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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.59 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Do sexual e do coletivo

 

Of sexuality and collectiveness

 

 

Cristina Mair Barros Rauter

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma análise da sexualidade contemporânea e da produção de subjetividade a partir de uma concepção que vincula a sexualidade ao coletivo e aos processos político-sociais que impedem sua expressão. Tal vinculação tem conseqüências tanto políticas quanto psicopatológicas, atingindo também a capacidade de transformação da vida social no contemporâneo.

Palavras-chave: Sexualidade; Subjetividade contemporânea; Política sexual.


ABSTRACT

An analysis of contemporary sexuality and subjectivity production, from a point of view that links sexuality to collectiveness and to the political processes that obstacle its expression. This perspective has psychopathological and political consequences, affecting also the capacity of producing social change in contemporary society.

Keywords: Sexuality; Contemporary subjectivity; Sexual politics.


 

 

Henri Miller (1975) já apontava, desde os anos 1940, que o sexo funcionava “no vácuo” na sociedade americana.1 O que é funcionar no vácuo? Miller se refere ao sexo descolado da produção de territórios existenciais, sejam eles religiosos, de parentesco, ou quaisquer outros. Sexo descolado do campo social, tornado assunto individual, privado, privatizado, em prol de certo desempenho que diz respeito a modelos. Sexo ligado a aspectos egoicos, nos quais o investimento amoroso é pensado do ponto de vista da racionalidade. Há um mercado sexual no qual se deve ter certos pressupostos para entrar. Diz-se freqüentemente: eu investi muito nesta relação e não tive retorno! Talvez se encontre um dia uma fórmula para medir esse investimento, quantificá-lo e cobrá-lo com juros. Podemos dizer, em face dos processos de desterritorialização em curso no contemporâneo, que o único território que permanece “de pé” é o território do capital, que coloniza também o campo amoroso, passando a ser também um investimento do qual se deve auferir vantagens.

Como se relacionam ou influem uns nos outros os diversos planos da existência: o plano sexual, o plano dos investimentos na vida social, no trabalho, na criação? Em vez de separarmos o que é sexual do que não é sexual e pensarmos o campo social como sendo alvo de investimentos que precisam se dessexualizar,2 nosso desafio neste artigo é pensar como se relacionam esses diversos aspectos da vida. A psicologia jamais conseguiu pensar essas duas dimensões em conjunto, ela que sempre esteve presa ao indivíduo. No entanto, não é a partir do indivíduo que compreenderemos o que é a sociedade humana: é antes a partir da análise do sócius, do coletivo, dos grupos humanos, que chegaremos a compreender este caso particular da cultura ocidental, de sociedades que esvaziaram a esfera do público em proveito do privado. Como surgiu o indivíduo isolado, este ser que se debruça sobre si próprio como que sobre um tesouro e que detém a verdade sobre a própria psicologia?

O grupo é o que está na base do fenômeno humano. O homem, este mamífero, em seu devir animal,3 é animal coletivo. Tal é a direção que podemos encontrar a partir da concepção deleuziana de desejo como produção, que implica sempre na produção de territórios.

Ao invés de separar os campos sexual e não sexual, os fenômenos individuais e os fenômenos coletivos, Miller (1975, p. 75), pensando na mesma direção,  estabelece entre esses campos múltiplas relações não dicotômicas e não excludentes.

 se existe qualquer coisa de errado na nossa atitude em relação ao sexo, então é porque alguma coisa está errada na nossa atitude m relação ao dinheiro [...] ao trabalho. Como gozar de uma boa vida sexual se nossa atitude em relação aos outros aspectos da vida é distorcida e anormal?

Nesta mesma trilha de Miller, encontramos Reich (1981), que relaciona sexo e trabalho como coisas interligadas. O trabalho compulsivo se relaciona com uma sexualidade pobre e governada pela moral. O drama do sexo no capitalismo se relaciona com o drama pessoal vivido pelo neurótico e pelo psicótico. Isto porque ao invés de serem campos separados que pressupusessem que a libido mudasse de estado para que pudesse passar de um para o outro, o campo social e o campo psíquico são uma mesma natureza que se expressa em registros diferentes.4 O modelo não é dessexualizar para poder pensar ou criar, mas, justamente, é uma regulação não repressiva da sexualidade que possibilita a criação e o trabalho não compulsivo. O conceito de Reich (1981, p. 149) de auto-regulação  é o que permite pensar em um modo de organização da sexualidade derivado de seu exercício e não de regras impostas coercitivamente. Implícita está a concepção de que a liberdade não produz desordem, patologia, mas é antes o que possibilita a emergência de novos modos de ser, escapando de modelos externos.

Não podemos falar de sexo no contemporâneo sem levar em consideração o que foi proposto por Foucault (1985) em suas análises sobre o dispositivo da sexualidade. Aparentemente, os pontos de vista reichiano e foucaultiano seriam incompatíveis, pois Foucault refutou a idéia de que no contemporâneo teria havido liberação sexual, ao passo que Reich geralmente é visto como defensor e precursor dessa pretensa liberação sexual. O fato é que a experiência contemporânea da sexualidade não mais pode ser descrita a partir da interdição e do silenciamento, mas, ao contrário, de dispositivos que a fazem falar, incitando sua presença no campo social. Os discursos e imagens sexuais têm hoje uma visibilidade extraordinária se comparados à que tinham há um século atrás, o que não é suficiente para que o erotismo esteja mais presente no mundo globalizado de hoje. Isso ocorre porque, de par com essa extraordinária visibilidade, pairam sobre as práticas sexuais classificações e controles extremamente sutis que fazem com que busquemos “nossa verdade” no sexo, em uma busca muito associada ao patológico. O Ocidente produziu uma ciência sexual e não uma arte erótica. Hoje, toda uma rentável indústria farmacêutica da sexualidade só confirma a exatidão dessa análise de Foucault, fazendo do sexo algo ligado à tecnologia, à ciência e a uma visão utilitária do corpo.

Se pudermos atualizar as contribuições de Reich, problematizando-as a partir do conceito de dispositivo da sexualidade, talvez possamos avançar na compreensão do fenômeno sexual no contemporâneo. De fato, este não pode mais ser adequadamente descrito apenas a partir de mecanismos repressivos que fariam calar a sexualidade. Pensamos, no entanto, que colocar Reich como ingênuo “guru” da chamada libertação sexual dos anos 1960 e 1970 não nos parece correto, uma vez que Reich era um crítico do sexo compulsivo e pornográfico, que considerava, tanto quanto as várias formas de inibição sexual, como sintomas da repressão social e política da sexualidade. Consideramos que Reich é o solitário pioneiro que, no âmbito da psicanálise, buscou considerar simultaneamente os campos psíquico, institucional, político e social, analisando o sexual e o não sexual em suas múltiplas relações de vizinhança. Nesse sentido, Reich antecipa a proposta de Deleuze e Guattari (1977) quanto à “coextensividade” entre produção desejante e produção social. O conceito de peste emocional é um bom exemplo dessa abordagem:

Podemos definir a peste emocional como um comportamento humano que com base numa estrutura de carater biopática age de maneira organizada ou típica em relações interpessoais... e em instituições... Logo veremos que é precisamente nas esferas mais importantes da vida  que a peste emocional se manifesta: [no] misticismo em sua forma mais destrutiva; [na] sede de autoridade passiva e ativa; [no] moralismo; [nas] biopatias do sistema nervosos autônomo; política partidária; peste familiar que chamei de familite; métodos sádicos de educação; tolerância masoquista desses métodos... fofoca e difamação; burocracia autoritária; ideologias de guerra imperialista [...] criminalidade anti-social; pornografia; agiotagem; ódio racial (REICH, 2001, p. 464).

O que Reich faz é relacionar o sexo com os outros aspectos da vida ao invés de considerá-lo como algo que se passa no psiquismo individual. Ele está envolvido com a criação e com processos de singularização, de diferenciação. E também com o modo como nos relacionamos com a natureza, com a tecnologia, com o trabalho, com a economia. Ao contrário do que nos dizem todos os dias na televisão, “o mercado” não é uma outra esfera que diz respeito a uma racionalidade neutra, mas está implicado em modos de vida que incluem maneiras de lidar com a sexualidade, com o dinheiro, com a agressividade, com a educação das crianças, como a ecologia...

Os agenciamentos do desejo são primariamente territoriais, ou dizendo de outro modo, o sexo é produtor de ligações ou de conexões, engendrador do campo social. Tomo aqui o sexo naquilo que ele aponta para o plano da produção desejante enquanto plano virtual. Mas o sexo pode também estar sendo atravessado por processos em ação no contemporâneo que o despotencializam ou que o façam seguir linhas de abolição5. O que afirmamos é que a intensificação ou a incitação da produção de imagens sexuais e discursos sexuais no contemporâneo não está conectada com a dimensão do coletivo, mas sim, de modo paradoxal, com dispositivos de controle e de esvaziamento dessa mesma dimensão do coletivo.6

O controle da “população” é o que visam os dispositivos de controle social contemporâneos, como mostrou Foucault (1985, p. 127-149), ao analisar o “biopoder”, na mesma obra em que se ocupou do dispositivo da sexualidade. Agamben (2002) também utilizou a expressão “vida nua” para se referir aos dispositivos de controle social em ação no contemporâneo em cuja construção o dispositivo da sexualidade tem um papel central. São modos de esvaziamento da dimensão do coletivo que agem a partir dos vários mecanismos regulatórios do corpo que as disciplinas introduziram. O controle social contemporâneo se exerce como prolongamento e resultado do aparato disciplinar, exercendo um controle sobre a vida (ver a esse respeito, DELEUZE, 1990).

Alberoni (1992) em seu belo livro Enamoramento e amor afirma que “o amor é coletivo”. É um caso particular de um movimento coletivo, um coletivo de dois. A pergunta “Quanto dura um amor?” é da mesma ordem da pergunta “Quanto dura uma revolução?”. Quanto tempo leva um amor para se fossilizar, para perder sua capacidade de produção de novos mundos? Quanto dura um partido político no que diz respeito à sua capacidade real de produzir mudanças?

Em Proust (1993b), o momento de Em busca do tempo perdido em que o narrador se apaixona por Albertine é o momento em que faz um movimento do mundo e do coletivo para o indivíduo, em uma série de recortes sucessivos. Os traços de cada uma das moças se confundem em uma totalidade não bem diferenciada. O amor para Proust é, como para Alberoni e para Freud, cada qual a seu modo, um processo que parte do coletivo para o individual.

Embora cada qual fosse de tipo inteiramente diverso das outras, todas eram belas; mas, a falar a verdade, eu as via há tão pouco tempo e sem ousar encará-las fixamente, que ainda não conseguira individualizar nenhuma delas, a não ser uma, cujo nariz reto e pele morena faziam contraste com as outras [...] olhos negros, olhos verdes, não sabia se eram os mesmos que me haviam encantado há pouco, não tinha condições de ligá-los a esta ou aquela moça que eu tivesse separado das demais, e reconhecido. Essa ausência, na minha visão dos limites que em breve estabeleceria entre elas, propagava através do seu grupo uma flutuação harmoniosa, a contínua translação de uma beleza fluida, coletiva e móvel [...] agora já estavam individualizadas; entretanto, a réplica que davam umas às outras os seus olhares animais de um espírito de auto-suficiência e camaradagem [...] criava entre seus corpos independentes e separados, enquanto avançavam lentamente, um elo invisível [...] diverso da multidão em meio à qual se desenrolava seu cortejo. Quando o desejo está deste modo orientado para uma pequena tribo humana que ele escolheu, tudo o que pode referir-se a ela se torna motivo de emoção, depois, de fantasia (PROUST, 1993b, p. 322-325, grifos nossos).

E essa tribo estranha aos poucos vai se aproximando, porém o amor, para Proust, sempre permanece sendo uma experiência de estranhamento e de sofrimento em razão dos muitos mundos que se encontram encerrados no objeto amado e que não podem ser dominados ou conhecidos totalmente. Quando o amor termina, aquele ser que encerraria tantas qualidades especiais retorna à multidão indiferenciada da qual foi retirado.

O que nos importa aqui é compreender que o amor, para Proust, como propõe Deleuze (1971), não é da ordem do indivíduo, na medida em que implica justamente o acesso a um plano a-subjetivo. Assim, não pode dizer respeito a um ego, a aspectos pragmáticos e utilitários. Por outro lado, não pode ser compreendido apenas a partir das qualidades do objeto, já que o que ocorre primeiro é um investimento coletivo que vai se recortando, até se focalizar no objeto amoroso.

Desconsiderar este recorte que o amor, ou o desejo, opera da tribo, da massa ao indivíduo, é o que nos leva a considerar que o amor é um fenômeno individual. O que podemos dizer, a partir das belas páginas de À sombra das moças em flor (PROUST, 1993a), é que na paixão amorosa acompanhamos um processo de individuação de algo que é da ordem do fora e que acaba justamente borrando essa distinção, dentro e fora. Por outro lado, o amor não diz respeito a um investimento que parte de um sujeito em direção a um objeto já que o desejo pensado como produção é que engendra seus próprios objetos, que a princípio são da ordem do coletivo e só secundariamente se focalizam no objeto amado. O amor é um fenômeno não da consciência, não do indivíduo ou de um eu, mas um fenômeno que diz respeito a uma ruptura com todos esses elementos, para atingir um plano intensivo a-formal, um plano que podemos também chamar de virtual. Um plano do coletivo compreendido como plano virtual &– uma distinção importante, ou o coletivo confundir-se-ia com o campo social enquanto alvo de múltiplos dispositivos de serialização e modelização.

Ora, no contemporâneo, parece haver um projeto de controle deste plano intensivo a-subjetivo: um projeto paradoxal, porque inatingível por definição: o controle do inconsciente. Deleuze7 diz que precisamos produzir nosso inconsciente, ou ele será produzido pelo controle social contemporâneo. As questões do inconsciente não são individuais, uma vida não é nunca assunto individual, já que as produções do inconsciente implicam sempre a construção de mundos. No entanto há um paradoxo em se pensar a possibilidade de um controle do inconsciente. Parece haver uma política no contemporâneo que pretende trazê-lo para a consciência “à força”. Basta pensarmos em algumas técnicas de tratamento de usuários de drogas, nas quais se fala em “treinamento de habilidades”. Nesses treinamentos se procura “ensaiar”, utilizando técnicas teatrais, situações em que o usuário de drogas tomará atitudes voluntárias para evitar a droga. Todo um arsenal parece visar um alargamento da consciência, ou a conquista do inconsciente, como poderíamos dizer. Uma conquista dos atos futuros. Certo sentido do “tornar consciente o inconsciente” bem diverso do que Freud pretendeu, que estava mais ligado a catalisar a potencialidade disruptiva das produções do inconsciente.

Com seu conceito de peste emocional, Reich também sublinhava a profunda implicação do sexo com a política, e pensava simultaneamente em fenômenos como o fascismo e a neurose, repressão sexual e formação de grupos políticos ultraconservadores. Este conceito permite justamente colocar em relação esses dois planos, o da política e o da sexualidade. Por que freqüentemente se entregou a educação de crianças a mulheres sem vida sexual, pergunta Reich (2001, p. 461-491)? Por que se considerou por tanto tempo, e ainda se considera em alguns casos, que freiras e mulheres de óculos e de aspecto assexuado seriam ideais para educar crianças? Por certo, hoje a produção de subjetividade põe em ação outros dispositivos, nos quais uma exuberância sexual pode estar presente nesses agentes sociais, ainda que funcionando “no vácuo”. É notável a proliferação de figuras femininas sensuais nos programas televisivos dirigidos a crianças, entretanto não consta que a sexualidade infantil seja mais aceita e melhor compreendida enquanto tal, parecendo antes seguir um modelo adulto, fálico-narcísico de sexualidade.

Tanto hoje quanto na época anterior à chamada revolução sexual dos anos 1960 e 1970, a produção social de certa regulação do corpo e da sexualidade está imbricada na reprodução do capitalismo e na produção de subjetividade no interior desse sistema social. Seriam neuróticos esses agentes sociais encarregados de operar a repressão sexual infantil? Reich aponta que o neurótico sofre por sua infelicidade sexual com certa resignação, não se preocupando tanto com o impedimento da sexualidade alheia. Freqüentemente esses agentes sociais que operarão a repressão sexual não sofrem neuroticamente por ter sua sexualidade impedida. Isto porque há certa economia pulsional que pode se estabelecer, na qual o impedimento à vida sexual se organiza de um modo ego-sintônico, sem sofrimento. As solteironas puritanas e moralistas, dizia Reich, que se comprazem em impedir a sexualidade dos adolescentes e encontram nisso um prazer sádico, freqüentemente não sofrem por sua miséria sexual. Seu prazer torna-se impedir a sexualidade alheia.

Ao analisar como opera a repressão sexual a partir de movimentos sociais, de grupos organizados, Reich aproxima-se da análise nietzschiana da figura do sacerdote judaico-cristão (NIETZSCHE, 1983, p. 315-317). O sacerdote é o agente social que opera a produção do ressentimento e da má consciência, processos que tornam as forças ativas separadas do que elas podem. Mas não pode ele próprio ser visto como sofrendo de má consciência. O sacerdote é ativo ao organizar a produção social do ressentimento; sua atividade, sua potência consistindo em gerar esse exército de doentes, de sofredores. Mas ele não se confunde com um deles, embora os compreenda perfeitamente ou não poderia produzir e gerir essa multidão de “escravos”.

Os conceitos de caráter e de peste emocional estão ligados e me parecem fecundos para pensar esse campo de interseção entre o campo da produção desejante e o campo social. Encontramos a couraça caracterial tanto no neurótico, quanto no agente social atacado de peste emocional. Mas a peste emocional é algo a que todos estamos sujeitos, não apenas o neurótico, e que pode explicar o grande temor do novo, e os obstáculos que costumam se interporem, na luta política, à alteração de modos de vida e de trabalho fortemente arraigados, ainda que aparentemente se deseje a mudança. Essas situações, embora envolvam fenômenos de ordem psicológica, não podem ser compreendidas à luz das vicissitudes de uma infância, de experiências familiares. As massas desejaram o fascismo &– a famosa frase só pode ser compreendida no contexto de uma teoria do caráter que formule o desejo associado às lutas políticas, ao coletivo. O fenômeno de que o desejo possa desejar a sua própria aniquilação só surge secundariamente, como efeito de um campo social organizado para produzir uma economia libidinal mortífera, doentia, mas que não necessariamente se expressa como sofrimento psíquico. Foucault (1977, p. 155) apontou que o capitalismo nunca foi apenas um empreendimento de acumulação de dinheiro, mas um empreendimento de acumulação de homens, de gestão de massas humanas. Esse tipo de gestão necessita de uma grande rede de agentes sociais cuja subjetividade deve também ser produzida.

Como compreender a economia libidinal que rege o funcionamento dos diversos agentes organizadores do extenso aparelho tecnoburocrático que hoje governa muito mais do que os governos? Trabalhando nesses organismos responsáveis por uma economia que mata de fome aos milhares ou na mídia mundial que encobre e distorce esses fatos, podemos ter homens e mulheres “normais” do ponto de vista de apresentarem escasso sofrimento aparente ou por vezes nenhum conflito. A compulsão de trabalhar é um traço via de regra presente em todos esses agentes sociais, assim como muitas formas de expressão somática de mal-estar que dela decorrem, que hoje podem receber a denominação “stress” ou síndromes de vários tipos. Uma sexualidade genital empobrecida ou até mesmo precocemente ausente podem também compor o quadro.

Foi a partir da constatação de que havia pacientes que não tinham sofrimento e desejo de cura, e que não associavam livremente (os “pacientes difíceis”), é que Reich passou a formular sua teoria do caráter e a valorizar o trabalho com as resistências. Preocupou-se em compreender aqueles modos de subjetivação estáveis e com escassa consciência da doença. Valorizou a compulsão de trabalhar, as racionalizações excessivas nas quais o pensamento se tornava desconectado do corpo e de sentidos de vida. Estes traços de caráter não podiam ser vistos propriamente como sintomas, embora derivassem também da estase libidinal, assim como aqueles sintomas dos quais sofria o neurótico “com sofrimento e desejo de cura.”8.

É importante pensar a produção da mesmice que é diariamente veiculada na mídia, o pensamento único no campo econômico, o medo da mudança em vários campos da vida social e da política como fenômenos imbricados na produção de subjetividade contemporânea. Mas estes não derivam da existência de alguns maus elementos ou personalidades evidentemente doentias que estariam na direção de televisões, de bancos, de agências econômicas internacionais. Desde as primeiras análises de Foucault sobre o poder disciplinar, ele já chamava atenção para a impessoalidade destas redes de poder nas quais qualquer um podia ocupar o lugar central, sendo facilmente substituível. Onde todos são culpados ninguém tem culpa. São atos impessoais, realizados em uma rede que os separa de suas conseqüências, ao ponto de não se poder acusar individualmente ninguém por nenhuma delas.

Desde as famosas análises de Hannah Arendt (1999) sobre o nazismo, a normalidade se tornou mais preocupante para uma compreensão do contemporâneo do que a patologia. Eichmann,9 o grande executivo do holocausto, jamais matou pessoalmente ninguém e apresentava esse tipo preocupante de normalidade exibida por aqueles funcionários que põem em marcha a tecnoburocracia, estatal ou não.

Será possível o controle sobre o inconsciente? O controle social pertence ao plano do estrato e não ao plano do inconsciente. É ele próprio (o controle social) uma das produções do inconsciente, uma de suas antiproduções.10 Assim, há no inconsciente algo que antecede e escapa ao próprio controle e portanto esse projeto seria impossível. Por outro lado, estamos vivendo uma época singular, na qual temos grande possibilidade de construção de modos de vida já que por todo lado explodem antigos referenciais, permitindo ao menos em tese a criação de novos. Porém a luta pela “produção do inconsciente”, talvez a luta política central no contemporâneo, passe por ultrapassar o medo e a impotência ministrados como pílulas diárias de pequenos venenos. Lutar contra o vácuo existencial produzido por imagens vazias que infestam nossa visão, lutar contra engrenagens elas próprias dotadas de finos mecanismos de captura das subjetividades. Essas lutas incluem reconectar o sexual e o não sexual e restituir ao sexo à sua condição de potência ligada à criação da vida em todos os sentidos. Para Reich o sexual só deixa de relacionar-se com todos os outros aspectos da vida por obra de uma economia sexual que ele chamou de “patriarcal”, ditada pelo moralismo.

Toda uma maquinaria na qual a medicalização encontra um lugar de destaque e que Foucault soube tão bem analisar está por certo presente na produção de modos de vida inimigos da vida. Não nos esqueçamos da psiquiatria biológica contemporânea, hoje tão voltada para a produção a todo custo de uma normalidade, preocupada apenas em suprimir sintomas e produzir adaptação, Autoproclamando-se científica e neutra, ela se desembaraça de qualquer alusão a processos inconscientes que se encontravam presentes no que se chamava há de “psiquiatria dinâmica”.

No entanto, como diz Reich, não se pode “curar” a generosidade, a espontaneidade, a alegria de viver que caracteriza a subjetividade menos encouraçada, não se pode suprimir ou alterar tão facilmente o que resulta dos processos de auto-regulação da subjetividade. Por outro lado, diversas instituições e práticas sociais estão envolvidas na produção de corpos e mentes como que revestidos de armaduras invisíveis que podem inclusive impedir a percepção do dano causado ao outro. As lutas pela produção do inconsciente estão hoje revestidas de grande complexidade, com estratégias que muitas vezes não podemos formular com clareza. Sabemos, no entanto, que essas lutas passam por práticas no campo da clínica enquanto campo de intervenção sobre a subjetividade, que assim se reveste de um caráter imediatamente político.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência

Cristina Mair Barros Rauter
E-mail:c.rauter@terra.com.br

 

 

Recebido em: 24/11/2006
Aprovado em: 09/08/2007
Revisado em: 12/10/2007

 

 

1“Sendo pessoal e sem limites, [o amor] leva o homem a livrar-se da tirania do seu ego. O sexo é impessoal - pode ser ou não identificado com o amor... Tenho a impressão de que o sexo foi melhor compreendido e mais bem explicado no mundo pagão, no mundo primitivo e no mundo religioso. No primeiro caso, foi exaltado no plano estético, no segundo, no plano mágico, no terceiro, no plano espiritual. No nosso mundo, onde prevalece o plano bestial, o sexo funciona no vácuo.” (MILLER, 1975, p. 33).
2Aqui me refiro à concepção de sublimação como dessexualização. “Freud em O ego e o id fala da energia do ego como uma energia dessexualizada e sublimada, susceptível de ser deslocada para atividades não sexuais” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970, p. 637).
3“Em um devir animal se está diante de uma manada, de um bando, de uma população, de um povoamento, em resumo, de uma multiplicidade [...] Os caracteres animais podem ser míticos ou científicos, mas nós não nos interessamos por caracteres, nós nos interessamos por modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião.” (DELEUZE; GUATTARI, 1988, p. 245, tradução nossa).
4Deleuze e Guattari (1997, p. 48) propõem em O anti-Édipo a possibilidade de pensar o campo social e o campo psicológico em uma relação de coextensividade. Evidente a inspiração espinosista da proposta, a partir da qual se pensa a diferença partindo de um plano único a partir do qual tudo é engendrado.
5A expressão “linha de abolição” é adotada para fazer uma distinção das “linhas de fuga”, estas últimas consideradas mais especificamente em sua positividade, como ligadas à criação e à produção de territórios, e as linhas de abolição ligadas à despotencialização. O fenômeno da desterritorialização, assim, é pensado tanto em seus aspectos ligados à produção de territórios quanto em relação à desestabilização dos mesmos (ver, a este respeito, DELEUZE; GUATTARI, 1998, cap. 2 e, também, DELEUZE; PARNET, 1977, cap. IV).
6O conceito de plano virtual, elaborado por Deleuze a partir da filosofia de Bérgson, é o que aqui utilizamos, de modo a considerar o plano do coletivo e também o plano da produção desejante na sua dimensão virtual (ver DELEUZE, 1987).
7“O inconsciente, nós não o temos, não o temos jamais. Ele não é um “era” no lugar do qual o eu deve advir [...] devemos inverter a fórmula freudiana. O inconsciente é uma substância a fabricar, a deixar escorrer, um espaço social a conquistar”. (tradução nossa). “L’inconscient, vous ne l’avez pás, vous ne l’avez jamais, ce n’est pas un “c’était au lieu duquel le Je doit advenir”. Il faut renverser la formule freudienne. L’inconscient, c’est une substance à fabriquer, à faire couler, un espace social et politique a conquerir”. (DELEUZE; PARNET, 1977, p. 96).
8Alusão ao texto técnico de Freud (1975).
9“O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que [...] esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”. (ARENDT, 1999, p. 299.) “Ele nunca percebeu o que estava fazendo [...] foi precisamente essa falta de imaginação que lhe permitiu sentar meses a fio na frente do judeu alemão que conduzia o interrogatório da polícia, abrindo seu coração para aquele homem [...] essa distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos.” (ARENDT, 1999, p. 311).
10O conceito de antiprodução aparece em O anti-Édipo para referir-se aos movimentos negativos que podem atravessar a produção desejante. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 45-48).

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