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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.59 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007

 

ARTIGOS

 

O inconsciente como estranho/familiar e jogos-de-linguagem na práxis psicanalítica de casal

 

The unconcious one as strange/familiar and language-games in the couple psychoanalytic praxis

 

 

Daniel Luiz Magalhães Souza

Psicólogo clínico

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse texto propõe alguns apontamentos acerca do conceito de inconsciente, abordado em seu aspecto teórico, especialmente ao enfatizá-lo como conceito tradutor do estranho/familiar, que retorna nos derivados do recalque. Intenciona-se articular a práxis psicanalítica de casal no campo da Justiça com jogos-de-linguagem para identificar essa incidência do estranho/familiar. O esforço será, então, o de ressaltar o pensamento de que os derivados do recalcado se revelam e se ocultam no próprio ato do sujeito ao se constituir na e pela linguagem.

Palavras-chave: Psicanálise; Inconsciente; Estranho; Wittgenstein; Jogos-de-linguagem.


ABSTRACT

This paper considers some notes concerning the unconscious’ concept, boarded concept of in its aspect theoretician, especially when emphasizing it as translating concept of the stranger/familiar, that it returns in the derivatives from repression it. This article attentives to articulate the psychoanalytic praxis of couple in the field of Justice with language-games to understand this incidence of the stranger/familiar. The effort will be, then, to stand out the thought of that the derivatives of the repression one if disclose and if they occult in the proper act of the subject if to constitute in and of the language.

Keywords: Psychoanalysis; Unconscious; Strange, Wittgenstein; Language-games.


 

 

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

O objetivo deste artigo é apontar para a possibilidade da práxis psicanalítica como ação de trabalho no campo jurídico &– Varas de Família &– a partir dos jogos-de-linguagem como instrumental de apreensão dos conflitos psíquicos. Para tanto, pretende-se ponderar sobre a práxis psicanalítica com casal, especificamente usada no trabalho de quase cinco anos em Mediação Familiar no Judiciário brasileiro.

Elege-se enfocar, nessa discussão, a leitura do inconsciente &– tomado em seu caráter dinâmico &– cujas formações se expressam enquanto um estranho/familiar (FREUD, 1919-1987). Freud (1919-1987) assim o recortou, epistemologicamente, ao usar o vocábulo alemão Unheimliche,querendo designar a estranheza psíquica, contudo, passível de alguma inteligibilidade. Termo difícil de traduzir, porém, encontra no vocábulo português estranho uma boa versão. Justo por ele conseguir apreender, com propriedade, o quão vago, ilimitável e enigmático pode ser o inconsciente em suas formações. No entanto, pode-se fazer acessível, caso seu material &– os derivados do recalcado &– seja traduzido em palavras.

Para melhor situar o tema, expõe-se uma descrição sucinta da experiência de Mediação, como uma alternativa inovadora de enfrentamento dos conflitos psicológicos, afeitos à díade conjugal e a seu desenlace. Nas Varas de Família, casais buscam resolver seus problemas relacionais por meio do poder do Estado de dizer de quem será o Direito. Tal fato se manifesta em processos litigiosos em sua imensa maioria. Estes processos, a bem da verdade, acabam por descortinar conflitos interiores latentes de cada sujeito envolvido na ruptura do laço conjugal.

Na Mediação, cada cônjuge era convidado a falar sobre o vivido, tanto a partir da realidade que se deixava ver faticamente, quanto no desvelar de experiências concernentes a uma realidade psíquica, produzindo um saber singular sobre si. Assim, nas ações judiciais de família, pôde-se entrever o desentranhar de uma gama de demandas amorosas, distorcidas em petições sobre direitos lesados, em que pesem serem, estes últimos, situações legítimas.

Pela emergência dessas demandas que extrapolam querelas judiciais estritas, crê-se que fica postulada a pertinência da inserção da práxis psicanalítica com casal no campo do Direito de Família. É importante salientar que esta será uma dentre tantas outras possibilidades de recortar a questão. Não há aqui a pretensão de esgotar o assunto ou de oferecer conceituação nova à teoria psicanalítica.

 

Caso SR. W &– SR.ª K

A fim de empreender uma articulação entre inconsciente como estranho/familiar e a práxis psicanalítica de casal no campo jurídico, se tomará primeiro o conceito de jogos-de-linguagem da filosofia analítica de Ludwig Wittgenstein (1975). Wittgenstein cunhou o conceito supracitado em sua segunda filosofia, quando propôs compreender o funcionamento da linguagem a partir dos jogos enunciativos e da produção evocativa de seus múltiplos sentidos em variados contextos. Por conseguinte, Wittgenstein alcança o entendimento de não existir racionalidade fora da linguagem (WITTGENSTEIN, 1975 apud MARZAGÃO, 1996).

Aqui neste trabalho, o conceito de jogos-de-linguagem postula-se por um conjunto de práticas lingüísticas complexas, compartilhadas por uma coletividade em um dado recorte de contexto cultural. Essas práticas não são regras gramaticais, mas sim práticas enunciativas autônomas, que prescindem da justificação intencional de quem as utiliza para que aconteçam como tais. Essas enunciações implicam na aceitação tácita de suas condições por aqueles que nelas articularão suas experiências vividas. O que não quer dizer que todo falante tenha que dominar, pela intelecção consciente, aquilo que deverá desempenhar no fato de agir ao dizer algo. No jogo, todos assumem ações únicas inseridas em modos de vida, passíveis de serem partilhados (WITTGENSTEIN, 1975). Foi a partir dessa idéia de jogo propriamente dito que Wittgenstein elaborou o conceito de jogos-de-linguagem,acima esclarecido, e tão útil à práxis psicanalítica contemporânea. Esse conceito servirá para iluminar, também, o saber/fazer da psicanálise com casais, em uma perspectiva pragmática.

Na dinâmica das sessões de Mediação em que os envolvidos falam sobre aquilo que lhes pareça melhor, como lhes venha à mente, entram em movimento certos jogos amorosos, conflitados, em que pese entender o comprometimento do interesse de quem fala em se direcionar ao de quem o escuta. O mesmo se verifica na práxis psicanalítica cuja regra fundamental está posta no livre associar. A bem dizer, em ambas há posições a serem tomadas ou enfrentadas, há papéis a serem desempenhados, revistos, ou destituídos. É lugar-comum afirmar que a psicanálise se reinventa a cada fala de alguém a outrem. Não obstante, tal ação não é sem efeitos, pois, nesta reinvenção mediada por discursos, aparecem as possibilidades de sempre retomar significações outras naquilo que se diz. Significações estas que tragam, via palavras, experiências de um mundo vivido, seja ele ficcional ou semificcional para o falante, ou até mesmo fático. Tais experiências precisam ser dotadas de algum sentido e, como conseqüência, configurar verdadeiras ficções teóricas do sujeito humano para si próprio, tornando-se passíveis de ressignificação, dependendo do que se evoque no dizer.

Os enunciados compartidos e interpelados em uma análise configuram percursos de elucubrações mentais, por vezes inusitadas, que o sujeito faz da própria história de vida. São traduções &– não transliterações &– em palavras de sua weltanschaung. Daí que, em falando o sujeito, algo sempre se lhe escapará, algo sempre se perderá. Estas produções mentais do sujeito são atravessadas por outras, as interpretações do analista. Estas últimas, por sua vez, revelam também construções mentais advindas da própria weltanschaung do analista. Nesse engenhoso tecer de discursos, em que algo se revela e toma sentido novo, embora muito fique inominável ou se perca, os enunciados do analista encontram ressonância em algumas das lacunas dos enunciados do paciente. Aqui caberia, então, a propriedade de dizer que é nesse tear discursivo, nomeado por Wittgenstein (1975) como jogos-de-linguagem, que acontece o ato analítico com sua eficácia terapêutica.

Exposto o modo de ler esse conceito de jogos-de-linguagem,no intuito ainda de ilustrar a discussão subseqüente, foram extraídos alguns fragmentos das sessões de Mediação. Tais fragmentos sofreram significativas mudanças, em boa parte omissões, visando o sigilo ético-profissional, além do que o Código de Processo Civil brasileiro preceitua que os procedimentos de prestação jurisdicional, envolvendo matéria concernente ao Direito de Família, corram em segredo de justiça. Segue-se o registro de recortes do caso já concluído. A partir desses fragmentos, se intentará articular o estranho/familiar com jogos-de-linguagem na práxis psicanalítica1.

Preâmbulo: Casal com três filhos (uma adolescente e duas crianças que não serão identificadas). Há alguns anos em litígio pela separação legal e modificação de guarda. Adentram a sala com um ar circunspecto, desconfiado e um tanto depressivo. Espreitam tudo com o olhar, como que em um esforço de disfarçar sua aparente ansiedade. Toda a explanação necessária lhes é dada quanto ao procedimento a ser realizado na Mediação. Modificam-se os semblantes, com gestos de alívio por não estarem sendo julgados ou sentenciados ali. Colocam-se bem disponíveis à abordagem e sem maior hesitação. Não obstante, permanecem em pé com certa tensão pairando no ar.

Analista: Por favor, sintam-se o mais à vontade possível comigo. Não sou juiz, portanto, não julgo, nem posso sentenciar nada. Apenas tentarei mediá-los.

O casal: [Falam juntos] Obrigado/Obrigada... Onde nos sentamos? [risos].

Analista: Cada um onde preferir e se sentir mais confortável. [Sentam-se mais vagarosamente que o habitual].

Analista: Antes de ouvi-los, gostaria de esclarecer que ambos poderão falar e decidir como e quando quiserem sobre todas as questões que pretendam tratar aqui. Será muito importante que possamos escutar sempre uns aos outros.

[No Judiciário, sempre se inicia pela possibilidade de reconciliação, obrigatória por lei].

Analista: Gostaria de dizer-lhes que são livres para estar aqui. Nós trataremos, muito especialmente, da relação do casal. Então... Vocês vêem possibilidades de que a união se refaça? Entre vocês, existe ainda alguma vontade ou esperança de reconciliar? Quem gostaria de nos dizer?

Sr. W: [Rindo bastante, porém, com expressão tensa no rosto] Não, nenhuma possibilidade. Bem, eu não quero nem vejo motivos pra estar aqui, mas se ela quer assim...

Sr.ª K: [Ao ouvi-lo, mareja os olhos, meneia a cabeça negativamente e diz com voz trêmula] Não! [...]

Analista: Contem-me, como tem sido o que vocês vêm vivendo, para chegar hoje à separação?

Sr. W: Acho melhor que ela fale primeiro porque foi ela quem me trouxe aqui.

Sr.ª K: [Visivelmente angustiada, chora muito e não consegue se expressar de imediato. Depois de muita hesitação, fala, ainda dominada pelo choro] Eu preciso mesmo é aprender a me perdoar ... Não sou tão errada assim nada... Tenho é que entender que não posso mais fazer tanto mal a mim mesma do que já fiz... Tive uma péssima relação com minha mãe... [Chora de novo] Decidi buscar ajuda lá em X. Fui até lá... Ir lá foi muito bom pra mim... Vi W pela primeira vez em X, passei a ir nos mesmos dias e horários que ele, nem sei por quê. Não queria encontrar com ele não. Ele me evitava sempre... E eu... Eu não queria nem podia ver ele. Não quero mesmo mais esse meu casamento de volta, não com essas atitudes dele de pensar que só eu sou a errada.

Analista: Eu também deveria pensar que só você é a errada?

Sr.ª K: Não, não. Você não. Você só nos ajuda. Eu é que sou assim. Só depois da terapia é que consegui descobrir quem eu sou e o que quero.

Analista: E quem você é? Qual o seu querer aqui?

Sr.ª K: Eu, eu mesma, nem sei mais. Ah! Eu só queria poder estar com as minhas "filhotas". Só sei que esse relacionamento com W não quero mais. No início, eu era muito medrosa e aceitava tudo o que ele queria. Não tinha experiência de nada, aprendi tudo com ele e achava que era assim mesmo que devia ser, até que começou a ficar esquisito...

Analista: Não está tão claro para mim como parece já estar para você...

Sr.ª K: [Bastante constrangida] O sexo... O sexo dele...

Analista: O sexo dele?

Sr.ª K: Não! O sexo com ele.

Analista: Como era para vocês? Do que vocês gostavam e o que esperavam um do outro?

Sr.ª K: Ah! Foi bem um susto pra mim! Você leu no processo, né? Então, era como eu disse lá. Ele queria nas posições mais esquisitas e dum jeito anormal que me fez muito mal, fisicamente, mal. Você sabe, né? De todo jeito, inclusive comigo dopada... Era horrível!!! Mas eu estava muito apaixonada e me sujeitava.

Analista: Como mesmo ou quando, K, você foi se dando conta do que não queria mais se sujeitar? Sabia como ele era...

Sr.ª K: Sabia não. Ele foi muito sedutor no início e só depois fiquei sabendo como ele gostava de fazer... sexo. Quando casei que descobri quem ele realmente era. Fui uma boba, não sabia nada...

Como eu o conheci? Fui a uma festa e, lá chegando, quem estava? Ele. Veio me convidar pra dançar, recusei, mas depois não resisti. No instante que o vi, pensei que não era o homem da minha vida... Assim que o vi, pensei, não é homem pra mim, não. Mas ele era aquele homem lindo, é um homem lindo mesmo, tão gentil e educado! [Chorando muito] Nós nos telefonamos durante um mês, mais ou menos, e eu não queria nada com ele, mas aceitei um encontro, nem sei por quê. A partir desse encontro, decidimos casar. Vivemos juntos todo esse tempo [uns vinte anos] e tivemos muitos atritos. Eu sei que errei bastante, mas não fui a única errada, não sou a mais errada do mundo não. [Novamente, chorando muito, faz gesto de estar sufocada e de não poder falar mais].

Analista: Você gostaria de falar, desabafar o que vem sentindo?

[Sr.ª K faz meneios afirmativos com a cabeça, porém chora e se cala].

Analista: W, como foi para você viver tudo isso com K e ver o sofrimento dela?

Sr. W: Nós nos conhecemos mesmo quando ela foi àquela festa. E... foi tudo como ela disse. Quando fui na casa dela e vi como era linda, pensei... Iria dar uma ótima mãe... A gente não escolhe quem a gente ama, a gente ama quem a gente escolhe... Fomos viver juntos depois desse encontro. Rapidamente casamos... Nossas brigas começaram muito cedo no casamento... Ela tinha certos comportamentos que só fui descobrir muito tarde.

Sr.ª K: Não era bem assim. O W é um predador de amor próprio, não me respeita no que eu quero. Quero separar porque não agüento mais ser só usada. Acaso sou só boa parideira? [Choro novamente] Vocês leram o processo?

Analista: Sim.

Sr.ª K: Então, é tudo como falei aí. O W queria sexo de tudo quanto é jeito, até comigo dormindo. Fazia, principalmente, anal, que ele mais gosta. Nos separamos porque já não agüentava mais isso. Aí, um dia ele me chamou pra conversar e disse que era só conversa mesmo. Fomos conversar num motel. Ele veio todo, todo, e disse que seria a última vez, se eu não quisesse, não me procurava mais. Deixei. Fizemos normal. Quando eu menos esperava, ele me virou com força e fez de novo do jeito que eu detestava. Foi horrível!!! Aí eu entendi que entre nós acabou tudo mesmo. Fiquei decepcionada demais!

Analista: W, como é para você ouvir de K que ela não quer mais o que você quer?

Sr. W: Ah! Isso não... Já até estou vendo nuvens negras sobre minha cabeça... Eles bem que me avisaram, lá na rua, que ela gostava de uns carinhas. Eu é que demorei a perceber, mas bem que todo mundo me avisou que ela gostava de sair com eles... Uma mulher casada não age desse jeito!

Analista: Você imagina que eu deveria saber esse jeito como ela age? E que ligação isso teria com o fato de K já não mais suportar seu jeito, por exemplo, de fazer sexo?

Sr. W: Não é nada disso não. Ela não me quer mais porque as meninas não quiseram ir embora com ela. Ela quis separar elas. Elas são muito apegadas e não vão suportar separar não.

Analista: Eu deveria pensar que você vai suportar separar?

Sr. W: Eu amo do mesmo jeito de sempre. Não vejo razão pra separação não. Mas as minhas crianças ela não vai separar. Não deixo. Vai ser ruim pra elas.

Analista: Então, você não suporta separar também? E quanto aos motivos de K? Pelos menos, de ela não lhe querer mais?

Sr. W:  Não é nada disso de intimidades não. Ela é que foi embora... A minha mais velha e ela brigaram, mas eu orientei... que não pode tratar mãe desse jeito não. Eu sempre amei e respeitei muito minha mãe. Quando ela se separou do papai, rezei tanto que Deus restaurou nosso casamento...

Analista: Nosso casamento?

Sr. W: Não, não. Quis dizer o casamento deles, dos meus pais... Mas, voltando à minha mais velha, o que posso fazer? Ela já ’tá grande, já sabe o que quer...

Sr.ª K: Não é bem assim. Ele deixou ela ler o processo de propósito, porque eu já não aceitava mais sexo daquele jeito e aí, W, pra me punir, deixou os papéis fáceis e ela leu tudo. Aí tomou raiva de mim. Agora ’cê veja só, logo de mim?! O pior é que leu sobre nossas intimidades. Isso deve ter traumatizado muito. [W tenta interromper, dizendo, com veemência, que era mentira, mas K insiste firme e ele se cala].

Sr.ª K: É sim, W, você sabe disso, mas deixa pra lá. Não quero e não vou falar mal de você não... Ele tinha muitos ciúmes de mim, me obrigava até a confessar de noite se eu tinha ido com outros caras... Ele brigava muito, mas nunca falava alto, nunca gritava. Falava sempre baixinho no meu ouvido, mas sempre falava. Tinha vez da gente ir subindo com ele falando sem parar no meu ouvido... Mas, não quero falar dele não... Ah! Lembrei... ele não queria a primeira gravidez, quando soube dela me disse para fazer aborto, só que ele não iria comprar o remédio para mim. Se eu comprasse e tomasse, ele ficaria de mãos dadas comigo na cama até o aborto terminar. Ele não dava a mínima pra ela. Com o passar do tempo é que foi ficando mais próximo, até que se apegou tanto que quando saiu de casa, levou meus filhotinhos e me impede de ver. E agora ’tô aqui sem eles!...

Analista: Fico tentando pensar, o que te fez aceitar tudo isso?

Sr.ª K: É... Deixa eu contar. Ele foi desenvolvendo um amor exagerado pela mais velha, a ponto de ter muitos ciúmes dela também. Ele é um ótimo pai. Cuidou... Do jeito dele... mas cuidou bem. Brigamos por causa dos ciúmes dele. E eu, descontrolada, mandei eles dois embora com a empregada, queridinha deles!

Analista: Você parece sentir ciúmes dessa empregada...

Sr.ª K: Com o W? Com ele nunca, mas com minhas filhotas, aí é diferente... Especialmente, o caçula. Ela quer tomar o meu lugar na vida deles e eu acabei deixando isso acontecer... Mas foi ele quem foi embora de casa e levou as crianças sem eu saber pra onde. Quando vi isso acontecer, peguei um táxi e fui desesperada atrás. Nos perdemos. Quando finalmente achei, não tinha mais dinheiro pra corrida e o taxista me deu umas fiveladas... Sabe?

Analista: Não sei. O que seriam, para você, essas fiveladas?

Sr.ª K: Quando encontrei a casa, fiz o maior escândalo na porta dele. Foi tão grande o barraco que fomos parar numa delegacia. Lá contei que W tinha me violentado, mas depois arrependi e disse a verdade.

Analista: Você acredita que eu saiba sobre essa verdade? Qual seria ela?

Sr. W: Ela disse que o taxista bateu nela. [A Sr.ª K emudece nesse instante].

Analista: Como soube disso, W?

Sr. W: Pedi a uma pessoa de minha casa pra olhar pela janela quem era o taxista que a trouxe e essa pessoa me disse que era um carro bem velho, não podia ser táxi não. Eu não agüentava mais ser o "manso" da rua.

[Pausa silenciosa e tensa].

Analista: W, você presenciou tudo isso ou a pessoa da janela foi quem lhe contou? [Sr. W, visivelmente transtornado, muito ruborizado e em um silêncio bastante tenso, responde gaguejando, entre silêncios e com voz embargada].

Sr. W:  Acho que não... Penso que não... [Nesse momento, Sr.ª K fecha os olhos; os lábios, movendo-se sutil e tremulamente, parecem balbuciar uma reza incompreensível].

Analista: K, gostaria de dizer algo?

Sr.ª K: [Novo choro] Só gostaria mesmo é de poder ter meus "fiotinhos", há meses que não falo com eles. Nem sei onde W mora com eles. Ele não me deixa ir lá vê-los... São meus, pôxa!

[...]

Aqui se interrompe propositadamente o fragmento. O que se seguiu, indicado pelas últimas reticências, foram outras sessões, em que detalhes desta relação complexa se descortinaram em uma trama entrelaçada de permissividade, transgressão e sexualidade atuada. Assim, neste contexto, pretende-se argumentar sobre as formações do inconsciente como esse estranho/familiar que aparece disfarçado e distorcido em demandas amorosas apreendidos por jogos-de-linguagem.

A incidência do estranho no discurso analítico, melhor dizendo, nos discursos analisáveis, configura uma das propriedades dos jogos-de-linguagem. O inconsciente põe-se em cena como um estrangeiro que habita o interior do psiquismo, sendo um sistema que traz à tona material surpreendente, que desloca e descentra o sujeito diante da sua realidade concreta. A própria divisão da mente em partes conflitadas entre si já denuncia a fecundidade do estranho enquanto conceito que diz sobre o que está recalcado. O Eu é inusitado e corriqueiro ao sujeito falante. Ele tanto se dá a conhecer pelas inúmeras articulações da consciência com a racionalidade como pode causar espécie, espanto, formando o recalcado.

Freud (1919-1987) diz textualmente: "[...] o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar". Aquilo que é espantoso o é porque não pode ser tomado por algo do cotidiano. Entretanto, para Freud (1919-1987), esse estranhamento é revelador do inconsciente enquanto esse sistema psíquico que está todo o tempo presente, porém, oculto, adverso, sombrio, abissal, insondável por vezes. Para acessá-lo, há que se debruçar sobre as raridades que irrompem naquilo que pareça ser comum ao sujeito. Não se trata, pois, do não sabido apenas, antes sim do inominável e que é provocador de aturdimento, conquanto se manifeste. É nesse sentido que o estranho/familiar se mostra/esconde também em uma relação conjugal.

A psicanálise está habituada a tratar do indivíduo no um a um, no caso a caso. Quando ela é interpelada por dois sujeitos juntos, por exemplo, um casal, vê-se diante de novo desafio à sua práxis. Cabe dizer que é novo desafio porque cada membro do par conjugal, ao falar do parceiro para que ele ouça e se implique, encontrará com um si-mesmo e não só com a díade conjugal. Daí que se verão, os dois, convocados a deparar-se com seu estrangeiro habitante &– o inconsciente &– em uma mesma sessão clínica. Nesse enfrentamento, alguma racionalidade tentará dar conta do estrangeiro que se apresenta em ambos parceiros amorosos. Isto é, cada cônjuge tanto enfrentará um certo alheamento diante de si próprio e do outro, quanto certa familiaridade em uma dualidade narcísica. Isto lhes parecerá inconcebível e denotará, pois, uma das várias manifestações do retorno do recalcado nesse estranho/familiar.


ESTRANHO/FAMILIAR E OS JOGOS-DE-LINGUAGEM NA PRÁXIS PSICANALÍTICA

Neste fragmento de caso, à luz de minha leitura, há fios discursivos, reveladores dos jogos-de-linguagem,jogos, esses, amorosos, entremeados com muita peculiaridade. Os sujeitos dizem de si muito mais do que, controlada e conscientemente, queiram, e o fazem às expensas do analista. Contudo, não se dão conta de que produzem ação no momento mesmo em que proferem algo. As interações discursivas do fragmento supracitado revelam que os jogos-de-linguagem contêm em si concepções fundamentais da própria teorização psicanalítica (MARZAGÃO, 1996). Observam-se, nos jogos-de-linguagem, repetição, atos falhos, conflito edípico, dualidade libidinal, narcisismo, condensação, deslocamentos, denegação. Esta última, presente inúmeras vezes nos dizeres e produzindo algo muito próprio do funcionamento inconsciente, ou seja, forçar para a consciência desejos que só se permitem por seu extremo oposto, distorcidos em simplórias ou quase ingênuas negativas. Estaria bem aí o próprio do retorno do recalcado no ato de dizer, isto é, oferecer-se como estranho e familiar a um só tempo. Uma das primeiras falas da Sr.ª K seria bem ilustrativa: "[...] eu preciso mesmo é aprender a me perdoar... Não sou tão errada assim nada... Tenho é que entender que não posso mais fazer tanto mal a mim mesma do que já fiz... Tive uma péssima relação com minha mãe...".

Nos jogos-de-linguagem, os sujeitos não precisam saber racionalmente as regras a serem empregadas. Pois não se trata do emprego de regras gramaticais puras, mas antes da concatenação tácita de enunciados que circunscrevem interações psicoafetivas sexualizadas, enfim, as pulsões e a libido organizadas na linguagem. Logo, o inconsciente traz à baila, sutilmente, uma de suas manifestações, revelar-se distorcido e travestido na roupagem dos discursos, usando da economia psíquica para dar destinos diversos aos excedentes pulsionais.

A pulsão satisfaz-se quando desejos são realizados, pela expressão em palavras de variados afetos. Destrutividade versus excitabilidade, ambos bem imiscuídos, é uma dessas possibilidades de se fazer audível o discurso daquilo que seja pulsional. É isso que se vê repetido na transferência, sempre que ela, a transferência, convoque o analista a certas parcerias amorosas. Leia-se de novo o trecho da Sr.ª K sobre o marido para verificar essa demanda de parceria com o analista:

Sr.ª K: [...] Ele me evitava sempre... E eu... Eu não queria nem podia ver ele. Não quero mesmo mais esse meu casamento de volta, não com essas atitudes dele de pensar que só eu sou a errada.

Analista: Eu também deveria pensar que só você é a errada?

Sr.ª K: Não, não. Você não. [...].

Desse modo, os jogos-de-linguagem engendram atos ilocucionários. Ato ilocucionário é um conceito de John Austin (1990) que preconiza o fato de algo ser feito ao ser dito. A enunciação cria uma força performativa em que a linguagem do enunciador funciona como atividade subjetiva diante de seu interlocutor. Neste modo de enunciar, de produzir discursos, recupera-se o que há de mais psicológico ou mental no ato criativo de dizer/fazer (AUSTIN, 1990; HABERMAS, 1999; MAINGUENEAU, 2002). O analista que enfrenta o cotidiano da clínica não pode, mesmo que queira, ser neutro àquilo que seu paciente lhe fala, em especial quando ambos entabulam entre si conversas nas quais tanto contribui o inconsciente do paciente quanto o do analista (LAPLANCHE, 1993). O que não quer dizer que o analista esteja em posição simétrica a seus analisandos.

Uma dúvida no caminho destas últimas argumentações poderia surgir, qual seja, a imparcialidade do analista. Freud (1912-1987) defende a opacidade do analista diante do analisando em sua teoria da técnica. Entretanto, tal opacidade não se postulará na pessoa, mas sim no discurso do analista. Primeiro, porque a práxis psicanalítica acontece entre sujeitos que conversam e falam um ao outro/um para o outro. Segundo, será dessa incidência de múltiplas interações enunciativas entre eles que se evocarão no analista os proferimentos com valor interpretativo. Certamente, a opacidade da pessoa do analista seria um paradoxo freudiano, um desejo um tanto equivocado. Isto porque não há possibilidade de qualquer neutralidade por parte do analista quando do exercício de seu ofício. A opacidade é uma característica intrínseca a todo e qualquer discurso. Condição sem a qual só caberia pensar o sujeito falante de dentro da mais absoluta e radical intencionalidade consciente. Sua fala, desse modo, não endereçaria nada a ninguém, não conteria pretensões de verdade subjetiva, nem mobilizaria nada no outro que o escuta.

Fala-se para impactar o outro com quem se fala. Este último, ao receber os dizeres de seu interlocutor como se fosse um texto, transforma-os em um intertexto, para nele impregnar suas próprias impressões subjetivas, antes mesmo de decifrar o que lhe foi dito. E devolve à enunciação dada uma nova enunciação, tão comprometida quanto foi a primeira recebida. Logo, não há enunciador que não se preocupe em encontrar ressonância em seu co-enunciador. Nesse interpercurso inconsciente, muito do que se diz se perde, esvazia-se de sentido, toma novos rumos, imanta-se de outras significações. Tudo isto só poderá ser melhor apreendido na posteridade de seu acontecimento. Portanto, a opacidade é condição sine qua non em todos os discursos.

Há assimetria na interação analítica. Porém, há um percurso a ser seguido que é ditado pelos jogos amorosos expressos em um esforço de ascender ao simbólico e nele ressignificar o imaginário. Enfim, analisandos usam seus recursos mentais para tentar representar seu mundo vivido para o analista com quem reeditam desejos infantis inconscientes na transferência. Por seu turno, o analista usa os seus recursos mentais para o trabalho interpretativo. E, como são tributários da palavra engendrando discursos, ambos, analista e analisados, contribuem com os jogos-de-linguagem ao inserirem seus próprios repertórios psíquicos evocados nos seus dizeres, imanentes e auto­-implicativos.

O analista seguramente investiga o inconsciente e, tão logo consiga acessá-lo, imprime um esforço de decifração pela expressão da parte do jogo que lhe cabe dominar, ou seja, a interpretação. Ao dizê-la, contribui com seu próprio funcionamento psíquico no ato mesmo de enunciar. Caberia indagar sempre sobre o que seria essa interpretação. Seguramente, ela não será nem uma explicação, nem uma conclusão de sentidos do que se diz. Ela é, antes de tudo, um discurso interposto pelo analista aos discursos produzidos pelo paciente, pretendendo maior abertura possível na rede simbólica de modo a evocar sentidos que advenham do próprio paciente. Desta feita, a interpretação enseja promover deslizamentos e interpelações na ordem simbólica, principalmente, se aponta para as suas rupturas.

Nesse sentido, a interpretação do analista é sempre semi-iluminada. Isto é, ela não pode encerrar sentido único e último àquilo que se diz. Ela se marca por certo fracasso simbolizante tanto quanto o analista que a enuncia é marcado. Ambos, analista e sua interpretação, desvelam as mesmas fissuras que pretendem apontar. A interpretação do analista também se submete às leis do inconsciente, por isso não se pode pretender texto acabado ao qual o paciente acople sua história subjetiva. Neste sentido, chama a atenção as inúmeras dissonâncias e incoincidências no fragmento do caso:

Sr.ª K:[...] Eu sei que errei bastante, mas não fui a única errada, não sou a mais errada do mundo não. [Novamente, chorando muito, faz gesto de estar sufocada e de não poder falar mais].

Analista: Você gostaria de falar, desabafar o que vem sentindo?

[Sr.ª K faz meneios afirmativos com a cabeça, porém chora e se cala].

Analista: W, como foi para você viver tudo isso com K e ver o sofrimento dela?

Sr. W: Nós nos conhecemos mesmo quando ela foi àquela festa. E... foi tudo como ela disse. Quando fui na casa dela e vi como era linda, pensei... Iria dar uma ótima mãe... A gente não escolhe quem a gente ama, a gente ama quem a gente escolhe... Fomos viver juntos depois desse encontro. Rapidamente casamos... Nossas brigas começaram muito cedo no casamento... Ela tinha certos comportamentos que só fui descobrir muito tarde.

Sr.ª K: Não era bem assim. O W é um predador de amor próprio [...].

Assim, a interpretação do analista deverá, portanto, repetindo Jacqueline Authier-Revuz (1998), cotejar as não-coincidências do dizer, assim como reconhecer-se submetida e traspassada por elas. Ela deverá deixar sempre um espaço aberto para que o trabalho de perlaboração seja do paciente sobre suas próprias lembranças. Lacan (1953-1966) vem acrescentar que a função da linguagem não é a de explicar, mas, antes, é a de trazer à lembrança, a de evocar. Desta arte, é possível ver, no trecho supracitado, que o sujeito psíquico se constitui e se apreende naquilo que ele diz, no jogo de forças contrárias e conflitadas entre si que a cisão mental impõe. Fora do seu discurso não o é possível recortar.

Vale notar, nas não coincidências do dizer destacadas do trecho acima, como o casal se familiariza e se estranha nos próprios atos linguageiros que produzem ao serem contraditórios nas denegações, no não reconhecimento um do outro, em uma destituição subjetiva. Retome-se o estranhamento familiar da Sr.ª K assujeitada à proposta de aborto do marido: "[...] Ah! Lembrei... ele não queria a primeira gravidez, quando soube dela me disse para fazer aborto, só que ele não iria comprar o remédio para mim. Se eu comprasse e tomasse, ele ficaria de mãos dadas comigo na cama até o aborto terminar". Recapitule-se, também, o estranhamento da filha adolescente diante da sexualidade dos pais no episódio do conteúdo do processo: "Sr.ª K: Não é bem assim. Ele deixou o ela ler o processo de propósito [...], deixou os papéis fáceis e ela leu tudo. Aí tomou raiva de mim. Agora ‘cê veja só, logo de mim?! O pior é que leu sobre nossas intimidades. Isso deve ter traumatizado muito". O retorno do recalcado parece se valer de cada ato discursivo de estranhamento dos sujeitos para abrir caminho à consciência. Então, cada sujeito se captura ao se fazer único via linguagem e, nela, expropriar a si mesmo.

No fragmento do caso, o casal mostrou-se traído pelas próprias falas, ou seja, o existencial vivido ou fantasiado, irrecuperável tal qual se deu, neles parece não encontrar consonância. Resta-lhes, assim, a tentativa, mal sucedida por vezes, de ligar libidos &– do Eu versus objetais &– a respondentes psíquicos, capazes ou não de dar conta do vivido ou do fantasiado, no momento em que se tornem parte do jogo amoroso narrativo. Uma vez mais, reveja-se o Sr. W dizendo: "Quando fui na casa dela e vi como era linda, pensei... Iria dar uma ótima mãe... A gente não escolhe quem a gente ama, a gente ama quem a gente escolhe... Fomos viver juntos depois desse encontro". Assim mesmo, o que se tem é uma representação de experiências assimétricas, descompassadas, entrecortando o frágil encadeamento simbólico. Daí o truncado esforço de tentarem vestir uma mesma roupagem nos dizeres, em um vínculo dual narcisista que fracassa e se esvazia de sentido a cada nova discrepância entre eles.

Novamente, mais uma matreirice do recalcado que se aproveita das vias facilitadas e das sobredeterminações cheias de contraditos para aportar certa inteligibilidade ao vivido, não obstante inteligibilidade equivocada de si. Portanto, novos jogos-de-linguagem, cuidadosamente arquitetados pelos conflitos de forças entre os sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente, para escamotear a instância egóica, material que, de outro modo, seria insuportável de lhe aparecer. O inconsciente, dessa sorte e na economia psíquica, entremete-se no aqui-e-agora da sessão, seja em denegações, seja em inflações egóicas, seja em reedições edípicas, seja nas seduções histéricas de ambos, tudo dentro do movimento de transferência que se vai desenhando com o analista.

Em se endereçando ao analista, o par conjugal torna a palavra proferida ação, usando dos jogos-de-linguagempara expor seus mais sutis desejos amorosos inconfessáveis: seduções e fantasias carregadas de sexualidade atuada e falências narcísicas. E o analista participa, ao proferir seus dizeres com valor interpretativo, recusa-lhes simbiose nessa demanda amorosa. Não obstante, algo lhes escapa, tornando-se inominável, daí talvez o balbucio quando do ataque de ciúmes em relação ao marido e do choro que faz cessar a fala da Sr.ª K. Balbucio e choro são passíveis de compreender como gestos de simbolização, um pouco anteriores à significação dada pela palavra. Balbucio e choro, neste contexto, poderiam se entender como a expressão da alíngua lacaniana (LACAN, 1953-1966; ANZIEU et al., 1997).

Tomados por esta, tantas vezes inominável, condição de sempre algo escapar à fala, é que se pode assentir à dimensão do inconsciente feito fenda (LACAN, 1964-1998). Ele se revela por meio de sutis rachaduras na enunciação dos jogos-de-linguagem, posto que o estranho/familiar se mostra e rapidamente se oculta, não podendo ser integralmente resgatado tal qual se tenha ofertado. Por exemplo, quando do ato falho do Sr. W: "Quando ela se separou do papai, rezei tanto que Deus restaurou nosso casamento ... Analista: Nosso casamento? Sr. W: Não, não. Quis dizer o casamento deles, dos meus pais... Mas, voltando à minha mais velha, o que posso fazer?".

Neste sentido, o inconsciente somente se permite entrever aos pedaços, estando ofertado em lapsos de memória, na opacidade discursiva ou em fugidias errâncias de atitudes. Ele sutilmente revela e esconde, abre­-se à significação e se faz impossível de simbolizar. Freud (1919-1987) esteve atento a isso ao compreender que o inconsciente não se descobriu perante olhos leigos, teve de ser especulado em regiões abissais do psiquismo. Demonstrou que ele é mesmo um estrangeiro causador de estranhamento. Viu isto quando se propôs a interpretar sonhos, a escutar as neuroses de transferência, a identificar, ver e ouvir a sexualidade infantil recalcada escondida em lugares psíquicos nos quais sua presença jamais se pudera ou quisera notar.

O inconsciente (FREUD, 1915-1987b) se sustentará como depositário da ininteligibilidade dos atos incompreensíveis à consciência. Na consciência, há atos lacunares que, se não forem captados pelo entendimento do material escapulido do recalcado, permanecerão inexplicáveis. No entanto, nem todo o recalcado será acessível à consciência. Logo, caberá a ela a árdua tarefa de se irmanar com o Eu para produzir sentidos àquilo que nela retorna. Ambos se utilizarão de infinitos encadeamentos na ordem simbólica para transformar o material recalcado em recordado, significado, compreendido, compartilhado entre os dois sistemas para, por fim, ser perlaborado (FREUD, 1914-1987).

Desse engenhoso empenho da consciência de mãos dadas com o Eu, Freud (1937-1987) firmou-se também na premissa de que restaria à instância egóica o laborioso trabalho de transformar repetições em lembranças e estas em elaboração ulterior, isto é, tornar o que é inconsciente em consciente. E esse percurso ocorrerá tanto melhor caso seja possível realizá-lo em palavras, caso haja rico repertório de recursos mentais para ofertar respondentes psíquicos às pulsões. Isso significa que os atos inconscientes incompreensíveis precisam ligar pulsões a representantes mentais, imantados pela palavra, para construir o trabalho de simbolizar, imposto pela conciliação obrigatória do pulsional com o cultural. Nessa leitura dos vieses que o inconsciente toma para forçar caminho à consciência e do manejo dela com o Eu para significar, constantemente, o que lhe chega estranhado, é que se pode ver como os jogos-de-linguagem estão implicados e se perfazem nas possíveis ligaduras dessa travessia (ANZIEU et al., 1997; FORRESTER, 1990; MARZAGÃO, 1996).

Nessa produção de atos engendrados na fala, o trabalho do analista nos jogos-de-linguagem será o de desempenhar a arte de fazer-se dispensável. É no dizer que o paciente introjetará a função analítica e passará a se interpretar, a indagar seu próprio estranhamento e a se modificar perante a sua posição desejante. Gradativamente, ele irá desfazendo-se de parte do movimento transferencial com o analista. Equivale dizer que o paciente irá prescindir de sua neurose de transferência (FREUD, 1914-1987, 1915-1987a; FORRESTER, 1990; CARVALHO; FRANÇA, 2006). Assim, conhecer as manifestações do inconsciente e decifrar, pela interpretação na transferência, enigmas que convocam o sujeito a enfrentar as formações de seu aparelho psíquico e dele seus desejos são a tarefa de toda análise.

O que W e K trouxeram em seus jogos-de-linguagem, lendo também pela ótica da teoria da ação comunicativa de Habermas (SIEBENEICHLER, 1989; HABERMAS, 1999), foi a possibilidade de eles colocarem em palavras seu mundo vivido interna e interacionalmente, o qual se lhes emerge estranhado. Dito de outro modo, eles se lançam a um esforço, embora inconsciente, de ligar respondentes psíquicos a experiências subjetivas com o estranho/familiar de seus desejos a um modo singularizado de transitar na linguagem. Enunciativamente, ao dizerem de si, dentro dos jogos-de-linguagem, os sujeitos engendraram, eles próprios, respondentes psíquicos para suas experiências vividas na conjugalidade e em seu rompimento.

Contudo, o trabalho de escutar conflitos da conjugalidade, psicanaliticamente, no campo do Judiciário, deverá considerar a singularização de cada membro do par conjugal, na mesma medida em que singular seja o desejo revelado pelo estrangeiro habitante de cada um. Nesta práxis, os jogos-de-linguagem abrem-se como possibilidades para compreender e acessar percursos e matreirices do inconsciente, em que pese tanto ele se ofertar quanto se nos escapar no próprio discurso que construa os diversos modos de subjetivação.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Daniel Luiz Magalhães Souza
E-mail:danmagalhaes@yahoo.com.br

 

Recebido em: 03/04/2007
Revisado em: 20/04/2007
Aprovado em: 09/07/2007

 

 

1O material do fragmento de caso constitui-se de um recorte que se autorizou pelo extinto serviço de Mediação e se obteve por meio de anotações detalhadas feitas por dois mediadores observadores, formando um diário clínico. Todas estas anotações eram utilizadas nas discussões clínicas e orientação teórica do caso.

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