltado à comunidade surgiram com intensidade. Quanto a isso, levanta-se a discussão acerca da escassez de trabalhos na área de Saúde Mental, também com caráter preventivo, na rede de assistência básica, mais especificamente no PSF. As questões de ordem emocional não são vistas como prioridade, assim como as questões sociais, com as quais os profissionais também dizem ter grandes dificuldades de lidar. Esses aspectos revelam que se mantém a concepção fragmentada de homem e de saúde, a qual ainda é entendida apenas como ausência de doença "física" e não como bem-estar biopsicossocial. Revela-se novamente que o modelo ainda não é centrado no usuário.

Como não há esse tipo de trabalho por parte de profissionais da psicologia clínica e social, exige-se que outros funcionários estejam preparados para lidar com essas questões, e que realizem um trabalho mais "humanizado". Mas isso não ocorre na realidade. Os profissionais sentem-se frustrados e angustiados, o que compromete sua satisfação e sua atuação profissional. Isso se reflete no atendimento ao usuário e assim, paradoxalmente, toda humanização proposta é comprometida.

Segundo Franco & Merhy (1999), para que as transformações necessárias ocorram, e para que sejam efetivamente atingidos os objetivos de melhora na qualidade da assistência em saúde, é importante ressaltar que nenhuma estratégia pode dar conta de tudo. Deve-se construir uma rede de solidariedade dentro da equipe, abrir-se às mais diversas competências, devendo ocorrer, para isso, antes de tudo, o "luto da onipotência" de cada profissional.

Além disso, segundo Paim (2001), é essencial que o PSF não permaneça isolado nas zonas rurais e guetos das cidades, e que os Pólos de Capacitação não se limitem às universidades. Deve-se demonstrar publicamente que a maior proporção dos recursos financeiros ainda é destinada a hospitais e outros procedimentos especializados, e não à assistência básica. A falta de recursos e a necessidade de dupla jornada de trabalho foram levantadas por muitos dos profissionais entrevistados. Também é importante debater as contradições do programa, buscando alterar especialmente o plano estrutural, as relações e os processos de formação dos profissionais. Um ponto crucial deve ser a construção de uma nova consciência de sujeito público, que gere novos pensamentos e ações, no sentido de criar modelos assistenciais alternativos (PAIM, 2001).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intervenção realizada refere-se a um contexto particular, não podendo ser feitas generalizações indiscriminadamente. Além disso, foi pontual e apenas deu início a um processo de discussões e reflexões sobre a organização do trabalho que deve ter continuidade. Ressalta-se que as discussões apresentadas sobre a realidade da unidade não buscam a culpabilização dos profissionais da equipe de saúde, mas uma investigação mais concreta das conseqüências da organização do trabalho para a constituição de sua subjetividade.

De um modo geral, os "problemas" vivenciados pelos profissionais da unidade em seu cotidiano de trabalho revelam dificuldades na concepção e prática do trabalho em equipe. Nesse âmbito, englobam-se as questões de relacionamento interpessoal, comunicação e organização do trabalho, apontadas pelos funcionários. Ainda parece haver fragmentação das ações: cada um "faz sua parte" isoladamente, sem um comprometimento com todo o processo. Isso pode prejudicar a satisfação do profissional, além de prejudicar o próprio atendimento ao usuário, já que a tão almejada humanização do atendimento não ocorre. Esse aspecto remete a questões institucionais, como a escassez de oportunidades de qualificação e de preparo oferecidos a esses profissionais para atender a essa nova demanda, isto é, à transformação do modelo de saúde.

Entende-se que, para debater mais profundamente essas temáticas (organização do trabalho na unidade, hierarquia, equipe, comunicação, assim como reivindicação de direitos e de melhor formação), a unidade deve organizar-se de forma a realizar um trabalho sistemático e contínuo de reflexão e intervenção. Apesar da rotina de trabalho "corrida" (sic), é necessário buscar uma prática de mais "reuniões-relâmpago" (sic) e de reuniões mensais, quinzenais ou mesmo semanais mais prolongadas. Deve-se aproveitar os momentos dessas reuniões não apenas para um planejamento prático ou elaboração de calendários, mas também para discutir questões relevantes para o grupo e suas relações: criar um espaço para expressão de opiniões e sentimentos relacionados ao trabalho na unidade.

Em função das inúmeras questões levantadas que remetem a aspectos institucionais, ressalta-se que seria de grande importância um trabalho desenvolvido com gestores em saúde. Além disso, devem ser ampliadas as pesquisas e intervenções em outras unidades de saúde, além de criar uma rede para reflexões acerca dos aspectos em comum encontrados nos diferentes contextos.

A cidade de Londrina, onde o trabalho se desenvolveu, é considerada, segundo os próprios entrevistados, um modelo no que diz respeito à saúde pública e à implementação do PSF, o que indica um potencial para as transformações necessárias. Não se pode, contudo, ignorar as dificuldades ainda encontradas e as necessidades de mudança. Só a partir da explicitação destas é que poderá haver reflexões e construção de alternativas de superação. O interesse por trabalhos da natureza do que foi desenvolvido nessa unidade, e por mais parcerias com a universidade, já indica possibilidades de mudanças.

Considera-se que a psicologia social e do trabalho deve estar cada vez mais envolvida e atuante na área da saúde pública, uma vez que ali vêm ocorrendo consideráveis transformações, e essas são refletidas em outras importantes mudanças sociais, que demandam reflexões e atuações que considerem não apenas questões estruturais ou metodológicas, mas também a subjetividade humana e a qualidade de vida dos envolvidos.

 

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Endereço para correspondência
Camila Mugnai Vieira
E-mail: camilamugnai@gmail.com

Mariana Prioli Cordeiro
E-mail: mpriolicordeiro@hotmail.com

Recebido em: 24/11/05
Revisado em: 06/07/05
Aprovado em: 11/08/06

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