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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.1 Rio de Janeiro abr. 2008

 

ARTIGOS

 

Persuasão e dinamismo psíquico: investigações na história da cultura ocidental

 

Persuasion and psychic dynamism: researches into the occidental culture's history

 

 

Marina Massimi

Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se evidenciar, em uma perspectiva multidisciplinar e histórica, o processo que transformou o destinatário da persuasão: de sujeito ativo e crítico em consumidor passivo do produto. Na história da cultura ocidental, opõem-se duas diversas concepções do processo de persuasão: de um lado, entende-se que a persuasão deva proporcionar uma experiência ao sujeito concebido como receptor ativo e intencional dos estímulos advindos do mundo externo, corpo vivente e espiritual (dotado de capacidade de juízo e decisão); do outro, vê-se a persuasão como indução de experiência em um sujeito considerado como mero receptor passivo dos estímulos externos, corpo determinado pelo mecanismo das reações.

Palavras-chave: Persuasão; Dinamismo psíquico; Subjetividade; Experiência.


ABSTRACT

The purpose is to prove, from a multidisciplinary and historical perspective, the process that transformed the persuasion addressee &– from an active and critical subject into a passive product consumer. In Western culture history, two different concepts regarding the persuasion process are opposed: on one side, it is understood that persuasion should provide the subject with an experience, and that subject is acknowledged as an active and intentional receiver of the stimuli from the external world, a live and spiritual body (with abilities of judgment and making decisions); on the other side, persuasion is seen as the induction of an experience on a subject considered a mere passive receptor of external stimuli, a body determined by the mechanism of reactions.

Keywords: Persuasion; Psychic dynamism; Subjectivity; Experience.


 

 

O objetivo deste trabalho é evidenciar, em uma perspectiva multidisciplinar e por intermédio da história, alguns aspectos do processo que transforma o destinatário da persuasão: de sujeito ativo e crítico em consumidor passivo do produto.

Os temas que quero abordar são a comunicação de informações e o processo persuasivo que se destinam a induzir ou modificar comportamentos sociais e pessoais, visando o indivíduo como consumidor de produtos de mercado.

Abordar esses temas exige um cuidado metodológico: considerar a interseção de várias áreas de estudo do homem e de sua capacidade comunicativa e discursiva, tais como a psicologia, a sociologia, a ética, a filosofia do conhecimento e a retórica.

Ainda do ponto de vista metodológico, cabe justificar a escolha da perspectiva histórica para encarar o objeto escolhido: com efeito, analisar o processo histórico tem relevância para o presente na medida em que as possibilidades proporcionadas pela história da cultura ocidental estão ainda hoje disponíveis para o homem contemporâneo. A análise assim conduzida evidencia que, na história da cultura ocidental, opõem-se duas diversas concepções do processo de comunicação visando à persuasão: a primeira entende que a persuasão deva proporcionar uma experiência ao sujeito concebido desde o início como receptor ativo e intencional dos estímulos advindos do mundo externo, corpo vivente e espiritual (ou seja, dotado de capacidade de juízo e decisão); a segunda concepção concebe a persuasão como uma forma de indução de experiência em um sujeito considerado como mero receptor passivo dos estímulos externos, corpo determinado pelo mecanismo das reações.

A meu ver, a diferença entre as duas concepções deve-se às mudanças de sentido acerca das concepções de experiência, sendo estas também relacionadas às teorias do conhecimento e conseqüentemente aos métodos de comunicação visando à persuasão (MASSIMI; MAHFOUD, 2005).

Portanto, ao considerar o processo de comunicação cuja finalidade é persuadir o destinatário para dispô-lo a experimentar certo objeto ou situação, cabe antes de qualquer coisa aprofundar o que se entende por experiência.

Concepções Naturalistas de Experiência e Métodos de Persuasão Decorrentes

No contexto hodierno, encontram-se algumas reduções da concepção de experiência (MOLIOLI, 1992) fundamentadas em alicerces teóricos propostos pelas filosofias modernas e contemporâneas. Na mentalidade moderna do Ocidente, a experiência é reduzida ao significado emocional, como algo que se adverte imediatamente e de modo espontâneo, determinada pelo contexto, interno ou externo. Seria um mero “sentir” que não é submetido a nenhum critério ético: de fato, nela o sujeito não está presente ativamente com sua liberdade e consciência, mas apenas acusa de modo passivo os próprios movimentos psíquicos. Ou, ainda, a experiência é tomada como um “provar” sem razões. Na cultura contemporânea, assiste-se também à redução da experiência à representação, concebida como puro processo simbólico desvinculado de um sujeito pessoal.

Em seu conjunto, essas posições têm suas raízes em algumas filosofias da modernidade. H. Arendt (1958-1999) assinala que tais filosofias, ao diluírem a conexão entre pensamento e experiência, designaram com o termo experiência uma concepção do real elaborada pelo sujeito por meio dos métodos de conhecimento escolhidos para tanto. Dentre estes, o mais fidedigno seria o experimento científico. Conforme assinala a referida filósofa, a revolução científica e o surgir da mentalidade da Idade Moderna comportam, a partir do século XVI, a entrada, na cena da história, do homo faber, capaz de fazer e de fabricar &– inclusive a si mesmo. Esta nova visão do mundo acarreta &– como conseqüência &– uma concepção do conhecimento segundo a qual a verdade e a realidade não seriam dadas, nem se revelariam imediatamente na experiência.

René Descartes (1596-1650), após ter introduzido a dúvida metódica, resolve-a pela afirmação de que os processos internos à mente do homem são dotados de certeza própria e podem ser investigados, de modo que o sujeito pensante (e não a realidade) passa a ser a fonte da certeza. O pressuposto implícito desta doutrina é que a mente conhece apenas aquilo que ela mesma produz e retém dentro de si, sendo a ciência matemática o campo exemplar deste poder. A modernidade questiona a certeza de que “os sentidos como um todo integram o homem à realidade que o rodeia” (ARENDT, 1958-1999, p. 287). Dilui-se a conexão entre pensamento e experiência dos sentidos, substituída pelo mundo da experimentação científica.

O filósofo inglês David Hume (1711-1776), em Investigações acerca do entendimento humano (HUME, 1972, p. 13), propõe-se a analisar seriamente a natureza do entendimento humano, utilizando-se do “espírito de exatidão e do raciocínio”, segundo a hipótese de que a experiência humana, assim examinada, possa ser compreendida da mesma forma que o mundo natural. Assim, “a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante argumentos derivados de sua causa ou de seu efeito e estes argumentos se fundam inteiramente na experiência” e não no raciocínio a priori. Pois “é unicamente a experiência que nos ensina a natureza e os limites da causa e do efeito, e permite-nos inferir a existência de um objeto partindo de um outro” (HUME, 1972, p. 13). Inclusive este conhecimento experimental abarca também os fenômenos humanos: “Tal é o fundamento do raciocínio moral que constitui a maior parte do comportamento humano e que é a fonte de todas as ações e comportamentos humanos” (HUME, 1972, p. 13).

Em suma, nas filosofias da modernidade, o termo experiência passa a designar a concepção do real que o homem elabora por meio dos métodos de conhecimento escolhidos para tanto, dentre os quais, o mais fidedigno é o experimento científico. Uma das conseqüências desta nova maneira de conceber o conhecimento é que se perde a nítida separação entre ser e aparência, entre a realidade e as elaborações que o sujeito constrói acerca dela.

Esta posição encontrará sua continuidade no século XIX na filosofia positivista de A. Comte e H. Spencer, para os quais a ciência é o único saber que permite apreender a experiência de modo unificado, ao passo que ao conhecimento fruto da tradição e da elaboração direta das vivências, sedimentado nas culturas humanas, é negado qualquer grau de verdade (VANNI-ROVIGHI, 1999). Em virtude da influência exercida pela epistemologia positivista, o início da psicologia moderna é marcado pela eliminação da relação entre sujeito e objeto do conhecimento na gênese da experiência e, portanto, pelo ocultamento da presença do sujeito ativo na elaboração da mesma. W. James (1891-1989), por exemplo, elimina o papel ativo do sujeito na elaboração da experiência, sendo este concebido como mero receptor biológico passivo das influências do meio ambiente e sendo negado em seu ser pessoal.

Hoje, o entendimento da experiência como um mero e reativo provar apresenta conseqüências importantes no plano da ética e da retórica. No plano ético, predomina a tendência que MacIntyre (1981-2001, p. 30) denomina de “emotivismo” e que consiste “na doutrina segundo a qual todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes”, não sendo nem verdadeiros nem falsos. Não existe, portanto, justificativa racional para a existência de padrões morais objetivos. Na sociedade contemporânea, esta teoria é personificada por algumas figuras que ocupam papéis relevantes, entre eles o administrador e o terapeuta: neles a diferença entre relação manipuladora e não-manipuladora é obliterada; tratam dos fins como fatos consumados fora de sua alçada e ocupam-se de técnicas, de eficiência. São figuras incontestáveis que nunca se engajam em um debate moral e que declaram “restringir-se aqueles domínios nos quais a concordância racional é possível” (MACINTYRE, 1981-2001, p. 63), ou seja, na perspectiva deles, “ao domínio dos fatos, dos meios, da eficiência mensurável”. Na visão emotivista, o eu é desprovido de critérios racionais para julgar.  Esse eu sem conteúdo próprio “pode ser então qualquer coisa, pode assumir qualquer papel, ou adotar qualquer opinião, porque não é, em si e para si, nada” (MACINTYRE, 1981-2001, p. 66). MacIntyre aponta que os dois teóricos mais lúcidos dessa posição foram Jean Paul Sartre e Ervin Goffman.  Do ponto de vista social, uma subjetividade assim definida se sente totalmente à vontade no mundo social contemporâneo das sociedades desenvolvidas. O mundo social contemporâneo, por sua vez, bifurca-se, por um lado, em um domínio organizacional no qual os fins são dados a priori e não estão disponíveis para a análise racional e, por outro, em um domínio do “pessoal” em que não é possível nenhum posicionamento racional. Desse modo, por um lado, “surgem os autoproclamados protagonistas da liberdade individual; do outro lado, os autoproclamados protagonistas do planejamento e da regulamentação” (MACINTYRE, 1981-2001, p. 70). Verifica-se uma surpreendente concordância entre dois modos aparentemente opostos da vida social: o modo das opções livres e arbitrárias de cada um e o modo da soberania da burocracia, destinada a limitar a anarquia dos interesses próprios.

Encarando este panorama, também Hanna Arendt (1958-1999, p. 335) lamenta “a marcante perda de experiência humana acarretada por esta marcha de acontecimentos”:

“[...] o próprio pensamento, ao tornar-se mera previsão de conseqüências, passou a ser função do cérebro, com o resultado de que se descobriu que os instrumentos eletrônicos exercem essa função muitíssimo melhor do que nós. A ação logo passou a ser e ainda é concebida em termos de fazer e de fabricar (ARENDT, 1958-1999, p. 335).”

Assim, com a vida pessoal sendo reduzida ao processo vital da espécie, a única decisão do indivíduo é a de deixar-se levar e “aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizada”. E conclui:

“[...]o problema das modernas teorias do behaviorismo não é que estejam erradas, mas sim que podem vir a tornarem-se verdadeiras, que realmente constituem as melhores conceituações possíveis de certas tendências óbvias da sociedade moderna. É perfeitamente possível que a era moderna venha a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu (ARENDT, 1958-1999, p. 335-336).”

A destruição de toda relação com a realidade é para Arendt (1949-2000, p. 525) a introdução ao totalitarismo, pois com isto “os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar”. Pois,

“[...]o súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a ficção (isto é a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento). (ARENDT, 1949-2000, p. 526). ”

O ser humano que responde ao ambiente se conforma à uniformidade da cultura de massa: a reprodução banal das cenas da vida cotidiana realizada pela indústria da comunicação marca a dissolução da individualidade. Destituído de sua capacidade de juízo, o homem fica entregue ao poder.

Neste contexto, a retórica e a comunicação, visando à persuasão dos destinatários, não têm a obrigação de convencer racionalmente, mas apenas de proporcionarem apelos aos sentidos e aos afetos para captar adesões. Dessa forma, esses apelos, que integravam outros aspectos do processo tradicional da persuasão, tornam-se um fim em si mesmo. Em certa visão da retórica que se afirmou na Europa no século XIX, questionada por Nietzsche, a eloqüência reduziu-se à faculdade de induzir nos outros a adesão a determinadas opiniões e condutas, independentemente de seu consentimento racional, fazendo penetrar nas mentes dos destinatários, por meio das palavras, sentimentos, atitudes e idéias, com uma força capaz de desviar os seus próprios pensamentos e comportamentos do curso originário. O processo persuasivo, assim concebido, mostraria ser tanto mais eficaz quanto mais o curso das idéias alheias diferir das nossas (NIETZSCHE, 1995).

Neste sentido, não parece constituir uma real alternativa a este cenário a assim chamada Nova Retórica de Ch. Perelman. Apesar deste autor se colocar em continuidade com o aristotelismo e a tradição clássica, na verdade distancia-se profundamente dos objetivos delas. Com efeito, ao propor como critério para a convicção o "verossímil", o "plausível", o "provável", determinados pela decisão do auditório, reduz a verdade ao objeto do consenso, às opiniões geralmente aceitas. Ao restringir o critério de validade ou justeza apenas nos termos daquilo que pensa o auditório e reduzir o entendimento do real não ao seu sentido ontológico, mas apenas àquilo que um determinado auditório entende ou acredita ser real, a Nova Retórica mantém o sujeito em uma posição semelhante à que Arendt definira ser a do “súdito ideal do totalitarismo”. Assim, esta concepção da retórica não impede que se possa reduzi-la à “arte de enganar; à arte de usar todos os dispositivos possíveis para influenciar o auditório, apelando para os seus instintos mais baixos, ou para argumentos que parecem razoáveis mas não o são (as falácias)” (MURCHO, 2001). Um aspecto deste processo é a modalidade com que as mídias contemporâneas se utilizam das imagens, buscando um consenso que dispense a mobilização dos recursos intelectuais. Alerta Gusdorf (1978, p. 145) que “aquele que se abandona sem defesa ao fluxo das imagens, renuncia à direção de seu próprio pensamento e aceita uma direção da consciência por intervenções estranhas”. Pois a retórica das imagens convence pelo estímulo à afetividade em detrimento do pensamento.

A Experiência e a Persuasão da Pessoa Concebida Como Sujeito de Juízo e de Decisão

Arendt afirma que a única possibilidade de o homem se subtrair ao totalitarismo contemporâneo é a capacidade intrínseca à pessoa de colocar um novo início. Para isto, é preciso retomar o sentido humano da experiência.

Vimos que o empirismo, no início da Idade Moderna, passa a reduzir a experiência à dimensão do conhecimento sensorial &– a ser testado e comprovado conforme os critérios do método científico. Esta redução foi contestada por Husserl, por ser uma “naturalização” da experiência humana. Segundo ele, a naturalização da experiência elimina seu sujeito; ao passo que podemos atingir a experiência somente a partir da apreensão do sujeito que continuamente a constitui. Ocupando-se especificamente da categoria experiência do ponto de vista da teoria do conhecimento, o filósofo afirma que a presença do eu na elaboração da experiência permite chegar ao conhecimento e à formulação de um juízo. Para explicar isto, Husserl (1948-1995, p. 41, tradução nossa) parte do mundo da vida:

“Se quisermos chegar à experiência entendida no sentido último e originário que estamos procurando, esta não pode deixar de ser a experiência originária que se dá no mundo da vida, a qual ainda nada sabe a respeito das idealizações embora seja seu fundamento necessário.”

Já no âmbito da percepção, pode-se acusar a existência do sujeito ativo: “o perceber é uma operação ativa do eu” (HUSSERL, 1948-1995, p. 65, tradução nossa), não é apenas um elemento passivo da consciência, mas é fruto de sínteses dotadas de força afetiva. Segundo Husserl (1948-1995, p. 72, tradução nossa), o “conceito normal de experiência (percepção, recordação etc...) indica a experiência ativa que depois se desenvolve como experiência explicativa”.

Para além da proposta de Husserl e para além das formulações elaboradas por outros pensadores contemporâneos (como os já citados Arendt e MacIntyre) acerca da experiência de modo a implicar a posição do sujeito como sendo ativo e capaz de juízo, cabe lembrar também a contribuição oferecida por algumas teorias da tradição cultural ocidental. De modo geral, na visão própria da filosofia ocidental européia (clássica, medieval e humanista), a experiência era entendida segundo dimensões diversificadas, o termo experiência referia-se tanto ao conhecimento sensorial e prático quanto à verificação e prova, ou mesmo ao conhecimento interior.

Citamos aqui dois autores especialmente significativos da referida tradição cultural: Agostinho e Tomás. Santo Agostinho, nos Solilóquios (386 d.C.-1998, p. 30), define a experiência em termos de conhecimento sensorial. A vivência da experiência sensorial, porém, deve ser analisada em toda a sua complexidade. Agostinho (386 d.C.-1998, p. 30) frisa, por exemplo, a importante distinção entre olhar e ver:

“[...] as coisas são iluminadas pelo sol para que possam ser vistas, assim, como o é a terra e tudo o que é terreno; mas Deus é quem ilumina. Assim, eu, a razão, estou nas mentes como a visão nos olhos, como tampouco olhar e ver. Por isso, a alma precisa de três coisas: ter olhos dos quais possa usar bem, olhar e ver.”

Tais afirmações implicam que toda experiência sensorial (olhar) possui uma dimensão racional (ver).

Na Suma teológica (1269-2002), Tomás de Aquino define o homem como ser orgânico-psíquico e espiritual (sínolo) cujo dinamismo é voltado para a busca da felicidade e refere-se ao termo experiência no sentido aristotélico de conhecimento pelos sentidos (AQUINO, 1269-2002, v. II, parte I, qu. 54, art. 3). Nesse contexto, os sentidos não são apenas os externos ligados aos cinco órgãos sensoriais, mas também há quatro sentidos internos, a saber, fantasia, cogitativa (ou ratio particularis), memória e senso comum. Cada um deles assume uma função específica na produção do conhecimento: o senso comum realiza uma primeira unificação das informações sensíveis transmitidas pelos sentidos externos; a fantasia ocupa-se de sua unificação em um quadro espaço-temporal; a memória armazena e ordena as informações em imagens; e a potência cogitativa proporciona uma primeira intelecção dos elementos não sensíveis, realizando um primeiro plano de reconhecimento do universal no sensível. A potência cogitativa é ratio particularis, o conhecimento racional das coisas específicas, uma espécie de continuação do espírito na sensibilidade que apreende as coisas particulares, manifestando nelas o universal. Assim, mesmo que a potência cogitativa pertença ao âmbito do pré-racional, configura-se já orientada para o todo, de modo que a sensibilidade é ela também plasmada pelo espírito. Na continuidade entre sensibilidade e intelecto, a potência cogitativa é o meio em que o espírito e a sensibilidade se unem para formar um único conhecimento humano. Pois, o pensamento, enquanto permanece em um corpo não glorioso, necessita sempre voltar ao sustento do sensível e do fantástico para entender. A memória e a potência cogitativa fundamentam a virtude da prudência, a qual por sua vez diferencia o bem e o mal e sugere a escolha do bem concreto, orientando a ação. Segundo esta doutrina, o recurso da persuasão pela arte retórica pressupõe uma concepção universalista da palavra, a qual espelhando a razão se torna portadora de verdades. Seu destinatário é o ser humano enquanto sujeito de juízo e de livre arbítrio. Na prática retórica, a palavra encarnada na elocução penetra os ânimos e atinge o plano moral, tornando-se assim ética. A palavra eloqüente não apenas veicula o objeto, mas sugere também comportamentos diante dela. A retórica, portanto, associa a razão à verdade e à moralidade, chamando em causa a liberdade como condição de tal associação. 

Segundo todas as abordagens aqui consideradas, tanto da fenomenologia contemporânea quanto das antigas filosofias de Agostinho e de Tomás de Aquino, persuadir nunca pode identificar-se com a manipulação dos destinatários, pois deve induzir sempre neles uma atitude de verificação racional da experiência proposta e uma decisão diante dela.

Evidentemente, a consideração desta questão remete também à concepção das relações entre pessoa, sociedade e poder político. Conforme afirma o filósofo Romano Guardini (1984), o uso do poder sempre deriva de um correspondente juízo acerca do sentido último da existência humana. Desse modo, por exemplo, a visão da sociedade de massa liga-se a uma concepção do poder do Estado tido como a instância determinante da vida social e individual, possuidor do direito de dispor da liberdade de seus membros, bem como de manipular a consciência desses. Nesta perspectiva, a necessidade de captar o consenso dos elementos da sociedade é funcional ao papel prioritário do Estado que deve ser afirmado de toda forma e em certo sentido independe da avaliação dos cidadãos quanto à pertinência e coerência das ações e das políticas propostas pelo poder constituído. Portanto, a racionalidade do consenso dos cidadãos é menos importante do que a obtenção desse consenso. Por sua vez, o consenso é logrado por meio de um conjunto de estratégias persuasivas que se utilizam de um tipo de retórica que, como vimos, é concebida como desvinculada da verificação racional da verdade de suas proposições. O controle destes dispositivos persuasivos (meios de comunicação, conteúdos e manuais didáticos, uso da palavra etc.) é decisivo para a obtenção e a manutenção do poder.

Pelo contrário, uma concepção da pessoa e da sociedade civil como entidades originárias e fundadoras do poder político do Estado concebido em função delas implica o dever do poder político de atuar a serviço da sociedade, das comunidades que a compõem e de cada pessoa. Assim, a adesão dos membros pode ser lograda por meio de um processo persuasivo que implica a avaliação racional e a decisão política de cada membro no que diz respeito às políticas propostas. Nesta ótica, o uso da retórica visa a persuasão, seja no sentido do consenso, seja no sentido da crítica e da dissensão, favorecendo assim a consolidação de uma política efetivamente democrática. 

 

CONCLUSÃO

Finalizando: a concepção de experiência que implica o sujeito enquanto capaz de julgar e possuidor de um critério interno para julgar e decidir acarreta a conseqüência de que a persuasão nunca pode coincidir com a manipulação da pessoa. Pelo contrário, a concepção de experiência que implica o sujeito como mero receptor de estímulos proporcionados pelo ambiente externo, submete-o necessariamente aos determinismos naturais, sociais e políticos. A afirmação do sujeito como destinatário ativo da persuasão passa pela educação da pessoa enquanto desejosa de felicidade, aberta para a realidade total, portadora de um critério de juízo e capaz de liberdade e decisão. Desse modo, põe-se um sujeito criador de cultura. No Brasil, muitas vezes a partir de uma visão reducionista da experiência codificada e difundida pelo saber acadêmico, pensa-se o outro &– destinatário da intervenção social ou política e dos cuidados educacionais, psicoterâpeuticos, ou sanitários &– como um sujeito passivo e alheio à cultura. Na verdade, porém, os destinatários dessas ações e cuidados são sujeitos capazes de experiência e portadores de cultura. Precisamos respeitar, conhecer e compreender a cultura desses sujeitos e comunidades que compõem o povo brasileiro, ao mesmo tempo  que atuamos no meio dele.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Marina Massimi
E-mail: mmassimi3@yahoo.com

 

Recebido em:18/09/2007
Aprovado em:07/11/2007
Revisado em:21/03/2008

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