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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.58 no.1 Rio de Janeiro June 2006

 

ARTIGO

 

Psicologia e paz: a perspectiva de estudantes universitários

 

Psychology and peace: undergraduate students’ perspective

 

 

Luciana Karine de SouzaI, II; Lucas P. MocelimII; Francisco B. TrindadeII; Tania M. SperbII

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou o que pensam estudantes de Psicologia sobre a relação entre Psicologia e paz. Participaram 121 alunos, de ambos os sexos, matriculados em cinco semestres diferentes do curso de Psicologia. Os participantes responderam a quatro questões acerca da definição de paz e a sua ligação com a Psicologia. Uma análise de conteúdo gerou categorias de respostas para cada questão. Testes de associação entre categorias e semestres não indicaram diferenças significativas. Os participantes definiram paz em nível individual e social; desconheciam exemplos do envolvimento da Psicologia com a paz, mas salientaram que a Psicologia pode contribuir para a paz como prática que visa o bem-estar do indivíduo ou como ciência que estuda o ser humano e as relações deste consigo mesmo (paz interior) e com as pessoas (paz social e mundial).

Palavras-chave: Psicologia para a Paz; Violência; Universitários.


ABSTRACT

This study investigated Psychology undergraduates’ attitudes toward peace and the connection they perceive between peace and Psychology. One-hundred-and-twenty-one Brazilian students, registered in a public federal university, answered four open-ended questions regarding the definition of peace and its relation to Psychology. Content analysis provided categories of answers per question. Chi-square tests between the categories and five groups of students (divided according to the year they were admitted in the Psychology course) did not reveal significant differences. The majority of the participants defined peace at two levels (individual and social); did not provide concrete examples of connections between Psychology and peace; but emphasized that Psychology could contribute to peace as a practice that aims at the well-being of an individual person, indirectly leading to social peace; or as a science that studies the human being and his relationship with himself (individual peace) and with other human beings (social and world peace).

Keywords: Peace Psychology; Violence; Undergraduates.


 

 

INTRODUÇÃO

A Psicologia para a Paz (Peace Psychology) é um campo de estudos e práticas em Psicologia que aborda as temáticas da paz, da guerra, do conflito e da violência. Seu objetivo fundamental é promover uma convivência mais pacífica entre indivíduos, grupos humanos ou nações. Possibilita a criação de novas estratégias de resolução de conflitos, bem como a consolidação ou desenvolvimento das já existentes.

O presente trabalho consiste em um estudo exploratório que investigou o que pensam estudantes de Psicologia sobre a relação entre Psicologia e paz. Entretanto, como a Psicologia para a Paz é pouco conhecida no Brasil (Souza, 2003), relata-se brevemente sua origem, conceitos fundamentais e estudos brasileiros.

A origem do envolvimento da Psicologia com a paz data do início do século XX, quando William James abordou as questões da paz e da guerra em duas palestras que proferiu. Na década de 1930, Jean Piaget propôs a educação para a paz com base em sua teoria do desenvolvimento intelectual e moral. Já Sigmund Freud trocou correspondências sobre o tema da paz e das guerras com Albert Einstein, por intermédio de Piaget, em 1915 e 1933. A concepção de paz destes intelectuais consistia fundamentalmente na ausência de guerras, em virtude do contexto histórico-cultural em que estavam inseridos &– por volta da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais. A partir destes dois conflitos internacionais de grandes proporções, a preocupação com novas guerras despertou o interesse científico pela conceituação precisa de termos como “paz” e “violência”.

Para Galtung (1969), o conceito de paz possui duas dimensões: “paz negativa” (ausência de violência física ou direta) e “paz positiva” (quando há cooperação, justiça, solidariedade). Por “violência física ou direta”, entende-se uma agressão explícita, imoral e intencional, que atinge imediatamente o bem-estar físico e/ou psicológico de um indivíduo ou grupo (como guerras, homicídios, opressão verbal) (Christie, Wagner e Winter, 2001).

Expandindo a análise das questões de paz na direção dos conflitos em países subdesenvolvidos, a dimensão positiva da paz passou a abranger também a “ausência de violência estrutural ou indireta” (Galtung, 1969). “Violência estrutural” é definida como “uma forma de violência implícita que permeia as estruturas socioeconômicas e políticas de uma sociedade, sendo tão danosa quanto a violência direta, uma vez que também ofende e mata, só que o faz lentamente, privando os indivíduos da possibilidade de satisfazerem necessidades básicas à sobrevivência” (Christie, Wagner e Winter, 2001, p. 8-9). A violência estrutural se manifesta, por exemplo, mediante oportunidades restritas de participação política e da exploração econômica nas e entre sociedades. São conseqüências da violência estrutural as mortes causadas por fome, péssimas condições de higiene, regimes autoritários e/ou desemprego. Um aspecto significativo deste tipo de violência é o fato de ocorrer de forma invisível e contínua (ou seja, mantendo-se constante ao longo do tempo), impedindo fácil prevenção e repressão para combatê-la, como ocorre nos casos de violência direta. Dessa forma, a violência estrutural requer primeiramente a conscientização de sua existência e, conseqüentemente, medidas que promovam intervenções políticas, econômicas e sociais significativas (Christie, Wagner e Winter, 2001). Um exemplo marcante desta postura está nas propostas do educador brasileiro Paulo Freire, que se tornou referência internacional de dedicação contra a violência estrutural no Brasil, tendo como ponto de partida a educação. Neste sentido, cabe compreender a violência no contexto brasileiro em ambos os tipos: direta ou explícita (por exemplo, na forma de assaltos) e indireta ou estrutural (miséria).

Pesquisas e programas de educação para a paz e de combate à violência começaram a ser intensamente desenvolvidos a partir da década de 1960, em resposta aos avanços no setor armamentista que sucederam a Segunda Guerra Mundial. Na década de 1980, agora sob influência da Guerra Fria, o interesse pela paz cresceu significativamente entre psicólogos norte-americanos e europeus. Neste ínterim, originou-se, na Psicologia, um novo campo de estudo e prática dedicados à paz: .Peace Psychology (Christie, Wagner e Winter, 2001) &– Psicologia para a Paz (Souza, 2003).

Embora existam muitas pesquisas sobre violência no Brasil, uma busca realizada nas bases de dados disponíveis apontou dois trabalhos, em Psicologia, diretamente relacionados à promoção da paz, isto é, que mencionam, explicitamente, que o objetivo ou um dos objetivos do trabalho é promover a paz. Maldonado (1997) propõe a construção da paz e a redução da violência por meio da participação da comunidade, do reforço de características de paz existentes em diversas culturas e indivíduos, e de novos meios de resolução de conflitos. A autora sustenta que a prevenção da violência deve começar nos pequenos atos do cotidiano, estendendo-se até interações sociais mais amplas. Já Estrázulas (2003) enfatizou, em sua tese de doutorado, a busca pela paz por intermédio da solidariedade, fundamentando-se especialmente em Jean Piaget.

Há também pesquisas sobre atitudes em relação à paz, à guerra e à violência. Três estudos psicológicos brasileiros sobre atitudes foram localizados nas bases de dados disponíveis. Uma investigação com jovens de cinco estados brasileiros revelou preocupação com segurança pública, educação, emprego e diálogo (Biaggio e Souza, 2001). Em outro estudo, jovens de cinco países (Alemanha, Brasil, Chile, Estados Unidos e Portugal) destacaram que uma paz mundial nunca será atingida em decorrência de conflitos perenes decorrentes de diferenças culturais (Biaggio, Souza e Martini, 2004). Também Souza (2001) entrevistou crianças e adolescentes sobre as questões de paz, guerra e violência, encontrando referência à violência direta principalmente no relato dos participantes mais novos (como guerras, assaltos), e à violência estrutural nos depoimentos dos mais velhos (fome, desemprego). Todavia, mesmo que os trabalhos brasileiros aqui referidos apontem o princípio de um interesse científico para investigar o tema, a paz ainda é um tema pouco explorado em Psicologia no Brasil.

No intuito de discutir as pesquisas desenvolvidas no campo da Psicologia para a Paz, bem como de refletir sobre a busca pela paz (enquanto estratégia contra a violência) por meio da Psicologia, foi oferecida uma disciplina opcional sobre os temas da paz e da violência para alunos do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no segundo semestre letivo de 2002. Seis alunos matricularam-se na disciplina, dos quais cinco a cursaram até o fim. Possivelmente, o pouco interesse demonstrado pela disciplina se relaciona ao também modesto envolvimento da Psicologia com a paz no país.

O pequeno número de alunos interessados em discutir sobre paz e violência em uma disciplina opcional motivou o presente estudo, que investigou o que pensam os graduandos em Psicologia sobre a paz e sobre a relação da paz com esta ciência. Para tanto, foram traçadas algumas expectativas. Espera-se que a definição de paz abranja tópicos mais relacionados à violência estrutural, como observado nas pesquisas anteriores com participantes brasileiros (Biaggio e Souza, 2001; Souza, 2001). Além disso, em virtude de não haver, no país, uma produção científica sistemática em Psicologia para a Paz, espera-se que os participantes relatem poucos exemplos de uma relação entre Psicologia e paz, além de poucas sugestões sobre como a Psicologia pode promovê-la.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram deste estudo 121 estudantes do curso de graduação em Psicologia da UFRGS, sendo 92 mulheres (76%) e 29 homens (24%), com média de idade de 21 anos (DP = 2,87). Os participantes estavam matriculados no 1º semestre (n = 31), 3º semestre (n = 29), 5º semestre (n = 23), 7º semestre (n = 23) e 9º semestre do curso (n = 15), totalizando 40% dos alunos regularmente matriculados1 no primeiro semestre de 20032.

Instrumento e material

O instrumento utilizado foi um questionário elaborado especialmente para esta pesquisa, composto de quatro perguntas sobre a definição de paz e da relação entre a Psicologia e a paz, conforme segue: 1) Em tua opinião, o que é paz?; 2) O que paz tem a ver com Psicologia?; 3) Já soubeste do envolvimento da Psicologia ou de psicólogos com a paz? Em caso afirmativo, descreva a seguir; e 4) O que a Psicologia poderia fazer pela paz? O motivo pelo qual o questionário foi assim formulado residiu na tentativa de auxiliar o respondente a, passo a passo, associar paz com Psicologia: primeiramente, inquirindo sobre sua concepção de paz (questão 1) e sobre como essa concepção se relaciona com a Psicologia (questão 2); posteriormente, solicitando um exemplo concreto do envolvimento da Psicologia/psicólogos com a paz (questão 3); e, ao concluir (e invertendo a ordem “paz e Psicologia”), pedindo sugestões de como a Psicologia pode contribuir para a paz, na direção da Psicologia para a Paz (questão 4). Utilizou-se também um termo de consentimento livre e esclarecido, contendo informações sobre o estudo e requerendo a permissão escrita do participante para o uso do questionário para fins de pesquisa.

 

PROCEDIMENTO

Primeiramente, foi feito o contato com professores do curso de graduação em Psicologia da UFRGS para colaborar na pesquisa, cedendo tempo apropriado para o convite aos alunos e para aplicação dos questionários. A coleta de dados foi realizada coletivamente, em sala de aula, em um período de duas semanas. Os estudantes que consentiram em participar levaram, em média, vinte minutos para responder as questões.

Análise dos dados

A análise dos dados foi efetuada em duas etapas distintas. Na primeira etapa, realizou-se uma leitura das respostas para familiarização com os dados, sendo estes posteriormente submetidos a uma análise de conteúdo, segundo Bardin (1977). Respostas afins foram agrupadas em categorias temáticas, de acordo com as perguntas do questionário. Esta categorização foi realizada por dois avaliadores, sendo consultado um terceiro quando necessário.

Na segunda etapa de análise, as respostas foram novamente examinadas, agora com base na grade de categorias obtidas na primeira etapa. Assim, em cada resposta, computava-se a presença ou a ausência das categorias. As categorias não eram mutuamente exclusivas, ou seja, permitia-se computar a incidência de mais de uma categoria em uma mesma resposta. Assim, foram obtidas freqüências e porcentagens de respostas, por categoria, por questão. Para verificar associações entre categorias e semestres, foram efetuados testes de qui-quadrado.

 

RESULTADOS

As Tabelas 1 e 2 apresentam a porcentagem de respostas nas categorias obtidas a partir das análises realizadas. A seguir, descreve-se cada categoria, conforme a ordem das perguntas do instrumento. Exemplos são fornecidos quando necessário.

As respostas à questão 1 (definição de paz) foram submetidas a dois tipos de categorização. O primeiro tipo diz respeito ao âmbito no qual se descreveu a paz, isto é, ao contexto em que ela foi descrita, conforme segue: paz individual (dimensão intrapessoal), paz social (dimensão interpessoal, inserida em pequenos grupos ou sociedades) e paz mundial (dimensão internacional, envolvendo diferentes nações, ou a espécie humana em geral). Para que uma resposta fosse categorizada como paz mundial, deveria referir-se à relação entre nações ou entre todos os seres humanos. Exemplos representativos do primeiro tipo de categorização das respostas à questão 1 são: “estado de espírito no qual nos sentimos bem, tranqüilos e despreocupados” (paz individual); “harmonia entre pessoas, não-violência, bom convívio apesar das diferenças de opinião” (paz social); e “quando não há nações em guerra” (paz mundial).

O segundo tipo de categorização realizado nas respostas da questão 1 originou, por sua vez, as seguintes categorias: bem-estar (compreendendo aspectos como harmonia, equilíbrio, tranqüilidade e serenidade), ausência/resolução de conflitos e/ou de problemas (guerras, brigas, violência, fome, miséria, insegurança, desemprego), e sentimentos positivos (felicidade, amor, carinho, amizade, respeito, aceitação). A Tabela 1 apresenta a porcentagem da incidência de respostas nas categorias sobre a definição de paz, por semestre.

 

Tabela 1: Porcentagem de respostas nas categorias da definição de paz, por semestre

 

Na questão 2 (relação entre paz e Psicologia), as respostas dos estudantes foram agrupadas em três categorias: busca(a Psicologia busca paz interior ou bem-estar para o indivíduo, a sociedade e/ou o mundo), estudo(a Psicologia estuda, ou pode estudar, a paz) e objeto(a Psicologia tem como objeto de estudo o ser humano, de quem a paz depende).

Quatro categorias surgiram da análise das respostas à questão 3, sobre o envolvimento da Psicologia ou de psicólogos com a paz: não sei(desconhecimento de qualquer envolvimento), profissão(a paz é intrínseca à profissão do psicólogo), universidade(há pesquisas em Psicologia e/ou disciplina sobre a paz), e outros exemplos. Nesta terceira questão, não houve resposta abrangendo mais de uma categoria.

Na última questão (o que a Psicologia poderia fazer pela paz) obtiveram-se sete categorias de respostas.individual (a Psicologia pode auxiliar o indivíduo a estar em paz consigo mesmo e/ou com os outros).ação socia.(participar de eventos sociais que estimulem a paz).aceitação (promover mais tolerância, respeito, compreensão, nas relações interpessoais).conhecimento (produzir conhecimento científico sobre a paz).autoconhecimento (ajudar as pessoas a se conhecerem melhor).política (intervir na política, em questões relacionadas à paz mundial) .outras respostas.

A Tabela 2 apresenta a porcentagem da incidência de respostas, por semestre, nas categorias originadas da análise das questões 2, 3 e 4.

 

Tabela 2: Porcentagem de respostas nas categorias das questões 2, 3 e 4, por semestre

Por não terem atingido um mínimo de 10% do total de respostas ou por não representarem resultados relevantes ao estudo, não constam nas tabelas os seguintes resultados: da questão 1, a categori.outras respostas/em branco (7%); da questão 2, a categori.não sei/em branc.(7%); da questão 3.universidade (6%) .outros exemplos (13%); e, da questão 4.polític.(6%) .outras resposta.(12%).

O teste de qui-quadrado, efetuado entre semestres e categorias, apontou uma associação significativa. Os alunos do 3o semestre foram os que mais indicaram o autoconhecimentocomo modo de a Psicologia contribuir para a paz: χ² (4, N = 121) = 11.25, p = 0.024.

 

DISCUSSÃO

A primeira análise das respostas à questão 1 revelou que a paz foi definida como “paz mundial”por apenas 19% do total de participantes. Este resultado vai ao encontro da impossibilidade de paz entre os seres humanos (ou seja, ausência total e permanente de conflitos) relatada em Biaggio e Souza (2001). Neste sentido, é provável, e compreensível, que o distanciamento do Brasil de conflitos internacionais conduza a um desinteresse pelo tema. Os estudantes brasileiros não se preocupam com a paz em nível internacional (guerras e conflitos civis) na mesma proporção que se preocupam com a paz individual (bem-estar) ou social (violência). Contudo, cabe ponderar que pode não se tratar somente de um distanciamento geográfico ou político. Há também uma ausência de debates acerca das razões e motivações que fundamentam os conflitos em outros países, bem como acerca das suas conseqüências3. O presente estudo não pretende cobrar este tipo de discussão dos currículos dos cursos de Psicologia, já suficientemente repletos com os conteúdos tradicionais. Entretanto, poder-se-ia cobrar tais debates da sociedade, que, em muitas oportunidades, deixa de discutir temas de ampla relevância por tratarem da paz em seu nível mais abrangente &– a harmonia entre povos.

Destaca-se, ainda, uma gradual diminuição das porcentagens do 1o ao 9o semestres, na categori.paz mundia.(de 26% para 7%) e um aumento na categori.paz individua.(de 45% para 67%). Estes resultados podem estar refletindo um crescente envolvimento com o curso e, conseqüentemente, com uma escolha profissional cuja principal expectativa envolve a imagem do psicólogo clínico atendendo pacientes individualmente em seu consultório particular.

Na segunda categorização da questão 1, pôde-se observar que a categoria de respostas com maior porcentagem fo.bem-esta.(76%), resultado que, juntamente com a terceira maior categoria &ndash.sentimentos positivo.(39%) &– , foi semelhante ao que Souza (2001) encontrou em sua investigação com crianças e adolescentes. Esse trabalho apontou que a maioria dos entrevistados definiu paz em termos de emoções positivas, incluindo a idéia de bem-estar individual. Contudo, a referência ao bem-estar ocorreu, no presente estudo, em número bastante superior, destacando-se em categoria separada.

Na questão 2, a maior porcentagem de respostas recaiu sobre a categori.busc.(77%), distribuída de modo regular nos cinco semestres. De acordo com os participantes, a paz tem a ver com a Psicologia na medida em que esta se dedica a buscar a paz interior, o equilíbrio ou o bem-estar individual da pessoa. Este resultado vai ao encontro da grande porcentagem de respostas nas categoria.bem-estar (76%) .paz individual (57%), ambas presentes na definição de paz.

Com relação à questão 3, na qual foi pedido um exemplo do envolvimento da Psicologia ou de psicólogos com a paz, apenas 34% dos participantes forneceram exemplos. Os 15% encontrados na categori.profissão (a paz é intrínseca à profissão de psicólogo) são coerentes com a definição da paz em nível individual e como bem-estar (questão 1), e com a busca da paz como objetivo da Psicologia (questão 2).

São traçadas algumas considerações para dar conta dos 66% de respostas negativas à questão 3. A primeira seria a falta de informação quanto à atuação dos conselhos de Psicologia (regionais e federal) na defesa da paz e no combate à violência. O que pode estar subjacente a isso é uma ausência de ligação entre os temas de paz envolvidos na atuação referida e o conceito de paz do participante, conforme visto na análise da questão 1. Sabe-se do envolvimento dos conselhos na defesa dos direitos humanos, na luta contra a exploração infantil, apenas para citar dois exemplos. Contudo, é possível que o envolvimento da Psicologia, ou de psicólogos, com a paz no Brasil necessite de maior visibilidade, para além dos esforços que já vêm sendo demonstrados em congressos nacionais e locais de Psicologia, em dissertações e teses (Estrázulas, 2003; Souza, 2001) e em publicações (Biaggio e Souza, 2001; Maldonado, 1997).

Ainda com relação à questão 3, salienta-se que os participantes do 5o semestre foram os que apresentaram a menor porcentagem de respostas na categori.não se.(48%) e a maior porcentagem na categori.profissã.(26%). De acordo com o currículo do curso de Psicologia da UFRGS, o 5o semestre antecede a entrada dos graduandos nas atividades de estágio. Esta pode ser uma possível explicação para os participantes do 5o semestre terem se referido à atividade de psicólogo para exemplificar o modo como a Psicologia se envolve com a paz.

Contrastando com os dois terços de respostas negativas à questão 3, a última questão gerou seis tipos de sugestões sobre como a Psicologia pode contribuir para a paz. Duas delas sugerem que a paz seja alcançada em níve.individua.por meio d.autoconhecimento; duas indica.aceitaçã..ação socia.como meios de a Psicologia se envolver com o tema; e outras duas apontam para o papel da construção de conhecimento científico e da intervenção no meio político para se buscar a paz.

Não foi possível formular uma hipótese explicativa para a associação encontrada entre a categori.autoconheciment.e os alunos do 3º semestre. Todavia, é interessante comparar este resultado com o modo como os grupos de alunos dos semestres posteriores (5o, 7o e 9o semestres) concentraram respostas na categori.conhecimento, sugerindo que a Psicologia tem a colaborar com a paz mediante a produção de conhecimento científico. Assim, observa-se uma mudança de foco da preocupação com .autoconhecimento, no 3o semestre, para a produção d.conhecimento, nos semestres seguintes, o que pode indicar um maior interesse no conhecimento psicológico direcionado à profissão à medida que o estudante avança no curso.

De modo geral, os resultados sugerem que a compreensão dos estudantes sobre o papel da Psicologia na promoção da paz se modifica à medida que avançam no curso ao longo dos semestres. Sugerem também que esta compreensão está associada especialmente ao papel do psicólogo clínico ao promover o bem-estar individual das pessoas &– ou seja, sua paz interior, colaborando indiretamente para a paz nas relações interpessoais (paz social).

A expectativa de que a definição de paz abordasse tópicos mais relacionados à violência estrutural, presente no contexto brasileiro, encontrou respaldo parcial nas respostas dos participantes. As categoria.ausência/resolução de conflitos/problema..paz socia.foram as segundas maiores categorias das análises realizadas nas respostas à questão 1. Esperava-se que conteúdos mais relacionados à violência direta (como assaltos, violência doméstica) e à violência estrutural (miséria, preconceito), bastante evidentes no contexto brasileiro, fossem mais citados, a exemplo do que se observou nos três estudos sobre atitudes encontrados (Biaggio, Souza e Martini, 2004; Biaggio e Souza, 2001; Souza, 2001).

Como esperado, a maioria dos participantes não se referiu a exemplos do envolvimento da Psicologia ou de psicólogos com a paz (66%). Por outro lado, e contrariamente à expectativa, as respostas à questão 4 suscitaram seis tipos de sugestão de como a Psicologia pode contribuir para a paz: 1) auxiliando no encontro da paz interior ou bem-estar, 2) promovendo, indiretamente, a aceitação, na forma de respeito, compreensão e tolerância, nas relações interpessoais; 3) orientando para o autoconhecimento; 4) produzindo conhecimento científico que contribua para a paz; 5) participando politicamente de questões relativas à paz mundial; e 6) participando de eventos e/ou organizações que estimulem a busca pela paz.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa relatada investigou o que estudantes de um curso de Psicologia pensam sobre a relação entre Psicologia e paz, dado que existe uma linha de pesquisa envolvendo os dois temas &– a Psicologia para a Paz (Souza, 2003). A principal justificativa para a realização do estudo foi o pequeno número de inscritos em uma disciplina opcional sobre o tema ministrada no segundo semestre de 2002.

Ainda que exploratório, o presente estudo apresenta duas limitações. A primeira foi o número de participantes que cursavam o 9o semestre do curso, justificada pela dificuldade em contatá-los. Em geral, estes alunos, por estarem no final do curso, cumprem exclusivamente as atividades de estágio e, portanto, comparecem à universidade apenas para supervisões em horários especiais. Outra limitação do estudo é o fato de não ter sido realizada uma comparação com estudantes de Psicologia de uma outra universidade. Como o estudo foi motivado pela pequena participação dos alunos em uma disciplina opcional, oferecida no Instituto de Psicologia da UFRGS, pensou-se, em um primeiro momento, em focalizar as concepções destes alunos sobre paz e sua relação com Psicologia. Em outra oportunidade, poder-se-ia comparar não apenas universidades diferentes, mas também envolver alunos de pós-graduação.

Uma possível pergunta de pesquisa gerada pelo presente trabalho seria o que pensam estudantes de Psicologia sobre a questão da violência e sobre como combatê-la, tanto no papel de cidadãos como no de futuros psicólogos. Igualmente interessante seria investigar, nos currículos do curso, quais disciplinas contemplam o tema da violência.

Como referido, não convém cobrar dos currículos de Psicologia a presença de uma disciplina específica sobre o tema da paz, já que estes se encontram repletos com os conteúdos que lhes são próprios. Contudo, a paz poderia ser abordada a partir da violência. Uma disciplina específica sobre o tema da violência seria congruente à realidade social brasileira, permitindo oportunamente uma discussão mais aprofundada sobre: o posicionamento das teorias psicológicas com relação à violência; as interfaces com outras áreas de pesquisa (como educação, sociologia e antropologia); os métodos de pesquisa para investigar o tema; as técnicas de resolução de conflitos e de promoção de atitudes pacíficas (e não apenas pacifistas); a tomada de conhecimento de pesquisas, encontros científicos e publicações sobre o tema; e a interação entre a Psicologia e os órgãos governamentais que lidam mais diretamente com a violência na sociedade (por exemplo, conselhos tutelares, polícias civil e militar, Delegacias do Idoso e da Mulher). Possivelmente, a Psicologia para a Paz encontraria espaço para discussão e público interessado em conhecê-la e desenvolvê-la.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Luciana Karine de Souza
E-mail: luciana.karine@ufrgs.br

Recebido em: 19/02/2006
Revisado em: 21/10/2006
Aprovado em: 06/11/2006

 

 

1Fonte: Comissão de Carreira do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2O curso de Psicologia da UFRGS é distribuído em dez semestres, com ingresso único anual, o que justifica as turmas participantes serem todas provenientes de semestres ímpares.
3Sabe-se, por exemplo, que itens de consumo, como calçados esportivos, são manufaturados em países cujo governo priva sua população de condições básicas de saúde, educação, moradia e, principalmente, de cidadania, permitindo a ocorrência de sérios conflitos civis internos. Outro tema frutífero para debates é o fato de o Brasil ser um dos maiores exportadores de minas terrestres, detonadas acidentalmente todos os dias por crianças da África e do Oriente Médio (Guimarães, 2002).

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