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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.58 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2006

 

ARTIGO

 

A reinstalação do si-mesmo: uma compreensão fenomenológica da adolescência à luz da teoria do amadurecimento de Winnicott

 

The reinstallation of oneself: a phenomenological trajectory of adolescence from a Winnicottian reading

 

 

Ana Maria Frota

Universidade Federal do Ceará (UFC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de uma leitura de Winnicott, este artigo tem como objetivo pensar a adolescência como fenômeno que se mostra no desenvolvimento humano. Defende a tese de que a adolescência pode ser compreendida como um momento existencial que possibilite a reinstalação do si-mesmo. Winnicott fala de instalação do si-mesmo como o nascimento psíquico da criança, como sua inauguração no mundo. O artigo propõe a compreensão da adolescência sadia possibilitando a reinstalação do si-mesmo. Aqui, os desalojamentos são notáveis, facilitando a reinstalação do si-mesmo, que é possibilitada, e não determinada, pela adolescência.

Palavras-chave: Winnicott; Adolescência; Desenvolvimento humano; Teoria do amadurecimento.


ABSTRACT

This paper aims to reflect on adolescence as a phenomenon that appears in human development. It discusses adolescence from a phenomenological approach, from a Winnicottian reading. The paper defends the thesis that adolescence may be understood as an existential period which makes possible the reinstallation of oneself. Winnicott considers the process of self awareness as the child’s psych birth, that is, as his insertion in the world. This paper proposes the understanding of a healthy adolescence as a crucial period which allows for a new self awareness. In this period the displacements are remarkable; this fact facilitates a new self awareness which is made possible but is not determined by adolescence self.

Keywords: Globalization, childhood, youth, political, economic and social changes.


 

 

Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?

Um ser metafísico?
Uma fábula sem
Signo que a desmonte?

Como pode o homem
Sentir-se a si mesmo
Quando o mundo some?

(Especulações em torno da palavra homem, Carlos Drummond de Andrade)

 

INTRODUÇÃO

Para Winnicott, a compreensão do desenvolvimento humano somente é possível quando se leva em conta o processo de amadurecimento psíquico. Para o autor, o nascimento não concede à criança o estatuto de ser humano, somente lhe possibilita iniciar sua construção, que é um processo longo e nunca completamente terminado. A instalação do si-mesmo inaugura um ser psiquicamente vivo. Esta conquista advém de uma série de conquistas menores, e se mantém pela vida inteira. Com a continuidade do amadurecimento, a adolescência coloca-se como uma possibilidade de alargamento do si-mesmo e de diferenciação da família. Este momento pode ser compreendido como uma reinstalação do si-mesmo, mais um passo importante e determinante em direção à independência e crescimento pessoal.

Este artigo se propõe a discutir o amadurecimento psíquico tal como compreendido e proposto por Winnicott, enfatizando a reinstalação do si-mesmo, aqui compreendida como uma conquista imprescindível para a saúde psíquica. Como contribuição pessoal à teoria winnicottiana, proponho o advento da adolescência como um momento que possibilita a reinstalação do si-mesmo, contando, para tal, com as situações desalojadoras.

 

A TEORIA DO AMADURECIMENTO, CONFORME WINNICOTT

O processo de amadurecimento: ponto nuclear do pensamento winnicottiano

Winnicott alerta-nos para a necessidade de compreensão do processo de amadurecimento humano para conhecer, prevenir e curar as patologias psíquicas. Afirma: "vocês precisam ter uma idéia do esquema geral do desenvolvimento emocional do ser humano" (1996, p. 11), uma vez que "a saúde da psique deve ser avaliada em termos de crescimento emocional, consistindo numa questão de maturidade" (1990, p. 30). O autor não deixa dúvidas ao afirmar que todos os fenômenos humanos, sejam eles sadios ou não, sempre mantêm relação com o crescimento e amadurecimento. Deste modo, não se pode pensar no estado emocional de uma pessoa a não ser em relação ao seu meio ambiente e ao seu crescimento, desde a gestação.

Em sua teoria, Winnicott (1990) afirma que o sinal positivo de saúde é um moto contínuo de crescimento, uma mudança emocional na direção do desenvolvimento, seja no sentido da integração, orientado da dependência para a independência, em termos de instintos, ou ainda, em matéria de riqueza de personalidade. Além disso, a constância no ritmo do desenvolvimento também é um sinal de saúde emocional.

O crescimento emocional ocorre em fases, por um processo de idas e vindas, incessante e até a morte. Algo como se fosse possível comparar o desenvolvimento emocional a uma curva espiral, que vai e vem, sempre em movimento. Sendo assim, qualquer estágio do desenvolvimento é alcançado e perdido inúmeras vezes. Por isso, em qualquer momento da vida, o indivíduo pode reviver períodos vividos, ou lançar-se para o futuro. 

Os estágios de desenvolvimento vão sendo vividos e contribuindo para a construção da pessoa. Algumas conquistas só podem ser realizadas depois de outras, dadas como condição de possibilidade. Porém, nenhuma tarefa conquistada oferece segurança ou título de garantia de boa saúde psíquica. Em qualquer momento, o indivíduo pode retornar a fases mais precoces, levado por tensão, sobrecarga emocional, ou deslocar-se para frente. Além disso, as tarefas jamais se completam. Assim, não existe o que se poderia chamar de regressão no desenvolvimento humano, uma vez que o amadurecimento não é como uma "subida de escada", pois o indivíduo está sempre subindo e descendo, muitas e muitas vezes. Deste modo, a adolescência pode ser compreendida como uma reencenação de fases anteriores, embora com suas peculiaridades próprias, assim como uma experiência a ser repetida no futuro.

Dias (1998) ressalta que todas as conquistas, tudo aquilo que é positivo no bebê, parte de uma ausência, de uma falta. Assim, "essa negatividade que está na base, não é nunca ultrapassada. Ela permanece como a marca da precariedade de todas as conquistas da vida. Tudo o que passa a ser pode, em seguida, deixar de ser" (p. 72).

Toda a movimentação do desenvolvimento emocional aponta para uma integração do ser, uma caminhada para uma independência relativa, a ser conquistada na maturidade, um amadurecimento dos instintos e um enriquecimento da personalidade. A constituição do ser humano é, toda ela, atravessada por uma tendência à integração do ser, busca contínua e precária, sempre estando por acabar. É mesmo, segundo Winnicott, o que de mais humano o homem teria.

A natureza humana na sua tendência à integração

A teoria do amadurecimento, de Winnicott (1982), sustenta-se na crença da existência de uma tendência inata ao amadurecimento e à integração em um todo unitário, entendida como a mais importante herança do ser humano.

Cada bebê carrega consigo uma tendência inata para a vida, como uma organização em marcha. Nestes termos, Winnicott (1982) fala de algo universal na espécie humana: uma tendência inata em direção ao desenvolvimento, à integração e à independência. Contudo, esta é somente uma tendência, que pode, ou não, ser atualizada, dependendo não da alçada genética, mas do mundo social, real e externo:

"No início, a totalidade do processo de desenvolvimento ocorre devido a tendências herdadas, tremendamente vitais, em direção ao desenvolvimento &– integração, ao crescimento [...]. Porém, se o ambiente facilitador não for satisfatório, rompe-se a linha da vida, e as tendências herdadas, muito poderosas, não podem levar a criança à plenitude pessoal" (Winnicott, 1996, p. 113).

A linha de vida do bebê seria marcada por uma tendência à busca de uma continuidade de ser. Na teoria winnicottiana, o termo amadurecimento diz respeito ao viver humano, ao sentimento de ser real e de existir em um mundo real. Algo que está muito além de um viver biológico, somente. Mesmo quando as estruturas orgânicas da criança estão sadias, não posso afirmar que ela está viva psiquicamente. O estar vivo humano, o sentimento de se sentir real, deve ser conquistado ao longo da vida. Quanto a isso, Winnicott (1983) assinala: "estar vivo é tudo. É um esforço constante para chegar ao ponto inicial e aí se manter" (p. 174).

Tal ponto inicial se refere ao nascimento psíquico, à chegada a um estado unitário de um eu. Para chegar a este nascimento, instalação do si-mesmo, a criança passa por uma série de conquistas anteriores, por várias e diferentes integrações de muitos níveis. Porém, os genes não são suficientes para esta empreitada, uma vez que nenhuma criança pode vir a se tornar uma pessoa real sem os cuidados de um ambiente que lhe dê sustentação e possibilite os processos de amadurecimento. 

O amadurecimento humano é, pois, uma conquista diária para continuar a ser; e ter saúde é continuar nesta linha de conquista de ser. Para tanto, dois fatores são necessários: a tendência inata ao amadurecimento que envolve a constituição de um si-mesmo unitário e integrado e a existência de um ambiente que possibilite e facilite este processo.

O ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação, mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses, possibilita a concretização do potencial do bebê. O homem não é determinado ao nascer. Ele é lançado no mundo, em um vir-a-ser, incompleto e aberto. Nas palavras de Winnicott (1983): "Todos os processos de uma criatura viva constituem um vir-a-ser, uma espécie de plano para a existência" (p. 82).

Não há nenhuma substancialidade na natureza humana tal como Winnicott a concebe, e não há forças dotadas de metas que lhe sejam intrínsecas. Na verdade, a existência humana não está fundada em nenhuma certeza, a não ser na virtualidade de uma tendência em direção a uma integração, que pode conduzir à saúde e à continuidade do ser.

O ambiente facilitador, ao qual Winnicott se refere, são, no início de tudo, as mães suficientemente boas, que atendem as necessidades do bebê na medida exata, e que percebem o bebê em seu processo de desenvolvimento, deixando-o ser, no seu próprio ritmo. Com o crescimento emocional, dá-se a ampliação deste ambiente facilitador, que passa a incluir paulatinamente o pai, a família, o grupo social e a comunidade mais ampla.

Nos últimos meses da gravidez, e ainda durante algum tempo depois do parto, a mãe entra em um estado que Winnicott (1983) denomina de preocupação materna primária, em que desenvolve uma sensibilidade maior que a capacita a se colocar no lugar do filho, sabendo direitinho do que ele precisa, ao mesmo tempo em que conserva seu lugar de adulta. Este é um estado de "devoção", afirma Winnicott (1983), no qual "a mãe através de sua identificação com o lactente sabe como o lactente se sente, de modo que é capaz de prover quase exatamente o que o lactente necessita em termos de holding e provisão do ambiente em geral" (p. 52).

No início de seu amadurecimento, o bebê vive em um estado de não-integração. Com o passar do tempo, e se tudo correr bem, a criança vai vivenciando tarefas e conquistas que lhe aproximam de uma integração do ser. As tarefas mais essenciais são aquelas que ocorrem no início da vida, já que é neste período que se instalam as bases da existência. Todavia, o amadurecimento não é linear, nem regido pela noção de progresso. Não consiste em chegar em lugar algum. Muito menos em atingir algum objetivo. Consiste em possibilitar à pessoa instalar seu si-mesmo, em construir um senso de realidade, em possibilitar uma habitação no mundo real. Vejamos a seguir como tudo se inicia.

O início de tudo: a gestação, o parto e o estágio da dependência absoluta

No início, existe um "simples estado de ser e uma consciência incipiente da continuidade de ser e da continuidade do existir no tempo" (Winnicott, 1990, p. 157). Com o bebê recém-nascido, não existe uma integração, um vínculo entre o corpo e a psique ou uma realidade não-eu. Na verdade, nem existe um eu. O nascimento físico é compreendido como um grande despertar para a vida, despertar este que, não excedendo a capacidade do feto em lidar com o inesperado, não é necessariamente traumático.

Embora se saiba que o parto é provocado por contrações uterinas, do "ponto de vista do bebê, foi seu próprio impulso que produziu as mudanças e a progressão física, em geral começando pela cabeça, em direção a uma nova e desconhecida posição" (Winicott, 1990, p. 166). O nascimento é uma experiência importante para o amadurecimento, uma vez que é uma atividade criativa e originária do bebê. 

As primeiras experiências do bebê são muito importantes para seu amadurecimento sadio. Quanto a esta questão, Winnicott (1975; 1982; 1983; 1990; 1996) elabora seus construtos teóricos.

A expressão "primeira mamada teórica" diz respeito às experiências iniciais de muitas mamadas concretas. Logo após a primeira mamada teórica, o bebê já dispõe de material para criar. Ela é importante por estabelecer o primeiro contato do bebê com a realidade e a constituição do si-mesmo.

São três as tarefas do bebê neste momento, assim como são três as da mãe. Na verdade, elas são complementares.

A primeira tarefa do bebê é a busca da conquista de uma integração temporal e espacial. À mãe, corresponde um cuidado específico: o holding. O bebê está iniciando sua configuração do estado de não-ser (Winnicott, 1983; 1997).

Para o bebê recém-nascido, o holding físico é a única forma que a mãe tem de demonstrar amor. Mas o holding também se estende aos cuidados mais gerais, seja a regularidade do ambiente apresentado ao bebê, seja uma sustentação da situação no tempo, ou ainda uma disponibilidade tranqüila de estar lá e ser descoberto, sem exigir que algo aconteça a priori. Embora o mundo já esteja lá antes do bebê, o pequenino não sabe disso, e desenvolve uma ilusão de que foi o seu criador. 

Na medida em que a mãe está presente para atender as necessidades de seu bebê, e na proporção de sua necessidade, inicia-se um ser humano. Este processo de temporalização e espacialização fornece o "sentido ao sentimento de eu e justifica a percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo" (Winnicott, 1990, p. 46). Do mesmo modo, é a partir do estado de não-integração que se produz a integração, por breves momentos e períodos, só depois chegando a ser um fato, duradouro e estabelecido.

O bebê é temporalizado em um sentido subjetivo. Por isso, é importante que o tempo objetivo e cronológico não sejam intrusivos ao seu ritmo natural. Qualquer intrusão externa representa uma quebra na continuidade do ser e, em vez de estar se construindo, e construindo o mundo, pode estar se defendendo dele. O tempo começa a ser internalizado para o bebê por meio de ritmos cotidianos, como os do acordar, do banho, do passeio, das mamadas.

A segunda tarefa é a personalização ou alojamento da psique no corpo. Aqui, inicia-se a capacidade de estabelecer relações objetais. Mais uma vez, a mãe é essencial. É importante que ela tenha em mente o bebê inteiro, pois é essa noção que ela vai passar ao filho, que se vê aos pedaços.

A tarefa da mãe agora vai ser o handling, o manejo. Segurar firmemente o bebê, acariciá-lo e tocá-lo delicadamente favorece a localização do bebê no próprio corpo.

Finalmente, a terceira tarefa é o início do contato com a realidade, o início das relações de objeto. Para Winnicott, ao nascer, o bebê não tem um sentido de internalidade e de externalidade que lhe permita relacionar-se com objetos, uma vez que, de início, ele não tem sequer um si-mesmo. Ele ainda não está suficientemente amadurecido para relacionar-se com o mundo, pois ainda não teve sequer um nascimento psíquico. Para conquistá-lo, ele precisa primeiro construir um senso de realidade do mundo subjetivo1.Somente a partir daí lhe é possível relacionar-se com o mundo compartilhado, com o mundo real.

É necessário que a criança tenha a ilusão de que cria aquilo que necessita, no momento exato em que necessita. Depara-se com um seio, por exemplo. Satisfaz-se com ele, ilude-se pensando que criou aquele objeto que necessitava. Cabe à mãe suficientemente boa estar lá para atender o gesto de busca do bebê, de modo que ele pense ter criado o que buscava. Nas palavras de Winnicott (1993): "o impulso criativo desaparece a menos que seja correspondido pela realidade externa. Toda criança tem que recriar o mundo, mas isso só é possível se, aos poucos, o mundo for se apresentando nos momentos de atividade criativa da criança. A criança procura o seio, e criou-se o seio" (p. 16).

Logo, a apresentação do mundo e dos objetos ao filho é a terceira tarefa da mãe. Com o tempo, o bebê sente confiança em que o objeto do desejo possa ser encontrado e isso significa que, aos poucos, pode tolerar a ausência deste objeto.

Porém, o bebê neste estágio da primeira mamada teórica ainda não pode dizer "eu sou", pois não teve um nascimento psíquico ou acontecimental2, o que ocorre somente no próximo estágio. O si-mesmo, que é resultado de uma série de experiências aglutinadoras, ainda não se instalou. Tal instalação, se tudo correr bem, acontece no próximo estágio, apresentado a seguir.

Os estágios da dependência relativa: a instalação do si-mesmo

O que mais distingue este estágio da dependência relativa do estágio anteriormente descrito é que agora se inicia uma fase de desadaptação da mãe às necessidades do filho, assim como a desilusão do bebê. Esse processo deve ser lento e gradual, fazendo-se iniciar por pequenas falhas da mãe, provocativas de pequenas descontinuidades no ser do bebê, possíveis de suportar. Assim: "gradativamente a mãe habilita a criança a aceitar que, embora o mundo possa fornecer o que é preciso e procurado e que pode, portanto, ser criado, não o fará automaticamente, nem no momento exato em que a disposição surge ou o desejo é sentido" (Winnicott, 1982, p. 102).

O bebê deixa para trás não a ilusão da criação, mas a onipotência da criação. O sentimento de que o mundo pode ser recriado permanece para sempre, ou deveria permanecer. Nesta perspectiva, o sentimento de realidade estaria originariamente ligado à realidade subjetiva, à capacidade de criar. Nas palavras de Winnicott (1982): "felizes aquele cujos pés estão bem plantados na terra, mas que, mesmo assim, conservam a capacidade de desfrutar intensas sensações, nem que seja em sonhos que são sonhados e recordados" (p. 77).

Neste período, iniciam-se os processos intelectuais que ajudam os bebês a lidar com a desadaptação materna. É sobre as bases de uma compreensão intelectual que as defesas para as intrusões começam a operar.

Para Winnicott (1975), existe um espaço entre a dependência absoluta e o mundo subjetivo, e a dependência relativa e o mundo objetivo, o qual nomeia de transicional. Os fenômenos que ocorrem neste espaço são aqueles que possibilitam ao indivíduo sair da onipotência criativa para a desilusão deste tudo-poder. Até aqui, o bebê já foi capaz de criar uma membrana limitadora entre o externo e o interno, e pode-se dizer que ele tem um interior.

Elegendo um objeto transicional, o bebê tenta prolongar a onipotência originalmente satisfeita pela mãe suficientemente boa. Aos poucos, o objeto transicional perde o significado, embora seja importante por introduzir na vida do bebê a atividade simbólica. Do mesmo modo, os fenômenos transicionais abrem e conservam aberto o lugar da ilusão básica, o espaço potencial, que é, de fato, o lugar no qual vivemos, e onde há o brincar e a experiência cultural. Este é o espaço possível de criação e saúde, e dele dependem os sentimentos de existência, vitalidade e realidade, sinais de saúde e maturidade, tanto para as crianças quanto para as pessoas de maior idade. 

Aos poucos, por intermédio da desadaptação lenta e progressiva, o bebê começa a habitar o espaço transicional, e a transitar entre os mundos subjetivo e objetivo. Embora o bebê ainda viva no mundo subjetivo, cada vez mais ele desconfia da sua onipotência criativa. A partir de certo momento, não determinado a priori, não basta nem o sentido do mundo subjetivo nem o do campo transicional. Ele parte na conquista do sentido da realidade compartilhada ou externa.

Para tanto, é necessário que sejam levadas em conta as características da natureza do objeto, e não basta somente a passagem do tempo: é necessário que o próprio bebê atribua a este objeto seu estatuto de externalidade. Além disso, "o objeto, se é que tem que ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções" (Winnicott, 1975, p. 123). Portanto, é preciso que o objeto subjetivo seja destruído para se tornar parte da realidade compartilhada, o que significa que ele tem que sobreviver ao ataque de destruição, sem retaliar.

A seqüência da relação ao uso do objeto pode ser assim descrita: em primeiro lugar, o bebê relaciona-se com o objeto, que está em processo de ser encontrado, em vez de ter sido posto no mundo pelo sujeito. A seguir, o objeto é destruído, e finalmente ele pode vir a ser usado fora da área de onipotência do sujeito. Conforme ressalta Winnicott (1975), é desse modo que se forma a realidade compartilhada que o indivíduo pode usar.

 Agora o bebê já é capaz de dizer "eu sou". Para Winnicott (1996), esta é uma das mais agressivas e violentas afirmações do mundo. Porém, somente a partir dela a pessoa se constitui como tendo um verdadeiro nascimento psíquico.

O bebê pode ir e vir entre as realidades objetiva e subjetiva. Quando a objetividade se faz necessária, ele pode fazer concessões à sociedade por meio de um falso si-mesmo, que se faz de "testa de ferro", sem perder a moradia no mundo subjetivo, ou no espaço potencial que ele criou. Mas o amadurecimento continua, e, embora o bebê já tenha uma membrana limitadora e um dentro e um fora, ainda não é uma pessoa inteira. Para tanto, segue em busca do estágio de concernimento.

Desenvolve-se, a partir de agora, um sentimento de responsabilidade pela experiência instintiva e pelos conteúdos do eu, assim como um sentimento de independência em relação ao que está fora. Este é o estágio do concernimento. A principal tarefa desse momento é o bebê poder fazer reparações ao que julga poder destruir. A seqüência do machucar-curar repete-se inúmeras vezes. Aos poucos, a criança passa a acreditar no seu esforço construtivo e a suportar a culpa pela destruição, tornando-se livre para o amor instintivo.

A partir da metade do estado de concernimento, o pai entra em cena, para o amadurecimento específico do indivíduo. O pai torna-se um interventor, um apoio necessário à mãe, permitindo à criança movimentar-se mais livremente com seus instintos.

Já concernida, a criança habita seu próprio corpo e é capaz de fazer uso dos objetos: já houve o nascimento psíquico. Mas o amadurecimento psíquico não se dá em uma mão somente. Ele vai e volta, como uma curva espiral. E, nesse processo, a criança caminha na busca de construir independência e maturidade. 

Os estágios rumo à independência relativa

Por volta dos dois anos, a criança entra na fase fálica, mantém uma relação triangular com os pais e ainda precisa ser amparada. Continua necessitando de "uma forma física de amor que foi naturalmente dada pela mãe quando transportou seu filho no ventre e o segurou nos braços" (Winnicott, 1982, p. 205). Permanece ressaltada a importância de que a criança continue vivendo em um ambiente doméstico estável, no qual se sinta segura e bem cuidada, e que possa converter seu impulso de amor em um gesto efetivo, no momento apropriado.  

A compreensão winnicottiana da formação edípica é também processual: somente quando é capaz de usar os objetos, a criança pode manter uma relação triangular. Winnicott não se opõe à existência do complexo de Édipo. Sua oposição é à centralidade dele em todo o processo de desenvolvimento. Sua ênfase é na relação do bebê com sua mãe e na conquista de seu estado unitário, do seu si-mesmo.

Apenas de modo gradativo, à proporção que a criança descobre que sua mãe pode sobreviver aos seus ataques e aceitar seu gesto restitutivo e reparador, ela se torna capaz de assumir responsabilidades pela fantasia total do impulso instintivo que era, até então, por demais impiedoso. Somente à medida que a criança se torna capaz de aceitar responsabilidade pela fantasia do impulso instintivo, e que a crueldade cede lugar à preocupação e à culpa, ela pode experimentar o complexo edípico e tolerar a ambivalência das relações triangulares.

Já concernida, e com psiquismo pulsional, a criança entra na latência. Aqui, a vida da criança é ocupada principalmente pelas exigências intelectuais. Ela se prepara para o próximo estágio, quando a integração do ego é intensamente exigida e seu comportamento social e afetivo é bastante participativo. A criança já está emocionalmente estruturada em uma unidade que lhe permite ver a si e aos outros, como pessoas totais. E, se tudo tiver corrido bem, já deve ter atingido a plena capacidade de viver o sonho ou o jogo adulto, com os instintos apropriados e as ansiedades e conflitos resultantes destes. Porém, nunca é demais lembrar, essa capacidade só pode ser adquirida dentro de um contexto familiar relativamente estável. Se há um suporte familiar confiável, a criança começa a se dar conta de que a passagem do tempo pode aliviar dores, medos, desespero e mágoas, por maiores que elas pareçam ser (Winnicott, 1990).

Porém, com o advento da puberdade, a tranqüilidade da latência é interrompida. As transformações físicas podem, de fato, representar uma quebra na continuidade da vida, e as investir de um poder desalojador do si-mesmo.

Tal qual Winnicott a descreve, a adolescência traz consigo algumas alterações importantes para o processo de amadurecimento. Em primeiro lugar, potencializa um poder de dominar e de destruir que é extremamente assustador. Em segundo, repete as angústias dos estágios precoces do desenvolvimento. Além disso, o adolescente padece do sentimento de irrealidade, e sua luta, neste momento, é para sentir-se real.

Já a adultície impõe três importantes tarefas ou realizações. A primeira delas é manter-se criativo e vivo até a morte. A segunda consiste em aceitar a imperfeição, a impotência e a finitude, já que adultos maduros e sadios são aqueles que conseguem ver, aceitar e manipular criativamente a precariedade da condição humana. A terceira, finalmente, constitui a tarefa de poder envelhecer e morrer (Winnicott, 1990). A conquista da maturidade não dá ao indivíduo um certificado de segurança contra sofrimentos, depressões ou perda de sentido de vida. O tempo todo o homem está a se construir, jamais se completando nesta tarefa, a não ser na morte.

Como vimos, o desenvolvimento humano é um processo continuado e até a morte. Na busca de manter a integridade do ser, o homem está em um estado sempre de precariedade. Mesmo após a instalação do si-mesmo, o indivíduo continua na sua luta para sentir-se real, vivendo em um mundo capaz de ser amado por ele mesmo, e no qual ele deixa as marcas de sua existência. Contudo, compreendo que, assim como a instalação do si-mesmo marca o nascimento psíquico da criança &– o que ocorre no estágio de dependência absoluta &–, a adolescência desentranha um segundo processo de reinstalação do si-mesmo.

 

A ADOLESCÊNCIA COMO REINSTALAÇÃO DO SI-MESMO

Como mencionado anteriormente, a teoria do amadurecimento, formulada por Winnicott (1994a; 1994b), apresenta-se como um processo que se inicia em algum momento antes do nascimento e se estende até a morte. Todas as fases são importantes e não deveriam ser suprimidas ou impedidas de serem experimentadas. Se o desenvolvimento ficou suspenso, ou foi interrompido em algum momento, o indivíduo terá que retornar a ele, voltando a agir como um bebê ou uma criança menor.

Este processo de construção de uma subjetividade própria é longo e artesanal, sendo tarefa que não se completa jamais, e que justifica a sensação de incompletude do homem. A base para uma saúde mental adulta é construída na infância e, também, na adolescência. Alguns sinais de saúde seriam compreendidos como um contínuo crescimento emocional; por exemplo, o desenvolvimento no sentido de integração do si-mesmo, o caminhar em busca da independência relativa, o desenvolvimento em termos dos instintos e a riqueza da personalidade do indivíduo.

Com a entrada na adolescência, todo menino e toda menina revivem as experimentações e lealdades cruzadas que surgiram criativamente no jogo familiar. Contudo, aqui a excitação não decorre somente dos medos, mas também das experiências libidinais novas e intensas que a puberdade libera. Além disso, o adolescente parece viver a possibilidade de encenar uma forma diferente de estar e de se-ver-no-mundo. Algo como se ele se reinstalasse no mundo, agora de um modo diferente do da criança. Esta minha tese é corroborada por Winnicott (1996): "Quando chega a adolescência, os meninos e meninas emergem de um modo irregular e desajeitado da infância e da dependência, em direção ao estado de adulto" (p. 122).

 De modo semelhante ao que acontece com a criança, o adolescente busca constituir seu si-mesmo. O que importa salientar aqui é que, diferentemente da criança, o adolescente é capaz de se perceber como um indivíduo isolado, e disto decorre grande distinção entre eles. A partir desta autopercepção, os adolescentes vêem-se de modo diferente e passam a entender o mundo e as pessoas também de outro modo (Frota, 2001).

Para Winnicott (1993), a independentização realiza-se a partir da dupla dependência do ambiente, revelando-se como um processo marcado pelas recorrências à dependência. Trata-se de algo que, partindo de uma não-organização, vai se organizando sob condições altamente especializadas. Deste modo,

"[...] cada indivíduo surge, desenvolve-se e torna-se maduro: não se pode considerar a maturidade adulta como algo separado do desenvolvimento anterior. Este desenvolvimento é extremamente complexo, e ocorre de modo contínuo desde o nascimento, ou desde antes, até a velhice, passando pela idade adulta. Não podemos pensar em relegar nada a segundo plano &– nem a ocorrência da infância, e nem mesmo as da primeiríssima infância" (p. 30).

O fato é que a dependência inicial continua a ter significado durante toda a vida, em especial na adolescência, mesmo que ela possa se mostrar de modo disfarçado. As tarefas permanecem as mesmas da infância, mas, à medida que o ser humano cresce e se desenvolve, ele se torna cada vez mais engajado na verdadeira luta que é a vida. Assim, as tarefas acabam se configurando de modo díspar, para fases diferentes.

Passemos agora a discutir um pouco as peculiaridades da adolescência, a partir de Winnicott.

Puberdade e adolescência: dois lados de uma mesma moeda?

Segundo Winnicott (1982), puberdade e adolescência não se superpõem, embora uma e outra estejam muito ligadas. A puberdade está diretamente relacionada ao crescimento físico e ao amadurecimento sexual, enquanto a adolescência constitui um período em que o indivíduo se torna adulto, por meio do crescimento emocional. Dentro desta perspectiva, é possível passar pela puberdade sem se tornar um adolescente, uma vez que esta determinação do amadurecimento emocional é virtual, podendo não acontecer efetivamente.

Na puberdade, o indivíduo é um agente passivo do processo de crescimento e, para este problema, não existe nenhuma solução, a não ser contar com a passagem do tempo. A puberdade pode constituir um fenômeno corporal e um aumento grande das tensões instintivas. Nesse momento, "tremendas forças" estão atuando" (Winnicott, 1982, p. 115). A puberdade pode ser compreendida como uma situação desalojadora, já que introduz o novo, aquilo que rompe com o que está estabelecido, inclusive com um si-mesmo infantil.

Aos onze anos, as crianças defrontam-se com a puberdade e com as novas idéias que pertencem a este período. Ao mesmo tempo em que se vêem habitadas por fortes desejos instintivos, estão descobrindo-se capazes de assumir responsabilidade pessoal e começar a lidar com maior potencial de destruição, de reparação e de construção. Para Winnicott (1997), mesmo as crianças saudáveis, capazes de enfrentar as difíceis mudanças associadas à adolescência e ao próprio amadurecimento pessoal, podem ver eclodir na adolescência algumas dificuldades. Não há como escapar das ansiedades decorrentes desta passagem, que será tão mais suave quanto o indivíduo tiver tido sucesso na instalação do si-mesmo, na primeira infância.

A criança que for bem cuidada, que contar com a ajuda de um ambiente bom e de uma mãe suficientemente boa e que construir um verdadeiro si-mesmo, certamente desenvolverá um padrão pessoal que a habilitará a lidar bem e a tolerar os sentimentos novos e as estranhezas decorrentes das mudanças e das transformações corporais, as quais não consegue controlar.

Tudo isso afirmado por Winnicott me leva a pensar em algo como se as crianças sadias desenvolvessem um padrão, em grande parte inconsciente, no qual inevitavelmente entram resíduos de alguns fracassos, além das conquistas e sucessos, dos primeiros tempos. Deste modo, o que parece possível afirmar é que, quanto melhor tiver sido o começo, melhor a criança atravessará a turbulência da puberdade e das transformações físicas e instintivas trazidas por ela. Então, é possível concluir que, em si, a puberdade não simboliza uma experiência desalojadora. Na verdade, a vivência da puberdade depende muito da história de cada pessoa, assim como do sentido social atribuído ao fenômeno referido.  

A adolescência segundo a perspectiva winnicottiana

Para Winnicott (1994a), existem alguns aspectos que caracterizam a adolescência como um estágio diferenciado do amadurecimento. Primeiro, surge uma potência que pertencia ao domínio da fantasia e que agora pode tornar-se real: o poder de destruir e de matar, a possibilidade de prostituir-se, drogar-se, engravidar, fazer escolhas na vida e ter que arcar com suas conseqüências. Em segundo lugar, as angústias vividas neste momento repetem as angústias dos estágios precoces, uma vez que aqui parece inaugurar-se uma nova subjetividade. Porém, é uma inauguração de algo que, para se fazer, necessita já ser. Somente quem teve um nascimento psíquico anterior pode, na adolescência, viver um novo nascimento, uma reinstalação do si-mesmo.

Então, no sentido de quem busca se reinstalar no mundo, o adolescente é um ser isolado, assim como o foi o bebê. Somente quando se define uma subjetividade própria, o adolescente é capaz de manter uma relação verdadeira consigo, com o mundo e com os outros. E, para este processo de construção, ele necessita estar isolado, buscando saber de si.

Perguntas como "quem sou", "do que eu gosto", " o que penso sobre este assunto?" são fundamentais neste período da vida. E o jovem está sozinho nesta busca de conhecer-se, nesta construção de uma subjetividade própria, nesta reinstalação do seu si-mesmo. A solidão é característica humana, percebida mais claramente a partir da adolescência, e reverenciada por muitos poetas: "As maritacas gritam, e todos as ouvem, mesmo sem querer. Mas o canto do sabiá solitário, ao final da tarde, em algum lugar da floresta, faz todo mundo se calar para poder ouvir... isso eu lhes digo, solitários: há muita beleza escondida na sua tristeza. Não tenham dó de si mesmo" (Alves, 1996, p. 40).

Winnicott (1994a) revela outro aspecto pelo o qual o adolescente repete os padrões dos estágios precoces: ele padece de um sentimento grande de irrealidade e sua luta principal diz respeito a sentir-se real. A traição a si mesmo, deste modo, seria insuportável e por isso é difícil para o adolescente fazer conciliações ou aceitar falsas soluções.

Crescer significa ocupar o lugar do genitor, o que traz embutido em si o germe de um ato de violência: "na fantasia inconsciente crescer é inerentemente um ato agressivo [...]. Se a criança tem que se tornar adulta, então esta transformação se fará sobre o cadáver de um adulto" (Winnicott, 1975, p. 195). O adolescente é como uma criança pequena, que luta pela instalação no mundo, mas que tem que lidar com instintos extremamente importantes. Deste modo, oscila entre a dependência infantil e a maturidade adulta, indo e voltando diversas vezes neste processo de ser na vida.

O fato é que agora, por causa das vastas implicações do novo e rápido avanço em termos de encontrar e enfrentar o mundo, há a recorrência de uma necessidade de manter aberto um caminho de volta à dependência. Isto é muito comum na pré-puberdade, na qual a dependência é mais facilmente absorvida pela dependência natural, mas continua presente na puberdade, na adolescência e mesmo na idade adulta e velhice.

Como sugere Winnicott (1993), nestas idas e vindas da dependência à independentização, o ambiente facilitador é inquestionavelmente importante. Ele se define como aquele que vai progressivamente se ajustando às necessidades individuais da criança, deixando-a ser o que é. À importância da mãe suficientemente boa, somam-se a do pai, a do grupo familiar e a do grupo social mais amplo.

O fato tão difundido de que a adolescência traz sofrimentos poderia ser explicado pela própria imaturidade dos jovens, pelas mudanças que a puberdade traz, pelas idéias novas que tomam o jovem de paixão, e pela desilusão pessoal ao perceber como, de fato, são o mundo e as pessoas.

Além da imaturidade, o idealismo também pode ser apontado como uma das características mais importantes da adolescência, segundo a perspectiva winnicottiana. Os adolescentes não estão de todo familiarizados com a desilusão e, por conta disso, estão livres para construir planos ideais. É importante saber que "não cabe ao adolescente ter uma visão a longo prazo própria daqueles que atravessaram várias décadas e estão começando a ficar velhos" (Winnicott, 1996, p. 128). Pelo contrário, os adultos não podem abdicar de seu poder. A imaturidade do jovem deve poder continuar sendo, até que possa deixar de ser, em um movimento que venha de dentro para fora.

Na imaturidade, vêem-se os aspectos mais excitantes do pensamento criativo dos adolescentes. A sociedade precisa ser abalada pelas aspirações daqueles que não são responsáveis, deixando-se permear pela criatividade que deles emerge.

O brincar criativo é mais uma das características do adolescente sadio. Aliás, esta capacidade é indicativa de saúde, e pode atravessar toda a existência humana. Claro que ela vai se revestindo de traços próprios em cada estágio de maturidade. O adolescente, por exemplo, pode brincar criativamente, fazer uso da herança cultural da humanidade, formando-a e sendo formado por ela (Winnicott, 1975).

É na brincadeira que o indivíduo pode ser criativo e se utilizar de sua personalidade integral. E é este poder criativo que permite ao homem criar o mundo, "reinventá-lo". O adolescente pode tomar posse deste poder de um modo muito especial pela possibilidade de experienciar diversas formas de estar na vida. No entanto, contrariamente, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, em que o mundo, em todos os seus pormenores, é reconhecido apenas como algo a que se ajustar, exigindo adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver. É isso que parece acontecer com a maior parte das pessoas que, ajustadas à sociedade e ao que é esperado delas, não conseguem sair da continuidade, aproximando-se do que mais próximo seria sua marca pessoal (Frota, 2001).

É, pois, o viver criativo que traz o sentimento de que a vida é real ou significativa, e não a submissão a uma realidade objetiva. Gradativamente, à medida que vão se reinstalando no mundo, rapazes e moças adquirem um senso de si-mesmo mais forte e um possível sentimento de ser. Não existe um fazer antes de um ser, pelo menos não de um modo mais próximo do verdadeiro si-mesmo.

Voltando ao poder das forças instintivas, temos que os jovens, apesar de percebê-las, não se enganam de que elas sejam o mais importante neste momento da vida. Para Winnicott (1996) "eles [adolescentes] precisam ser capazes de cavalgar os instintos em vez de serem esmigalhados por eles" (p. 20). Na verdade, a partir do ponto de vista que defendo, os adolescentes, de algum modo, notam que sua maior tarefa é ser por si mesmo, é reinstalar-se no mundo, persistindo na busca de sua continuidade do ser no tempo. Talvez seja esta possibilidade, inaugurada nesse momento, que fale sobre o que é universal no adolescer humano, condição virtual, mas que se dá a acontecer somente na história de cada pessoa. 

O adolescente é essencialmente imaturo e isso é, para ele, sinal de saúde. A única saída para a imaturidade é o tempo, que traz consigo o germe da transformação. Portanto, os pais devem poder esperar que seus filhos descubram a si e ao mundo. Para tal, contam com o tempo como aliado (Winnicott, 1996).

Outro aspecto importante para a compreensão da adolescência, ressalta Winnicott (1994a), é a característica da moralidade nesta época. A moralidade do adolescente é muito rígida, feroz até. Nesse sentido, parecem ser três as necessidades do jovem. Em primeiro lugar, a necessidade de evitar falsas soluções. Em segundo, a de desafiar, situando-se como uma possibilidade de ser diferente. Por fim, a indispensabilidade de espicaçar constantemente a sociedade para, mais uma vez, mostrar-se como outro que não ela. Ao mesmo tempo, fica claro que compete aos adultos a tarefa de enfrentar o desafio proposto pelos jovens, e manterem-se firmes, servindo de resistência ao que se delimita como um outro si-mesmo.

A questão, sugere Winnicott (1994c), é que "somos desafiados e enfrentamos o desafio como parte da função da existência adulta. Mas enfrentamos o desafio em vez de nos dispormos a curar o que, em última instância, é saudável" (p. 160). Ou seja, este desafio posto pelos adolescentes deveria ser visto como uma tentativa de uso dos objetos, que vai ser agredido para, posteriormente, poder ser amado e percebido como objeto com realidade própria.

Parte das dificuldades que surgem na adolescência deriva de problemas ambientais, segundo afirmação de Winnicott (1994c). Este fato serve apenas para enfatizar a vital importância do ambiente e da família para aquela imensa maioria de adolescentes que, de fato, chegam à maturidade adulta.

A tarefa dos pais inclui a aceitação do desafio de ser por si-mesmo, assumido pelos filhos, assim como o de estar presente para uma necessidade de retorno à dependência infantil, expressa pelos jovens, que oscilam entre um tímido ou agressivo gesto de maturidade e uma necessidade urgente de se refugiar em um ninho protetor.

Neste processo de idas e vindas, o adolescente encontra as necessidades de afrontar, agredir e também de amar o objeto agredido e violentado (Winnicott, 1993). Ele necessita de um ambiente confiável e disponível para deixar marcas reais de seu si-mesmo e redimensionar sua agressividade, mantendo-a no seu mundo interno. Por isso mesmo, o jovem necessita contar com o suprimento ambiental para um enfrentamento possível. Mas não só para um enfrentamento e contenção: também para servir de um espaço de recolhimento e descanso.

Na prática, a criança precisa sair do colo da mãe. Este afastamento deve se dar em direção a uma área maior, mas ainda sujeita ao controle dos pais: algo que simbolize este colo abandonado. É muito difícil e ameaçador para a criança elaborar os conflitos inerentes ao sair e voltar sem um apoio satisfatório da família. Nas palavras de Winnicott (1993), é preciso "entender que a saída do cercado é, a um só tempo, estimulante e amedrontadora; e que uma vez do lado de fora, é doloroso para a criança perceber que não pode retornar; e que a vida é uma longa seqüência de saída de cercados, riscos e desafios novos e estimulantes" (p. 53).

O adolescente pode se arriscar na vida quando conta com um chão seguro, pronto para ser usado, quando necessário. Os atos agressivos dão um limite ao si-mesmo, reorganizando-o. A fé na indestrutibilidade do ambiente suficientemente bom, o valor da confiança na permanência dos objetos, a possibilidade de reparar "os buracos" feitos no ambiente são importantes para o crescimento emocional dos adolescentes. E, deste modo, o adolescente defronta-se consigo mesmo, cada vez mais intimamente. Na verdade, ele não visa uma licença para ser por si mesmo. Ele busca descobrir-se, encontrar caminhos que o conduzam ao seu ser verdadeiro, ao que verdadeiramente conta.

O adolescente parece ter necessidade de testar a segurança que seu meio ambiente lhe favorece, e isso ocorre, provavelmente, pela existência de sentimentos amedrontadores, novos e fortes, que se fazem presentes para o jovem. Assim, ele precisa saber que pode contar com o cuidado de seu ambiente, assim como com seu interdito e resistência. Deste modo, o jovem passa a amar o que resistiu aos seus arroubos de destruição.

Os pais também são afetados pelo amadurecimento de seus filhos. Este processo lhes aponta a sua finitude, uma deposição de seu lugar de "reis do castelo". Por isso, pode ser difícil maternar os filhos adolescentes, sem querer "curar-lhes" desta rebelião que prenunciam. Porém, cabe aos pais lembrar-se de que a rebelião é própria da liberdade que se concede aos filhos, e do amadurecimento que eles conquistam, na busca de ser por si-mesmo. Deste modo, "semeamos um bebê e colhemos uma explosão", afirma Winnicott (1975, p. 196).

A reinstalação do si-mesmo: uma condição humana possibilitada pela adolescência

O bebê instala-se no mundo a partir da sua relação com uma mãe suficientemente boa, podendo abrigar a afirmação eu-sou. No momento em que ele é capaz de fazer esta proposição, está evidenciando seu nascimento psíquico. A partir de então, existe como uma pessoa que tem um dentro e um fora, um eu e um não-eu. No entanto, em todos os momentos, o indivíduo é confrontado com o novo e com o estranho, o que quebra a ilusão da continuidade fluídica da vida.

Quanto mais imaturo, mais à mercê das intrusões ambientais o bebê se encontra; e mais dependente dos cuidados maternos. Aos poucos, este si-mesmo se fortalece, dando uma idéia de individualidade. Mas esta individualidade está profundamente ligada à confirmação dos pais, da família, e da sociedade.

Contudo, esta situação se transforma. Neste processo, é importante que os pais se mantenham firmes no papel de guardiões do amadurecimento sadio de seus filhos, permitindo-lhes que eles os usem como suporte emocional, oferecendo-lhes proteção e segurança quando necessitarem, e como um obstáculo ao qual os filhos têm que se opor e destruir simbolicamente. Se tudo correr bem, o poder pessoal é conquistado pelos jovens, o si-mesmo é construído de dentro para fora.

Do mesmo modo, o mundo também é visto de outra maneira. Ele se concretiza de uma forma diferente, fazendo-se presente como um outro, um estranho que ameaça romper a continuidade do que parecia ser igual a si mesmo. Os adolescentes enxergam coisas que não podiam ver, ou para as quais não estavam prontos.

Parecem caber às situações disruptivas o papel de desestabilizar, de romper com a noção de continuidade e de igualdade que a vida possa estar apresentando (Frota, 2001). Elas podem ser de várias naturezas, fisiológica, afetiva, financeira, social, e não parecem ter em si um valor determinante a priori. Contudo, podem ser significadas diferentemente pelas pessoas que as experienciam, assumindo deste modo uma grande importância.

As situações disruptivas, desalojadoras, contêm o germe da possibilidade de desinstalar o indivíduo, possibilitando uma reinstalação. Elas podem gerar crises que, aqui, não assumem a pecha de negativas ou patológicas, postas de antemão. As crises podem ser extremamente positivas, assim como podem iniciar um processo patológico. Nada existe definido a priori, uma vez que tudo é construído na relação com o outro e com o mundo.

A reinstalação do si-mesmo é um processo, que parece inaugurar-se com o rompimento dos absolutos da infância e estender-se pela vida inteira. Na verdade, nada parece ser determinante nesta reinstalação do si-mesmo, uma vez que ela é somente uma possibilidade, podendo ser, ou não, vivenciada.

A reinstalação do si-mesmo pode ser entendida como um processo, no qual, finalmente, o indivíduo se percebe como isolado dos pais e da família, compreendendo-se como um ser de cuidado, habitando em um mundo, em um movimento constante de escoamento no tempo. Agora, o indivíduo vê-se como um ser de possibilidades, aberto, lançado no mundo, incompleto, precário na sua condição de humano. Se as capacidades de brincar, de agir criativamente e de inventar o mundo são marcos de saúde no processo de amadurecimento humano, reinstalar-se no mundo talvez seja o mesmo que poder imprimir uma marca pessoal na vida, uma vez que agora o indivíduo é capaz de criar a si e ao mundo a partir do que de mais próprio ele pode ter: sua condição de humanidade. A maturidade seria, então, compreendida como a possibilidade de tomar a vida nas próprias mãos, cuidar de si como um ser de possibilidades, escoando-se no tempo.

 

CONCLUSÃO

A partir do que já disse, faço novas considerações: do mesmo modo que a maturidade psíquica não é o mesmo que idade cronológica, posso afirmar que a adolescência, vista como fenômeno existencial, também não é determinada por ela. Ao mesmo tempo, a adolescência também tem proximidade com o fenômeno da puberdade, mas não se confunde com ela. Portanto, adolescência e puberdade não são a mesma coisa, assim como a adolescência não é sinônimo de reinstalação do si-mesmo.

A adolescência, na perspectiva winnicottiana, pode ser compreendida como uma reencenação de fases anteriores, embora com peculiaridades próprias, assim como uma experiência a ser repetida mais no futuro. Além disso, toda a movimentação do desenvolvimento emocional aponta pra uma integração do ser, um amadurecimento dos instintos e um enriquecimento da personalidade.

Ainda na ótica de Winnicott, a constituição do ser humano é, toda ela, atravessada por uma tendência à integração, busca contínua e conquista precária, sempre estando por ser acabada. Na verdade, o homem herda a tendência de amadurecimento e é esta a capacidade que melhor o define como homem. A natureza humana é, portanto, um temporalizar-se, uma vez que cada indivíduo está destinado a amadurecer e a responder por seu ser, no seu tempo, que ocorre entre dois marcos: o nascimento e a morte.

Quando o bebê tem condições de viver no interior da sua psique, quando ele tem um dentro e um fora, e tem mundos interno e externo, é possível falar de instalação do si-mesmo. E somente quem pôde se instalar no mundo pode reinstalar-se, na adolescência.

Para reinstalar-se o si-mesmo, parece ser necessário que aconteça uma quebra na ilusão de continuidade do viver sereno. Tais rupturas são provocadas por situações desalojadoras e disruptivas, aquelas que, de alguma forma, quebram a sensação de continuidade na vida como um fluir sereno e inabalável. Elas introduzem uma noção, mais ou menos clara, da condição humana de inospitalidade e incerteza no mundo, quebrando a certeza da segurança e serenidade absolutas, deixando no seu lugar o gosto travoso do estar lançado no mundo e do ter-que-cuidar-de-ser, tarefa humana, intransferível e inadiável.

O adolescente pode inaugurar uma subjetividade na qual amplia as fronteiras do si-mesmo, vendo-se como indivíduo, responsável por cuidar de si e do outro. Deste modo, segundo minha compreensão, a adolescência pode constituir-se em um momento fundante na busca de um lugar próprio para uma instalação no mundo, lócus multifacetado, fragmentado, com marca própria. Logo, parece tornar-se possível pensar a adolescência como um momento existencial processual, quando se reinstala o si-mesmo e se inaugura nova subjetividade, que se constituíra no sentido da maturidade.

 

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Endereço para correspondência
Ana Maria Frota
E-mail: anafrota@ufc.br

Recebido em: 03/09/2006
Revisado em: 06/10/2006
Aprovado em: 08/01/2007

 

 

1Segundo Loparic (1995; 1996[1996a e 1996b?]), para Winnicott existem diferentes realidades e a elas correspondem diferentes mundos.
2Nesta perspectiva, por mais complexa que resulte a psicologia da busca do sentido do si-mesmo e do estabelecimento de uma subjetividade, à medida que o ser humano amadurece, nenhum sentido do si-mesmo se constrói, senão sobre a base da relação com o sentido do ser. E este é histórico, constituindo-se no tempo.

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