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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.1 Rio de Janeiro abr. 2008

 

ARTIGOS

 

Mensuração da identificação com times de futebol: evidências de validade fatorial e consistência interna de duas escalas

 

Measurement of identification with soccer teams: factorial validity evidence and internal consistency of two scales

 

 

João F. R. WachelkeI ; Alexsandro L. de AndradeI,III; Lorine TavaresI ; João R. L. L. NevesII


I Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil(UFSC)
II Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil(UFES)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo trata da adaptação, construção e validação de duas medidas de identificação grupal de torcedores de futebol com os times para que torcem, a Escala de Identificação do Torcedor com o Time (EITT) e a Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol (EFTF). As duas medidas foram validadas com uma amostra de 264 participantes que se encontravam em campi universitários, todos torcedores ou simpatizantes de algum time de futebol brasileiro em maior ou menor grau. A análise estatística dos dados aponta que as duas medidas possuem uma única dimensão e seus índices de fidedignidade são satisfatórios. As escalas permitem diferenciar graus de envolvimento de torcedores segundo níveis de identificação. A distribuição das duas medidas é diferente porque os itens da EFTF tratam de aspectos mais extremos de identificação. Discutem-se as características das duas escalas, concluindo-se que ambas são adequadas para uso em estudos sociopsicológicos de identificação grupal.

Palavras-chave: Identificação grupal; Torcedores de futebol; Medidas em psicologia.


ABSTRACT

The study is about the adaptation, construction and validation of two measures of soccer supporters’ group identification with the teams that they support, the Football Supporter Team Identification Scale (FSTIS), and the Football Supporter Fanatism Scale (FSFS). The two measures were validated with a sample of 264 participants who were at university campi, all of which supported a Brazilian football team to a bigger or smaller degree. Statistical data analyses point out that the two measures have a single dimension and their reliability indexes are satisfactory. The scales can distinguish involvement degrees by identification levels. Both measures’ distributions are different because FSFS items deal with more extreme identification elements. Scales’ characteristics are discussed, and it is concluded that both are adequate for use in sociopsychological group identification studies.

Keywords: Group identification; Soccer supporters; Psychological measures.


 

 

INTRODUÇÃO

Considerando-se a psicologia social como a ciência que se ocupa do estudo da interação entre os processos sociais e psicológicos para explicar o comportamento das pessoas e dos grupos a que pertencem (MAISONNEUVE, 1993), torna-se essencial tomar como objeto de interesse de pesquisas o nível de adesão ou comprometimento que ligam os indivíduos a seus grupos sociais. Em psicologia social, essa força de implicação da pertença grupal de um indivíduo para com um grupo ou uma categoria social possui o nome de identificação grupal.

No nível de pequenos grupos com interações reais (em oposição a categorias sociais), Bouas e Arrow (1996, p. 155-156) definem a identificação grupal como “consciência de atração direcionada a um grupo de interação de membros interdependentes, por membros auto-identificados desse grupo”.1 Henry et al. (1999) identificam na literatura alguma confusão na definição de identificação grupal: enquanto alguns autores a tratam como sinônimo de identidade social, voltada para um nível psicológico de análise, outros a equiparam à coesão de um grupo, claramente atribuindo-lhe a qualidade de um construto vinculado a um coletivo, e, assim, localizando a identificação grupal em uma esfera sociológica. Para esses autores, a definição de Bouas e Arrow (1996) é válida, sendo que a autocategorização em relação a um dado grupo, a coesão desse grupo e também a interdependência de processos comportamentais são fontes de identificação grupal.

Há estudos voltados para o vínculo de indivíduos a grupos sociais de maior abrangência, tal como se encontra na realidade. Faz-se referência aos grupos psicológicos, que dizem respeito a categorias sociais (TAJFEL, 1973). A definição de grupo como um conjunto de indivíduos que se sentem como parte de uma coletividade ou categoria (TAJFEL, 1982) é a que orienta a teoria da identidade social (TAJFEL; TURNER, 1979). Segundo essa perspectiva teórica, a identificação com um grupo é um construto voltado para os indivíduos, representando a força do vínculo individual para com uma pertença grupal.

No presente trabalho, adota-se a definição de identificação grupal de Fisher e Wakefield (1998), que parece se adequar à concepção aberta de grupo de Tajfel: identificação grupal é a medida da força de conexão de indivíduos com seus grupos. Considerando que identidade social é a parcela do autoconceito individual que deriva do conhecimento de pertença a grupos ou categorias sociais (TAJFEL, 1982) e que, nas sociedades contemporâneas, todas as pessoas pertencem a uma grande quantidade de categorias sociais (TAJFEL, 1973), então cada pessoa possui quantidade de identificações grupais equivalente ao número de pertenças grupais. Alguns grupos são mais importantes que outros para as pessoas: nesses casos, fala-se de grupos com os quais elas têm um alto nível de identificação. Inversamente, grupos considerados pouco importantes são grupos com que os indivíduos têm baixa identificação.

A identificação grupal desenvolve-se na interação do grupo, formando um input e output dinâmico que varia temporalmente. Segundo estudo de Doosje et al. (2002), pessoas que se identificam fortemente com o grupo mantêm o comprometimento com ele mesmo se o futuro no contexto intergrupal é duvidoso ou desfavorável, enquanto as que se identificam menos expressam solidariedade com o grupo apenas em casos de melhoria provável, iminente ou já consumada no status do grupo. De Cremer (2000) verificou que as pessoas que se identificam mais com seus grupos atribuem mais os sucessos e menos os fracassos ao ingroup (grupo próprio) do que pessoas que se identificam pouco com o grupo.

Os processos de identificação grupal em contextos intergrupais constituem uma área importante de estudos em psicologia social. Em situações de ameaça ao grupo próprio, sabe-se que os indivíduos tendem a se identificar mais fortemente com ele (MOSKALENKO et al., 2006). Além disso, quando o status do grupo próprio é ameaçado por outro grupo, pessoas que se identificam fortemente buscam menosprezar mais o grupo rival, para aumentar a auto-estima coletiva, do que em situações sem ameaça, enquanto pessoas com níveis de identificação mais baixos não apresentam diferenças no uso do menosprezo como estratégia em situações com e sem ameaça (BRANSCOMBE; WANN, 1994). Quando há ameaça ao grupo próprio em situações de conflito intergrupal, a identificação com o grupo correlaciona-se positivamente com atitudes negativas frente ao outgroup de modo mais forte do que quando não há ameaça percebida (DUCKITT; MPHUTHING, 1998).

Apesar de comumente a identificação grupal ser operacionalizada como um construto de uma única dimensão, pesquisas recentes vêm questionando sua unidimensionalidade, apontando que construtos diferentes podem estar sendo medidos, equivocadamente (DUCKITT et al., 2005). Bhowon e Tseung-Wong (2004), ao pesquisarem identificação com grupos étnicos, realizaram uma análise fatorial que resultou em três dimensões de identificação: afetiva, cognitiva e avaliativa. Duckitt et al. (2005), também estudando identificação com grupos étnicos, realizaram uma análise fatorial confirmatória que resultou em um modelo multidimensional com quatro fatores: vínculo (attachment) &– grau com que uma pessoa afirma ou nega seu pertencimento ao grupo &–, saliência &– consciência por parte dos membros do grupo de sua pertença grupal e importância &–, envolvimento &– grau com que as pessoas se sentem envolvidas ou têm afinidade por costumes e práticas grupais &– e atitudes intergrupais, as avaliações das pessoas frente a membros de outros grupos.

Após definir conceitualmente e discutir algumas características da identificação grupal, é possível enfocar a identificação com times de futebol. A identificação de torcedores com quaisquer equipes esportivas é um contexto específico no qual ocorre o fenômeno de identificação grupal.

Identificação Grupal, Torcedores e Times Esportivos

Fãs de esportes, especialmente esportes coletivos que envolvam times em disputa, representam uma população que reúne características desejáveis para a realização de pesquisas em psicologia social que não se desenvolvam em situações de laboratório criadas artificialmente. As torcidas e fã-clubes de times e seleções nacionais de futebol, basquete, vôlei e outras modalidades semelhantes constituem uma das formas mais comuns e explícitas que assumem nas sociedades modernas os grupos e categorias sociais em situações de disputa. Para um indivíduo, dizer que torce para este ou aquele time é algo comum, bem como assumir preferência ou repúdio por outros times. Isso freqüentemente não ocorre em outros contextos psicossociais, como grupos étnicos, classes sociais e pertenças religiosas, em que restrições sociais podem vir a representar empecilhos para salientar fenômenos de interesse de pesquisadores ou manipulá-los.

Trata-se de um contexto no qual os conflitos intergrupais ocorrem naturalmente e que as pessoas podem dar vazão a grande variedade de comportamentos que se situam em um pólo intergrupal, em oposição ao interpessoal. Se, por um lado, a condução de estudos com torcedores de futebol pode apresentar-se mais passível de influência proveniente de variáveis intervenientes do que estudos com grupos criados e controlados em laboratório, por outro, ganha-se em validade ecológica (BREWER, 2000) e capacidade de generalização das pesquisas ao se estudar os comportamentos de pessoas em grupos que efetivamente existem.

Empregam-se os termos “torcedor” e “fã de esportes” como sinônimos, isto é, referindo-se a indivíduos que apóiam um time, clube ou coletivo esportivo específico em um contexto intergrupal dado tal como um campeonato, uma liga de clubes, uma confederação de times, e assim por diante. Não interessa, para os fins do presente estudo, a pessoa que acompanha modalidades esportivas meramente por prazer estético, assistindo ou comparecendo a eventos sem preferência por alguma das facções em disputa, ou seja, que não se identifica com time algum. Enfoca-se o indivíduo que se identifica com algum time, nem que seja em baixo nível, e não o espectador “neutro”.

No que diz respeito à identificação grupal, Cialdini et al. (1976) realizaram um estudo pioneiro em que foi descoberta uma tendência maior de estudantes torcedores de times universitários de futebol americano de portar camisas e materiais do time para o qual torcem após uma vitória do que após uma derrota ou empate. Após vitórias, os estudantes também usam mais o pronome “nós” ao referir-se ao time, como se estivessem tornando-se parte do grupo. Entende-se esse fenômeno, denominado “banhar-se na glória refletida” (basking in reflected glory, ou BIRG), como um modo de melhorar a imagem pública individual. Inversamente, o fenômeno de evitar a exposição de um vínculo com um time que esteja passando por uma situação desfavorável, isto é, que tenha perdido uma partida, recebe o nome de “isolar o fracasso refletido” (cutting off reflected failure, ou CORF). Assim, a teoria de BIRG e CORF entende que as pessoas expressam diferencialmente suas afiliações grupais para aprimorar a imagem que os outros têm delas.

Boen et al. (2002) expandiram a teoria de Cialdini et al. (1976) no sentido de que o ganho pessoal em auto-imagem propiciado pelas práticas de BIRG ou CORF não necessariamente se situa somente na esfera pública. Ao descobrir que torcedores de clubes de futebol holandeses e belgas visitam significativamente mais vezes os sítios da internet de seus times após vitórias do que após derrotas, e que depois de derrotas há consideravelmente menos visitas do que em comparação com mensurações de controle, os autores identificam práticas privadas de BIRG e CORF, respectivamente. Em estudo semelhante, Joinson (2000) verificou que, após vitórias dos times para que torcem, fãs de futebol buscam mais informações sobre seus times em sítios de internet, ainda que não diminuam os acessos aos sítios após derrotas. O autor explica essa ausência de diminuição por uma possível falta de conseqüências para o ator envolvido, enquanto que buscar informações na esfera pública após derrotas poderia ser ameaçador socialmente.

No entanto, caso a teoria de BIRG e CORF fosse adotada indiscriminadamente, criar-se-ia um problema para explicar a identificação grupal de torcedores de times pouco vitoriosos em competições, que seriam um exemplo de grupos fracassados ou de baixo status em um contexto intergrupal. Mesmo que os grupos sejam pouco atraentes, freqüentemente as pessoas se identificam com eles, especialmente quando uma mobilidade em relação às pertenças grupais não é algo possível, acarretando conseqüências prejudiciais aos indivíduos (TAJFEL, 1982). Nesse sentido, Fisher e Wakefield (1998) identificaram os fatores que levam à identificação grupal com times bem-sucedidos e mal sucedidos. Os autores descobriram que modelos diferentes explicam a identificação de torcedores, que implicam mecanismos psicológicos distintos. Para os torcedores de times vitoriosos, o desempenho percebido do time e envolvimento com o esporte predizem a identificação grupal, enquanto, para torcedores de times mais fracos, o desempenho percebido não é relevante, o envolvimento com o esporte é mais importante do que nos grupos bem-sucedidos e há um terceiro fator exclusivo de times “perdedores”: a atração por jogadores do time.

A identificação de torcedores com seus times varia muito, e quando é alta pode resultar em emoções fortes. Kerr et al. (2005) observaram mais emoções negativas e menos relaxamento em torcedores de um time de futebol derrotado que em torcedores do time vencedor, após um jogo entre as equipes. Banyard e Shevlin (2001), apoiando-se em uma medida de impacto psicológico de eventos, descobriram que o rebaixamento de um time de futebol para uma divisão inferior pode causar transtornos psicológicos de alguma severidade para torcedores desse time.

Torcedores de esportes com altos níveis de identificação com seus times levam a sério seu hobby de torcedor. Gibson et al. (2002), em estudo qualitativo, demonstram que, para os torcedores do Florida Gators, um time universitário de futebol americano, torcer não é lazer casual, mas uma atividade importante cuja participação requer habilidade, conhecimento e experiência. Wolfson et al. (2005) apontam que os torcedores ingleses entendem que o apoio da torcida é uma das razões determinantes para as melhores apresentações dos times quando jogam em casa.

Existem indícios de que um alto nível de identificação de um torcedor está associado ao fato de uma pessoa apresentar-se a outra, que por sua vez torce para um time rival, como torcedora de seu time. Além disso, pessoas com maior auto-estima expressam vínculo com os times que apóiam mais cedo do que pessoas com níveis de auto-estima inferiores (WANN; ROYALTY, 2000). Torcedores altamente identificados com seus times assistem a mais jogos e participam mais de atividades esportivas que torcedores com baixo envolvimento (SHANK; BEASLEY, 1998). Os torcedores com níveis de identificação muito altos com seus times podem ser reconhecidos como “fanáticos”, podendo inclusive envolver-se em confrontos físicos com outras pessoas para defender a honra de seus times (RUSSELL; GOLDSTEIN, 1995), especialmente se estiverem em grupo, ocasiões em que se comportam de modo mais agressivo (ZANI; KIRCHLER, 1991).

Uma primeira etapa da produção de conhecimento sobre qualquer fenômeno está ligada a sua caracterização. Assim, ao tratar de identificação de torcedores com times de futebol, é pertinente abordar questões relativas à mensuração desse construto.

Mensuração da Identificação de Torcedores de Futebol com seus Times

Para condução desta pesquisa sobre identificação grupal, foi escolhido o contexto dos torcedores de times de futebol, uma vez que esse esporte é um dos mais populares do planeta, tendo assumido sua forma moderna na Inglaterra e disseminando-se rapidamente pelo mundo por meio de marinheiros, trabalhadores, colonizadores e estudantes ingleses. Além disso, o futebol freqüentemente é um canal que traduz rivalidades locais, nacionais, religiosas e de classe (GIULIANOTTI, 2002). Considerando-se como contexto a realidade brasileira, a escolha por pesquisar torcedores de futebol é ainda mais justificável, dado que o esporte é um dos principais do Brasil, país reconhecido pelo talento de seus jogadores e por times que já venceram as principais competições mundiais em nível de clubes e de seleções nacionais. O futebol é tão popular e cativa de tal modo os brasileiros que freqüentemente é classificado como uma “paixão nacional” (AQUINO, 2002).

Dada a importância do fenômeno da identificação grupal para a psicologia social, julga-se indispensável o emprego de medidas de boa qualidade para caracterizar a força de ligação entre indivíduos e grupos de modo específico no futebol. Poder-se-ia fazer uso de medidas de item único ou mesmo conjuntos de itens genéricos para mensurar a identificação de torcedores com os times; porém, entende-se que o ideal é dispor de medidas adaptadas para o contexto das torcidas de futebol. A adoção de instrumentos desse tipo se justifica ainda mais em vista da saliência social dos torcedores de futebol no Brasil.

No presente estudo, são empregadas duas escalas psicométricas de identificação do torcedor de futebol com seu time. No caso do primeiro instrumento, a Escala de Identificação do Torcedor com seu Time, foi adaptada uma escala direcionada para fãs de esporte em geral para que se transformasse em uma medida específica para torcedores de futebol. Já no que se refere ao segundo instrumento mencionado, a Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol, foi construída uma medida voltada para discriminar níveis mais altos de identificação grupal com times de futebol, com a qual se possa captar em maior detalhe o fanatismo de torcedores. Teve-se por objetivo verificar evidências de validade fatorial e consistência interna das duas medidas.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram do estudo 264 pessoas abordadas em dois campi universitários em Florianópolis e Itajaí. Delas, 153 (58%) eram do sexo masculino. A média de idade dos participantes foi de 23 anos e 8 meses, com mediana de 21 anos.

Dos participantes, 63,5% eram estudantes universitários, 12,2% estudantes de ensino médio e os demais tinham outras profissões, as quais muito variadas, e tiveram freqüências baixas. Foram representadas na amostra as seguintes profissões: professor (2,7%), funcionário público (2,7%), psicólogo (1,9%), engenheiro (1,9%), eletricista (1,1%), técnico administrativo (1,1%) e outras (12,9%).

A condição de participação foi a de que os indivíduos torcessem ou pelo menos simpatizassem com um time de futebol brasileiro. No caso, é feita referência a simpatizantes como sinônimo de torcedores pouco identificados com seus times, mas que ainda assim o preferem em relação a outros clubes. Ser mero simpatizante de um time, nesse caso, seria indicador de um nível baixo de identificação grupal em relação à pertença grupal avaliada. Na amostra, havia torcedores ou simpatizantes de dezessete clubes de futebol do Brasil. A Tabela 1 apresenta as proporções de torcedores das equipes representadas na amostra.

Tabela 1: Distribuição de Ocorrências e Percentuais de Torcedores de cada Equipe de Futebol Brasileiro

 

 

Instrumentos

Foi utilizado um questionário autoministrado contendo os seguintes itens de caracterização dos participantes: sexo, idade, profissão, cidade e estado em que residem. Havia também itens perguntando qual era o time de futebol brasileiro para que o participante torcia. Duas outras questões envolviam a relação do participante com esse time, perguntando quantos jogos ele acompanhou por meios de comunicação ou ao vivo no ano anterior à pesquisa (as opções eram: nenhum; um ou dois; três a dez; e mais de dez), e uma medida de fanatismo de item único em formato de resposta do tipo Likert de 7 pontos (de 1 &– discordo fortemente &– a 7 &– concordo fortemente) que tinha o enunciado “Sou um torcedor fanático de meu time”.

Foram incluídas no instrumento duas escalas de identificação do torcedor com o time, visando mensurar a identificação grupal com a categoria torcedor dos times representados. A primeira escala incluída foi a Escala de Identificação do Torcedor com o Time (EITT), uma adaptação e tradução da Sport Spectator Identification Scale (SSIS), de Wann e Branscombe (1993).

Escala de Identificação do Torcedor com o Time

A EITT é uma medida de sete itens no formato de escala de Likert de 8 pontos. Foi construída tendo-se como referência um time de basquete universitário dos Estados Unidos. A escala contém itens sobre a importância de que o time vença, quão fortemente o respondente se vê e seus amigos o vêem como um fã do time, a freqüência com que o respondente acompanha o time em jogos nos estádios ou pelos meios de comunicação, a importância que o respondente atribui a ser um fã do time, a intensidade com que ele não gosta dos maiores rivais do time e a freqüência com que ele exibe o nome ou símbolo do time em suas roupas e ambientes de convívio. Os autores aplicaram-na a uma amostra de 188 estudantes universitários estadunidenses vinculados à universidade cujo time de basquete foi o foco do estudo. Uma análise de componentes principais revelou uma estrutura unifatorial que explicava 66% da variância dos itens; o índice alfa de Cronbach de confiabilidade da escala foi considerado muito bom, no valor de 0,91. A escala foi validada ao verificar que havia diferenças entre torcedores com níveis de identificação diferentes: torcedores que se identificavam mais fortemente se envolviam mais com o time, apresentavam um padrão de atribuições sobre o desempenho do time que protegia a auto-imagem, eram mais otimistas acerca do futuro do time e declaravam-se mais dispostos a investir dinheiro com atividades relacionadas ao time que torcedores pouco identificados (WANN; BRANSCOMBE, 1993).

Primeiramente, foi obtida a autorização do autor para adaptação e validação da escala para a realidade brasileira e para o contexto do futebol. Foi realizada uma tradução da SSIS para o português por um perito proficiente em língua inglesa, e posteriormente realizadas adaptações para que a escala abordasse especificamente o futebol, para que os itens se referissem especificamente à realidade dos torcedores desse esporte. A palavra “fã” foi substituída por “torcedor” e, em vez da menção ao time de basquete universitário do estudo original de Wann e Branscombe (1993), foi adicionada a expressão “seu time”, para que o respondente se situasse na relação com o time para o qual torce ou de que é simpatizante. Além dessas mudanças, buscou-se respeitar a formulação da escala original, sem realização de análise de juízes posterior a esse estágio. As modificações realizadas visaram apenas a um direcionamento específico para futebol, mantendo os enunciados dos itens à exceção dos trechos mencionados. À medida resultante foi dada o nome de Escala de Identificação do Torcedor com o Time (EITT). Os itens tinham formato de resposta Likert de 7 pontos, e as âncoras variaram conforme o enunciado de cada item. Optou-se pela mudança para escala de 7 pontos em vez de 8 pontos para utilizar o ponto médio e obter certa padronização, visto que outras partes do questionário também seriam apresentadas com escalas de 7 pontos. De todo modo, conforme literatura revisada por Pasquali (1999), o uso de escalas de Likert de 7 ou 8 pontos equivale-se, não implicando efeitos em virtude da quantidade de pontos da escala em termos de distribuição dos resultados, tempo de resposta, consistência interna, estabilidade teste-reteste e validade concorrente e preditiva.

Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol

Também foi interesse do estudo diferenciar torcedores altamente identificados e torcedores com uma dedicação excessiva, incomum, a seus times de futebol. Existe uma magnitude que poderia ser classificada como desviante em torcer para um time de futebol. Torcer para um time ou participar de práticas de grupo é algo comum na sociedade brasileira, no entanto existe um grau de intensidade em que as pessoas tendem a identificar certos comportamentos e crenças de torcedores como algo extremo, exagerado, não adaptativo à vida cotidiana. Nesse caso, fala-se de torcedores fanáticos, que constituem uma proporção minoritária das pessoas que torcem para times. O Dicionário Houaiss da língua portuguesa, no verbete fanatismo, traz: “2. p. ext. faccionismo partidário; adesão cega a um sistema ou doutrina; paixão” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1.305), e no verbete fanático: “3. que se mostra excessivamente entusiástico, exaltado, de uma devoção quase sempre cega; apreciador apaixonado (f. por futebol, por música)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1.305). O Dicionário Internacional Cambridge da Língua Inglesa (PROCTER, 1995, p. 501), no verbete correspondente a fanático, traz: “uma pessoa cuja admiração forte por algo é considerada extrema e não razoável”.

Considerando que a EITT talvez não fosse adequada para medir com maior detalhe níveis elevados de identificação grupal, foi construída uma outra medida similar, que chamamos Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol (EFTF). Para determinar os conteúdos dos itens, serviram como base, além da literatura científica presente na revisão bibliográfica, um romance (HORNBY, 1992), artigos de blog e páginas da internet de torcedores (BERNHARD, 2002; INAGAKI, 2004), textos jornalísticos (SMITH, 1997; FOER, 2004; LURIE, 2004) e mesmo uma peça de teatro (RANGEL, 1993) com assuntos pertinentes ao tema do fanatismo. Esses documentos foram utilizados com a finalidade de reunir elementos para a elaboração de itens sobre níveis mais extremos de identificação grupal, a partir da EITT. O critério adotado para selecionar os documentos foi a proximidade temática com o fanatismo. Os itens construídos eram indicadores de comportamentos, situações e crenças extremas relacionadas a torcer para um time de futebol, tais como sentir muita angústia durante jogos difíceis do time, considerar os torcedores de times rivais pessoas arrogantes, falar de acontecimentos relacionados a futebol freqüentemente, perturbar-se com fracassos do time, gostar de incomodar torcedores de times rivais quando eles perdem jogos, envolver-se em discussões fortes sobre futebol, ficar muito ansioso nos dias anteriores a jogos importantes, dar preferência a acompanhar o time em vez de compromissos pessoais, desfazer-se de posses se isso pudesse ajudar o time, pensar que o sucesso do time é uma das coisas mais importantes da vida e pensar que futebol não é diversão, mas um assunto sério. Os itens também tinham formato de resposta Likert de 7 pontos, com âncoras adaptadas aos respectivos enunciados.

Foram incluídas também cinco das nove dimensões da Motivation Scale for Sport Consumption (MSSC) (TRAIL; JAMES, 2001), traduzidas para o português por um especialista bilíngüe proficiente na língua inglesa. Como ocorreu com a EITT, os itens foram adaptados para o contexto específico do futebol. A versão traduzida e adaptada de cinco dimensões da MSSC é uma medida com quinze itens, divididos em cinco subescalas de três itens cada, que mensuram as seguintes motivações para acompanhar o esporte: realização (exemplo de item: “sinto que ganhei quando o time vence”), conhecimento (“geralmente conheço a campanha do time”), dramaticidade (“gosto do drama de um jogo de futebol decisivo”), elegância (“gosto da beleza inerente ao futebol”) e fuga (“jogos de futebol são uma boa mudança de ares do que eu geralmente faço”). Os itens foram apresentados, como os demais, no formato Likert de 7 pontos (de 1 &– discordo fortemente &– a 7 &– concordo fortemente). Todas as dimensões avaliadas pela versão adaptada da MSSC obtiveram índices de confiabilidade satisfatórios. As dimensões realização, conhecimento, elegância e fuga obtiveram alfa de Cronbach maiores que 0,80 (0,89, 0,90, 0,87 e 0,82, respectivamente), enquanto a dimensão dramaticidade teve alfa igual a 0,70.

Procedimento

A pesquisa está contida em projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o protocolo 46/2006. Os questionários, contendo a EITT, EFTF e cinco dimensões da MSSC, foram aplicados individualmente nos campi de duas universidades, uma delas pública e a outra particular. Quatro aplicadores que haviam recebido treinamento padrão abordaram individualmente participantes em potencial, perguntando se torciam ou pelo menos simpatizavam com algum time de futebol brasileiro. Em caso de resposta afirmativa, as pessoas eram convidadas a participar, recebendo um questionário, uma caneta e orientações de como respondê-lo. As pessoas que aceitaram ao convite preencheram um termo de consentimento livre e esclarecido (no caso de menores de idade, um acompanhante preencheu o termo) e responderam um questionário individualmente, em salas de aula próximas aos locais em que se encontravam, sozinhas ou em grupos de até quatro pessoas. Quando mais de uma pessoa respondia ao questionário simultaneamente na mesma sala de aula, elas se sentavam em cadeiras e mesas afastadas para realizar a atividade. O tempo médio para responder cada questionário foi de quinze minutos.

Os dados foram analisados por meio do programa estatístico SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 11. Foram realizadas análises de componentes principais e calculados os índices de confiabilidade alfa de Cronbach e coeficientes de correlação entre as escalas EITT e EFTF e os demais itens do questionário.

 

RESULTADOS

Primeiramente foi calculado o índice Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) de adequação da amostra, cuja finalidade é verificar a fatorabilidade dos itens da EITT. O resultado de 0,91 é considerado adequado para empregar técnicas de redução de dados (PEREIRA, 1999). O teste de esfericidade de Bartlett, que verifica a probabilidade estatística do KMO, foi significativo no nível de 0,0001. Foi realizada análise paralela com comparação dos eigenvalues empíricos e eigenvalues simulados com dados aleatórios (HORN, 1965) com o programa de computador Raneigen (ENZMANN, 1997). Segundo essa análise, só devem ser retidos os fatores em que os eigenvalues empíricos têm magnitudes maiores que os simulados. Os dois maiores eigenvalues empíricos derivados da análise de componentes principais foram 4,62 e 0,70, enquanto os valores simulados foram de 1,24 e 1,14. Assim, decidiu-se pela extração de um único fator, com eigenvalue 4,62, que explicou 66% da variância. O alfa de Cronbach (índice que mede a fidedignidade de escalas, ou seja, o quão bem um conjunto de itens mede um mesmo construto) calculado para os sete itens da EITT obteve o valor satisfatório de 0,91. A Tabela 2 apresenta as cargas fatoriais (correlação da variável com o fator) dos itens no único fator da escala, as comunalidades (proporções de variância explicadas pelo fator) e os índices alfa de Cronbach resultantes da eliminação de cada um dos itens da escala.

Tabela 2: Cargas Fatoriais, Comunalidades e Índices Alfa se Eliminado cada Item da Escala de Identificação do Torcedor com o Time

 

 

O KMO calculado para os itens da EFTF mostrou-se ainda superior ao da EITT: teve o valor de 0,94, com o teste de esfericidade de Bartlett também significativo no nível de p < 0,0001. A análise de componentes principais resultou em dois fatores. O primeiro possuía eigenvalue no valor de 6,14 e o segundo teve eigenvalue 1,13. Tendo em vista que os dois valores mais altos de eigenvalues simulados da análise paralela foram 1,34 e 1,24, decidiu-se pela extração somente do primeiro fator empírico, que se mostrou maior em magnitude que o gerado por dados aleatórios. O fator explicou 55,8% da variância dos itens. Assim, foi realizada uma outra análise de componentes principais, optando-se pela extração de um fator único em vez de usar o critério dos eigenvalues. O alfa de Cronbach calculado para os onze itens da EFTF teve o valor satisfatório de 0,91. A Tabela 3 apresenta as cargas fatoriais dos itens no fator, as comunalidades e os índices alfa de Cronbach resultantes da eliminação de cada um dos itens da EFTF.

Tabela 3:Cargas Fatoriais, Comunalidades e Índices Alfa se Eliminado cada Item da Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol

 

 

Para comparar as distribuições da EITT e da EFTF, ambas as medidas foram tratadas segundo as médias de seus itens constituintes, assumindo valores possíveis de 1 a 7. A distribuição da EITT apresentou média de 4,44 e desvio-padrão de 1,56. A EFTF apresentou valores mais baixos, com uma média de 3,07 e desvio-padrão de 1,45. O primeiro quartil da EITT teve o valor de 3,43, a mediana foi 4,64 e o terceiro quartil, 5,71. Para a EFTF, esses valores foram respectivamente 1,82, 2,77 e 4,18.

A EITT e a EFTF correlacionaram-se positivamente com coeficiente r de Pearson no valor de 0,79 (p < 0,01). Ambas obtiveram fortes correlações também com a medida de item único de fanatismo. A EITT teve correlação de 0,76 (p < 0,01), e a EFTF, de 0,81 (p < 0,01).

Para comparar o envolvimento dos torcedores em termos de jogos acompanhados e os escores na MSSC, a amostra foi dividida em três grupos de tamanhos semelhantes com base nos níveis de identificação medidos pela EITT e EFTF. Foram solicitados os pontos de corte para três grupos de tamanhos equivalentes nas duas medidas de escores médios. Assim, a amostra foi dividida em três faixas de identificação segundo a EITT (Baixa &– até 3,71; Média &– de 3,72 a 5,43; Alta &– 5,44 ou mais) e a EFTF (Baixa &– até 2,18; Média &– de 2,19 a 3,55; Alta &– 3,56 ou mais). A distribuição de participantes alocados em cada faixa foi a seguinte, para a EITT: Baixa &– 33% (N = 87); Média &– 36% (N = 95); Alta &– 31% (N = 82). Para a EFTF, a distribuição foi: Baixa &– 31% (N = 82); Média &– 36% (N = 95); Alta &– 33% (N = 87).

Para verificar diferenças nos escores somatórios das dimensões da MSSC segundo as faixas de identificação da EITT, foi realizada uma análise de variância multivariada (MANOVA), tendo as escalas da MSSC como variáveis dependentes. Foi encontrado um efeito multivariado significativo [F (10, 514) = 39,50; p < 0,001; lambda de Wilks = 0,39]. Foram encontradas diferenças univariadas significativas para todas as subescalas. Para a EFTF, foi realizado o mesmo tipo de análise, tendo sido encontrado também um efeito multivariado [F (10, 514) = 32,66; p < 0,001; lambda de Wilks = 0,37], diferenças univariadas também em todas as medidas da MSSC. A Tabela 4 apresenta as médias nas medidas da MSSC segmentadas por faixas das duas escalas, bem como as estatísticas univariadas calculadas. O teste post-hoc de Bonferroni revelou que as três faixas de identificação tiveram médias diferenciadas em quase todas as médias da MSSC, com a única exceção das faixas de identificação da EFTF em relação à dimensão dramaticidade: nesse caso, não foi encontrada diferença significativa entre as médias dos grupos de média e alta identificação.

Tabela 4: One-Way ANOVAs para Comparação de Médias nos Escores das Dimensões da MSSC por Faixa de Identificação Grupal nas Medidas EITT e EFTF

 

 

As distribuições referentes às categorias de quantidade de jogos acompanhados foram comparadas, para as duas medidas, por meio da estatística qui quadrado. Nos dois casos, foram observadas diferenças significativas com p < 0,001. Observa-se, conforme a Tabela 5, que, conforme aumenta a identificação grupal de torcedores, segundo ambas as escalas, há uma tendência a diminuir a proporção de participantes que não acompanharam jogo algum no ano anterior à pesquisa ou acompanharam um ou dois jogos, e aumentar a proporção de participantes que acompanharam mais de dez jogos nesse período.

Tabela 5:Distribuição de Ocorrências e Percentual de Participantes por Quantidade de Jogos Acompanhados e Nível de Identificação nas Escalas EITT e EFTF

 

 

A amostra foi segmentada em três faixas etárias: até 19 anos (N = 73), de 20 a 24 anos (N = 130) e 25 anos ou mais (N = 61). Foi realizada uma MANOVA com sexo e faixa etária como variáveis independentes e os escores médios da EITT e EFTF como variáveis dependentes. Foram encontrados efeitos multivariados significativos para as variáveis sexo [F (2, 257) = 15,51; lambda de Wilks = 0,89; p < 0,001] e faixa etária [F (4, 514) = 4,61; lambda de Wilks = 0,93; p < 0,01], mas não para a interação entre ambas [F (4, 514) = 2,37; lambda de Wilks = 0,96; p > 0,05].

Os participantes do sexo masculino tiveram médias mais altas que os do sexo feminino nas duas medidas. Na EITT, a média do sexo masculino foi de 4,88 (desvio-padrão 1,35) e a do sexo feminino foi de 3,83 (desvio-padrão 1,62) [F (1, 258) = 13,03; p < 0,001]. Na EFTF, essas médias foram respectivamente 3,55 (desvio-padrão 1,50) e 2,42 (desvio-padrão 1,09) [F (1, 258) = 30,12; p < 0,001]. Porém, os efeitos univariados para a variável faixa etária não foram significativos nem para a EITT [F (2,258) = 4,37; p > 0,05] nem para a EFTF [F (2,258) = 0,958; p > 0,05].

 

DISCUSSÃO

A Escala de Identificação do Torcedor com o Time (WANN; BRANSCOMBE, 1993) e a Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol são duas medidas de identificação grupal voltadas para o contexto de torcedores de futebol no Brasil. As escalas apresentaram, ambas, estruturas unifatoriais e bons índices de confiabilidade. A EITT apresentou estrutura fatorial semelhante à da SSIS de Wann e Branscombe (1993), que foi aplicada em uma amostra estadunidense. Tanto a EITT quanto a EFTF permitem diferenciar grupos de indivíduos quanto ao envolvimento com times de futebol. Os participantes que se identificam mais com seus times, ou são mais “fanáticos”, tenderam a acompanhar uma maior quantidade de jogos ao vivo ou em meios de comunicação. Além disso, quanto mais identificados os participantes com os times, maiores os seus escores em termos de motivações diversas para envolver-se com o futebol. São resultados coerentes com os achados de Shank e Beasley (1998), que observaram que torcedores mais identificados com seus times assistem a mais jogos e se interessam mais por atividades esportivas, e também com os de Doosje et al. (2002), cuja pesquisa demonstrou que as pessoas que se identificam mais com o grupo têm maior comprometimento com ele, comprometimento que se traduziria, no presente caso, pelo acompanhamento de jogos do time no estádio ou em meios de comunicação.

Cabe apontar que as duas medidas se orientam segundo uma perspectiva unifatorial da identificação grupal. Assim, por meio das duas escalas, o construto é abordado de modo fidedigno e válido, conforme explicitado nos resultados do estudo, mas de modo menos detalhado que, por exemplo, os estudos de Bhowon e Tseung-Wong (2004) e Duckitt et al. (2005), que, por meio de medidas com maiores quantidades de itens e itens mais específicos, diferenciam entre dimensões de identificação com grupos. De todo modo, a EITT e a EFTF possuem qualidades psicométricas suficientes para serem utilizadas em grande parte de estudos que envolvam identificação global de torcedores de futebol. Para a investigação de aspectos mais específicos da identificação grupal de torcedores, pode ser necessária a adaptação dessas medidas ou construção de outras, provavelmente com mais de uma dimensão. É pertinente ressaltar, contudo, que as pesquisas de Bhowon e Tseung-Wong (2004) e Duckitt et al. (2005) foram realizadas com grupos étnicos, e possivelmente as estruturas multidimensionais encontradas não tenham correspondência com grupos de torcedores de futebol. Somente por meio da realização de outras pesquisas nesse cenário grupal poder-se-á ter indícios mais claros.

A EITT e a EFTF apresentaram uma forte correlação positiva. No entanto, as suas distribuições diferenciam-se: a amostra, composta na maioria por torcedores vinculados a universidades, e presumivelmente abrangendo níveis variados de identificação, apresenta escores mais elevados na EITT que na EFTF. É no teor dos itens que reside a diferença entre as duas escalas: a EFTF possui itens que tratam de graus maiores de identificação grupal. Desse modo, apresenta-se coerente a diferenciação entre EITT e EFTF. Nos termos de Pasquali (2003), os itens da EFTF supostamente possuiriam maior “dificuldade”, no sentido de que é necessária uma maior magnitude do traço latente &– identificação com o time &– para “aceitar” o item. Entretanto, seria necessária a utilização de técnicas psicométricas derivadas da Teoria de Resposta ao Item (TRI) para calcular o nível de dificuldade de cada item. Como isso não foi realizado neste estudo, permanece em aberto para futuros projetos de pesquisa, constituindo uma das limitações do presente trabalho.

Pelo fato de ambas as medidas serem fortemente correlacionadas, infere-se sobreposição na cobertura do construto de identificação grupal, sendo as duas escalas conjuntos de itens referentes a níveis distintos de identificação. A EITT, que mensura níveis menos intensos de identificação grupal, apresenta escores mais elevados pelo fato de que a expressão do construto é mais significativa na amostra, exigindo menos envolvimento e comprometimento dos torcedores. Já a identificação mensurada segundo a EFTF, representada por itens que expressam alto envolvimento com o time, encontra adesão menor por parte dos participantes. Em decorrência do extremismo expresso pelos itens da EFTF, espera-se que uma maior polarização em termos de escores elevados deva ocorrer em amostras de torcedores muito comprometidos com seus times, como por exemplo membros de torcidas organizadas.

Essa diferença entre as escalas possibilita uma escolha, por parte do pesquisador interessado no fenômeno de identificação grupal de torcedores de futebol, quanto ao instrumento mais adequado para sua população. Quando se trata de “cidadãos comuns”, mais ou menos identificados com um time, mas para quem o futebol é apenas mais uma espécie de lazer, a EITT provavelmente será mais adequada por dar conta da variabilidade interindividual de modo mais minucioso. No entanto, ao fazer referência a torcedores fortemente comprometidos, sejam eles apenas torcedores altamente envolvidos pela realidade do futebol, membros de torcidas organizadas ou mesmo torcedores que ocasionalmente cometem atos de violência por causa de rivalidades futebolísticas (GIULIANOTTI et al., 1994), a EITT não será muito informativa. Nesses casos, o uso da EFTF é recomendado, permitindo distinguir níveis de fanatismo entre torcedores altamente identificados.

Uma das principais limitações da pesquisa refere-se ao contexto da amostra. Trata-se de um estudo realizado em dependências de universidades catarinenses, o que implica restrições na generalização dos resultados: a maioria dos participantes eram estudantes universitários de um único estado brasileiro. Uma pesquisa realizada com outros segmentos da população e em outras regiões do país possivelmente obteria resultados diferentes. De todo modo, a correspondência nos resultados da EITT, mesmo direcionada a uma amostra de outro país e a respeito de uma equipe de outra modalidade esportiva em comparação com o estudo original de Wann e Branscombe (1993), sugere que os resultados sejam equivalentes também em outros contextos, nos termos de estrutura fatorial e fidedignidade dos itens. Quanto à EFTF, não há ainda paralelo, o que demanda a realização de novas pesquisas com outras populações para verificar a estabilidade dos resultados. Some-se a essa limitação o uso exclusivo da Teoria Clássica dos Testes (TCT) para análise dos dados; como mencionado anteriormente, faz-se necessário realizar estudos futuros para aferir a dificuldade dos itens segundo a Teoria da Resposta ao Item.

Ainda a respeito do contexto em que se desenvolveu a pesquisa, observou-se que a maior parte dos participantes é torcedor de times das regiões sul e sudeste, sendo a única exceção um torcedor de um time goiano. Embora não tenha sido verificado o motivo pelo qual os torcedores apóiam um ou outro time, pode-se levantar a hipótese de que os times do sul estejam representados por serem times das regiões em que foram realizadas as pesquisas e suas proximidades, o que favorece a existência de torcedores. Já em relação aos times do sudeste, o atrativo seria diferente. Por um lado, mesmo sendo equipes provenientes de regiões mais distantes geograficamente, existe a possibilidade de que os torcedores sejam de famílias com origem no sudeste do país. Há, porém, outros elementos a considerar: vários times do sudeste possuem jogos transmitidos com maiores freqüências nos meios de comunicação e dispõem, geralmente, de mais verbas para investir em elencos e infra-estrutura, que têm por conseqüência maiores quantidades de títulos e conquistas. Assim, os torcedores tanto têm possibilidade de grande familiaridade com os times do sudeste, por causa do tempo de mídia de que dispõem, como também encontram motivos para torcer por essas equipes em virtude do seu sucesso em nível nacional, o que desenvolve suas auto-imagens, tal como previsto pela teoria de BIRG de Cialdini et al. (1976).

Tal como Fisher e Wakefield (1998) encontraram fatores diferentes que levam à identificação grupal para times diferentes, pode-se também supor que os torcedores de times de futebol tenham motivações diferentes para começar a torcer por um time ou então intensificar suas conexões para com a equipe. Enquanto alguns torcedores acompanham times porque têm familiares que apóiam as mesmas equipes, há outros que buscam torcer por uma equipe para comparar-se com outros indivíduos, e outros que torcem por equipes que conquistam muitos títulos, por exemplo. Não há também, além disso, motivos para crer que torcedores da região sul que torçam por equipes do sul tenham maior identificação grupal que torcedores de equipes do sudeste, uma vez que, assim como demonstrado na pesquisa de Fisher e Wakefield (1998), torcedores de times diferentes, bem ou mal sucedidos, apóiam-se em elementos diferentes para construir sua identificação grupal. Não foi objetivo da pesquisa investigar essas relações, e por essa razão é possível apenas permanecer no terreno de uma especulação instruída.

Permanecem para estudos futuros temas como o que leva uma pessoa a torcer por um determinado time de futebol, e preditores de identificação grupal. Além disso, pode-se replicar pesquisas da área de identificação grupal no contexto específico de torcedores de futebol, de modo a verificar sua validade para esse tipo de relações entre membros de grupos. Uma possibilidade seria verificar a aplicação dos resultados de De Cremer (2000) com torcedores de futebol, observando se há correspondência entre níveis de identificação grupal e atribuições de sucesso e fracasso a características do time.

Em conclusão, os resultados do presente estudo demonstram que tanto a EITT quanto a EFTF são medidas de boa qualidade à disposição de pesquisadores em psicologia social que necessitem realizar mensurações de identificação grupal de torcedores. Além disso, tal como foi realizado com a EITT em relação à escala de Wann e Branscombe (1993), é possível adaptar essas medidas para outros esportes ou outras realidades grupais, de modo mais adequado que por meio de medidas de item único, dado que o uso de mais de um item permite maior cobertura de aspectos diferentes de um mesmo construto.

 

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Endereço para correspondência
João F. R. Wachelke
E-mail: wachelke@yahoo.com

Alexsandro L. de Andrade
E-mail: alexsandro.deandrade@yahoo.com

Lorine Tavares
E-mail: lorinetavares@terra.com.br

João R. L. L. Neves
E-mail: joaorobertolins@hotmail.com

Recebido em:23/08/2007
Aprovado em:01/04/2008
Revisado em:05/04/2008

 

 

1 Esta e as demais citações escritas originalmente em língua estrangeira foram livremente traduzidas por nós para este artigo.

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