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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.58 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

ARTIGO

 

A fofoca, o estigma e o silêncio: crianças e adolescentes em situação de exploração sexual

 

The gossip, the stigma and the silence: children and teenagers being sexually exploited

 

 

Marília Novais da Mata Machado

Faculdade Novos Horizontes, Belo Horizonte/MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pesquisas anteriores detectaram a exploração sexual infanto-juvenil como um problema grave em algumas cidades do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. Este artigo retoma resultados dessas pesquisas, especialmente a tentativa imaginária, por parte das crianças e adolescentes entrevistados, de encobrir o fato de serem explorados. Indagou-se por que, tendo vivido publicamente situações de exploração sexual comercial, as crianças preferem silenciar sobre a situação. No entanto, elas a conhecem bem, como se viu nas análises das entrevistas: identificam o perfil dos exploradores, as circunstâncias de entrada em situação de exploração e o programa sexual. Mas evitam narrar esses fatos na primeira pessoa. Tentou-se entender como foi criado o silêncio e a que ele serve. Levantou-se a hipótese de que circulação contínua de fofocas nas cidades engendra um processo de estigmatização do qual as crianças tentam escapar. Por isso silenciam. De outro lado, o silêncio protege imaginariamente as cidades, seus moradores, as famílias, os clientes, os agenciadores, servindo aos interesses de manutenção de um círculo vicioso no qual crianças e adolescentes continuam entrando em situação de exploração sexual (e econômica). Buscou-se, finalmente, antever como escapar desse círculo.

Palavras-chave: Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes; Médio Vale do Jequitinhonha; Fofoca; Estigmatização.


ABSTRACT

A research program carried out in the Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, revealed that the sexual exploitation of children was a serious problem in the region. This article revisits some or those data, specially the imaginary essay to hide the exploitation, coming from the children interviewed. It is asked why, having openly lived the situation, the children choose to silence about it. But they know well about sexual exploitation, as demonstrated by interviews’ analyses. They identify the exploiters’ profiles, the overall situation in which the exploitation occurs and the sexual program, but avoid to report these facts as occurring to themselves. The article tries to understand how the silence was created and its purpose. By hypothesis, the circulation of gossips in the small towns arouses a stigmatization process from which the children try to escape. That is why they silence. In the other side, always under an imaginary cover, the silence protects the towns, its inhabitants and families, the clients and the enticers, assuring the maintenance of a vicious circle in which the children continue falling into situations of sexual (and economic) exploitation. Finally, the article searches how to slip from this circle.

Keywords: Children commercial sexual exploitation; Medium Jequitinhonha Valley; Gossips; Stigmatization.


 

 

INTRODUÇÃO

Empenhado no enfrentamento de violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes, o Programa Pólos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou pesquisas no Médio Vale do Jequitinhonha. Um primeiro diagnóstico (UFMG, 2004) detectou, entre os principais problemas, a incidência de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes em municípios da região.

Um segundo projeto, com financiamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (UFMG, 2005; 2006) propôs geração de renda como alternativa de prevenção à exploração sexual e realizou a coleta de uma série de dados nas entidades do poder público e da sociedade civil que se ocupam com a questão. Crianças, adolescentes e jovens informantes apontados pelas entidades1 como vítimas da exploração infanto-juvenil foram também entrevistados2.

Quatro modalidades de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes foram adotadas universalmente a partir do I Congresso Mundial dedicado a essa questão (Faleiros, 2004, p. 77-81), realizado em Estocolmo em 1996, a saber: (a) prostituição: atividade na qual atos sexuais com crianças e adolescentes são negociados em troca de pagamento; (b) turismo sexual: comércio sexual envolvendo turistas (nacionais e estrangeiros) e crianças e adolescentes; (c) pornografia: produção, exibição, distribuição, venda, compra, posse e utilização de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes; (d) tráfico para fins sexuais: movimento clandestino e ilícito de crianças e adolescentes através de fronteiras para forçá-las a entrar em situações sexual e economicamente opressoras e exploradoras, para lucro de aliciadores, traficantes e crime organizado. De tais modalidades, apenas a primeira (prostituição) ficou evidenciada nos municípios estudados.

O presente artigo retoma as entrevistas com as crianças e adolescentes, procurando entender por que os jovens entrevistados evitaram falar sobre a questão. Seu perfil é o de crianças pobres ou miseráveis; dois terços já haviam abandonado os estudos, um terço das meninas estavam grávidas ou já eram mães. As configurações de suas famílias eram bastante diversificas, havendo desde domicílio com apenas mãe e filho a famílias de até doze pessoas. Avós, tios, padrastos, madrastas, cunhadas, irmãs foram personagens presentes e atuantes nas falas.

 

A constatação do silêncio

O silêncio foi um fato observado no difícil processo de obtenção de informações. Depois de uma viagem de 1.200 km, contando ida e volta, da sede da pesquisa em Belo Horizonte ao Vale, cada equipe voltou frustrada do trabalho de campo, com um número julgado ínfimo de entrevistas e com a sensação de que nada fora dito. Cinco viagens renderam 34 entrevistas, enquanto se esperava conseguir um número muito maior. Houve apenas dois respondentes do sexo masculino, razão pela qual, muitas vezes, os jovens serão tratados aqui, a seguir, no feminino.

Apenas uma informante admitiu ter recebido dinheiro por programas sexuais com adultos, afirmando, contudo, que já não os fazia mais. Entretanto, como andam em grupos &– as "galeras", como elas dizem &– foi possível verificar, com freqüência, a partir da fala de cada uma, que, com exceção de si própria, as outras já haviam sofrido exploração sexual infanto-juvenil. Umas denunciaram as outras com a espontaneidade infantil que ainda não chegaram a perder.

Para tratar as entrevistas, foram utilizados procedimentos de análise do discurso que permitiram desvelar o posicionamento dos entrevistados na exploração por meio da comparação interdiscurso e da atenção dada a repetições, pontos obscuros e contradições. Para a questão aqui tratada, foi de especial importância a análise do uso da terceira pessoa do singular no lugar da primeira, criando um discurso indireto para se falar de si próprio.

Ficou claro que os entrevistados conheciam bem a vida das crianças prostituídas. Sabiam que um programa, na região, está, em média, entre R$ 10,00 e R$ 20,00. Contrariando as informações obtidas por meio das entidades, relataram que o cliente é "qualquer um", "todo mundo", os "véios", os de "idade média", casados e solteiros, "até menino", policiais, algumas vezes, e não só o caminhoneiro, como os adultos haviam informado à equipe de pesquisa.

As sete cidades estudadas estão próximas da BR 116, quatro delas sendo cortadas por esta rodovia. A carona em caminhões é meio de transporte comum na região, permitindo deslocamentos de um município a outro. Essa é a "carona normal", que leva ao banco, à visita de parente ou ao médico. Mas a estrada é também o lugar falado da prostituição aberta, embora camuflada como "carona normal". As meninas passam de um caminhão ao outro e voltam ao ponto de partida, indo procurar clientes em outras cidades e fazendo programa, às vezes, com os próprios caminhoneiros.

Diferente também do que reportaram as entidades, não são as mães despreparadas nem a "desestrutura familiar" as principais razões de entrada em situação de exploração, mas uma enorme carência econômica, aliada à falta de alternativas e perspectivas de trabalho. Quando muito, uma adolescente consegue se empregar no serviço doméstico, trabalho infantil ilegal, também explorado, sujeito a abusos por parte do patrão e rendendo, por mês, entre R$ 40,00 e R$ 50,00, enquanto uma noite de programa pode redundar em R$ 70,00. São as próprias meninas que fazem as comparações.

Na região, para os entrevistados, a violência permeia todas as relações sociais. Circula muita droga, há gangues rivais entre e dentro das cidades, assassinatos, estupros, prisões arbitrárias; a violência já foi vivida diretamente por muitos, dentro de casa, na rua, na escola, nos namoros, vinda da polícia. Nada disso é silenciado, as narrativas sucedem-se, minuciosas, feitas na primeira pessoa. Exceto a da exploração sexual. Essa é dita apenas de forma muito geral ou na terceira pessoa, como ilustram os fragmentos de discurso abaixo

"Os mais funciona que é ni pista, sabe, nesses posto, que dá uma parada" (Entrevista 17 &– 22 anos).

"É praticamente assim... É... Eu tenho colega, né, que ela chega e fala: ‘Cê quer me dar quanto para eu ficar com você?’ Aí ele fala: ‘Eu te ofereço tal isso’. Ele vai e oferece, entendeu? Dinheiro... / Primeiro ela fica com a pessoa, entendeu? Depois... Depois ela vai e chega, e tal, e isso, e isso. Dá quantia de dinheiro. / Eles começa a jogar sotaque, falar. Entendeu? / Falar sobre sexo, saber da pessoa, entendeu? / Eles começa a falar, assim, muito da pessoa, entendeu? ‘Quantos anos você tem e tudo mais’, ‘Qual o seu nome, sua idade?’ / É, pergunta assim, entendeu? Se já transa. Aí, você fala. / Aí, dependendo do que a pessoa fala, aí começa. / Sempre... Ah... Eu vendo meu corpo, e tudo mais, por tanto, tanto. E tal, isso. Ele fala: ‘Você quer...’. Citano exemplo: ‘Você quer... cinqüenta reais pra ficar comigo?’" (Entrevista 23 &– 14 anos).

"Se você vier aqui um dia e ficar na praça das... dez hora que começa. Ontem nós ficou das dez às duas da noite na praça" (Entrevista 1 &– 16 anos).

"Igual mesmo esses tempos, uma amiga minha... ela, ela morava lá perto de casa, morou lá perto de casa um bom tempo, daí foi pra outra rua, a rua da, da, da, deste tipo né. / É, lá em cima. Desse tipo, das mulher desse tipo. / Lá em cima perto da quadra. Tem um mucado de mulher desse jeito" (Entrevista 27 &– 13 anos).

"Vindo prá cá, onde... onde entrano ali pra cima, virano aqui, descendo essa rua aqui direto, tem uma casa [de prostituição] lá sim. Mas é assim uma pensão. E lá só entram com identidade. / As minina, todo mundo eu acho que entra com identidade. Entrega as identidade, acho que a dona vai, olha. / Aí, se for de menor não entra. / Tem umas mininas que trocam identidades, assim, que eu já vi muito tamém. Trocam identidades pra entrá nesses lugá assim. Aí fica assim, eles, eles troca identidade, aí quando a polícia vem num vai prendê porque eles sabe que vai vê documento já de maior. Aí fica assim. Eles fica na enrola, sabe? Num sabe quem é de menor, num sabe quem é de maior, num procura sabê onde é a casa" (Entrevista 21 &– 17 anos).

"Eu tenho uma colega que ela vai lá em Ponto dos Volantes fazer striptease num bar. Ela veste baby-doll, entendeu? Aquelas roupa que puxa, assim... Ela tira a roupa, ela fica nua, todinha" (Entrevista 23 &– 14 anos).

A exploração sexual comercial na região é, em suma, um segredo de polichinelo, aquele que todo mundo conhece e ninguém reconhece. Aliás, esse foi o título de outro trabalho do Programa Pólos de Cidadania (Gustin et al.[/sertitle], 2005), apresentando o projeto do Vale do Jequitinhonha em congresso de extensão universitária. Seja lançando o problema para fora do território, culpando os caminhoneiros e a BR 116, seja jogando-o para o interior das famílias, culpando as mães, todos lavam as mãos. Como se nada se passasse.

 

A criação do silêncio

Pesquisadores da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil atribuem a dificuldade de se abordar a questão e a reserva dos jovens ao fato de a atividade ser ilegal e estar geralmente ligada a uma rede de crime (Libório e Sousa, 2004). É claro que esses fatores não podem ser minimizados. Mas, nas entrevistas, fica clara também a atuação de um processo de estigmatização das crianças e adolescentes suspeitos de serem sexualmente explorados. O estigma é criado pela fofoca contínua, intensa, excludente.

Elias e Scotson (2000) já mostraram a força dos mexericos estruturando relações sociais na pequena comunidade que denominaram Winston Parva. Processo semelhante pode ser apontado no Vale. O diz-que-diz contínuo vai criando significações imaginárias sociais (Castoriadis, 1982) perversas, que vão sendo introjetadas pelas crianças e pelos adultos, vão criando condutas e fortalecendo idéias, algumas inteiramente errôneas, como é o caso da representação deturpada da lei apresentada em uma das entrevistas, na qual a vítima é transformada em culpada:

"Se eles dois separar, ela vai presa, e se eles casar antes, ela não tem idade dela casar... e ela vai em dezembro... / isso... e se eles separar... se eles separar antes de casar ele vai preso e se ela ter filho antes de casar ela vai presa" (Entrevista 28 &– 15 anos).

Com os fuxicos locais, uma viagem de carona que poderia ser apenas uma boa farra ou aventura infanto-juvenil &– e, afinal, aqui se fala de crianças que ainda estão em processo de formação, aprendendo a se virar afetivamente no mundo &– toma feições realmente sérias. Veja-se o que algumas entrevistadas relatam:

"Os outro olha assim prá mim e fala assim: ‘Ah, aquela minina ali num tem, num tem cabeça não, só faz besteira’. / Eles, aí, eles [os homens em geral] fala: ‘Aí, eu comi aquela menina’" (Entrevista 1 &– 16 anos).

"Não, eu gosto [da escola]. Mas na hora que chega lá, eu fico com os minino mexendo com a gente, colocano apilido, dano tirada… / Ah, tem uns que fica quereno pegar na gente. No seio, na bunda…!" (Entrevista 2 &– 15 anos).

"Minha mãe, graças a Deus, eles nunca comentaram, também eles nem sabe [que ela foi prostituta], porque o pessoal, esses vizinho meu é daqueles que gosta da fofoca" (Entrevista 5 &– 20 anos).

"Ah, hum, talvez como todas as cidades, existem pessoas que gostam muito de falá, até sobre o que não sabe, existem pessoas que gostam muito de julgá, existem pessoas que gostam muito de te criticá. / Não me importa o que eles fala prá todo mundo aí, ‘J. é isso, J. é aquilo’" (Entrevista 12 &– 16 anos).

"É tanto nome que tá até manchado por aí, aí eu tô limpando o nome, ela mancha de novo... / Até boato que tá falaram que tô fumando maconha e... e outras coisas mais (risos) tão comentando. / Eles pensam assim que eu sô de gangue, fumo maconha, mas nada disso! E nem puta num sô tamém não!" (Entrevista 13 &– 16 anos).

"[As pessoas] fica só conversando da vida dos outros. / Eles trata nós como cachorro" (Entrevista 19 &– 19 anos).

"Eles [os meninos da cidade] ficam inventando que eu fiquei com eles e tal, sem eu ter ficado. / Aqui [nessa cidade], nada fica escondido! Se você faz uma coisa hoje, a cidade fica sabendo!" (Entrevista 25 &– 15 anos).

"Já tem umas que num é [virgem], e já tem as que é e o povo fala que não é. As que não é, o povo já pensa que é, sabe" (Entrevista 26 &– 14 anos).

"Todo mundo aqui nessa cidade [fala], o nome dela é falado, o dela e o de J. é falado. O de minha sobrinha também, L. é falado. /  Não, L. não é falado mais não... é casada. / Oh, é assim. Depois que L. fugiu com o rapaz lá, o nome dela ficou falado. Tudo mundo [dessa cidade] parece ficou sabendo disso. / A J. ficou falada porque ela ficou com I. acho ela tinha 14 anos" (Entrevista 28 &– 15 anos).

"Eu hein! [Se paquero,] meu nome fica falado aí! / Às vezes cê nem faz as coisas e eles fica falano. / Minha mãe sempre fala que esse povo não cala a boca.  Mas não tem jeito não. Eles tem a língua muito grande!" (Entrevista 30 &– 15 anos).

"Porque aqui é assim, quando aqui, quando sabe alguma coisa, eles falam mesmo, comentam, falam e num tá nem aí" (Entrevista 34 &– 16 anos).

Os fuxicos são ainda mais graves quando as crianças engravidam. Assustadas, elas se vêem submersas neles. V., grávida do namorado, espanta-se com o que se passa em torno dela. A cada vez que vê o namorado na rua, ele a aponta dizendo que o filho não é dele. Ao lado disso, nas palavras dela: "Eu acho ruim aqui é que os outro incomoda muito a vida da gente. Os outro fala demais! E o que dá de falá a verdade eles não, eles aumenta! Eles dá prá espalhá mentira... / Aqui é bom. O que mata é os comentário!" (Entrevista 4 &– 16 anos).

Assim, a fofoca vai criando o estigma, vai promovendo um controle social perverso, desconhecendo possibilidades de remissão. Vítimas e agressores imergem nas novas significações imaginárias sociais que os cercam e cegam. As adolescentes mais novas ainda são capazes de contar de forma amena e engraçada como perderam a virgindade, por exemplo. As mais velhas fecham-se em copas, tomadas pelo temor da punição ou da exclusão, acreditando-se legalmente culpadas.

Resulta daí a abertura de espaço para duas lógicas que passam a imperar: a do "prato feito", como se expressou um antigo caminhoneiro ao falar por que fez programas com adolescentes que, segundo ele, se ofereceram aberta e despudoradamente, e a do silêncio, resultado da introjeção de significações imaginárias sociais perversas relativas à lei e a si próprias, como, por exemplo, uma auto-imagem extremamente negativa:

"Eu sô uma pessoa muito sofredora desde pequena eu batalhei prá ajudar minha mãe, eu num sô uma pessoa respeitada por meu pai, só por minha mãe, minha mãe batalhou prá mim" (Entrevista 10 &– 17 anos).

"Onde eu mais morei foi na rua, na malandragem. / Sô trambiqueira às vezes. / Sou que nem uma cobra... / Apesar de sê atentada, bagunceira..." (Entrevista 13 &– 16 anos).

"Eu acho que um pouquinho só, que ... que eu sô feia" (Entrevista 24 &– 14 anos).

"Porque sou muito nojenta. Eu mesma me acho nojenta. / Porque tenho muitas bestage tamém. Cuido da vida dos outros, sabe? / Até minha mãe fala que eu sou nojenta demais" (Entrevista 30 &– 15 anos).

Nota-se, igualmente, uma ausência de sonhos e projetos para o futuro, além de cegueira a alternativas possíveis.

"Agora eu num faço nada... / Eu num faço nada... / Eu num quero nada... / Eu num quero nada não... / O que Deus quisé prá mim, o que ele mandá prá mim, eu quero. Eu num penso em nada. O que ele mandá prá mim, eu quero" (Entrevista 18 &– 16 anos).

"Tenho vontade de ir embora" (Entrevista 5 &– 20 anos).

O silêncio é, pois, uma tentativa imaginária e errônea de escapar do estigma, da situação de bode expiatório ou da exclusão do mundo das pessoas de bem.

 

A que serve o silêncio

O silêncio a que são (quase) reduzidas as crianças e adolescentes que se aproximam da situação de exploração sexual comercial ou estão nela traz ao território a paz social. Garante que ele é puro. Valida as hipóteses de que os responsáveis pela exploração sexual comercial &– se é que ela existe &– são os caminhoneiros esporádicos e as mães incapazes.

Ao mesmo tempo, o silêncio das vítimas facilita a entrada protegida dos velhos e dos não tão velhos, da polícia, dos casados, de todo mundo enfim, na exploração. Os clientes exploradores, os aliciadores e suas famílias ficam protegidos, assim como a escola, o poder público, as pessoas e famílias "honradas". Os costumes tradicionais (embora perversos e violentos) podem ser mantidos porque aquelas crianças silenciam.

Em uma palavra, cria-se a não implicação de todos do território. Torna-se possível negar imaginariamente a existência de um problema. E, ao lado disso, é mantida a exploração sexual e econômica e a reprodução da entrada das crianças e adolescentes nesse mercado, em que elas conseguem, de alguma forma, bem ou mal, sua inclusão social também perversa.

Exploração, fofoca, estigma, silêncio, eis aí um círculo vicioso a ser rompido.

No entanto, é conhecido o "efeito território" (Halter et al.[/sertitle], 2004) que leva a postular que nada que afete um lugar pode ser analisado de maneira isolada: abandono dos estudos, violências físicas e simbólicas, exploração sexual comercial fazem parte do conjunto onde ocorrem. O tratamento desses problemas pede uma abordagem plural, com métodos diversos. Não há como se concentrar apenas nas crianças e adolescentes vítimas &– e está aí outra falácia da imposição do silêncio que, apesar de tudo, escapa ao controle, pode ser ouvido por pesquisadores, jornalistas e visitantes. Há que se tratar também das inter-relações múltiplas entre as crianças exploradas e outras crianças, jovens, adultos, instituições locais.

 

CONCLUSÃO

Rompendo o círculo

Pode-se dizer, usando uma expressão de Enriquez (1992), que essas cidades do Vale, no que diz respeito à exploração sexual comercial, estão presas na teia de um imaginário enganoso que lhes dificulta fazer operar seu imaginário radical e projetar saídas criativas para seus problemas. Basta lembrar que uma delas se apega a um mito de origem segundo o qual sua fundação se deveu a um prostíbulo e à disputa do padre com a dona do bordel. O mesmo mito &– jorgeamadiano &– pode-se aplicar a muitas outras cidades pelo mundo afora. Mas foi lá que ele vicejou.

Quando se trata de analisar a questão da exploração infanto-juvenil na região, há que se levar em conta todas as determinações sociais, econômicas, históricas e geográficas que sustentam a tão comum e forte violência local, muitos costumes arcaicos, uma sexualidade à flor da pele e centrada no machismo e tantos outros senões. Essas determinações corroboram a operação do imaginário enganoso, com suas significações imaginárias sociais perversas.

O imaginário radical, capaz de romper com mitos de origem, com as representações estanques e com os costumes arraigados, pede projetos nos quais todos estão implicados: das crianças aos adultos, da escola ao prostíbulo, da polícia às gangues, do Estado à sociedade civil e &– por que não? &– dos caminhoneiros às mães. Esses projetos podem &– e devem &– resgatar o que o Vale tem de melhor, sua musicalidade, a rica cultura popular, o artesanato, a culinária, a hospitalidade.

Se cada indivíduo e cada instituição reconhecer sua própria implicação e responsabilidade na exploração sexual comercial &– pois cada um corrobora com ela por meio da sustentação do diz-que-diz, do fortalecimento das significações imaginárias sociais perversas, da vista grossa à participação de seus habitantes, polícia local, escolas &– e for capaz de vê-la como algo problemático que se tornou parte do território, poderá participar da formulação de significações imaginárias sociais criativas, de projetos e políticas que devolverão os sonhos e a auto-imagem positiva às suas crianças.

Mudarão sua história mítica e futura. Poderão sair do círculo vicioso &– fofoca, estigma, exploração &– e entrar em um círculo virtuoso: reconhecimento do problema como intrínseco ao território, criação de instâncias de discussão da exploração sexual infanto-juvenil (ao invés da denegação), introdução de um olhar novo sobre a questão, criação de alternativas de vida e de perspectivas de trabalho para e, sobretudo, com as crianças e adolescentes explorados, que se tornarão sujeitos de seus destinos e formadores de outros sujeitos autônomos.

 

REFERÊNCIAS

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______. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Projeto Criança e Adolescente em Situação de Risco: Geração de renda como alternativa de prevenção à exploração sexual &– Médio Vale do Jequitinhonha. "Projeto 18 de maio". Relatório Parcial II[/sertitle]. Belo Horizonte, 2006.

 

Endereço para correspondência
Marília Novais da Mata Machado
E-mail: marilianmm@terra.com.br

Recebido em: 25/07/2006
Revisado em: 14/11/2006
Aprovado em: 09/12/2006

 

 

1A equipe Pólos sempre teve consciência de que, para entrevistar crianças e adolescentes, deveria obter o consentimento escrito de seus pais. Ora, no que diz respeito aos jovens explorados, de antemão conhecia-se o fracasso dos familiares na proteção dos direitos da infância; a exposição da exploração dos filhos aos pais seria outro problema, pois, ao menos imaginariamente, as crianças e adolescentes querem seus pais ou responsáveis ignorando o fato de serem explorados. A opção foi recorrer às entidades de apoio, que não apenas indicaram os entrevistados, como se encarregaram efetivamente de sua proteção enquanto sujeitos e informantes. O anonimato dos entrevistados fica garantido ao se excluir seus nomes e municípios de origem dos relatórios e outros produtos gerados. Ao lado desses cuidados, o programa Pólos continua atuando na região no sentido de gerar alternativas de renda para os sujeitos estudados, por meio da criação de oficinas de trabalho, apoio a cooperativas e associações. Eles recebem, assim, algum retorno pelas informações prestadas. Dessa forma, busca-se garantir a ética do trabalho.
2Um resumo dos resultados obtidos por meio dessas entrevistas pode ser encontrado em Machado et al.[/sertitle] (2006), artigo em que são detalhados o método de coleta dos dados (feita com o uso de formulário de questões fechadas e roteiro semi-estruturado) e o de tratamento (análises de conteúdo e do discurso).

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