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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.60 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2008

 

ARTIGOS

 

Olhar com os olhos de dentro: uma experiência de aprendizagem da atenção

 

Looking inwards: an experience of learning of attention

 

 

Regina Sordi; Maria Helena De-Nardin; Bruno Farias

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o trabalho realizado em sala de aula, entre uma professora e um aluno da primeira série do ensino fundamental, no que diz respeito à atenção requerida para a aprendizagem. O aluno, que iniciou o ano com um comportamento marcado por intensa dispersão, foi gradualmente ampliando seu fluxo atencional, desenvolvendo uma atenção aberta e concentrada. Em uma fertilização entre sensibilidade e uma epistemologia dialógica baseada na co-operação, a professora pôde estabelecer coesão entre os enunciados e comportamentos inicialmente fragmentados do aluno. Os protocolos apresentados e discutidos pretendem mostrar a trajetória atencional deste aluno, bem como seus efeitos na aprendizagem escolar. As conclusões apontam para a necessidade de uma ampliação sobre o estudo da atenção requerida na aprendizagem, juntamente com o estabelecimento de uma epistemologia dialógica baseada na co-operação.

Palavras-chave: Dispersão; Aprendizagem da atenção; Epistemologia dialógica; Co-operação.


ABSTRACT

This paper presents the task carried through between a teacher and a student of the first grade of an elementary school concerning attention required to learning. The student, who had started the school year with an intense dispersive behavior, had gradually improved his attentive flux, developing an open and concentrated attention. In fertilization between sensitiveness and a dialogical epistemology based on co-operation, the teacher was able to establish cohesion among the initially fragmentary utterances and behaviors of the student. The data showed in protocols discusses the attentive trajectory of the student, as well as its effects in school learning. The conclusions point to the need of an enlargement of the studies about the attention required in learning, together with a dialogical epistemology based on co-operation.

Keywords: Dispersion; Learning of attention; Dialogical epistemology; Co-operation.


 

 

INTRODUÇÃO

Quando, na sala de aula, a atenção requerida para a aprendizagem é concebida como um fenômeno focal e seletivo, uma espécie de olhar com os olhos de fora, sem levar em consideração a dimensão mais ampla do fluxo atencional, pode-se perder de vista o potencial transformador da aprendizagem que emerge desta experiência.

No presente artigo, busca-se analisar a trajetória de aprendizagem de um aluno de primeira série do ensino fundamental para quem o cumprimento da tarefa solicitada em sala de aula foi, inicialmente, marcado por intensa dispersão. Esta trajetória poderia evoluir por um atalho rápido em direção às dificuldades de aprendizagem, não fosse a capacidade da professora de acompanhar a atividade dispersiva deste aluno e propor-lhe novas formas de atenção. Turbilhonado por uma miríade de interesses simultâneos, consumindo rapidamente qualquer estímulo externo à tarefa proposta, o aluno movia-se em um ritmo frenético e parecia perder-se em um labirinto estéril. Considerado um problema por sua família e pela escola, cogitado como possível portador de déficit atencional, este aluno imergiu em um ambiente de sala de aula capaz de acolher sua dispersão e propor novos fluxos atencionais. Emergiu desta experiência com um potencial de atenção mais concentrado e aberto (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 1999). Cognitivamente mais fortalecido, suas respostas aos temas escolares revelaram uma efetiva assimilação de conteúdos, atestando um crescimento nas suas aprendizagens.

A observação e estudo da trajetória experienciada entre este aluno e sua professora sugerem que não é possível separar o tema da atenção requerida para a aprendizagem do tema da aprendizagem stricto sensu dos conteúdos. Não se trata de considerar, por um lado, que o aluno pôde experimentar novas formas de atenção e, por outro, que suas respostas atestem maior conhecimento. A hipótese aqui sustentada é que, ao ampliar o sentido da atenção requerida para a aprendizagem, usualmente unidirecional, focalizada nos estímulos externos, para uma aprendizagem da atenção, simultaneamente aberta e concentrada, amplia-se a curiosidade e enriquecem-se os processos de pensamento e compreensão do mundo. Neste sentido, o artigo pretende oferecer uma contribuição ao entendimento dos processos de aprendizagem em sala de aula, com vistas à construção do conhecimento, na perspectiva dos estudos da atenção. Defende a hipótese de que a aprendizagem da atenção se constrói na intersubjetividade professor-aluno, pautada por uma atitude atencional de investimento em si e no mundo (KASTRUP, 1999) e por um padrão interacional dialógico sociocognitivo (SORDI, 1999).

Partindo da hipótese de que a atenção possui qualidades que não são homogêneas, a primeira parte do artigo discutirá os distintos regimes atencionais e seus efeitos na aprendizagem.

A segunda parte iniciará com a orientação metodológica da pesquisa, seguida de apresentação e discussão de três situações de sala de aula. Os exemplos apresentados envolvem o aluno Téo1 e sua professora, visando não apenas ilustrar com material empírico as idéias teóricas, mas, sobretudo, compartilhar com o leitor uma experiência de aprendizagem de profundo impacto estético e grande interesse para os estudos da atenção.

Como conclusão, os autores pretendem oferecer uma contribuição ao estudo dos processos de ensino e aprendizagem, em sala de aula, considerando os materiais que compõem o magma criativo da aprendizagem da atenção.

Os Regimes Atencionais e suas Relações com a Aprendizagem

As principais abordagens teóricas desta pesquisa se inspiram nos seminais estudos da atenção realizados pela fenomenologia das ciências cognitivas (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 1999), no conceito de reconhecimento atento de Bergson (1907-2005; 1896-1999) e nas contribuições de Maturana e Varela (1976-2005) sobre a invenção do mundo e a cognição como efeito de perturbações.

O estudo apóia-se fortemente nas contribuições de Kastrup (1999; 2000; 2004), que, em uma original articulação entre a Filosofia da Diferença e a Biologia do Conhecimento, estuda o tema da invenção, diferenciando a cognição recognitiva e a cognição inventiva. Apóia-se, também, nos estudos de Sordi (1999), que, em uma articulação entre a Epistemologia Genética e a Dialógica de Bakhtin, apresenta um modelo sobre a comunicação professor-aluno em sala de aula e seus efeitos para a construção do conhecimento.2

Historicamente, a psicologia da atenção foi palco de estudos da Psicologia Experimental, que sempre posicionou a atenção focal no centro do cenário, subestimando o contexto do fenômeno atencional (ARVIDSON, 1998).

Tal olhar sobre a atenção vem sendo contestado por um expressivo número de pesquisadores, que, retomando os estudos da Filosofia e da Psicologia da segunda metade do século XIX, vêm indicando que o conceito de atenção não pode ficar reduzido ao ato de atender. Tendo sido abandonados em virtude de certa hegemonia do behaviorismo, tais estudos vêm sugerindo um caráter volátil e heterogêneo da atenção, contrariando as afirmações referentes à sua compreensão enquanto atividade autônoma e voluntária e conduzindo a uma ruptura nas noções de similaridade entre consciência e atenção vigentes durante o século XX.

Bergson (1896-1999), um dos expoentes desta ruptura, no campo filosófico, assinala a existência de uma atenção à duração. Tida como uma atenção suplementar, a duração aponta para a existência de uma atenção que não se confunde com aquela envolvida nas atividades práticas da vida cotidiana, mas que se caracteriza pela experiência de um mergulho no já vivido e que permite ao sujeito uma volta da experiência, impregnado de lembranças que atuam no momento atual, possibilitando-lhe uma vivência de conexão entre passado e presente, tempo/espaço no qual se torna possível a invenção. A atenção à duração requer a possibilidade de distrair-se, o que implica em uma capacidade errante. É esta capacidade que nos interessa, pois situa a atenção em um patamar distinto do ato de focalização.

Embora a distração possa ser considerada indesejável quando o padrão requerido para a aprendizagem é o da focalização, ainda assim não deve ser confundida com o fenômeno da dispersão. Este último está marcado por um não saber para onde dirigir a percepção, o que implica na impossibilidade de dar continuidade àquilo que se percebe. Quando uma experiência de dispersão acontece, a permanência no foco é mantida por um tempo muito reduzido, deslocando-se rapidamente para outro, seguindo indefinidamente, vagando de um a outro foco de forma linear e homogênea.

A distração, como aqui é entendida, seria o fôlego da atenção: um momento de recuo necessário para que se possa viver uma experiência de si, que tem sido dispensada pelos modos de absorção produzidos pelo mundo midiático. A distração abre espaço para o que não é imediato, para o que permite o movimento do sujeito, sua experiência de duração que implica em um “deixar vir” (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 1999).

Os autores acima mencionados propõem o desenvolvimento e estruturação de uma metodologia de investigação, para a qual sugerem o aprendizado de uma atitude cognitiva que implica diretamente no problema do aprendizado da atenção.

A proposta é compreender o processo de aprendizagem do “ato de tornar-se consciente” e, para tal, propõem a metodologia husserliana da époché &– método de redução fenomenológica &–, que se constitui a partir do entrelaçamento dos três gestos, complementada por “evidências intuitivas”. Partindo da époché, Depraz, Varela e Vermersch (1999; 2003) sugerem uma fenomenologia renovada, incorporando observações da Psicologia e das práticas contemplativas, da qual se utilizam para investigar a experiência humana em ato e não somente em seus conteúdos. A articulação da dupla époché-intuição constitui o que os autores consideram o “ciclo básico” da operação.

A estrutura geral da époché desdobra-se em três gestos: suspensão, redireção e deixar vir. A suspensão alude ao momento em que o fluxo natural da atitude cognitiva de reconhecimento das coisas é interrompido. Ela pode ser desencadeada por um acontecimento, por motivações intersubjetivas ou individuais, destacando-se a surpresa estética.

Os outros dois atos da époché, redireção da atenção e deixar vir, são complementares e pressupõem a possibilidade de manter a suspensão. Esta espera é considerada o maior obstáculo para que o ato de “tornar-se consciente” se cumpra, pois é preciso que a atenção seja sustentada para que “redireção” e “deixar vir” aconteçam. Elas são importantes para o problema da atenção, pois correspondem a duas mudanças fundamentais da atividade cognitiva. Com o ato da suspensão, a atenção é redirecionada do exterior &– para onde ela naturalmente está voltada &– para o interior. Ao distanciar-se daquilo que está dado diretamente à percepção, a atenção a si torna-se possível, pois a tendência recognitiva está momentaneamente suspensa. Neste momento, não há nada a fazer, é preciso apenas parar e prestar atenção ao que está por vir. Como o ato ocorre sob suspensão, a relação consigo que o sujeito experimenta não dá lugar a preocupações, lembranças ou pensamentos. Ela vai ocupar-se com o movimento seguinte &– o terceiro gesto do ciclo &–, que é “deixar algo vir”, “deixar algo ser revelado”. Embora aparente certa passividade, o “deixar vir” exige um trabalho de espera sem conhecimento do conteúdo. Experiências de encontro com a arte são ilustrativas de tal ato, pois se trata de um movimento que se desloca de uma atividade de pesquisa para uma atividade de aceitação.

Por fim, a emergência intuitiva finaliza o processo. Ela se revela clara e explícita, como fruto de uma experiência individual com enraizamento no coletivo, mostrando-se como um modo especial de conhecer. Cabe ressaltar que os três gestos não seguem uma ordem seqüencial-linear. Eles fazem parte de um ciclo, entrelaçam-se e movimentam-se circular e correlativamente, de forma que cada um deles, ao mesmo tempo que ultrapassa o anterior, também o conserva.

Este movimento transforma a qualidade da atenção que se transmuda de uma atenção focalizada, que busca, para uma atenção concentrada e aberta, em que é permitido distrair-se para encontrar-se com aquilo que se revela. Em tal estado de concentração, que nos possibilita o encontro com elementos do plano pré-reflexivo, não há focalização e por isso não se trata de um modo de atenção envolvido nas atividades diárias. Como as modalidades de ensino estão basicamente fundamentadas em processos de recognição que marcam tais atividades, o ato de prestar atenção está associado a eles como uma das suas condições indispensáveis.

Entretanto, conforme os estudos vêm mostrando, o prestar atenção é apenas um momento de um processo bem mais complexo, que inclui modulações da cognição e da própria intencionalidade da consciência.

Neste sentido, Kastrup (2000; 2004) distingue dois tipos de experiências de aprendizagem: baseadas na recognição e baseadas na invenção. Às primeiras, ancoradas na capacidade de reconhecimento das coisas, associa-se um tipo de atenção, subsidiária à aprendizagem e que está a seu serviço. Sua análise é restrita à ação voltada a estímulos do mundo externo e a falha no trato das informações é sinal de pouca atenção e baixa capacidade de concentração. Sendo a vedete de nossas escolas, as experiências de recognição exigem uma atenção focalizada, estando a serviço da realização de tarefas, captação de informações e solução de problemas.

Na aprendizagem baseada na invenção, há um continuar existindo da atenção, um investimento em si e no mundo. Caracteriza-se por colocar problemas, antes de ser um movimento prospectivo de busca de soluções. Neste estágio da atenção, o conceito bergsoniano de problematização aproxima-se do que Maturana e Varela (1976-2005) denominaram de breakdown, uma espécie de abalo ou perturbação, ou ainda, uma rachadura na continuidade cognitiva, que é da ordem do imprevisível. Este movimento potencializa o nascimento do novo, pois, embora pareça paradoxal, o colapso não rompe o fluir da conduta, mas o assegura, tendo em vista que remete o sujeito a experimentar algo do campo pré-subjetivo, ou seja, algo que tem a ver com a dinâmica entre elementos da rede neuronal. Como na époché,a aprendizagem inventiva depende, de saída, da suspensão da atitude natural, recognitiva. Se puder acolher o breakdown e cumprir o ciclo da redireção e deixar vir , a atenção passa a ser ela própria objeto de aprendizagem. Mais próxima ao aprendiz de artista do que, propriamente, do aprendiz de cientista (DELEUZE, 1987), a atenção inventiva experimenta uma concentração sem foco e aberta ao mundo. Exercita uma aprendizagem cara ao aprendiz de artista, capaz de extrair do conhecimento suas múltiplas virtualidades. Ou, no dizer de Picasso, a respeito da criação de uma obra de arte, de realizar uma busca não se sabe de quê, até que encontra (PAÍN, 1998).

Análise e Discussão dos Registros

A observação e o estudo da trajetória de aprendizagem de Téo são parte de um projeto maior (DE-NARDIN, 2007) que estudou as formas de atenção na sala de aula e suas relações com a aprendizagem em turmas de primeira série do ensino fundamental.

O caminho metodológico adotado tem raízes nas pesquisas de caráter qualitativo, com uma abordagem de inspiração etnográfica, utilizando, como instrumentos, notas de campo, áudio-gravações, registros dos diálogos e depoimentos espontâneos de alunos e professoras.

Nas reflexões acima, mostrou-se que, para uma atenção capaz de novas aberturas, é necessário que se dê um movimento de suspensão ou uma ruptura do foco da atenção para que esta possa, então, investir para além do foco e “deixar vir” o inesperado, aquilo que habitava a consciência em um plano pré-reflexivo para, desde aí, problematizar. O movimento de suspensão do qual nos falam Depraz, Varela e Vermersch (1999; 2003) instala-se justamente na ruptura cognitiva, que Varela (2003) nomeou breakdown, esquivando-se da pressão da exterioridade.

Quando um breakdown acontece, experimentamos algo da ordem estética: deixamos o mundo conversar conosco. O breakdown vem acompanhado por dois movimentos: de focalização e de distração. De distração, porque nos força a sair do agora &– do reconhecimento &– e a transitar em outros espaços-tempos, cuja potência está em nós, está por vir. Estas forças se acoplam e produzem ao mesmo tempo subjetivação e objetivação.

Todos estes conceitos serviram como ferramentas para as análises das observações, e explicam a opção, na indicação do caminho percorrido pelo estudo, pelo que denominamos de sinalizadores. Estesemergem de momentos de suspensão do foco atencional que podem conduzir ou não a um encontro com o novo, indicando uma modulação da atenção. Sendo assim, o termo breakdown (VARELA, 2003) servirá para nomear os sinalizadores identificados nas situações escolares, que aqui definimos como “efeitos que se expressam na ação dos sujeitos frente a momentos de ruptura do foco atencional” Os sinalizadores foram divididos em dois subtipos:

1) Breakdown que resulta em momentos de problematização: colapsos que articulam diversas situações sociocognitivas experienciadas pelos sujeitos, em sala de aula, e que são responsáveis pelo “lado autônomo e criativo da cognição” (VARELA, 2003, p. 78). São considerados os momentos de atenção inventiva; e

2) Breakdown que resulta em momentos divergentes da problematização: colapsos que, ao emergirem das diversas situações sociocognitivas experienciadas pelos sujeitos, em sala de aula, não são acolhidos e promovem um retorno ao foco atencional.

Na pesquisa, os breakdowns que geraram momentos de problematização e os breakdowns que geraram momentos divergentes à problematização foram identificados a partir das expressões verbais e gestuais dos sujeitos. Tais expressões se apresentaram como a materialização da vivência dos três momentos do ciclo básico da époché (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 1999; 2003), ou seja, o breakdown revelou-se como resultado da experiência de a) suspensão do julgamento habitual, b) redireção da atenção e c) deixar vir. Estes acontecimentos foram qualificados como experiência do sujeito em um determinado instante. O estudo, então, ficou concentrado nestas experiências e procurou delinear o instante de problematização, diferenciando do instante apenas recognitivo.

Em se tratando de uma pesquisa realizada em sala de aula e voltada ao tema da aprendizagem, torna-se importante remarcar que os breakdowns &– momentos de ruptura do foco atencional &– têm estreita relação com os desequilíbrios sociocognitivos, ferramentas fundamentais para a construção de novos conhecimentos. Por conseqüência, breakdowns que redirecionem o foco atencional do exterior para o interior permitem a abertura para problematizações que podem levar a novas e mais complexas cadeias de relações cognitivas. A epistemologia dialógica de Bakhtin torna-se uma ferramenta importante, não apenas do ponto de vista metodológico, mas também por valorizar a comunicação como um palco gerador de tensões e criações que superam as contribuições individuais. Neste sentido, quando um indivíduo enuncia alguma coisa para um outro que, por sua vez, enuncia alguma coisa ao primeiro, já não se trata mais de um somatório de duas enunciações individuais, mas da criação de um campo intersubjetivo, uma nova significação, uma terceira voz.

Do ponto de vista metodológico, a epistemologia bakhtiniana permite a análise das conversações por meio do inter-ato,isto é, atos dialógicos intrinsecamente dependentes de suas relações contextuais. Tomando qualquer enunciação, em sala de aula, seja do aluno, seja do professor, precisamos nos perguntar qual sua relação com as contribuições anteriores e qual sua relação com as contribuições posteriores.

Finalmente, o modelo da análise dialógica sociocognitiva dos breakdowns permite estudar as conversações verbais e gestuais entre professor e aluno, observando simultaneamente os momentos de ruptura do foco atencional e os redirecionamentos sociocognitivos que emergem destes momentos de ruptura.

Os exemplos que seguem revelam três momentos distintos da aprendizagem de Téo: a “cena 1” foi observada na primeira quinzena de março do ano letivo de 2006; na “cena 2”, já haviam transcorrido, aproximadamente, trinta dias de aula; e a última “cena” foi registrada nos últimos dias do ano.

Cena 1 &– 14.03.2006

A cena que segue ilustra o modo de atuar de Téo e traduz a correlação entre o tempo dispensado para a execução da tarefa e a dispersão do menino.

Trata-se da seguinte proposta. Em uma folha, havia um quadro com letras embaralhadas3 . Abaixo, estavam escritos os nomes dos personagens da história do Sítio do Pica-pau Amarelo, que vinha sendo tema de trabalho durante o mês. A atividade proposta consistia em selecionar o nome de um dos personagens, recortar as letras necessárias para escrevê-lo e colá-las em outra folha, formando a palavra. Feito isso com a primeira palavra escolhida, as crianças tiveram autonomia para seguir escolhendo, recortando e colando, conforme lhes fosse possível. Não houve a definição de uma meta quantitativa.

Ao receber a folha, Téo pára e põe as mãos sobre a mesa. Conversa um pouco com o

colega ao lado. Pega a tesoura e faz um pequeno pique na folha. Brinca de abrir e

fechar a tesoura. Olha para o lado. Seu olhar parece fixar-se na mesa. Fala sozinho.

Torce e retorce os dedos. Levanta. Pede ajuda à professora. Senta. Olha sua folha.

Chama a professora novamente.

A professora atende-o, mostrando-lhe onde estão as palavras, dentre as quais poderá

selecionar uma. Ela lê o que está escrito, assinalando com o dedo.

Profª: &– Qual desses nomes queres escrever?

Téo: &– Pedrinho.

A professora explica-lhe, estabelecendo uma correspondência termo-a-termo, como

procurar as letras e recortá-las.

Téo encontra e recorta a letra “p”, colando-a na outra folha.

A professora aproxima-se, observa que Téo havia colado a primeira letra da metade

da folha para baixo, remove a letra colada e orienta-o para que inicie seu

trabalho na parte superior da folha.

Assim que a professora se retira, Téo afasta-se de sua mesa para ver um inseto no

microscópio. Volta, faz um movimento de retomada do trabalho. Decide recortar

uma das colunas de letras, enquanto canta.

A professora dá ênfase ao seu canto e convida todos a cantarem.

Téo ergue a folha, afastando-a de si. Olha para aquele quadro de letras como se

estivesse tentando compreendê-lo. Pega a tesoura e dirige-se para o cabelo da

colega, simulando o movimento de um cabeleireiro. Procura o lanche na

mochila. Chega perto de MAT que o manda de volta para sua mesa. Téo não

retorna, segura e observa a cola do colega, que lhe explica: “ é uma cola que não

deixa meleca”. Téo afasta-se da mesa do colega e passa pela professora.

Reclama que não consegue levar a tarefa adiante. Havia colado as duas primeiras

letras da palavra.

A professora, então, ajuda Téo a retomar o trabalho.

Profª: &– O que queres escrever?

Téo: &– Pedrinho.

Profª: &– Quais as letras que já colaste aqui?

Téo: &– O “p” e o “e”.

Profª: &– Qual a letra que precisas procurar agora? &– Aponta para a palavra

Pedrinho, que lhe serve de modelo.

Téo: &– O “d”.

Ela espera Téo fazer o movimento de busca, sai por alguns instantes e, em

seguida, volta para orientá-lo. Téo já está ocupado com outra atividade: ele

acompanha uma formiga que passeava em sua folha.

A professora novamente faz o menino reconstruir, verbalmente, sua trajetória de

trabalho até aquele momento, solicitando-lhe que relate, também, o modo como

está fazendo. Escuta, espera Téo retomar o trabalho e afasta-se, deixando que

trabalhe sozinho. Ela caminha pela sala, observando as demais crianças e volta

para ver Téo. Pela terceira vez, retoma com ele sua produção, fazendo-o rever o

que já fez e o que ainda precisa fazer.

Profª: &– Qual a próxima letra que precisas recortar?

Téo: &– “R”.

A professora então recorta a letra “r” e põe ao lado da letra “d”. Afasta-se.

Téo passa a cola na letra e deixa-a sobre o bastão.

A professora aproxima-se novamente.

Téo retira a letra do bastão e a põe no lugar. Recorta a letra “i”.

A professora acompanha o menino e deixa-o seguir. Afasta-se.

Téo cola a letra “i”. Brinca com a cola, girando o bastão de um lado a outro. Fala

sozinho. Desliza seu dedo sobre o quadro de letras.

Novamente a professora se aproxima, lê o que o menino já havia escrito.

Pergunta-lhe como poderia seguir e orienta onde encontrar as últimas letras:

“n,h,o”. Mostra-lhe que há uma linha no meio da tabela onde “ o nho está junto”.

Recorta a linha inteira e sugere a Téo que retire dali apenas o que lhe falta para

completar a palavra.

Téo recorta enquanto canta e conversa sozinho. Não dialoga, fala quando quer,

sem se importar em compartilhar com outro colega. Escolhe a letra “z” de outra

linha, colando-a virada, no lugar da letra “n”. Parece não ter percebido as letras

“n, h, o”.

A professora aproxima-se, olha o trabalho de Téo e exclama: “ É o z

virado!”, apontando para aquilo que deveria ser um “n” e virando a folha para

ilustrar o que dizia.

Téo levanta e pede a FEL para ler as letras que sobraram. Sai da sala e vai beber

água. Pega a folha e ensaia uma “leitura” daquilo que sobrara das letras depois

de retiradas aquelas necessárias para escrever Pedrinho. Encontra as letras “n, h,

o”. Substitui a letra “z” pela letra “n”; recorta a letra “h” e, finalmente, a letra

“o”, concluindo esta etapa do trabalho.

Enquanto Téo escrevera “Pedrinho”, no tempo de 45 minutos de duração da tarefa, a

maioria das crianças havia concluído a escrita das dez palavras.

O que se observou na sala de aula, mostrado no relato acima, fala de um corpo que se move incessantemente, transitando entre uma infinidade de ações, sem se deter em nenhuma delas. Téo parece incapaz de manter seu foco atencional em alguma tarefa, deslocando-se, rapidamente, de um foco a outro, seguindo indefinidamente e vagando de forma linear e homogênea. Não há a demonstração de qualquer envolvimento com a atividade, o que se revela pela pouca durabilidade da atenção no foco, além de uma movimentação constante.

A conduta dispersiva do menino desencadeou algumas questões que a professora tentava responder em seus diálogos com a pesquisadora: “O que se passa com Téo?”, “Como posso ajudá-lo?”. Ela percebia uma fuga incessante da tarefa, um deslizamento constante que se mostrava pela inquietação de um corpo que não podia parar. Então, passou a escutar uma linguagem que não vinha pela via das palavras, mas pela via da ação. Respeitando os limites ainda tênues de Téo, criou um espaço de confiança e segurança. Em várias situações diárias, chamava o grupo para ouvir o que ele dizia, valorizando e dando sentido àquilo que o menino pensava.

A professora sabia que, para Téo conhecer-aprender, era necessário vivenciar desequilíbrios cognitivos com uma postura atencional que suportasse os constantes movimentos inerentes ao processo de aprendizagem. Para isso, fazia intervenções pontuais e oferecia pequenas doses de informação, de modo a criar permanentes conflitos sociocognitivos.4 Entretanto, essas informações não revelavam a solução para os conflitos, mas uma pista de como encontrá-la. Nas linhas 29 a 35, ela provocou o menino a recuperar, pela via da fala, seu trabalho e seu objetivo. A mesma proposta pode ser observada também nas linhas 41 a 47 e 52 a 55. Ao fazer isto, ela possibilitava que Téo refletisse e experimentasse aquilo que estava fazendo, e com isto aprendesse a redirecionar para si a atenção que está naturalmente voltada para o mundo externo. Ainda nas linhas 52 e 58, a professora assinala onde Téo poderia encontrar “ o nho”, mas não indica a sílaba propriamente dita. Então, um “z” virado (linhas 63-65) fora colado no lugar do “n”. Novamente, a professora fez um assinalamento, mas deu a Téo autonomia para haver-se com a tarefa. O menino decidiu substituir a letra trocada, quando, finalmente, encontrou-se com aquelas de que necessitava.

Cabe assinalar que um fator significativo para a aprendizagem da atenção foi a escolha que a professora fez pelo resgate mental da ação, ou seja, pelo ato de pensar sobre o que fora feito, sobre a proposta de trabalho e sobre um modo de seguir trabalhando. Este modo de atuar permitia que o menino fosse reconstruindo e vivenciando a experiência de estar atentamente envolvido com sua tarefa, embora o tempo de permanência fosse bastante limitado. Esta experiência requer um investimento em si, marcando os primeiros passos de um processo de aprendizagem e de um modo de atender qualitativamente diferentes daquele que Téo revelava em sua mobilidade dispersiva. Segundo Depraz, Varela e Vermersch (1999), verbalizar, ou seja, pôr em palavras uma experiência já vivida, requer que o sujeito suspenda sua atitude recognitiva para permitir o surgimento de uma memória detalhada de um episódio ancorado no modo sensório motor da experiência. O sujeito precisa, então, reduzir seu ritmo. A expressão verbal, neste caso, possibilitou a Téo uma re-experimentação da sua ação. Com a ajuda da professora, que o convocava a falar da sua experiência de aprendizagem (o que fez, como fez, o que desejava fazer), ele pôde ir aprendendo a redirecionar a atenção para si, movimento este que, aos poucos, foi tornando-se uma experiência de aprendizagem da atenção. A cena que segue tem o propósito de pôr em evidência um tipo de experiência de aprendizagem possível, exclusivamente, em um espaço onde os alunos são convidados a examinar o pensamento, descrevê-lo e analisá-lo, a atender a si e ao outro.

Cena 2 &– 27.03.2006

As crianças exploravam a escala Cuisenaire.5 Tratava-se de uma proposta de exploração e construção das propriedades numéricas. Terminada a fase de brincar/explorar, a professora reuniu as crianças, ao lado de sua mesa, em frente ao quadro. Todos sentaram no chão.

Profª: &– Vamos conversar sobre o jogo. Ontem alguns colegas fizeram umas

descobertas e já falaram. Hoje outros fizeram descobertas? Quem fez descobertas

ontem ou hoje pode falar. Alguém disse ontem que aquela peça bem pequena vale 1.

Quem foi?

MAT.: &– Fui eu.

Profª: &– Ah! Eu achei que fosses tu, mas como não anotei logo, não tinha mais

certeza. Então, quem descobriu alguma outra coisa?

LUC: &– Dá pra fazer campo de guerra.

Profª: &– É, mas agora a gente não vai falar das descobertas de brincadeiras. A

gente viu ontem que dá pra fazer muitas brincadeiras. Agora a gente vai falar de

descobertas de matemática de hoje.

VIT: &– A preta vale 7.

Profª: &– Como tu descobriste?

VIT&– Eu botei de 1 em cima dela e daí contei.

Profª: &– Será que a preta vale 7 mesmo? &– Pergunta ao grupo.

JUL: &– A marrom vale 8.

BER: &– O número do quadradinho das peças, tipo assim, o 7 tem 7

quadradinhos só que daí todas grudadas. Daí tu pode pegar mais o verde fraco

que vale 3. Dá o total 10.

Profª: &– Vocês entenderam o que BER disse?

ANA: &– Eu fiz aqui para mostrar.

ANA havia saído do círculo, foi até sua mesa e colocou as peças em ordem

crescente.

Profª: &– Então venha cá, ANA. Vamos ver isto.

A professora apresenta, em sentido vertical, a tampa da caixa onde ANA havia

ordenado as peças, de forma que as crianças pudessem vê-la. Para isto, fazia

pressão nas extremidades a fim de evitar que caíssem.

Profª: &– Olhem o laranja, quanto vale? Vamos contar?

Als.: &– Dez (depois de contar).

Profª: &– Quanto vale o preto?

Als.: &– 7.

Profª: &– Olha só, VIT., tu tinhas razão, o preto vale mesmo 7.

Profª: &– Quanto vale o azul, Téo?

Antes mesmo de Téo responder, as peças desabam.

Téo: &– Valem tchau...

Profª: &– É mesmo, Téo, não dá mais pra contar... Cada um pode ir pra sua mesa

agora.

A professora, então, distribui uma folha e dá a seguinte orientação:

Profª: &– Agora vocês vão fazer aqui no papel6 a mesma coisa que fizemos com a

escala. Aqui está escrito “Ligue as etiquetas que formam os totais”. Vocês vão

descobrir todos os jeitos de fazer os totais que estão escritos no quadradinho

aqui em cima. (Aponta para o número 4).

Verifica-se uma metodologia de trabalho que é constante nesse espaço: a passagem da ação de classificar/seriar com material concreto ao ato de compartilhar as descobertas e, finalmente, ao registro. É importante, ainda, mencionar que a proposta desta aula está conectada com outra que vinha sendo desenvolvida há dias, agregando, inclusive outros jogos que possibilitaram um trabalho oral sobre a proposta apresentada, agora, por escrito. Observa-se que uma das crianças, durante a conversação, verbaliza: “ o número do quadradinho das peças, tipo assim, o 7 tem 7 quadradinhos só que daí todas grudadas. Daí tu pode pegar mais o verde fraco que vale 3. Dá o total 10”.

Téo olha a folha. Imediatamente encontra uma possibilidade de solucionar o

problema, ligando apenas um número ao outro em cada série, dando a atividade

por encerrada. A professora passa por sua mesa e desafia-o a seguir pensando.

Téo larga o lápis; pega o lápis novamente e torna a deixá-lo sobre a mesa;

brinca; trabalha; joga a bola no corredor; esconde o lápis do colega; retorna ao

seu lugar e liga mais um número a outro. Sai novamente. Agora, brinca com

outros colegas da mesa ao lado. Faz isto o tempo todo. Parece-lhe difícil

continuar o trabalho.

A professora insiste que tente encontrar outras maneiras de mostrar como se

pode fazer os diferentes “totais”, ficando ao seu lado para acompanhá-lo,

enquanto Téo trabalha.

Profª: &– Muito bem, Téo, já descobriste outros jeitos de fazer o total “4”. Será

que tem mais algum?

Téo não responde, salta para a proposição ao lado. Encontra algumas novas

possibilidades, embora sem esgotá-las.

Hora do lanche. Mesmo enquanto lancha, ele faz outras coisas: brinca com os

cabelos, cola fita nos objetos, usa pedaços de papel pequenos para brincar,

fazendo-os servir de carrinho. Circula entre os colegas e parece interessar-se pela

conversa entre eles. Interrompe, dança, mexe no mural. Seu lanche continua

sobre a mesa. Agora, toma-o na mão e circula pela sala comendo. Sai. A

professora não percebe, pois algumas crianças já estão solicitando creme dental

para ir ao banheiro fazer a escovação. Téo fica por lá.

Diferentemente da “cena 1”, Téo realizou a tarefa. Mesmo quando interrompia a atividade e saía para brincar, dava mostras de que não a esquecia. A atividade estava lá e ele voltava para resolvê-la, evidenciando uma preocupação com o trabalho e com o próprio aprendizado. Parecia seguir disperso e, ao mesmo tempo, interessado na atividade proposta. A professora valorizava este último aspecto e investia na capacidade atencional e cognitiva de Téo. O menino fora requisitado, como seus colegas, a executar uma tarefa específica. Durante a tarefa, eles experimentavam algo de forma particular. Ao expressar o que pensavam, um novo trabalho mental propunha-se e as crianças estavam diante de uma bela oportunidade de dar-se conta de seu trabalho mental. Trata-se do cultivo de um modo de atender que não está voltado exclusivamente para o objeto em foco. Identifica-se, nesta proposta, o que Varela e Shear (1999) definem como passos preliminares para o desenvolvimento de procedimentos capazes de conduzir a experiências de atenção a si.

Observa-se que a professora não oferecia as respostas diretas às perguntas das crianças. Normalmente, socializava uma pergunta para que as próprias crianças, ao conversarem, pudessem resolver seus problemas. Ao fazer isto, ela compartilhava, também, o trabalho que cada um estava fazendo e permitia uma troca entre eles. Nas linhas 12 a 15, há uma pergunta que ficou sem resposta. A professora não impôs seu conhecimento sobre as crianças, conservou suas falas e, como mostram as linhas 30 a 32, tornou a revelá-las para que todos pudessem comprovar empiricamente o que uma das crianças havia constatado anteriormente &– a peça preta vale 7 &–, utilizando-se das estratégias das próprias crianças.

Neste episódio, como nos demais observados, a interação professor-aluno não esteve regulada pelo padrão iniciação-resposta- feedback (SORDI, 1999), que dá uma característica de linearidade ao diálogo, revelando uma comunicação do tipo recepção-emissão de informação. O que se percebeu foi um trabalho compartilhado de considerações e avaliações.

A partir da identificação de diferentes modos de como a comunicação acontece em sala de aula, e trabalhando com sua hipótese de que a “qualidade da comunicação na interação sócio-cognitiva poderia ser covalidada mediante uma relação de co-operação7 que deveria considerar a epistemologia do professor e uma compreensão de sua proposta por parte do aluno”, Sordi (1999, p. 93) encontra-se com o padrão de comunicação que denominou interacional,8 no qual predomina a concepção dialógica.

Tal característica, marcada pelo envolvimento recorrente, recíproco e coordenado entre a professora e os alunos desse estudo, revelava sentidos que se construíam na interação. Não se tratava de uma relação de construção fixa, mas aberta, flexível a diferentes e diversas concepções de realidade que podiam se transformar, se atualizar e ser compreendidas ou ignoradas.

Sendo assim, há espaço para a invenção da “singularidade” (GUATTARI; ROLNIK, 2005), onde se engendra um processo de co-autoria de pensamento, caracterizado pela capacidade do professor de conservar simultaneamente pontos de vista próprios e de seus alunos.

Cena 3 &– 12.12.2006

Era final do ano, últimas semanas de aula. Todos estavam reunidos em frente à mesa da professora. Desenrolava-se um diálogo fervoroso sobre as experiências da primeira série: o que foi bom, o que não foi bom, o que aprenderam. Tratava-se de um ensaio, pois este debate, orientado por perguntas, resultaria na construção de um texto.

Téo, ajudante do dia, começa a distribuir, pacientemente, as folhas.

Terminada a tarefa, senta-se e observa que o colega ao lado está ocupado com

apontar o lápis, deixando os resíduos sobre a mesa. Téo decide ajudá-lo com a

limpeza,  usando uma folha de papel que coloca ao lado da mesa, sobre a qual

desliza a sujeira, com a mão, cuidadosamente. Vai até a lixeira e despeja lá os

resíduos do lápis. Retorna e tenta abrir seu estojo. Parece difícil. Tenta algumas

vezes. Chama a professora, que, com certo esforço, consegue abri-lo. Téo retira seu

lápis e torna a fechar o estojo. Lê a pergunta que está escrita no quadro e inicia sua

escrita. Nos próximos 25 minutos, todos, inclusive Téo, ficam envolvidos com a

escrita, que seria a folha de encerramento do arquivo que contém os trabalhos do

último trimestre do ano. Téo verbaliza suas dúvidas ortográficas, que soluciona

perguntando à professora e aos colegas. Orienta sua produção a partir das perguntas

que estão no quadro, conforme fora proposto pela professora, lendo-as quando

precisa dar seqüência ao seu trabalho. Téo escreve o seguinte texto:

“EU ACHEI A PRIMEIRA LEGAL PORQUE A PROFESOURA FES MUITA RRINCADEIRA. EU GOSTEI DOS TEMAS E EU NÃO GOSTEI DO GINAGIO PORQUM ASGORIASINVADIRÃO.”

O que se deseja assinalar, nesta cena, é a transformação do modo de atender e o envolvimento de Téo com seu trabalho. Seu modo de atuar dispersivo deu lugar a um modo mais concentrado. Encontramo-nos com um menino que se interessa por saber. Suas dúvidas diziam respeito a problemas de ortografia, uma vez que já compreendera as regras de construção da língua escrita. Téo estava presente naquilo que fazia, fato que revelava pelos interrogantes que produzia. Tal atitude cognitiva implica, segundo Varela e Shear (1999) em uma importante etapa da aprendizagem da atenção inventiva.

Tratando-se de ortografia, a qual exige memorização, a professora pôde permitir-se dar a informação solicitada &– “ achei é com ch” ou ainda “porque é com q...u...e” &–,embora saibamos que a informação adequada não garante a compreensão do aluno; é preciso que a informação se transforme em conhecimento. Na situação específica de Téo, muito trabalho precisou ser feito em sala de aula para que ele pudesse sentir-se afetado pelo que ali acontecia. Ainda que a curiosidade para o aprender existisse, a constante dispersão dificultava uma postura atencional concentrada e aberta deste aluno.

A constante atuação de Téo, fato que nos impactava nos primeiros dias de aula, foi sendo permanentemente acolhida e trabalhada pela professora. No final do ano, encontramos um menino que já conseguia iniciar uma atividade, questionar, envolver-se com a experiência e colocar um ponto final no trabalho. Suas ações, que eram predominantemente motoras, deixaram de ser automáticas e passaram a ser mais refletidas. Téo continuou deslocando-se pela sala; agora, porém, em busca das informações de que necessitava para qualificar seu trabalho. As rupturas do foco atencional que experienciava não mais o obrigavam a saltar de uma ação a outra, mas possibilitavam uma permanência no trabalho. Já não se observava uma dispersão, mas uma possibilidade de distrair-se, mergulhando, desta forma, em um processo dinâmico, no qual atenção e distração se configuravam essencialmente como dois estados diferentes, mas existentes em um movimento contínuo. Não podemos afirmar, a não ser por inferência, que Téo estava experimentando uma “atenção a si”. Como explicam Depraz, Verela e Vermersch (2003), a experiência vivida por uma pessoa é sempre um acontecimento singular, mas a mediação de uma segunda pessoa pode ser um fator de importância para que aquele que vive a experiência aprenda a aumentar a estabilidade de sua atenção, o que lhe permite ampliar seu gradiente reflexivo. É com base nas marcas lingüísticas e gestuais da professora, bem como na gradativa passagem da ação à reflexão de Téo, que podemos sustentar esta hipótese.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que seja possível falar em aprendizagem de um modo de atender aberto à invenção, é preciso ter clareza sobre a necessidade de se produzir um contexto para que tal aprendizagem se consolide. Como nas práticas da époché, na sala de aula também se torna imprescindível a construção de espaços para um regime atencional que possa se alternar entre fixar e segurar algo em contemplação, entre tensão e distensão, entre focalização e distração. Conforme nos mostra o método do “ato de tornar-se consciente”, o mecanismo que assegura essa aprendizagem deve estar fundamentado em uma experiência continuada, aplicada e disciplinada. Segundo Depraz, Varela e Vermersch (1999; 2003), para poder tornar claro para a consciência algo que nos habita de modo opaco, confuso, afetivo, é preciso poder “manter em suspensão” o foco atencional a fim de que “redireção” e “deixar-vir” se completem. Tal suspensão exige momentos de abandono dos chamamentos externos, tornando possível uma atenção a si &– um olhar com os olhos de dentro. Repetidas vivências dessas experiências tendem a qualificar o modo de estar atento dos sujeitos, podendo assumir um caráter de prática de transformação de si e do mundo.

Embora os autores, ao proporem o desenvolvimento e estruturação de uma metodologia para o ato de “tornar-se consciente”, não nos falem sobre a atenção em sala de aula, nossa pesquisa evidenciou que, neste caso, o exercício faz-se pela prática de pensar sobre o pensamento, orientado por alguém que se deixe afetar pelos breakdowns, acolhendo e valorizando as surpresas. Aliado a esta qualidade de afetação, há que se considerar o conhecimento sobre a tarefa que executa, guiando-se por uma epistemologia construtivista que privilegia a interação dialógica.

“Olhar com os olhos de dentro” é uma metáfora que condensa esse caminho percorrido, a partir dos sucessivos breakdowns da professora com seu aluno dispersivo. Se esta só “olhasse com os olhos de fora”, seus breakdowns não seriam acolhidos e, provavelmente, o destino de Téo seria outro que o da abertura para novas possibilidades cognitivas. Na realização de uma pesquisa desta natureza, trabalhamos certamente sobre inferências, mas não cremos ser exagerado dizer que os olhos de dentro da professora se encontraram com os olhos perdidos do aluno, para que ambos pudessem viver momentos cada vez mais freqüentes de um padrão atencional aberto e criativo.

Tal espaço atencional, que não é natural, mas construído, poderá permitir que aluno e professor desenvolvam um regime atencional caracterizado por uma suspensão do julgamento habitual e um deixar-vir suas próprias experiências. Porém, esta tarefa de construção não pode ser pensada de forma simples. Habitualmente engajados na percepção dos outros, conectados de uma forma imanente em nossas atividades cotidianas, a atenção é naturalmente interessada no mundo (DEPRAZ; VARELA; VERMERSCH, 1999). Dificilmente afasta-se do mesmo de forma espontânea, fenômeno denominado por Fink (1988-1999) como um “aprisionamento no mundo”.

Com esta pesquisa, desejamos assinalar que, para que fosse possível a constituição desse espaço potencializador da aprendizagem atencional e cognitiva de Téo, o caminho trilhado foi o de uma epistemologia capaz de construir o conhecimento em uma postura de autêntica co-operação. O que se observou mostra o desejo da professora em estabelecer coesão entre os enunciados; para isto, ela os conservava e tornava a compartilhar em outro momento, promovendo certa circularidade do pensamento. Tal circularidade implicava em mostrar, guardar em suspensão e tornar a mostrar para que pudesse seguir produzindo efeito.

A partir deste estudo, podemos afirmar que um modo de atenção concentrada e aberta e uma epistemologia dialógica baseada na co-operação são fatores que se fertilizam mutuamente, produzindo modos de atenção e aprendizagem abertos à invenção.

Enquanto, freqüentemente, os fluxos de atenção experienciados pelas crianças, em sala de aula, são considerados como falta de atenção, a observação sobre o contínuo trabalho desta dupla &– professora e Téo &– pretende apontar para a transformação das atuações deste aluno, de comportamentos tipicamente dispersivos em dispositivos para pensar.

 

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Endereço para correspondência
Regina Sordi
E-mail: sordi.voy@terra.com.br
Maria Helena De-Nardin

E-mail: denardin@globo.com
Bruno Farias
E-mail: brunograebin@gmail.com

Recebido em: 02/06/2007
Aprovado em: 27/09/2007
Revisado em: 16/11/2007

 

 

1 Nome fictício.
2 A discussão sobre este modelo será empreendia na terceira seção deste artigo, quando da orientação metodológica, apresentação e discussão do material de observação.
3 Ver Figura 1.
4 Expressão utilizada por Perret-Clermont (1978) para nomear as perturbações sociocognitivas nascidas da interação interindividual que demandam compensações.
5 A escala Cuisenaire é um material composto por barrinhas de madeira em dez tamanhos diferentes, sendo que cada tamanho é pintado de uma determinada cor. A menor das barras tem 1 cm e representa uma unidade. A segunda tem 2 cm e representa o número 2, e assim por diante, até a maior, com 10 cm, que indica o 10.
6 Ver Figura 2..
7 O termo co-operar é aqui compreendido como um operar em comum, quer dizer, um ajustar por meio de novas operações de correspondência, reciprocidade ou complementaridade as operações executadas por cada um dos participantes, evidenciando um trabalho ao mesmo tempo inter e intraindividual.
8 O termo interacional relaciona-se a uma autêntica relação de cooperação (PIAGET, 1983), em que os sujeitos se mostram pensando sobre o pensamento uns dos outros. Do ponto de vista da epistemologia genética, para que em uma relação intersubjetiva ocorra uma compreensão, deve haver, fundamentalmente, uma conservação da fala do outro. “Conservação e compreensão implicam-se mutuamente, significando, em ambos os casos, uma atitude ativa dos interlocutores, tanto do ponto de vista cognitivo (conservação), quanto lingüístico (compreensão)” (SORDI, 1999, p. 11).

 

 

ANEXOS

Figura 1

 

 

Figura 2

 

 

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