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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.59 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

O tratamento institucional do outro na psicose infantil e no autismo

 

The institutional treatment of the Other in child psychosis and in autism

 

 

M. Cristina M. Kupfer I; Carina FariaII; Cristina KeikoIII;

IUniversidade de São Paulo (USP)
IIUniversidade de Ibirapuera (São Paulo)
IIIAssociação Lugar de Vida &– Centro de Educação Terapêutica (São Paulo)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente trabalho, algumas propostas de tratamento institucional das psicoses com base na clínica psicanalítica são discutidas. Inicialmente, recortam-se algumas controvérsias em torno do estatuto do Outro na psicose e no autismo, já que os tratamentos propostos giram atualmente em torno de dois pressupostos diagnósticos divergentes: nestes quadros, supõe-se que haja falta ou que haja excesso do Outro. A noção de Outro se baseia nas contribuições teóricas de J. Lacan. Apresenta-se em seguida um tratamento institucional chamado de Tratamento do Outro, cujos fundamentos teóricos estão na base da experiência clínica conduzida em uma instituição de tratamento belga. Ao final, relata-se a experiência de uma instituição de tratamento no Brasil, na qual há dispositivos criados especificamente para tratar do Outro do sujeito psicótico.

Palavras-chave: Psicose infantil; Tratamento do outro; Psicanálise de crianças; Autismo; Tratamento institucional.


ABSTRACT

In the present work we discuss proposals of institutional treatment of psychosis and autism based on the psychoanalytic clinic. Initially, we present some controversial points around the status of the Other in psychosis and autism, since the proposed treatments at present orbit around two divergent diagnosis assumptions: in these cases one supposes that there is either absence or excess of the Other. The concept of Other is based on the theoretical contributions of J. Lacan. Subsequently we present some proposals of institutional treatments called Treatment of the Other. Finally, we report on the experience of an institution of treatment in which there are devices created specifically to treat the Other of the psychotic subject.

Keywords: Child psychosis; Treatment of the other; Child psychoanalysis; Autism; Institutional treatment.


 

 

As propostas de tratamento institucional das psicoses com base na clínica psicanalítica vêm se multiplicando de modo frutífero desde que François Tosquelles (1992) propôs, durante a Segunda Guerra Mundial, a entrada da psicanálise nas práticas institucionais em um hospital para psicóticos no Sul da França. O tratamento institucional das psicoses infantis também vem conhecendo grande desenvolvimento, impulsionado pelos escritos de Maud Mannoni (1970; 1977; 1979) desde a fundação de Bonneuil em 1969. Entre os desdobramentos atuais, destacar-se-ão neste trabalho algumas propostas institucionais que seguem os princípios daquilo que Alfredo Zenoni (1991) chamou de Tratamento do Outro.

No texto de 1991, no qual esse autor se refere pela primeira vez a essa expressão, há uma discussão que busca precisar a diferença entre um tipo de concepção das psicoses infantis que ele chama de genética e outra situada como “estrutural”.  As conseqüências dessas duas diferentes posições teóricas, no que diz respeito ao tratamento institucional, são também discutidas por Zenoni.

Para Zenoni (1991), a perspectiva genética a respeito dos determinantes da psicose infantil consiste em concebê-la como uma parada ou uma recusa de avançar sobre a linha do desenvolvimento, ou seja, a psicose infantil é entendida, dessa perspectiva, como uma defesa contra uma realidade excessivamente perigosa ou frustrante. Esses perigos podem advir, segundo ele, de fatores inatos ou de uma atitude materna inadequada. Dessa perspectiva, o tratamento será concebido como sendo essencialmente um tratamento do “pequeno sujeito”, e se fundamentará na interpretação ou na explicação sobre a causa “interna” desta parada. Portanto, a orientação psicanalítica da instituição resume-se à presença de um psicanalista exercendo a psicanálise sobre a criança, e é indiferente que esse tratamento se realize em uma instituição ou em um consultório particular.

Já a perspectiva estrutural não coloca a questão da psicose e de sua causalidade no plano da relação entre a predisposição inata e o meio ambiente, e sim “no plano do Outro, no campo das determinações significantes do sujeito” (ZENONI, 1991, p. 107).

Para Zenoni (1991), há na psicose infantil um excesso de Outro. As crianças psicóticas estão presas na posição de objeto do gozo absoluto de um Outro intrusivo que se apodera sem lei do ser do infans. Para esse autor, se o campo do simbólico é de imediato operante para o ser humano, também as crianças psicóticas são, desde o princípio, por ele tomadas, porém de um modo peculiar. “Aquilo de que sofre o pequeno sujeito psicótico não é um bloqueio sobre a via da humanização, mas muito mais um excesso, (...) da captura do ser vivo na dimensão que o especifica como humano” (ZENONI, 1991, p. 106). Portanto, não se trata de um não-acesso ao simbólico, mas, sobretudo, de um excesso. Trata-se de um tipo de “inserção nesse Outro” que obriga a criança a ocupar o lugar de prolongamento, sem separação possível, desse Outro.

A criança fica então submetida ao imperativo caprichoso de um Outro gozador, não simbolizado. Diferentemente da criança neurótica &– em quem a metáfora paterna opera a separação entre o eu do sujeito e o Outro, estabelecendo como resultado dessa relação um enigma (o que o Outro quer de mim?) &–, a relação da criança psicótica com o Outro se define pela certeza, e não pela intermitência da dúvida (o Outro sabe sobre mim, e determina o que devo fazer!).

O Tratamento do Outro supõe, então, uma perspectiva que entende o Outro do psicótico estruturado no registro do excesso. Sem dúvida, essa perspectiva não deixará de ter conseqüências para o tratamento institucional da criança psicótica. Antes, porém, de discutir essas conseqüências, não será possível avançar sem que se precisem algumas controvérsias em torno do estatuto do Outro na psicose e no autismo.

 

O OUTRO NA PSICOSE E NO AUTISMO

A leitura da psicose infantil entendida como uma defesa instalada contra a intrusão do gozo de um Outro absoluto, “sem barra”, ou seja, sem castração, aparece em alguns textos sobre o tratamento da criança psicótica (BAIO, 2003; FREIRE, 2002; ZENONI, 1991, 2002).

No entanto, a mesma concepção aparece em outros autores como sendo aquela que deve regular a leitura da relação da criança autista com o Outro, o que produz certa confusão. É claro que ela se deve ao fato de esses autores simplesmente não estabelecerem distinções entre a psicose e o autismo, orientados provavelmente pelo ordenamento que Lacan realizou em torno das estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão.

Zenoni é justamente um desses autores. Em seu texto de 1991, emprega indiferentemente os termos psicose e autismo, supondo que em ambos o que está presente é o Outro excessivo e invasivo. Ao falar de excesso do Outro, refere-se às crianças psicóticas, mas no parágrafo seguinte ilustra sua tese com um “sintoma geralmente reconhecido como signo do autismo” e interpreta o fenômeno do pointing1 Para ele, a ausência de pointing não testemunha um não-acesso ao simbólico, e sim uma captura absoluta na dimensão do Outro. O gesto “autístico” testemunha “muito mais um aprisionamento absoluto, sem limite, no campo da linguagem, do que de uma ausência de linguagem” (ZENONI, 1991, p. 106).

Soler (1999) é também uma autora que situa o Outro da criança autista como sendo semelhante ao Outro que muitos autores situam como sendo o do psicótico. Para ela, a posição do autista é a de ser falado pelo Outro; haverá sempre alguém a referir-se a ele, ou mesmo a dirigir-lhe a palavra, ainda que de modo breve.

Se é falado pelo Outro, pode-se dizer que está na linguagem, e se é falado, está assujeitado a ela, como todos os seres falantes, e é, portanto, um sujeito, mas um sujeito que não transforma esse assujeitamento em enunciação.

A relação com a alteridade é, porém, peculiar, de acordo com essa autora. Todo sujeito começa sua vida subjetiva no campo do Outro, e é engendrado a partir desse campo, em decorrência de seu desamparo e de sua dependência ao Outro Primordial. Também para o autista, afirma Soler (1999), há de início um S1 que representa a criança autista no campo do Outro. O problema é que a partir desse primeiro significante, engendrado no campo do Outro, não se seguirão outros. Ora, um significante isolado não pode ser considerado como tal, na medida em que seu significado não será gerado pelo deslizamento e pelas possibilidades de combinação e de substituição com outros significantes, o que é próprio do funcionamento da linguagem. Ora, um significante isolado não pode ser considerado como tal, e terá então apenas valor de signo, ao qual corresponderá apenas um significado. Se o Outro está fixado a um só significado, ficará sempre no mesmo lugar: no do Outro absoluto. Não há então o que perguntar sobre o desejo do Outro, não há dialetização, dúvida (o que quer o Outro de mim?). Por isso o Outro se torna absoluto, não recortado, não simbolizado.

Então, a presença do outro será sígnica. Isto quer dizer que a criança não opera com a polissemia, a variabilidade, a incerteza. O outro terá significados fixos, sempre sígnicos. As variações serão vistas como um problema, e a elas a criança reagirá evitando-as. Isso mostra que localiza os outros, registra sua presença, mas se trata de uma presença que não é regida pelo significante, e sim pelo signo.

Por essa razão, as crianças comportam-se como se fossem perseguidas pelos signos de presença do Outro, que é intrusiva. Reagem a tudo que é imprevisível como sinal de presença do Outro. Também, por isso, buscam a anulação do Outro. Há uma recusa e uma evitação do olhar e da voz. A criança parece não estar ouvindo ou olhando. Por isso também, a criança exibe uma rejeição da palavra do Outro, como, por exemplo, no ato de tapar os ouvidos.

Caso seja possível adotar essa formulação teórica para crianças psicóticas e autistas, poderíamos pensar a proposta de tratamento do Outro para ambas. O problema, porém, reside no fato de que há autores trabalhando com uma distinção entre autistas e psicóticas, e essa distinção se fundamenta justamente em uma diferença no modo de situar a relação dessas crianças com o Outro: para os psicóticos, excesso. Para os autistas, falta.

 

FALTA OU EXCESSO?

Há psicanalistas que caracterizam o autismo como um prejuízo severo ou mesmo uma ausência de laço com a alteridade.

Izaguirre (2001) defende a não-existência do Outro no autismo. Ali faltaria um Outro do desejo a supor uma demanda por parte da criança. Conseqüentemente, não se constitui o imaginário, e o ser do autista não será marcado pelo significante.

Stefan (1998), por sua vez, situa o autismo em um tempo anterior ao estádio do espelho, afirmando que no autismo não haveria Outro e sequer o outro, o semelhante. Estes autores afirmam a ausência de laço das crianças autistas a partir da constatação de que não estão constituídas na e pela linguagem: estão fora do discurso e fora da linguagem. Se o sujeito é uma produção, um efeito do fato de que somos seres de linguagem, então o autista está fora da linguagem nessa acepção estrita do termo. Pode bem falar, mas esse não é um ato que produz laço social e, portanto, um discurso. Fala, mas não se dirige a ninguém, e sua fala não o enlaça a ninguém. Muitas dessas crianças não fazem contato afetivo &– para usar a expressão de Kanner (1943-1997) &–, não se preocupam com o amor dos outros nem vão buscá-lo. Nos bebês, a não constituição do laço é atestada pela ausência de olhar, de vocalizações etc. Se é pela e na linguagem que se constitui o sujeito, seria necessário falar, no caso do autista, de uma ausência de subjetivação.

As teses de Laznik-Penot (1989) expressam bem essa posição. Em O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas, essa autora sugere que, para o autista, fracassou a instalação do terceiro tempo do circuito pulsional. Nesse terceiro tempo, surge para toda criança um novo sujeito, que é propriamente o sujeito da pulsão, a quem a criança se assujeita, de quem se faz objeto. Se não há circuito pulsional completo, o corpo não é tomado pela pulsão, seus orifícios não funcionam como zonas erógenas, não fazem borda, as crianças babam, são hipotônicas etc. Assim, não há construção do corpo erógeno, e a imagem corporal não se constitui convenientemente. Se há um fracasso na construção do circuito pulsional completo, o autismo representaria o não-surgimento de um sujeito da pulsão, aquele que se faria objeto para o gozo do Outro.

A leitura da construção da pulsão realizada por Laznik-Penot (1989) supõe o lugar do outro, do semelhante, articulado ao do Outro, na constituição do sujeito. Para ela, é preciso que haja um outro encarnando, suportando o Outro. Porém, há pais que não são enganados por nenhuma ilusão antecipatória: eles veêm o bebê real, tal qual, em seu desnudamento. Em trabalhos mais recentes, Laznik (2005) dá mais ênfase à participação da criança no não-estabelecimento do terceiro tempo do circuito pulsional, atribuindo-lhe uma sensibilidade que a impede de criar laços com os pais. De qualquer modo, é sempre em um fundo de ausência do Outro que a construção do autismo se faz.

Na literatura que discute as relações do autista com o Outro, há autores que entendem haver laço com o Outro, mas de tal forma intrusivo &– e nisso coincidem com a leitura da psicose infantil &– que o autismo passa a ser entendido como uma proteção contra a invasão do Outro, o que produz um laço que é próprio do autista. Há laço com o Outro, mas um laço específico, com características precisas, que fazem do autista um ser que construiu uma subjetivação muito peculiar, mas ainda assim uma subjetivação.

Ao realizar uma síntese das diferentes posições em torno desse debate, Holanda Rocha (2003) afirma que esses autores apontam uma seletividade na evitação da criança autista. Não se trata de que não olha; recusa-se a olhar. Há uma surdez específica e uma exclusão ativa do Outro. A partir dessa constatação, perguntam-se se de fato houvesse uma ausência de inscrição do Outro, essa falta provocaria uma defesa geral, um fechamento total do campo perceptivo, e não uma seletividade.

Freire (2002) discute a resposta do sujeito para fazer face ao excesso de gozo que o Outro lhe impõe. Sua reflexão concentra-se no autista, um sujeito que está na linguagem mas não dispõe de recursos para criar uma realidade fantasmática que possa protegê-lo dessa invasão. Por isso, sua resposta acaba sendo a de anulação do outro, na tentativa de deter seu gozo invasivo. Para Freire (2002), o autista deve ser tomado em sua dimensão de enigma e não de déficit.

Nesse sentido, se para Freire (2002) o autista está na linguagem, a diferença em relação ao psicótico ganhará uma outra direção, como no texto de Zenoni (1991): tanto para esse autor como para Freire (2002), o  autista é um psicótico que realiza um trabalho incessante na direção de barrar o Outro, e nisso coincide também com os profissionais de L´Antenne 110 (1993), para quem o autista é um psicótico “trabalhando”.

Strauss (1993) propõe outra maneira de abordar a questão do Outro no autismo e na psicose. Para ele, o que está em jogo nos diferentes sujeitos (neurótico, psicótico e autista) é sempre a tentativa, de diversos modos, de barrar a iniciativa do Outro. O psicótico, por meio de seu delírio, buscará reconciliar-se com a idéia insuportável de sua fantasia. O autista, cuja mobilidade no mundo é menor que a do psicótico, por não dispor nem da metáfora paterna nem do recurso à suplência de uma construção delirante, terá que barrar a iniciativa do Outro por meio de um trabalho incessante, de oposição e mesmo de anulação do Outro. Para ambos, a iniciativa do Outro é insuportável, como o é também para o neurótico. Mudarão, porém, os estilos e recursos de manobra para fazer em face da iniciativa do Outro.

Adotando-se essa última perspectiva, na qual não está mais em jogo a discussão em torno da falta ou do excesso de Outro, o tratamento do Outro será aquele que incidirá sobre o insuportável que a iniciativa do Outro introduz para a criança.

 

O TRATAMENTO DO OUTRO

Parece que o que toma espaço demais nessa estrutura é o Outro. É o Outro que impõe ao ser um sofrimento, e invade o sujeito com um gozo que transborda dele.

Se para essas crianças o Outro é gozador, tratar o Outro implica tratar seu gozo, por meio de uma construção, uma invenção, particular em cada caso, já que se trata de crianças para quem o modelo do Outro da neurose não está mais ao alcance.

Tratar o Outro é também separá-lo. O outro semelhante para o psicótico é igual ao Outro, já que não opera a primeira separação entre o sujeito &– aqui definido, como diz Lacan (1959-1998), “em sua inefável e estúpida existência” &– e o Outro primordial. Para isso, é necessário operar um distanciamento entre a criança e seu Outro. Fazer isso implica tratar tudo o que é exterior à criança (sem que isso seja confundido com o ambiente familiar), ou tudo o que não faz referência direta a ela, pois isso pode ser-lhe extremamente persecutório.

Uma intervenção, uma palavra dirigida ao Outro do sujeito, pode apaziguar, ou negativizar, seu gozo, barrando-o.

Uma criança, em meio a uma agitação que a faz quebrar tudo à sua volta, grita “palhacinho”. É a esse palhacinho que a palavra é dirigida, e não à criança. Pede-se ao palhacinho que deixe André em paz. Essa intervenção apazigua, pacifica.

Luci, durante um atendimento no Lugar de Vida,2 depara com a falta do caminhão de bombeiros com que normalmente brinca. Assustada e muito agitada, pergunta: “Sumiu? Cadê? Ele mora aqui, tem que estar aqui!” A analista lhe responde: “Não foi a Luci quem pegou o caminhão, nem a Carina. Algum adulto da equipe do Lugar de Vida o pegou. Vamos escrever uma carta de busca à equipe. Esperaremos um pouco até que todos leiam e respondam esta carta!!!”. Um caminhão certamente vai aparecer. Luci acalma-se e repete: “Foi algum adulto da equipe do Lugar de Vida, certo?”. A analista, no compromisso de assegurar para a criança uma circunscrição de borda nesse Outro, responde: “Sim, um caminhão vai aparecer. Poderá não ser o mesmo, mas você vai ter um caminhão”. A equipe de fato respondeu e Luci teve seu brinquedo de volta

A palavra dirigida ao Outro desordenado não simboliza, mas localiza. Dar uma resposta afirmativa e categórica, recortando um lugar para o sujeito, parece colocar ordem no Outro, e tem como efeito a pacificação do sujeito. Trata-se, porém, de um efeito efêmero. Baio (2003, p. 107), ao escrever sobre o tratamento do Outro pela introdução de uma ordem, lembra que a pacificação só se sustenta na permanência desta ordem. “Uma mudança mínima, que surge no Outro, ameaça o lugar do sujeito”.

Assim, é preciso inventar. O tratamento do Outro na instituição delimita um campo por meio da intervenção da equipe, que circula nas diferentes instâncias de profissionais, entre estagiários e funcionários, não havendo hierarquia entre saber e poder, mas, sobretudo, parceria na construção clínica.

É em parceria que se pode sustentar uma ordem regularizadora, pacificadora, ou “barradora” do gozo invasivo do Outro. Para Baio (2003), o parceiro tem a função de assegurar para o sujeito uma presença regular, que dá uma extrema atenção ao menor detalhe, e que é dócil à invenção do sujeito. Essa invenção, o sujeito a constrói para defender-se do Outro gozador, e por isso precisa ser tratada com toda a atenção. É assim que Baio e seus colaboradores definem a prática institucional parceira do sujeito.

Zenoni (2002, p. 23) refere-se a essa prática parceira do sujeito, que em outros textos ganha também a expressão “prática entre vários”. Dessa perspectiva de trabalho institucional,

«[...] cada praticante pode ter seu próprio estilo, seu modo de estar presente ‘distraída’ ou atentamente, com seu humor ou com sua seriedade, cada praticante pode ter suas responsabilidades específicas, mas cada um deve contribuir para tornar presente uma figura do Outro que permita ao sujeito encontrar para si um lugar na instituição, e dispensar assim a passagem ao ato. A promoção de certa ‘atmosfera’ de vida em comum, que transforma a vida institucional em um espaço de convivência para todos, não é atributo ou dever de um único praticante, mas só pode proceder de uma orientação de trabalho compartilhada por todos os praticantes, para além das competências de cada um. É a natureza da clínica em questão que exige uma resposta coletiva, que exige a formação de uma equipe.»

CNo âmbito desse tratamento institucional, a prática parceira pode sustentar a permanência desta ordem descrita por Zenoni (2002), se a posição daqueles que intervêm for a de sujeito suposto não-saber. O desafio para a equipe é o de inventar uma resposta para o acompanhamento da psicose, pois, diante do risco da passagem ao ato ou da transferência erótico-agressiva trazidos pela psicose, cada membro da equipe se depara com um não-saber sobre esse gozo. O saber comum é o de que esse gozo deverá ser barrado em sua forma irrestrita tornando presente um Outro regulado. A libido da equipe investe no comum, nas hipóteses compartilhadas que precipitarão - a partir da intervenção e do estilo de cada um - um saber a ser elaborado. Nesse sentido, a posição da equipe que intervém é muito mais de alunos do que de mestres da psicose.

Na cena clínica anteriormente descrita, a analista e a equipe fazem uma parceria em busca do recorte de um Outro possível. A instituição, por definição, tem uma lei a que todos estão submetidos, e que é ordenadora de um saber sobre o funcionamento institucional.

A rede discursiva - armada no circuito entre equipe e analista, e mediada pela carta à equipe do Lugar de Vida - apresenta um circuito que barra o gozo do Outro e dá espaço para que Luci circule nesse campo do Outro “pacificado”. Palavras circulam entre as pessoas que trabalham com ela, assim como na prova olímpica da maratona que só atinge sua conclusão na troca dos bastões entre os atletas, ou seja, o caso clínico não é de alguém que detém o saber sobre ele, o caso é de todos que em parceria compõem não apenas as possibilidades de um novo saber como também disparam com essa intervenção &– que parece preliminar &– os fundamentos do tratamento.

A intervenção descrita localiza o Outro e deixa Luci em paz, pelo menos, momentaneamente. Assim, adia-se o encontro da criança com o Outro para que, em um segundo momento, ela tenha condições de inventar um aparelhamento, uma nova língua e um novo engajamento psicótico no laço social. Quando esse encontro é adiado, cria-se uma alteridade possível para o sujeito. Essa primeira intervenção na direção de apaziguar o Outro é preliminar naquilo que acolhe, mas já é tratamento na possibilidade que traz ao sujeito para inventar qual será o próximo passo em direção à elaboração de uma estabilização. Essa estabilização poderá ocorrer com a invenção de uma metáfora não paterna; com a introdução de um menos nessa estrutura; com a criação de um saber original; ou com uma elaboração delirante sobre a sexualidade. A instituição poderá, então, testemunhar esse percurso, ao armá-lo e sustentá-lo na “prática entre vários”.

Deve-se ainda observar que “dizer não” ao gozo do Outro não implica uma espécie de tentativa de restituir ou de instalar a lei ou a função paterna. Eis um outro exemplo de intervenção, relatada por Zenoni (2002, p. 27), que mostra bem como pode ser essa oferta de Outro, e que é por isso também um exemplo de tratamento do Outro.

«Os residentes de um hospital acusam Dimitri de andar pelado no andar das mulheres, mas ele lhes responde dizendo que ‘são as enfermeiras que querem vê-lo pelado’. ‘Ninguém aqui tem o direito de obrigá-lo a andar pelado, você pode vestir um short, e é mais bonito’, foi-lhe respondido no momento da reunião comunitária.»

Um Outro que não tem esse direito lhe é apresentado no lugar de um Outro que o obriga a fazer o que não quer, comenta Zenoni.

 

DISPOSITIVOS CRIADOS PARA TRATAR DO OUTRO

No Lugar de Vida há ainda dispositivos criados especificamente para tratar do Outro do sujeito psicótico.

Uma das dificuldades do tratamento institucional reside no fato de que as crianças, ao serem colocadas para trabalhar em grupo, encontram-se freqüentemente com seu Outro desordenado na figura de uma outra criança, ou na figura de um coordenador do grupo. Esses encontros costumam produzir efeitos que nem sempre são os melhores para as outras crianças: gritos, quebra-quebras, tentativas de escapar da atividade que até então se desenrolava tranquilamente.

Assim, foi extremamente bem-vinda a proposta de trabalho concebida pela equipe do Lugar de Vida para os ateliês da tarde. As coordenadoras propuseram a montagem de três atividades de ateliês simultâneas, em três salas diferentes. São as agora chamadas “Oficinas de Portas Abertas”. Enquanto ocorrem as atividades, as portas das salas permanecem abertas, de modo que as crianças podem circular entre elas. São as crianças, portanto, que fazem a regulação de suas aproximações e distanciamentos em direção aos adultos. O abrandamento do sentimento de invasão, propiciado pela relativa escolha das crianças, permite uma aproximação gradual, determinada pela criança e dentro de suas possibilidades, em direção aos adultos, às atividades e às outras crianças.

O adulto convidado a trabalhar com estas crianças irá oferecer-lhes uma atividade que ele próprio deseja desenvolver e para a qual demonstre alguma habilidade, além de gostar dela. Assim, a estagiária de graduação que toca piano oferece uma oficina de música para compor uma das atividades da “oficina de portas abertas”; a profissional da equipe que adora cozinhar oferece a oficina de cozinha; as alunas do curso de especialização, que trabalhavam com atividades recreativas e artísticas em escolas, oferecem as oficinas de brincadeira e artes.

Ao responsabilizar-se por uma atividade, esse adulto estará colocado, como já se disse, na posição de sujeito suposto não-saber. Nessa posição, não lançará demandas diretas às crianças, mas será sempre levado a rever seu próprio desejo pelo trabalho em andamento. Com isso, estará oferecendo um trabalho a partir de uma posição de Outro barrado. Para a criança, será o caso de pegar ou largar. Caso aceite essa oferta, poderá interessar-se pelo objeto do desejo do Outro na cultura: a música, a pintura, a dança, as histórias etc. A posição do adulto diante de sua oferta de arte, objeto de seu desejo, resguarda-o ainda do perigo de colocar transferencialmente a criança em lugar de seu objeto de gozo. Desta maneira, podemos dizer que o adulto coordenador da oficina conduz de forma oblíqua o olhar da criança para um objeto de desejo inscrito na cultura, no campo do Outro. Trata-se de, obliquamente, tentar reconhecer e fisgar o desejo da criança, não pela demanda direta ou imperativa do olhar ou da voz do Outro, mas buscando apresentar para a criança, porém,  um tanto das representações de Outro na cultura.

A idéia de olhar oblíquo coincide com uma observação de Strauss (1993) relativa ao tratamento do autista. Para esse autor, não devemos dar mostras a um autista de que estamos nos ocupando dele, se quisermos fazer contato, já que, para aquela criança, o inaceitável é que a iniciativa venha do Outro.

Pedro, de início ansioso, inibido e amedrontado, isolava-se aos prantos em uma sala vazia com medo das demais crianças e dos adultos. Possibilitar que durante um tempo Pedro ficasse nesta sala vazia, tomando esta atitude como sua escolha e sua possibilidade naquele momento de estar com o outro, propiciou que mais tarde e aos poucos ele começasse a se arriscar a dar uma “escutada” à porta da oficina de música. Em outra ocasião, abandonou seu canto vazio para pegar um carrinho na oficina de brincadeiras e em um passo seguinte tomou a mão de alguém para ir a um parque com o grupo de passeios. Nenhum adulto pediu insistentemente ou determinou que Pedro entrasse em uma sala de atividades; as portas ficaram simplesmente abertas. O adulto não lhe pediu que desejasse ou fizesse algo, e as ofertas da cultura foram o próprio apelo para o surgimento da curiosidade e do interesse na criança. Partindo da sala vazia, Pedro pôde conhecer a sala das oficinas de jogos e brincadeiras, a sala da oficina de música e, até mesmo, o espaço para além das salas na atividade do passeio. Nesse fragmento, o tratamento do Outro pode ser pensado como uma oferta em substituição ao Outro cuja iniciativa Pedro buscava anular.

No improviso de uma batucada ou de uma pincelada na tela, a equipe depara com o imprevisto de uma criança dançando ritmada e divertidamente de mãos dadas com outra criança, bem como aquela usando a tinta para pintar o próprio rosto e depois ir, curiosamente, olhar-se no espelho.

A demanda institucional pelo registro e pela escrita dos adultos sobre as atividades de tratamento também parece configurar um dispositivo de tratamento do Outro. Cada adulto envolvido nesta prática clínica tem sido convocado a escrever sobre o seu fazer, o que tem resultado em escritas com vários estilos, bem como em projetos de trabalho variados. Respeita-se assim o que diz respeito ao desejo de cada um dos envolvidos nessa mesma empreitada, mas barra-se também o “puro fazer arbitrário” e o “todo saber”. Ou seja, o exercício da escrita pode propiciar a transformação do gozo e da repetição em novas formas, prazerosas, criativas e inventivas de enlace com o outro e o Outro.

Também no Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica, (NAICAP), do Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, a equipe se orienta por uma prática que busca acompanhar a criança no trabalho de barramento &– ou do furo &– do Outro que ela já está realizando. Para isso, também foi necessário abandonar enquadres clássicos de atendimento, dentro de uma sala e com hora marcada. No lugar dele, Costa Ribeiro (2004, p. 24) relata que o NAICAP instituiu um “espaço de possibilidades”. “Criamos algumas atividades e ‘oficinas’ a partir do que cada criança nos apontava. (...) A forma de funcionamento das várias oficinas se fazia a partir das crianças e dos adultos que as compunham. (...) O ‘espaço de possibilidades’ era uma orientação de trabalho que propunha o desafio de manter um espaço aberto de não saber”.

O que se pode, em resumo, pedir às instituições que praticam o tratamento do Outro? Que inventem, junto com a criança, um outro Outro para ela, já que essa criança não pode mais ter o Outro standard da neurose, e está por isso “forma-da-norma”, como diz Baio (2003). Se a criança reinventar seu Outro, poderá ter uma presença no mundo pacificada, e com a possibilidade de fazer laço com os outros, da maneira que lhe for possível, e nas brechas que o mundo puder lhe oferecer.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência

M. Cristina M. Kupfer
E-mail:mckupfer@usp.br

Carina Faria
E-mail:carinafaria@terra.com.br

Cristina Keiko
E-mail:crisinafuku@yahoo.com.br

 

 

Recebido em: 16/08/2007
Aprovado em:01/09/2007
Revisado em: 07/11/2007

 

 

1No fenômeno do pointing , ou do apontar protodeclarativo (“protodeclarative pointing”), a criança aponta um objeto e busca em seguida o olhar do adulto com a intenção de compartilhar com ele a informação e o prazer que acabou de descobrir, o que não ocorre com a criança autista.
2A pré-escola terapêutica Lugar de Vida foi uma instituição de tratamento para crianças psicóticas e autistas, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Hoje, é uma Associação com sede fora da Usp e passou a chamar-se Associação Lugar de Vida - Centro de Educação Terapêutica.

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