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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.60 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2008

 

ARTIGOS

 

Corporeidade, significação e o primeiro ano de vida

 

Embodiment, meaning and the first year of life

 

 

Katia Amorim; Maria Clotilde Rossetti-Ferreira

Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trabalho anterior verificou que bebês agem e se comunicam culturalmente, apesar de não terem ainda adquirido linguagem e pensamento verbais. Questionou-se como o bebê apreende/expressa significações, organizando-se estudo sobre linguagem e significação. De abordagem histórico-cultural e com noção de inseparabilidade biológico-cultural, analisou-se microgeneticamente a aquisição do engatinhar. Verificou-se apreensão/expressão de significações ligada à percepção-ação, a significação não equivalendo à representação, mas estando materializada no e por meio do corpo. Este emergiu como elemento central, na noção de corporeidade: a pessoa corporificada está intimamente conectada ao mundo, em processo relacional, o corpo representando a interligação eu-outro; a constituição da subjetividade depende do outro, da história e da cultura. Destaca-se a relação dialógica da pessoa, em que o corpo é tanto a coisa significada, como significante; o corpo é tanto feito significado pelo sistema semiótico como representa um sistema semiótico.

Palavras-chave: Bebê; Linguagem; Corporeidade; Dialogismo; Significação.


ABSTRACT

This text discusses the cartography, a geographical practice of attendance of processes in course which, more than a delineating plan of historical courses, it is in charge of a field of forces in the core of the strata. Proposed as wandering way by Gilles Deleuze and Félix Guattari, the cartography offers itself as trail to access that which forces to think; to that which forces to move practices, subjectivities and worlds going in the pursuit of the event and giving itself to the researcher, as attendance possibility of that which does not bend to the representation. Understanding that the cartographic method convokes a peculiar cognitive exercise of the researcher &– once being turned to the plan of a problematic field, it requests a cognition much more capable of inventing the world, that of recognizing it &–, we looked for elements for that discussion in a dialogue with Henri Bergson when he is devoted to think about the intuition as method.

Keywords: Infant; Language; Embodiment; Dialogism; Signification.


 

 

1. A CONSTITUIÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO

Investigações sobre processos nos primeiros anos de vida não são novas e têm sido realizadas ao longo de toda a história da psicologia. O estudo da criança pequena, de suas capacidades comunicativas e de seu desenvolvimento tem sido feito a partir de diferentes perspectivas (psicanalítica, etológica, sistêmico-dinâmica, psicobiológica, sociohistórica, teoria da atividade etc.). Com isso, inúmeras proposições foram e têm sido elaboradas, cada qual sendo ponto de ancoragem para formas - muitas vezes divergentes entre si - de conceber a criança, investigá-la e atuar junto a ela.

O grupo de pesquisa do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI) da FFCLRP &– USP) também tem investido no estudo de processos de desenvolvimento dos primeiros anos de vida, particularmente daqueles processos associados à educação de crianças em ambientes coletivos (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2004). Esse trabalho implicou identificar alguns fios das várias meadas relacionadas às pessoas envolvidas (familiares e crianças), aos vários profissionais (de educação e saúde), aos diversos contextos (domiciliar e creche), às legislações e aos parâmetros curriculares, às muitas histórias interligadas relacionadas às creches, à maternidade e à infância, que contribuíram não só para a compreensão sobre a educação infantil em ambientes coletivos, como sobre o desenvolvimento nos primeiros anos de vida(AMORIM et al., 2004). Dentre os vários estudos, um trabalho investigou como elementos socioeconômicos e culturais contribuem para constituir o desenvolvimento humano.

O desenvolvimento e os aspectos sociohistóricos, políticos e culturais

Os elementos sociohistóricos, políticos e culturais e suas relações com o desenvolvimento foram investigados, com base em referencial histórico-cultural, no Doutorado de Amorim (2002). Por meio da análise da freqüência de bebês (4-13 meses de idade) à creche, procurou-se verificar se e como tais elementos têm concretude no aqui e agora das situações, contribuindo para circunscrever os processos de desenvolvimento das várias pessoas envolvidas.

Seis estudos de caso foram conduzidos. Aquela concretude foi identificada em diversos aspectos ligados às práticas de cuidados com os bebês, as quais incluem: local onde a criança é cuidada (casa ou creche); rotinas estabelecidas; pessoas (mãe, educadora, babá, avó etc.) participantes da rede de relações; objetos disponibilizados. A concretude foi verificada, ainda, por meio do local (colo, carrinho, chão) onde a criança é colocada; da postura que promovem (deitada, sentada, em pé, apoiada sobre móveis, andando); do direcionamento dado por essas posturas (ambiente em geral, local mais restrito, outras crianças, a própria mãe, objetos); do local em que os adultos permanecem com relação à criança (com a criança no colo; separados, mas colados à criança; ao lado, à sua frente ou atrás; sentados, agachados ou em pé; próximos ou longe); da freqüência e do tipo de contato físico (arruma a roupa, acaricia e beija, esporádica ou continuamente); do grau de autonomia que propiciam (estimulam o afastamento ou a permanência próxima aos familiares; deixam a criança procurar atividades ou eles próprios fornecem objetos); da maneira como intercedem (se intercedem) diante dos problemas enfrentados (como bater em ou apanhar de coleguinha; quando tomam objetos ou têm seu objeto tomado; quando caem ou se machucam); da forma como introduzem o filho às pessoas não familiares; como interpretam eventos de doença e atuam junto a eles (AMORIM, 2002). A partir das vídeo-gravações e entrevistas, verificou-se que cada um desses cuidados, gestos e ações estavam atravessados por concepções, valores, práticas discursivas (SPINK, 1999) construídas por determinados grupos sociais, dentro de contextos históricos específicos.

Nessa investigação, a análise também levou à identificação de que, em curto espaço de tempo, os bebês modificavam seu comportamento de acordo com as diferentes concepções e práticas. Mesmo os menores, quando inseridos na creche, com nova organização do tempo e do espaço &– com seus diversos significados, interlocutores e formas de relação -, agiam e se relacionavam de acordo com outras regras, mantendo formas construídas com a família, ao mesmo tempo que passavam a negociar diferentes posições e relações com os diferentes interlocutores, em ambos os contextos.

A criança passava a agir de forma culturalmente apropriada. E, como Fogel (1993) diz, uma atividade é cultural na forma de ação, quando reconhecida e interpretada por outros como um padrão da comunidade, independente de alguém ter ou não a intenção de realizá-la ou, mesmo, de entender o que está fazendo.

O estudo tinha por base o referencial histórico-cultural, fundamentado também em Vygotsky (1987; 1991), que sustenta o ingresso da criança na cultura e nas significações com a aquisição dos signos por meio da linguagem/pensamento verbais. Dessa forma, a identificação dos comportamentos considerados culturalmente adequados dos bebês fez emergir uma série de questões: Como o bebê, em estágio de vida que não faz uso de signos, por intermédio do pensamento e linguagem verbais, pode negociar e modificar seu comportamento, de acordo com as significações dos adultos/do meio? Como, sem ter sistema de representações, a criança apreende/expressa significações? Como o bebê tem acesso ao universo semiótico do grupo social?

Essas perguntas não são novas. Fogel (1993), por exemplo, também as faz quando busca traçar raízes da comunicação, do self e da cultura, ao investigar crianças antes da aquisição da linguagem oral. Ele pergunta: Como bebês se tornam participantes em uma cultura? Como adquirem habilidades comunicativas culturalmente aceitáveis? Se o bebê não obtém informações por meio da fala, que informações ele estaria apreendendo?

Partindo dessas questões, pontuamos que, para compreendermos a inserção do bebê no meio sociocultural, a sua participação no meio semiótico e apreendermos as relações dialógicas que estabelece no ambiente, temos que nos afastar de propostas que tomam o adulto (oral, verbal) como padrão de medida do ser criança; temos de nos afastar de propostas que projetem na criança a representação do ser adulto (CARVALHO, 1983). Como diz Pino (2003), entre adultos e crianças não existem apenas semelhanças, mas também diferenças, e essas diferenças traduzem a peculiaridade da “condição de ser criança” e não algo negativo próprio dessa condição. Isso nos impôs investigar a situação, buscando apreender as peculiaridades de ser da linguagem e significação dos bebês.

 

2. OBJETIVO

Investigar peculiaridades da relação do bebê com o signo, com o universo semiótico; estudar como ele tem acesso ao universo cultural humano; e como apreende/expressa significações.

 

3. PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS

O estudo foi realizado a partir de estudos de caso de bebês que freqüentaram uma creche universitária. O material empírico foi obtido do Banco de Dados, o qual registrou, em 1994, 21 bebês (de 4 a 13 meses), suas famílias e educadoras, após o ingresso deles na creche.1

O projeto realizou vários registros, como (A) entrevista de matrícula; (B) fichas: Observação de saúde; Intercorrências de saúde; e, Observação do comportamento da criança; (C) entrevistas: com as seis educadoras do módulo, três das técnicas da creche e com as mães de seis crianças consideradas “sujeitos focais”2 (no total, 73 entrevistas); (D) gravações em vídeo: essas foram feitas com câmera de vídeo móvel, por técnico especializado, durante os três primeiros meses de freqüência à creche (7/3/1994 a 21/6/1994). Nas primeiras semanas, as gravações eram diárias, com três horas de duração (chegada à creche, almoço e saída). A partir de abril, as gravações duravam duas horas diárias (horário do almoço e da saída). A gravação era realizada por uma hora seguida, sem interrupções, registrando o conjunto dos eventos que ocorriam naquele período. Elas eram orientadas por objetivos gerais, como reações e interações na separação e reencontro do bebê com familiares; apresentação/mediação do ambiente, dos objetos e das pessoas, pelos familiares e educadoras; e, eventos interativos da criança com outras crianças, educadoras e outras pessoas que freqüentam o ambiente (54 fitas de vídeo).

De forma a proceder ao estudo, dentre os 21 bebês, realizamos seis estudos de caso: Nisete (5 meses), Túlio (6 meses), Linda (9 meses), Vera (10 meses), Vitor (12 meses) e Guido (12 meses e 5 dias) (os nomes são fictícios).

Construção do corpus

O corpus foi construído pela articulação das gravações em vídeo com as entrevistas. A partir das fitas de vídeo, editou-se cronologicamente o aparecimento de cada criança. As fitas foram transcritas microgeneticamente, indicando-se local onde se desenvolve a situação, pessoas presentes, atividades realizadas e interações estabelecidas. Descrevemos a concomitância de eventos, seqüência com que ocorrem e afetam o outro, além de ações, posturas, olhares e falas. Dada a especificidade dos bebês, e desses terem habilidades de comunicação verbal em desenvolvimento, discriminamos comunicação e ações não verbais dos vários participantes, captando choro e balbucios dos bebês, além dos olhares, posturas, movimentos corporais, sorrisos, expressão emocional, em associação à situação como um todo.

A partir desse material foram feitos recortes para evidenciar episódios que possibilitassem apreender como os bebês são constituídos pelos múltiplos sentidos presentes, além de contribuírem para constituí-los, tendo em vista os modos como a cultura concebe e atua com e junto a eles; como se dá o jogo de significações nas relações dos bebês (com suas especificidades, capacidades e potencialidades); e pela forma como os bebês (re)agem dentro desses contextos.

A análise microgenética dos processos

Como o objetivo era verificar a existência de peculiaridades do processo de significação do bebê em suas situadas interações, optou-se por análise centrada no processo. Optou-se, assim, por metodologia de análise que apreendesse como se dão os processos de mudança ao longo do tempo (VALSINER, 2000), utilizando, para isso, a análise microgenética.

Nessa abordagem, a microgênese refere-se a qualquer atividade humana - como perceber, pensar, agir -, em seu processo de desdobramento, independentemente desse desdobramento levar segundos, horas ou dias. O objetivo básico é uma exposição à e apreensão da dinâmica dos processos, de modo a se identificar os principais pontos constituintes da história dos mesmos, com a reconstrução de diferentes estágios, na busca das origens das transformações. Como Blonsky (apud VYGOTSKY, 1991) afirma, o comportamento só pode ser compreendido como a história do comportamento. E como Vygotsky (1991, p. 74) propõe, "é somente em movimento que um corpo mostra o que é".

A meta, portanto, era capturar o movimento, enquanto se preservava o tempo na unidade construída, retendo informações sobre a dinâmica observada. Esperava-se apreender velhos e novos comportamentos, emoções e concepções, além da co-construção e das transformações pelas quais passam as pessoas, os relacionamentos e contextos. Nessa abordagem, como afirma Valsiner (1987), os diferentes estágios do fenômeno não podem ser considerados independentemente. Ao contrário, é axiomaticamente aceito que o estágio prévio leva ao subseqüente e a ordem temporal da observação serve como dado para a apreensão dos processos.

Ao discutir a análise microgenética, Góes (2000) frisa que ela é considerada micro por ser orientada para minúcias indiciais. Ela é considerada genética no sentido de ser histórica, por focalizar o movimento nos processos e relacionar condições passadas e presentes, explorando ainda aquilo que, no presente, está impregnado de projeção futura. É genética, como sociogenética, por relacionar eventos singulares com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos circulantes, das esferas institucionais. Nesse sentido, são as relações situadas que devem ser investigadas ao se examinar o curso de ação do sujeito.

Como pontua Góes (2000), tal abordagem assume a centralidade do entrelaçamento das dimensões cultural, histórica e semiótica no estudo do funcionamento humano, focalizando aspectos intersubjetivos e dialógicos. Os processos são examinados do ponto de vista do fluxo das enunciações, em uma ampliação da noção de diálogo para além dos contatos face a face. São destacadas práticas discursivas, tais como posição de poder dos sujeitos, imagem dos interlocutores, formações discursivas, gêneros discursivos etc.

 

4. O ESTUDO EMPÍRICO

A seleção de episódios

À análise do corpus, várias possibilidades de estudar a relação do bebê com o signo foram verificadas. Nos casos, seria possível acompanhar a construção de significações no processo de separação mãe/bebê por intermédio dos momentos de despedida (do “tchau”); ou ligada ao uso de certos objetos (como telefone) e às ações a serem realizadas pela criança (como mamar, fazer o uso da mamadeira). Ainda poderíamos analisar as significações por meio das formas de relações com outras crianças, em que são construídas significados de “bater/acariciar”, dar/pegar ou “roubar/tomar” o brinquedo do outro.

Ao analisarmos os diferentes caminhos, em dois casos, verificamos a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento motor das crianças: em Túlio, a aquisição da habilidade de se sentar sem apoio; e, em Linda, o engatinhar. Ambas as crianças tinham sido consideradas, pelas funcionárias, como tendo certo atraso do desenvolvimento. Porém, o acompanhamento revela que, em curto período de tempo, ambos adquiriram tais habilidades.

Tradicionalmente, essas habilidades motoras são consideradas por uma perspectiva maturacional do sistema nervoso. As aquisições de sentar-se e engatinhar representam momentos no processo de “tornar-se” humano, considerados predominantemente a partir do plano biológico.

Porém, essa não foi a perspectiva que lançamos aos eventos. Como Wallon (apud WEREBE; NADEL-BRULFERT, 1986, p. 8) afirma,

(...) jamais pude dissociar o biológico e o social, não porque os creia redutíveis entre si, mas porque no Homem, eles me parecem tão estreitamente complementares, desde o nascimento, que a vida psíquica só pode ser encarada tendo em vista suas relações.

Como Ribeiro, Bussab e Otta (2004) afirmam, embora o nascimento represente uma ocasião especial do desenvolvimento, ele não pode ser confundido com um ponto zero, antes do qual o organismo não foi afetado pela experiência. Os autores também frisam que seria ingenuidade postular que estados posteriores sejam construídos exclusivamente pelo ambiente. Como afirmam, a complexidade das interdeterminações entre fatores de origem genética e ambiental não permite nenhum tipo de simplificação; o reconhecimento da natureza desses fatores não implica separações, tornando-se necessário desmontar o paradigma de oposição entre natureza e cultura. Tratam assim do ser humano como “biologicamente cultural” (RIBEIRO; BUSSAB, 1998). De acordo com eles, há mais do que um jogo de palavras na afirmação de que o ser humano é naturalmente cultural. A chave para a compreensão da natureza humana está na cultura e a chave para a cultura está na natureza humana.>

Nesse mesmo sentido, Varela et al. (1991) propõem que natureza e cultura estariam uma em relação à outra como produto e processo, não havendo distinção inteligível entre características herdadas (biológicas, geneticamente dadas) e adquiridas (mediadas ambientalmente). Ao se eliminar essas distinções, não somente enquanto extremos, mas mesmo como um continuum, a evolução não pode ser explicada como dependendo da distinção delas. Seres vivos e seus ambientes passam a estar colocados um em relação ao outro por meio de mútua especificação,em que o organismo é tanto sujeito como objeto.

Tal posicionamento nos instigou a acompanhar a questão das significações no desdobrar de processos até mesmo motores. Dos dois casos &– o de Túlio e o de Linda &– definimos por apresentar, neste texto, especificamente o caso de engatinhar de Linda.

O recorte temporal do estudo

Como a meta era acompanhar o processo de aquisição do engatinhar de Linda, isso implicou acompanhar o processo desde um primeiro momento de Linda na creche (quando ela não engatinhava) até o momento em que ela começa a engatinhar com adequada coordenação. Desta forma, o recorte inicial é o momento de ingresso na creche - em que Linda, ao estar sentada, dobra seu tronco sobre suas pernas e, mesmo, se posiciona sobre seus joelhos, sem fazer menção de deslocamento. O recorte final é de oito dias após o ingresso, quando ela engatinha com destreza pelo ambiente. Delimitou-se, assim, o recorte à primeira semana de freqüência da criança à creche.

No decorrer da análise dos vídeos, acompanhou-se quando aparece a ação de engatinhar; em que circunstâncias aparece; sua seqüência; transformações; e aspectos que tanto a dificultam como promovem.

 

 

O estudo de caso de Linda &– o engatinhar

Linda ingressa na creche aos nove meses de idade. Ela é um bebê bastante sério, calmo, tranqüilo.

 

 

De acordo com a educadora, ao ingresso, “(...) Ela ainda não engatinha, só se arrasta. (...) Então, eu senti assim que ela tá um pouco… num sei se atrasada. (...)” (educadora 1, 9/3/1994).

Ainda, pelas entrevistas da mãe e das educadoras, identificou-se que, desde os quatro meses de idade, Linda freqüentava outra creche. Porém, o ambiente desta era organizado fundamentalmente por berços, onde os bebês permaneciam.

 

 

Finalmente, a educadora1 relata que “A vó passou [informou] que ela [em casa] fica no quadrado. [...] Então, ela num tem muita oportunidade de explorar o espaço.”

Portanto, antes do ingresso na creche investigada, as possibilidades de deslocamento eram pequenas. Mais do que isso, a organização espacial dos ambientes que freqüentava não propiciava deslocamentos. Na verdade, o ambiente, de certa forma, restringia esses deslocamentos, ficando a criança totalmente na dependência do adulto.

Em função das informações, lançou-se olhar ao caso que ia além do contexto imediato (creche em investigação), procurando contextualizar a história de ambientes e de formas de cuidados com a criança. Tal história evidenciou que, com o ingresso na creche investigada, a criança passou por mudança radical nas formas de cuidados, pois nessa creche as crianças permaneciam a maior parte do tempo no chão ou colchão; deitadas, sentadas, engatinhando ou andando pelo ambiente. Tal organização circunscrevia diferentes possibilidades e limites ao comportamento, em relação aos ambientes anteriores, reorganizando os percursos mais imediatos de seu desenvolvimento.

Esse aspecto de confronto e novas possibilidades foi evidenciado no novo espaço, logo nos primeiros minutos em que mãe e criança passaram a freqüentar o ambiente.

Logo de início, Linda (9 meses) e sua mãe estão sentadas em um colchão disposto no chão. Ao lado delas, encontra-se outra mãe e sua filha, Vitória (7 meses). Esta última, apesar de ser dois meses mais nova do que Linda, desloca-se com grande agilidade, engatinhando por todo o espaço. A desenvoltura da outra criança é tal que a mãe da Linda faz várias perguntas à mãe de Vitória sobre desde quando ela engatinha, como foi que começou etc.

E, quase que imediatamente, a mãe passa a colocar Linda em pé com apoio, para andar com apoio e para engatinhar. Esse comportamento da mãe, e também da educadora, é visto em destaque na relação com Linda.

Processo de aquisição do engatinhar

A análise das cenas evidenciou o alto grau de complexidade da ação de engatinhar. Sua realização demanda uma série complexa e articulada de várias outras habilidades. Particularmente, colocam-se como centrais a coordenação entre o movimento das mãos direita e esquerda; das pernas direita e esquerda; dos braços e pernas (coordenação inclusive alternada). Implica, além disso, a coordenação dos músculos que impulsionam o corpo para frente (ou para trás); envolve força de braços, pernas e tronco para manter o tronco longe do chão (senão a criança só se arrasta). Observamos também que, enquanto a mão já tem várias funções adquiridas (manipulação, exploração, apoio), as pernas são mais fracas em termos de tônus muscular e coordenação motora. Mais do que isso, as pernas não têm seus significados bem definidos, já que a criança usa os pés para exploração de objetos (a criança pára de andar para tatear os objetos com os pés).

Nesse rol de complexidade, outros aspectos interferem na ação de deslocamento. Particularmente, problemas relacionados à roupa (que escorrega e não permite que a criança se firme), a objetos que representam obstáculos na frente da criança e a elementos que dispersam a atenção da criança.

Nessa primeira semana, as cenas de vídeo revelam uma série de atividades dos adultos (mãe e educadora) em relação à criança e ao seu engatinhar. Uma atividade é a repetida colocação de Linda na posição de engatinhar. Nos momentos em que Linda se deita de barriga, no chão, a mãe coloca levemente sua mão sob a barriga da filha, de modo a estimulá-la a levantar-se. Como muitas vezes Linda não sai do lugar, a mãe delicadamente dá uns tapinhas na criança, para ver se ocorre o deslocamento. Não só há todo esse trabalho direto com o corpo da criança, como a mãe usa de recursos como ela própria se colocar na posição de engatinhar, de frente para a criança. A mãe também se coloca na frente da filha, chamando-a de forma bastante afetiva para ela se aproximar.

Outras atividades também são realizadas com a criança e poderiam estar contribuindo para promover direta ou indiretamente essa ação. Assim, a mãe sustenta a criança em pé, Linda permanecendo apoiada sobre seus pés e pernas (o que fortalece a musculatura dos membros inferiores). Ainda, reiteradamente, Linda é estimulada a “andar” com apoio da mãe e da educadora pela sala.

Apesar do intenso investimento da mãe em colocá-la na posição de engatinhar, a criança não o faz imediatamente. Quando colocada nessa posição, repetidamente ela se solta e se deita no chão, batendo alegremente seus pés contra o chão; em outros momentos, senta-se, observa e sorri para a mãe; sorrindo, movimenta seu corpo para frente e para trás sem sair do lugar; ou, desloca-se por meio de posições esdrúxulas, totalmente não funcionais e não produtivas. O investimento da mãe para que a criança o faça de forma correta é tal, que muitas vezes as ações da mãe acabam por interromper o próprio movimento de engatinhar que a criança vinha realizando.

Esse processo se mostrou não-linear. A criança ora mostrou-se capaz de realizar os movimentos que, em momentos posteriores, ela não era capaz; ora mostrava-se coordenada, ora descoordenada; ora avançava para frente, ora para trás e, mais tarde, para frente. Porém, ao término de uma semana, a criança passou a engatinhar com coordenação e firmeza.

Diferentes entrevistados comentam essa rápida aquisição, como a educadora explicita:

Linda foi uma criança que foi a maior revelação pra mim. Acho que pra todo mundo (...) Ela, hoje, tá fazendo um mês que ela tá com a gente. (...) Mas, nesse um mês... É até engraçado como a criança muda totalmente, em um mês. A Linda chegou (...) ela não engatinhava. Ela só se arrastava. Aí, na primeira semana, ela já começou a engatinhar. (...) Em um mês ela teve uma mudança tão grande, que é até difícil de a gente entender o por que de tanta mudança (Branca, 15/4/1994). [E:] Ainda, a avó brincou com ela assim: “Ah! Ela ficou com vergonha. Chegou lá na creche, todo mundo engatinhava, ela resolveu treinar em casa e começar a engatinhar” (Branca, 15/4/1994)(grifo nosso).

A co-construção do engatinhar de Linda

A interpretação construída a partir dos dados é de que a aquisição do engatinhar na criança se fez em um entrelaçado de elementos. Um elemento de destaque, que evidenciou as características do caso e lhe fez dar maior visibilidade ao pesquisador, é a mudança de contextos de cuidado da criança. Nisso pesa a diferença radical de a criança passar de uma situação em que permanece predominantemente em um berço/”quadrado” para o colchonete e o chão. Isso a fez transitar entre ambientes que resultam de propostas pedagógicas que promovem de maneira diferenciada a participação da criança nos espaços e relações.

Na situação, há um confronto com o conseqüente investimento da mãe (e pelas entrevistas, entende-se que isso ocorreu também em casa) no sentido de promover a ação de engatinhar da filha. A nossa interpretação desse investimento não está ligada ao fato de a mãe ter identificado essa necessidade na filha, nem pelo fato de a mãe ter percebido habilidades emergentes nesse sentido, mas por ela, naquele novo contexto, com sua organização/pessoas/relações, passar a interpretar uma “falta de habilidade” da sua filha, quando comparada às demais crianças desse ambiente.

Entende-se que o desenvolvimento de Linda ocorra em uma sociedade competitiva, na qual comparações entre grupos é rotina e as pessoas são usualmente avaliadas e valorizadas pelo seu desempenho (VALSINER, 1987). Dentro desse contexto, com o ingresso na creche, a mãe se defronta com outras crianças que, muito antes de sua própria filha, já adquiriram determinadas habilidades, como a de engatinhar. A maternidade é (re)avaliada por intermédio das aquisições da criança e o futuro dessa é antecipado pelo seu maior/menor desempenho, o que faz com que uma nova perspectiva seja colocada à mãe, fazendo com que suas percepções, expectativas e ações a respeito do comportamento de Linda e dela própria se modifiquem.

Para estimular o engatinhar, a mãe usa tanto recursos afetivos, imitativos, como modelagem do corpo da criança, para que ela adquira não só a posição, como o movimento considerado próprio à locomoção e desenvolvimento humanos. Nesse diálogo sem palavras com a filha, mas atravessado por uma infinidade de palavras, com seus valores, concepções e práticas, a criança passa a experienciar diferentes posições corporais, diferentes sensações decorrentes das novas posições, tensões e movimentos corporais.

Nesse processo, coloca-se em destaque o papel da percepção/ação, em que tanto os processos sensoriais como os motores são compreendidos como fundamentalmente inseparáveis, representando dois momentos de um mesmo processo. A percepção se dá por meio das múltiplas ligações entre os diferentes sistemas sensoriais e motores, em uma mútua especificação dos padrões sensório-motores que possibilitam a ação a ser perceptualmente guiada, percepção essa que depende do acoplamento estrutural com o ambiente. Percepção e ação, sensório e motor, estão ligados como padrões sucessivamente emergentes e mutuamente seletivos. Trata-se, portanto, de um arco, pois tanto a sensação como o movimento pertencem ao ato, todos em um contínuo processo de constituição, sendo que a resposta não se faz ao estímulo, mas dentro dele. O que ocorreria seria uma ininterrupta redistribuição de massa em movimento, com mudanças no sistema de tensões. A resposta é necessária para a constituição do estímulo e a continuidade deste último é necessária para a continuidade do controle da resposta. Eles são correlativos e contemporâneos, cada um deles se constituindo como distinções de funções flexíveis em exercício (DEWEY, 1896).

No processo analisado e, especificamente, considerando-se a idade do sujeito, destaca-se a centralidade do corpo e do aspecto relacional. Os corpos são vistos não só como estruturas físico-biológicas, mas também enquanto estruturas experienciais vividas. Isto é, o corpo é visto simultaneamente como biológico e fenomenológico; tanto como contexto ou milieu de mecanismos, como enquanto estrutura experiencial vivida, as duas formas não podendo ser pensadas separadas, a não ser teoricamente (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1991).

Mais ainda, destaca-se o caráter simultaneamente público e privado da corporeidade,3 essa sendo estruturada em relação à alteridade pelo fato de, na relação, a experiência ser simultaneamente ativa e passiva, dual, recíproca. Como Coelho Jr. (2003) menciona, a percepção não é pura recepção de um conteúdo particular. A percepção é uma co-operação de fato ou intercorporeidade, “com contato direto com o outro”, havendo uma permanente reversibilidade entre as pessoas corporificadas. Há uma simultaneidade de ser sujeito e objeto de um ato sensível, que implica sentir/ser sentido, tocar/ser tocado etc. (BURKITT, 2003; COELHO JR., 2003; SOFFER, 2001). A percepção deve, portanto, ser considerada como fundamentalmente intercorpórea, rompendo-se com as noções de proximidade/distância, barreira/penetrabilidade do corpo aos aspectos do meio. Nessa idéia, o dobrar-se da percepção representa uma modulação que já acontece antes mesmo de reagirmos ao que experienciamos no nosso comportamento corporal ou no nosso diálogo com os outros.

Nessas e dessas experiências, como se revela no caso de Linda, gradativamente, passa a ocorrer maior coordenação muscular para manter-se com firmeza na posição de engatinhar; maior coordenação entre pernas direita e esquerda começa a existir; a criança passa a ajustar passos e o tamanho desses; começa a construir significados sobre o pé - não como algo com o qual explora objetos, mas como veículo de deslocamento.

Vale frisar, no entanto, que esse percurso não se faz exatamente como e quando os parceiros sociais (mãe e educadora) assim o desejam. Linda se contrapõe, não aceita, se dispersa e não realiza o movimento esperado. Linda o faz de modo desordenado e em momentos que não necessariamente coincidem com aqueles propostos pelos adultos. No diálogo mudo, as (re)ações e emoções da criança falam, aceitam, recusam e negociam com seus parceiros.

Nessa relação dinâmica e dialética com o meio e com os outros há um percurso em que diferentes habilidades vão sendo adquiridas/promovidas e relacionadas às posturas nas quais os outros sociais colocam o bebê. Tais habilidades são possíveis de serem adquiridas em função do próprio aparato biológico da espécie; dos significados que vão sendo construídos; das relações e aproximações que vão sendo disponibilizadas nas relações no ambiente, com seus outros sociais.

Como Wallon (1959-1986, p. 161) afirma, o desenvolvimento biológico, graças à maturação, possibilita a função. Mas, sem o meio, não teria nenhum objetivo, já que acabaria virtual ou atrofiado. Diz ele,

É-lhe indispensável uma assistência constante. O recém-nascido é um ser cuja totalidade de reações necessita ser completada, compensada, interpretada. “Incapaz de efetuar algo por si próprio, ele é manipulado pelo “outro” e é nos movimentos deste outro, que suas primeiras atitudes tomarão forma.

Nesse sentido, a maturação neurológica é constituída na e por meio da relação com o outro, dentro de contextos situados. Para haver a própria maturação é preciso que a criança esteja em uma relação contextualizada, dentro de processos de significação, de práticas discursivas.

Mais do que isso, é na história relacional, em função das concepções sociais do grupo, das formas consideradas ideais, que as experiências adquirem significados. Esse caráter experiencial vivido se encontra incrustado em aspectos biológicos, psicológicos e do contexto cultural, tendo um caráter histórico e estando inextricavelmente ligado às histórias vividas (SOFFER, 2001).

Como afirma Soffer (2001), a percepção-ação corporificada representa um nível mais fundamental do que o do enunciado lingüístico, porque ela já está estruturada como uma alteridade em relação à comunidade, requerendo uma conceituação de social mais imediata, íntima e integral. Dessa forma, significado como percepção corporificada é mais radicalmente aberto à história e à cultura, já que a cultura está pronta para ser encontrada, moldada e remoldada, em cada momento desse processo transformativo, na contínua história da experiência.

Dessa maneira, uma ação tão básica como a de engatinhar se mostra carregada de significados culturais. Ela está atravessada, é co-constituída e é transformada pela cultura. A significação encontra-se, portanto, aquém das palavras (apesar de atravessada e constituída por elas), devendo ser considerada não somente nas ferramentas baseadas na linguagem verbal, mas também em aspectos não verbais. A significação já está presente aquém da representação. Engatinhar representa, assim, a corporificação de práticas culturais, a corporificação de significados sociais de ser humano. O corpo é significado e significa.

Porém, como Wertsch et al. (1998) pontuam, a introdução de uma ferramenta cultural (como a vista aqui, do engatinhar) transforma o processo de desenvolvimento. Aprender a usar uma ferramenta não implica realizar um exercício para habilitá-la; não implica estimulação de algo preexistente. Implica criação de algo novo, de um novo recurso (possível por contar com bases biológicas), atravessado e exprimindo significações que levam a transformações importantes ou até mesmo a uma redefinição da própria ação e relação com o meio.

O engatinhar como uma ferramenta cultural que transforma (rel)ações

Como Wertsch et al. (1998) frisam, a aquisição de meios mediacionais (que podem ser a linguagem verbal, uma ferramenta técnica, um gesto/uma ação) não apenas facilita as formas de ação, mas altera todo o fluxo e as estruturas do ser. Nesse sentido, uma pessoa usando um novo meio mediacional deve mudar, uma vez que o meio exige dele novas técnicas e habilidades.

Teoricamente, portanto, essas questões levam a supor que a habilidade do engatinhar modifica as possibilidades da criança de relação consigo, com o mundo e com os outros. Essa premissa impulsionou a uma segunda forma de análise do mesmo processo de engatinhar de Linda.

Nessa nova abordagem do material empírico, a investigação levou a analisar nos vídeos - antes, durante e depois da criança passar a engatinhar - as relações da criança com os outros sociais (mãe, educadoras e demais crianças) e o posicionamento de Linda no meio físico-social.

Inicialmente, observa-se a atenção de Linda como centrada fundamentalmente na região imediata em que se encontra (em torno de 30-50 cm de distância de seu corpo). Com o engatinhar, ocorreu uma ampliação da atenção da criança para objetos, pessoas e situações bem mais afastadas (distando de alguns metros).

Não só sua atenção se amplia, mas ela própria passa a se deslocar para lugares mais distantes de onde estava. Com isso, uma nova mudança ocorre: não só as coisas e pessoas chegam até ela; ela também se desloca, se aproxima e se afasta de objetos e pessoas.

Nesse caminhar, pode-se observar que ela passa a ter que enfrentar outras questões, como aspectos ligados à sua incompletude motora (sendo-lhe difícil o deslocamento em vários momentos, tanto pelo aspecto motor, como pela presença de objetos em seu caminho), à sua distração/dispersão diante de um ambiente rico em estímulos (por ter uma grande quantidade de pessoas no ambiente, objetos que “rolam” à sua frente, crianças que passam por ela ou que estão sentadas próximas a ela manipulando objetos etc.); e à sua capacidade de perseverança (chegar perto da mãe, apesar das dificuldades motoras e de dispersão, dentre outras).

Outro aspecto a ser ressaltado no processo analisado se refere ao modo como se dão as relações interpessoais. Nesse processo, são particularmente visíveis as transformações da relação entre mãe e criança. Linda, com a aquisição da ferramenta do engatinhar, passa a ter um papel mais ativo e autônomo com relação à distância/proximidade: ela se afasta da mãe para explorar o ambiente, quando vê algo interessante; ela se aproxima da mãe, quando sente temor diante de situações desconhecidas; ela se aproxima da mãe em situações de reencontro. Em situação em que está entretida com outras crianças/objetos é possível até mesmo observar a sua recusa de se aproximar da mãe, apesar de a mãe a chamar e de ela ser capaz de deslocar-se em direção a ela. Nesses casos, observa-se, inclusive, Linda reagindo com choramingo ao fato de a mãe a pegar a contragosto.

Linda passa a lidar de forma diferenciada com relação à distância/proximidade que mantém dos adultos e objetos, tendo agora novos recursos para lidar com isso. Dessa maneira, a relação com a mãe se transforma: a princípio, quando a mãe a chamava, havia todo um ímpeto de ir para junto da mãe; depois, pode se ver inclusive a criança permanecendo no lugar, sem se dirigir a ela.

Linda controla, assim, com maior autonomia e intencionalidade seu estar no mundo. A habilidade de engatinhar, intimamente co-construída na sua inextricável relação com a mãe/educadora, dentro daquele novo ambiente, construindo uma série de significações da/para/sobre a criança, leva a (re)significações das suas relações. E, em função da maior autonomia e intencionalidade, a mesma ação da criança passa a estar atravessada por uma mistura de sentimentos de prazer e desconforto. Se, até então, a mãe mostrava-se muito satisfeita com a capacidade recém-adquirida pela filha de engatinhar, o fato da criança agora nem sempre engatinhar em direção a ela, como o fazia até então, deixa a mãe com sentimentos de inquietude e ambivalência. Mãe e criança passam a ter novos motivos e recursos de negociação.

A aquisição se faz por meio de suas relações, experiências e percepções em contextos culturais específicos. Dialética e recursivamente, aquela aquisição abre possibilidades para experiências e relações sociais diversificadas. As novas funções, habilidades e significações circunscrevem novas possibilidades e novidades no experienciar a si próprio, ao outro e ao ambiente; possibilidades totalmente diferenciadas no sentido de explorar o espaço, de encontrar outros, de buscar apoio em e ajuda de outros; de obter objetos, levando a criança a assumir/ter novos papéis sociais.

O sentido da própria identidade é inexorável, mas, sutilmente, formado e reformado, ao mover-se por e entre uma miríade de modalidades de experiências. Mas, mais do que ter uma relação com a história de experiências prévias, a aquisição da ferramenta (engatinhar), com todas as significações que carrega, representa também uma partida absoluta de sua própria história (SOFFER, 2001). Para o sistema pessoa-meio, os passos são sempre circunscritos pelos passos anteriores que foram dados. Mas não há um ponto final definitivo a prescrever os próximos passos a serem tomados (VARELA et al, 1991).

A análise dos desdobramentos do processo indica a complexidade e dialética do processo: por um lado, há o necessário entrelaçamento da criança em relação ao outro social, o que lhe abre a possibilidade de apreender/expressar modos culturais de ser e desenvolver, incluindo-se aí a constituição de um maior distanciamento com o outro. Revela-se, assim, que o desenvolvimento - inerentemente social, histórico e cultural, embasado em processos relacionais e ligados à espécie e à sua plasticidade -, dá-se por meio da dialética de processos inextricáveis e complementares de entrelaçamento e distanciamento.

Discussão geral &– o bebê, o corpo, o outro e o signo

O presente trabalho de investigação derivou de um estudo empírico que verificou o fato de o bebê agir de forma culturalmente adequada, mesmo sem ter adquirido a linguagem e o pensamento verbais. Isso levou ao questionamento de como o bebê, nessas condições, apreende e expressa significações culturais de seu grupo. Com isso, um novo estudo empírico se desdobrou, buscando verificar peculiaridades do ser do bebê que pudessem nos indicar a questão da linguagem e da significação no primeiro ano de vida.

Partindo-se de pressupostos histórico-culturais e de uma compreensão de desenvolvimento que considera a inseparabilidade entre biológico e cultural, analisamos o processo de engatinhar em um bebê. Nesse processo, verificamos que a apreensão/expressão de significações está ligada a processos de percepção/ação. Os processos de significação no bebê estão aquém da representação, estando concretizados/materializados no corpo. A partir das percepções, experiências e significações, novas relações, recursos, papéis sociais e significações são construídos.

Nessa discussão o corpo emerge como um elemento central. Mas não dentro de uma perspectiva biológica, tanto que tratamos dele enquanto corporeidade. O corpo não representa uma instância individualizante, já que ele não existe primeiro e, depois, interage com o mundo externo. O mundo não existe “lá fora”, já que a pessoa é parte constitutiva do mundo. Ao contrário, a pessoa corporificada está intimamente conectada ao mundo, em um processo relacional, com o corpo representando a interligação eu-outro, a constituição da subjetividade sendo considerada de forma dependente do outro, da história e da cultura (OVERTON, 1997; SINHA; DE LÓPEZ 2000). Pessoas e mundo, juntamente, constroem as pessoas e o mundo. Mundo e pessoas especificam-se mutuamente. O mundo percebido não está aqui, independente de nossas condições biológicas e do mundo cultural. Mundo e percebedor especificam um ao outro. Conhecedor e conhecido, pessoa e mundo estão um em relação ao outro por intermédio de co-origem dependente. O significado dessa ou daquela interação para um sistema vivo não é dado de fora, mas representa o resultado da organização e história desse sistema.

Essa compreensão, que tem suporte na noção de dialogismo do pensamento bakhtiniano (1934-1981, 1936-1997, 1929-1999), nos levou a nos aproximarmos de uma compreensão radical da alteridade, permitindo entender o outro de uma maneira original, o outro sendo referido não como alguém que está fora de mim, que é estranho a mim, mas como alguém que me constitui, que contribui para o processo de construção de um eu que não me pertence integralmente e que somente existe a partir do olhar do outro (BARROS, 2002). No presente estudo, isso coloca em destaque que mesmo para a aquisição de funções motoras ditas humanas, é necessário o outro. A alteridade é essencial ao ser e ao desenvolver-se humanos. O outro e suas significações culturais co-constroem tais processos. E a aquisição em si representa a aquisição de ferramentas culturais e significações sociais que vão alterar suas relações com os outros e com o mundo.

Vale dizer que esse processo é entendido como se dando a partir de um lugar muito específico &– no caso, o próprio corpo de Linda &–, o que nos faz considerar, juntamente com Hermans e Kempen (1995), que ao perceberem, as pessoas não percebem somente o ambiente, mas percebem, ao mesmo tempo, a elas próprias. Isto é, a pessoa perceptiva observa o campo do fluxo visual, em combinação com sua localização com respeito ao campo visual. Olhar ao redor de si implica ver suas próprias partes do corpo nesse espaço. Mover-se em relação ao campo de fluxo visual implica ter as próprias partes do corpo como pontos de referência e orientação, destacando a natureza situada e a perspectiva da mesma.

Finalmente, destaca-se que a relação dialógica, de alteridade, dá-se fundamentalmente por intermédio do corpo. O corpo é significado, ele significa, ele expressa por meio de suas posturas, gestos e ações as significações culturais. Como afirma Harré (1991), deve-se pensar o corpo como podendo desempenhar papéis diversos no uso de significação. O corpo pode ser a coisa significada; pode representar significadores; e também pode ser a superfície para a inscrição de outros significantes, com influência no modo como a inscrição se dá. O corpo nesta relação de co-determinação com o meio social é tanto feito significado pelo sistema semiótico como é um sistema semiótico em si.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Katia Amorims
E-mail: katiamorim@ffclrp.usp.br
Maria Clotilde Rossetti-Ferreira
E-mail: mcrferre@usp.br

Recebido em:03/09/2007
Aprovado em:07/10/2007
Revisado em:25/01/2008

 

 

1 Importante mencionar que todos os envolvidos foram consultados quanto à participação no projeto, tendo-se obtido consentimento para participação. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas.
2 Trabalhou-se com “sujeitos focais” devido ao grande número de crianças envolvidas. Isso implicou que, após a quarta semana de freqüência, seis crianças tivessem registro mais detalhado: as gravações em vídeo eram mais direcionadas a elas, apenas as suas mães foram entrevistadas e, nas entrevistas das educadoras, a discussão era dirigidas a elas. Uma revisão da literatura evidenciou que essa noção tem sido mais contemporaneamente utilizada, com seu uso se fazendo crescente principalmente na última década, com pico nos último cinco anos. O termo tem sido apropriado por diferentes áreas com diferentes fundamentações e implicações. Aqui, utilizamos o termo destacando que ele contempla uma perspectiva que evita os dualismos e dicotomias, considerando a indissociabilidade entre pessoa/mente/meio, os elementos relacionais, situacionais e culturais devendo ser inexoravelmente considerados. O corpo, nessa perspectiva, é visto tanto como biológico como fenomenológico
3 Uma revisão da literatura evidenciou que essa noção tem sido mais contemporaneamente utilizada, com seu uso se fazendo crescente principalmente na última década, com pico nos último cinco anos. O termo tem sido apropriado por diferentes áreas com diferentes fundamentações e implicações. Aqui, utilizamos o termo destacando que ele contempla uma perspectiva que evita os dualismos e dicotomias, considerando a indissociabilidade entre pessoa/mente/meio, os elementos relacionais, situacionais e culturais devendo ser inexoravelmente considerados. O corpo, nessa perspectiva, é visto tanto como biológico como fenomenológico.

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