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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.60 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2008

 

SEÇÃO ABERTA

 

Exclusão, posição subjetiva e laço social: o “pousse-au-dehors”1 na psicose2

 

Exclusion, Subjective position and the social bond: the excluding mechanism in psychosis

 

Abdelhadi Elfakir

Université de Brest, Brest, França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de examinar a questão do lugar da exclusão na psicose aqui considerada como defesa subjetiva e não simplesmente a partir de suas manifestações psiquiátricas. Como posição do sujeito na estrutura da linguagem, a psicose implica um desatar subjetivo do laço social e conduz o sujeito, em certas condições bem precisas, a um distanciamento (mise à la marge) por vezes decisivo e delimitado. Esta tese será aqui ilustrada a partir de um testemunho que considero paradigmático sobre esta questão.

Palavras-chave: Exclusão; Sujeito; Laço social; Psicose; Psicanálise.


ABSTRACT

This article deals with the issue of exclusion and its link with psychosis. The latter is considered here as a subjective defense and not simply through its psychiatric manifestations.  As a position of the subject in the structure of language, it implies the subjective undoing of the social bond, which leads the subject, in some particular conditions, to marginalization, that may be, at times, firm and irreversible. This argument will be illustrated by a case I consider as paradigmatic of this issue.

Keywords: Subject; Social bond; Psychosis; Psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Il s’agit d’envisager la question de l’exclusion dans son lien avec la psychose ici considérée comme défense subjective et non pas simplement à travers ses manifestations psychiatriques. En tant que position du sujet dans la structure du langage, elle implique le dénouage subjectif du lien social et conduit le sujet, dans certaines conditions bien précises, à une mise à la marge, parfois décidée et tranchée. Thèse qui sera ici illustrée à partir d’un témoignage que je considère comme paradigmatique sur cette question.

Palavras-chave: Exclusion ; Sujet ; Lien social ; Psychose ; Psychanalyse.


 

 

O objetivo desta reflexão não é o de desdobrar, mais uma vez, as manifestações psicopatológicas dos estados da exclusão, nem tampouco o de buscar ordenar e homogeneizar os fatores explicativos desses estados e, menos ainda, de dar lições em matéria de soluções e de saber-fazer prontos. Isto seria uma prova de irresponsabilidade de minha parte, pois ser responsável por sua posição de sujeito (LACAN, 1966, p. 858) se dá “na medida de seu saber-fazer”.3 (LACAN, 2005, p. 61).

Esta reflexão visa focalizar a questão da exclusão em seu laço com a psicose, tomada como posição subjetiva e não simplesmente como patologia psiquiátrica acompanhada de seus aparatos sintomáticos. Considerada como resposta do sujeito, a psicose implica fundamentalmente um abandono do laço social, abandono que, no plano do sujeito, potencializa as condições subjetivas de um distanciamento (mise à la marge) por vezes decisivo e delimitado. E, sobre o plano social, coloca entraves a teorizações por mais bem intencionadas que sejam, assim como a planos de ação mais voluntaristas.

Esta questão do laço entre psicose e exclusão, mais que qualquer outra, somente pode ser apreendida adequadamente, de um ponto de vista clínico, ao ser articulada a duas dimensões fundamentais: a questão do laço social e a posição subjetiva do sujeito na psicose. A presente reflexão apóia-se em um testemunho que considero paradigmático sobre essa questão, que encontramos em Mémoire d’un névropathe de Daniel Paul Schreber sobre a psicose paranóica. Esse testemunho foi escrito por Yves Le Roux e D. Ledeman (1998). Le Roux viveu boa parte de sua vida, até a sua morte, nas piores condições de clochardisation4 .

 

Dos Fatores de Exclusão ao Sujeito como Causa

Em uma primeira delimitação, coloquemos que para uma clínica orientada pela psicanálise, a noção de sujeito não deve ser confundida com as noções comuns de indivíduo, pessoa ou personalidade, fundadas na idéia de uma síntese de traços de identidade manifestos. O sujeito extraído a partir da experiência analítica é o sujeito do inconsciente e, a partir disso, é fundamentalmente divido entre um saber engendrado e trazido pela significância própria à linguagem e à fala (a ordem simbólica) e um gozo irredutível ao significante (o registro do Real).

É esta divisão que faz sintoma para o homem. O sintoma, desse modo, é consubstancial ao sujeito, que nele se enlaça, enlaçando, por essa via, sua inscrição no Outro social, que preexiste à sua chegada no mundo.

Esta idéia nos obriga a introduzir uma distinção entre as determinações (os fatores), por um lado, e a causa, por outro. Podem-se evocar estados endêmicos de exclusão ou de marginalidade, e tudo o que se quiser como fatores de risco, mas não se pode deixar de contar a decisão do sujeito quanto a isso que acontece com ele e, com isso, no qual ele pode se tornar. A causa eficiente não corresponde nunca à soma dos fatores apontados, pois por vezes um indivíduo se depara com a maioria desses fatores supostos e não se deixa levar por eles. A causa efetiva se localiza na posição singular do sujeito, sinônimo de sua resposta decidida. Lydia Perréal (1995, p. 86), apesar de seus parcos 20 anos e já sem domicílio fixo (SDF)5 , escreveu de forma crua, que “não é suficiente ser cocu ou desempregado para encontrar-se na rua. É um longo processo psicológico que vem de muito longe, do qual a rua é a finalização”6 . Yves Le Roux (1998, p. 34), por sua vez, estima que os vagabundos como ele

«(...) existem desde sempre, mesmo em períodos em que há emprego e habitação social facilmente acessível. Um pouco como na Tortilla Flat, de Steinbech, na qual dois personagens eternizam suas infelicidades. Colocam fogo na casa que acabam de herdar. ‘Enfim livres, não temos mais nada! Magnífico!’ E eles se perdem na noite.»7

A causa como decisão singular e inefável não se confunde, portanto, com determinação alguma marcada e isolada, qualquer que seja seu peso e não se confunde com a soma dessas determinações, por mais numerosas que sejam. É a decisão singular do sujeito, sua escolha forçada, segundo a expressão de Freud, que constitui o ponto a partir do qual o conjunto dos fatores, supostos ou reais, encontram uma lógica para se ordenar. 

A causa é, portanto, sempre localizada abaixo ou além dessas determinações apontadas ou supostas. Ela deve ser situada, segundo a expressão, “junto ao mais íntimo do sujeito”8 e de “sua decisão insondável”9,quer dizer, ali no ponto em que o sujeito se choca com o real definido, justamente, como fora do significante, fora da representação. O sujeito é, então, conduzido a inventar o traço ou a marca que conecta e condensa seu ser ali onde o Outro do significante não mais responde nem fornece as palavras.

Se eu acredito saber o que eu imagino ser e penso poder dizer qualquer coisa sobre isso, não posso, entretanto, dizer tudo aquilo que sou. “Eu busco a palavra... a palavra exata”, ouvimos freqüentemente da boca daqueles que, nos termos de Lacan, se aventuram ao bem-dizer e procuram saber um pouco sobre essa divisão que os funda. E em seus esforços de bem-dizer, eles jamais encontram as palavras perfeitas que atingem o alvo10. Mas, será que eles se dão conta de que atingir o alvo não quer dizer pegar sua presa e, muito menos, dominá-la? O sujeito é, assim, dividido entre o saber que o nomeia, mas que não pode dizer tudo do ser, e esse ser de gozo que supostamente ele perde pelo fato de falar e de ser aí nomeado.

 

A Relação entre Indivíduo e Coletivo, o Sujeito do Inconsciente como Enlaçamento

Essa relação do sujeito com o Outro social é, então, eminentemente sintomática, uma vez que não é regulada previamente, e definitivamente, como é o caso no reino animal, onde os membros se agrupam ou se dispersam graças aos códigos registrados em sua constituição biológica. Para os homens, esta relação não se constrói pelas leis da natureza, mas a partir das leis da linguagem e da fala. Desse modo, o sujeito não é solúvel no coletivo, o qual não se constitui em função das tarefas prefiguradas em termos dos códigos genéticos de seus membros. Na impossível harmonia entre o homem &– o falasser, segundo a expressão de Lacan &– e seu mundo, o sintoma faz laço. É isso que permite ao ser falante, nessa desarmonia fundamental, ligar-se ao coletivo de seus semelhantes sem o dissolver e sem se dissolver nele (SAURET, 2005).

Essa relação de conjunção entre indivíduo e coletivo se funda sobre o sujeito do inconsciente. Ele é o que Lacan chama de nó social, ou seja, o ponto em que se trama e se tece a raiz do laço entre o coletivo e o individual. Este nó é articulado em torno daquilo que ele considera como um buraco, uma falta, uma falha de gozo. O humano nasce, assim, de uma exclusão fundadora. Desse ponto de vista, a exclusão é nossa herança comum; de todo modo a todos aqueles que se submetem à falta de gozo que funda o laço social.

 

A Exclusão Fundadora do Humano: O Passo do Laço Social como Matriz do Sujeito

Em Totem e Tabu, Freud (1976), por meio de sua ficção sobre a horda primitiva, vai tentar esclarecer as condições de emergência tanto do coletivo quanto do sujeito. Ele propõe essa ficção como um momento a-histórico em que emergem, ao mesmo tempo, o laço social e o sujeito do inconsciente.

O mito freudiano começa assim “Um dia, os jovens machos, eternamente frustrados e impacientes por ter sua parte de gozo, juntam-se contra o tirano. Os filhos [escreve Freud] reúnem-se, matam e comem o pai, o que põe fim à existência da horda paterna”11 . Ao comer o todo-poderoso genitor e ao incorporarem suas forças, os jovens identificam-se com ele, a partir dos sentimentos ambivalentes pelo pai amado e admirado, mas também odiado por seu despotismo. Essa ambivalência em relação ao pai está na origem do sentimento de culpa e das manifestações de arrependimento que seguem a morte.

A partir desse momento, afirmava Freud, a sociedade está fundada “sobre uma falta comum, um crime cometido em comum"12 . A partir daí, não é mais o genitor tirano vivo que impõe seu arbítrio da lei, mas é o pai como morto, elevado ao status do significante na subjetividade de cada um de seus descendentes os quais, daquele momento em diante, encarregam-se da lei e ditam a regra. Em conseqüência, os machos não se precipitam sobre os objetos desse gozo tão esperado. Uma vez o déspota morto, e o pai morto promovido, os jovens unidos descobrem-se, assim, irmãos e irmãs e decidem salvar a aliança que acabaram de experimentar. Para salvá-la, renunciam ao gozo sexual dentro do clã e instituem, dessa forma, uma regra fundamental: a proibição do incesto, inaugurada pelo assassinato fundador. O fato de se interditar a possessão das mulheres do clã abre o passo para a exogamia, evitando assim as lutas fratricidas e preservando o laço social.

A constituição da sociedade como comunidade humana se funda, desse modo, a partir da exclusão do pai gozador levado à morte, o pai-do-gozo13 em um só termo. É nesse sentido que se pode falar em uma exclusão fundadora, exclusão de estrutura uma vez que ela se encontra no fundamento tanto do coletivo quanto do sujeito. Ela é fundadora porque dela se originam as propriedades da função simbólica da linguagem constitutiva do Outro social.

 

O Passo do Sujeito no Laço Social e sua Resposta Responsável

Esse mesmo cenário imaginado por Freud na aurora da humanidade se dá para cada indivíduo em sua comunidade sociocultural, transmitido pelo círculo familiar mais ou menos ampliado. De início, o indivíduo nasce como ser biológico, uma condição necessária, mas não suficiente para dele fazer um ser humano. Para isso ele deve, uma segunda vez, nascer para o humano como sujeito, ou seja, tomando essa configuração a seu encargo e à sua maneira. E, é por meio do cenário edipiano da castração que o sujeito toma para ele (interioriza) o parricídio do pai real e o impossível do incesto. Por isto, para cada sujeito que se inscreve no laço social, fundado na ordem simbólica da linguagem, dá-se um corte com o gozo, com o real. O gozo todo é impossível pelo fato de o sujeito falar, estar submetido às leis diferenciadoras próprias à linguagem, retomadas pelas instituições sociais e culturais.

Para nascer como sujeito, para se subjetivar, cada ser deve passar por uma operação de defesa. Ele se defende contra a demanda imaginária do Outro, contra o risco e o perigo de perder-se como objeto de seu gozo. Essa operação de defesa implica o processo da metáfora (o simbólico) que faz prevalecer uma significação subjetiva, um saber sobre o qual o sujeito se apóia para não se reduzir a uma bola de carne entre as mandíbulas do Outro do gozo.

Desse ponto de vista, todo sujeito se estrutura, se constitui na produção de uma significação articulada a um objeto imaginário ao qual se identifica, e que virá defendê-lo, precavê-lo contra a demanda imaginária do Outro. Mas, o saber ao qual o sujeito se refere para se defender não tem o mesmo estatuto no caso do sujeito se posicionar de um modo neurótico ou de um modo psicótico.

 

O Sujeito da Psicose e o Abandono do Laço Social

Digamos de início que, na posição neurótica, o sujeito aposta no pai. Ele confere ao pai um saber sobre o desejo da mãe. O sujeito, portanto, apóia-se na metáfora paterna, que nomeia e se substitui ao desejo da mãe. Esta metáfora condiciona o posicionamento da significação fálica, que se torna para o sujeito o pólo central, “ponto de estofo”, a significação de referência que determina, organiza e orienta o conjunto de suas escolhas e de sua relação com o mundo. Pela aceitação da castração, o neurótico reconhece a falta que anima o desejo de seu Outro, todavia, ele não quer nada saber sobre isso, no sentido do recalque, segundo a expressão freudiana. Ele formula, então, sua resposta em seu fantasma inconsciente que, por um lado, o preserva do que pode haver de devastador nesse desejo e, por outro lado, sustenta uma inesgotável nostalgia sintomática em relação à perda sofrida quanto a ser o objeto fálico.

O sujeito psicótico, em sua operação de defesa, como todo sujeito apela ao saber, de todo modo. Mas, sobre esse mesmo ponto, sua posição se diferencia claramente daquela do sujeito na neurose. Ele não supõe um sujeito a esse saber sobre o desejo da mãe. Não há nenhuma ficção de pai que se sustente a seus olhos. O pai é relegado à posição de impostor. E é por esse viés que o sujeito, na psicose, se posiciona fora do laço social, sabendo-se que a culpabilidade inconsciente, pelo viés da interiorização da morte do pai, é o que, para cada sujeito, marca a inscrição nesse laço.

Isso que manteve Yves Le Roux (1998, p. 34) com sua mulher, que vai se tornar a mãe de seus três filhos e sobre a qual ele não dirá nada mais, “é que ela era [diz ele] como eu, uma rebelde, uma revoltada [...]. Mas nós tínhamos também um segundo plano de entendimento, o ódio pela hipocrisia, o ódio pelos valores de nossos pais: a ordem, a Igreja, a moral estrita, contradita por um pai de uma infidelidade notória”14 . No alicerce da união deles encontra-se, portanto, um ódio partilhado. O ódio contra esse pai impostor e contra isso que ele representa não deixara lugar à interiorização da morte fantasmática e, por conseqüência, lugar algum tampouco a um sentimento de culpabilidade inconsciente que fornece as bases subjetivas necessárias para a inscrição no laço social, pela via dos acontecimentos importantes que os tecem: “É [escreve ele], tanto no meu casamento como no resto: esboçado, mas jamais terminado”(p. 59)15 .Da mesma forma, em todos os seus projetos: “A maneira pela qual eu fechei a porta dos ensinamentos é reveladora. Meus empreendimentos são sempre abortados: traduções terminadas e jamais entregues. Outros ainda, abandonados no meio do caminho (p. 62).”16

Assim, o sujeito na psicose é separado de toda herança e de toda culpabilidade edipiana. “Dessa forma, ele recusa o laço que se transmite notadamente de pai para filho. Para ele, o nó está desatado, não há aí laço que sustente.” (NAVEAU, 2004, p. 3). E nenhum lugar designado no e pelo desejo do Outro. “Minha infância [escreve Le Roux] não tem nada de particularmente infeliz. Simplesmente, tão longe quanto minhas lembranças remontam, tenho o sentimento de não ter encontrado meu lugar. Sentimento nascido de uma infância despedaçada?” (p. 43).17 Por que, então, se pergunta ele, “desejei fortemente a perda de mim mesmo? Por que precisei realmente me demolir? Eu o ignoro. É assim desde minha infância” (p. 58).18

E um pouco mais à frente, ele explicita:

«Tantas coisas me pareciam tão absurdas, isso desde pequeno. O funcionamento dessa sociedade me chocava ou me desagradava. A hierarquia, os bonés a serem retirados quando passava um senhor fulano. O que tinha ele a mais que eu, o senhor fulano? A visão de um quepe de polícia era insuportável para mim, assim como a dos gardes-pêche19. A política me parecia absurda » (p. 62).20

A morte fantasmática do pai, da qual ele se recusava a guardar algum remorso, resultou no sujeito na luta de morte com o seu duplo: “dei-me conta bem rápido de que, salvo algumas exceções, os homens comportam-se como jovens lobos. É este que vai deitar o outro e meter-lhe a mandíbula na garganta” (p. 63).21

A recusa do significante que representa a falta no Outro, o significante NOME-DO-PAI (NDP), deixa carente para o sujeito a significação fálica. Dito de outro modo, nada de objeto pulsional parcial que, pela operação da separação, cairia do Outro e viria, como pólo identificatório, amarrar seu ser. Não há ancoragem fálica enquanto ponto de estofo, como organização centralizada pelo psicótico de seu saber e de seu gozo.

Essa ausência de bússola fálica condena o sujeito à errância que testemunha sua certeza de que não há lugar para ele no desejo de um outro, e nenhum habitat no Outro social para alojar seu ser e seu corpo. Le Roux sempre constatou nele mesmo uma propensão muito enraizada para excluir-se, que por vezes toma a forma de tentativas impulsivas de romper, de deixar cair e fugir. “As pessoas que vivem fora da norma sempre me fascinaram [escreve ele]. Incapaz de abordar a vida e as pessoas sem romper, sem partir, minha vida é feita de fraturas, partidas, fugas” (p. 58)22 . Como poderia ser de outro modo para ele que “escolheu [como ele o disse] seu itinerário em função das correntes de ar”(p. 100)23 .

Assim, por exemplo − e para tomar aqui só algumas indicações mais explícitas nesse sentido &–, apesar de seu estatuto de pai de família, ele chegava ainda a pôr à prova, escreve ele, “uma furiosa vontade de explorações noturnas. À noite, covardemente, deixava meu pequeno mundo em casa. Demorava-me fora e não resistia jamais ao prazer de agradar” (p. 8)24 .

Dessa maneira também, enquanto ele ocupa a função de professor e sua esposa espera seu segundo filho, ele sai para comprar cigarros no café-tabaco da cidade e parte para não mais voltar. Nesse caminho, ele se diverte em uma parada na cidade de Tours com um amigo com o qual ele passa dois meses a tocar música em boates. E com seus parcos ganhos, eles vão zonear juntos em um subúrbio belga do qual só saem seis meses depois, alguns dias antes do nascimento de seu filho.

Da mesma forma, sua carreira de docente não resiste a essa vontade irresistível de largar tudo e partir. Ele a interrompe, assim, ao final de um ano de exercício, por ocasião de uma discussão um pouco acirrada entre professores, depois da qual se precipita para seu carro, buscando respirar um pouco de oxigênio na Alemanha, na casa de um amigo de seu pai. Mas, na estrada, pára por algum tempo, em Frankfurt, diz ele, “por causa de uma bela que faz strip-tease” (p. 61)25 .

No retorno de uma de suas escapadas, essa propensão à exclusão, esse pousse-au-dehors diríamos, vai se condensar em uma injunção que lhe vem de fora sob a forma de uma prova indiscutível, uma certeza que é a marca de sua psicose, em suma. Aproximando-se de uma propriedade, ele escuta, subitamente,

«[...] vozes alegres. Um grupo de jovens brincava na piscina. Uma jovem mulher magnífica estava com eles [...]. Ela explode subitamente em um riso cristalino que se espalha. O riso da felicidade, do bem-estar, despreocupação absoluta. Esse cristal penetra em mim como um golpe de punhal, pois esse riso me dizia: “esse mundo não é prá você, não é prá você”. Desse mundo eu estava excluído, retoma ele, fazendo eco. »(p. 67)26

Excluído, de fato, mas, observemos, de seu próprio lugar como sujeito da enunciação, Le Roux recebe assim o enunciado de sua própria propensão à exclusão sob a forma de uma experiência alucinatória assinalando para ele, de um ponto exterior, mas sempre na linguagem, sua exclusão sem remédio.

Essa exclusão, anunciada para ele a partir do laço da linguagem, não vai deixar de ter suporte efetivo. O ponto de partida de sua clochardisation, Le Roux o situa em seu abandono − bem antes de encontrar aquela que se tornaria mãe de seus filhos &– por uma outra mulher ao lado de quem, escreve ele, “eu estava bem, tinha encontrado meu lugar” (p. 14)27 .Durante essa relação, que durou dez anos, ela o levou por todo canto, pela França e pela Europa, em função de suas mudanças de trabalho muito freqüentes. “Esses 7 anos, eu os devo a Elise. Elise, a paixão da minha vida, que me deu tudo, tudo tomou” (p. 8)28 . O impacto do abandono dessa mulher sobre ele refletiu a força do investimento narcísico que depositou sobre ela. Se ela lhe permitiu criar um lugar na existência, por meio de sua presença, com sua partida, ela o tira dele. Assim, ela preencheu para ele a função de um substituto do NDP retendo-o, por um tempo, entre os outros.

Assim, os anos vividos juntos “acabaram-se no nada” (p. 15)29, escreve ele. “Eu tinha investido minha vida em Elise, imaginava-a mesmo inclinada sobre meu leito de morte” (p. 17)30.“Essa partida desencadeou uma anorexia total. Da noite pro dia, toda vontade me deixou” (p. 18)31 . E, desde essa partida, tudo mudou para ele, “eu me sinto abandonado pela vida. Essa partida acabou comigo, a vida não quer mais saber de mim” (p. 70).32

Enfim, a falta de um lugar habitável no Outro o rejeita como objeto dejeto projetado em um não-lugar, no “fora-do-discurso”. Rejeição que, para Le Roux, toma a consistência de

«um sentimento absoluto de desvalorização, a impressão de não ser nada, de não servir para nada, de não valer nada, de não ter mais a menor importância para ninguém, de estar abandonado por todos. Para que se lavar, se vestir corretamente, se cuidar? Para que comer? A solidão extrema leva-o a se desagregar, a se degradar progressivamente. Não há mais nada a provar a alguém.»(p. 76).33

O que lhe resta, então? O álcool, que consumia antes e que vai, daí em diante, tornar-se seu confidente autista. A boca se fecha de novo sobre o gargalo da garrafa dando lugar, escreve ele a “um diálogo contínuo com o vinho” (p. 18)34 . Desde então, acrescenta, “tenho sempre uma garrafa de vinho comigo” (p. 18)35 .Ele só fazia beber e dormir, beber para dormir. A garrafa que o acompanha permanentemente se tornou, pode-se dizer, uma espécie de órgão suplementar cuja presença se tornou vital. Ela está aqui, diz ele “para evitar qualquer reação de falta &– é doloroso demais e angustiante. Não quero mais recair nas mãos de outrem. Não suporto ficar enclausurado. Quero ser livre”(p. 121)36 . Livre! Essa liberdade é em sua união com o álcool que ele vai encontrá-la. Melhor que depender de outrem, até mesmo sua “Elise-paixão” que o havia deixado segundo seu capricho.  A garrafa toma este estatuto do objeto por excelência, que ele não precisa tomar do Outro e que basta, em caso de necessidade, tirar da sacola. Ela está ali onde é preciso e quando é preciso, ao alcance da mão, para tamponar o furo angustiante demais da falta no Outro e tornar o sujeito insensível à hemorragia narcísica de seu ser.

Para concluir sobre algumas indicações clínicas um pouco condensadas, lembremos que na data em que escreve seu relato, Le Roux estava vivendo na zona, que ele não deixará até sua morte, há sete anos. Mas, antes disso, nos já havíamos notado, Le Roux ocupou o posto de professor e também o de tradutor de Literatura e cronista em diversas revistas parisienses. Atentando para sua grande cultura literária e artística, o conjunto da mídia, freqüentemente, atrás do “furo de reportagem”, não deixou de solicitá-lo, e uma editora, buscando best-sellers, ofereceu-lhe ajuda na escrita e publicação de seu testemunho sobre sua vivência de clochard.

No âmbito dessa agitação midiática, muitas cabeças pensantes depositaram suas esperanças no fato de vê-lo tomar essa via real da re-inserção e até mesmo de ascensão social, pela qual muitos não hesitariam em vender suas almas. Dessas almas muito caridosas, ele recebia, então, cheques, ofertas de moradia e até mesmo propostas de casamento. A todos esses dons, ele opusera um não definitivo, utilizando todas as mais-valias comerciais de seu livro para derramar, solitário, sua sede insaciável pelo álcool, pois somente ele sabia desde sempre que havia decidido tomar distância e que ninguém nem força alguma o dissuadiriam. E com esse extenso apelo colocou um ponto final em seu testemunho, por meio da metáfora do cachalote, do qual ele tanto gosta:

«A cachalote está encalhada [...]. Libertada de suas rédeas, ela mergulha, emerge de novo, mergulha de novo, emerge novamente, retoma seus jogos sobre o oceano... Os homens a olham, emocionados. De repente, ela se enfia na água, profundamente o bastante para tomar um impulso formidável e faz o maior pulo de cachalote jamais observado, segundo a memória dos marinheiros. O reconhecimento, a felicidade de reencontrar seu país, a liberdade... Os homens não falam mais. Eles lhe devem alguma coisa » (p. 188-189)37 .

O que lhe deveriam os homens? Pode-se ter passado ao largo dessa pérola da qual Le Roux falou anteriormente. Escreve ele: “A zona me ensinou que cada um nutre uma pequena chama. Freqüentemente próxima da extinção, a faísca torna-se um fogo de artifício. O ser mais sem brilho possui nele uma parcela de beleza e de pureza, uma lembrança ou a expressão de um sentimento. Saber aprender com ele [é] reconhecer a pérola que ele detém (p. 43).” Essa pérola não é outra coisa senão a metáfora dos imensos recursos subjetivos dos quais dispõem, freqüentemente, os sujeitos psicóticos, permitindo com que inventem possibilidades e fabriquem meios de reancoragem no social, com a condição de encontrar a mão que pode acompanhá-los sem forçamento.

 

REFERÊNCIAS

AMIEL G. Errer ‘humanum est’. In: LEBRUN, Jean Pierre. Les désarrois nouveaux du sujet. Ramonville Saint-Agne: Érès, 2001. p. 103-112.

ELFAKIR A.  L’erreur est humaine: L’errance entre névrose et psychose. Cliniques Méditerranéennes, n. 72, p. 81-88, 2005.

FREUD, S. Totem et tabou. Paris: Payot, 1976.        [ Links ]

LACAN, J. Ecrits. Paris: Seuil, 1966.        [ Links ]

______. Le séminaire, Livre XXII, R. S. I., (1974-1975). Leçon du 15 avril 1975. inédit.        [ Links ]

______. Le séminaire, Livre XXIII, (1975-1976). Le Sinthome. Paris: Seuil, 2005.        [ Links ]

LE ROUX, Y.; LEDERMAN, D. Le cachalot: mémoires d’un SDF. Paris: J’ai lu, 1998.

NAVEAU, P. Les psychoses et le lien social: le nœud défait. Paris: Anthropos, 2004.

PERREAL, L. J’ai vingt ans et je couche dehors. Paris: Editions J’ai lu, 1995.

PORGE, E. Le lien social chez Lacan. Evolution psychiatrique, n. 66, p. 82-83, 2001.         [ Links ]

PROLONGEAU, H. Le cachalot s’est échoué. Le Nouvel Observateur, 3-9, p. 82-83, février 2000.

 

 

Endereço para correspondência
Abdelhadi Elfakir
E-mail: elfakir@univ-brest.fr

 

 

1 Expressão que exprime a idéia de movimento do interior para o exterior, que poderia ser traduzida como um “empuxo para fora”.[N. T.]
2 Título original: «Exclusion, position subjective et lien social: le «pousse-au-dehors» dans la psychose ». Artigo inédito em português; traduzido pela profa. dra. Susane Vasconcelos Zanotti (Universidade Federal de Alagoas (UFAL)); revisão de Alain Besset.
3 No original: “que dans la mesure de son savoir-faire.” [N. T.].
4 Escolhemos manter o termo original “clochardisation” para afastar a conotação pejorativa que o termo em português carrega, remetendo, literalmente, à condição de vagabundagem. [N. T.]
5 5 SDF: “Sans Domicile Fixe”. [N. T.]
6 No original: «[...] il ne suffit pas d’être cocu ou au chômage pour se retrouver à la rue. C’est un processus psychologique qui part de très loin, et dont la rue est l’aboutissement.» [N. T.]
7 No original: «[...] existent depuis toujours, même en période de plein-emploi et de logement social aisément accessible. Un peu comme dans Tortilla Flat, de Steinbeck où deux personnages éternisent leurs malheurs. La maison dont ils viennent d’hériter, ils y mettent le feu. ‘Enfin libre, on a plus rien! Magnifique!’ Et ils s’enfoncent dans la nuit.» [N. T.]
8 No original: « [...] au joint le plus intime du sujet [...]». [N. T.]
9 No original: « [...] sa décision insondable [...]». [N. T.]
10 No original: « [...] faire mouche [...]». [N. T.]
11 No original: «(...) se sont réunis, ont tué et mangé le père, ce qui a mis fin à l’existence de la horde paternelle [...]».[N. T.]
12 No original: «(...) sur une faute commune, un crime commis en commun.» [N. T.]
13 No original: «père-la-jouissance”. [N. T.]
14 No original: « [...] comme moi, une rebelle, une insurgée […]. Mais nous avions aussi un second terrain d’entente, la haine de l’hypocrisie, la haine des valeurs de nos parents: l’ordre, l’Eglise, la morale coincée, contredite par un père d’une infidélité notoire.» [N. T.].
15 No original: «Il est, écrit-il, de mon mariage comme du reste: ébauché mais jamais fini.» (p. 59) [N. T.].
16 « La façon dont j’ai claqué la porte de l’enseignement est révélatrice. Mes entreprises ont toujours avorté : traductions achevées et jamais rendues. D’autres encore mais abandonnées en cours de route.» (p. 62) [N. T.]
17 No original: «Mon enfance n’a rien de particulièrement malheureux. Simplement, aussi loin que remontent mes souvenir, j’ai le sentiment de n’avoir pas trouvé ma place. Sentiment né d’une enfance éclatée? » [N. T.]
18 No original: « (...) ai-je désiré si fortement la perte de moi-même ? pourquoi ai-je tellement eu besoin de me démolir ? Je l’ignore. C’est ainsi depuis mon enfance.» [N. T.]
19 Optamos por conservar a forma original por se tratar da denominação de uma função específica, a de um fiscal encarregado de controlar a pesca, com exceção da realizada em alto mar. [N. T.]
20 No original: « Tant de choses me paraissaient si absurdes, tout petit déjà. Le fonctionnement de cette société me choquait ou me déplaisait. La hiérarchie, les casquettes à soulever quand passait monsieur machin &– qu’avait-il de plus que moi, monsieur machin ? La vue d’un Képi de police m’était insupportable, celle des gardes-pêche aussi. La politique me semblait absurde.» [N. T.]
21 No original: «Je me suis très vite rendu compte aussi qu’à quelques exceptions près, les hommes se conduisent en jeunes loups. C’est à celui qui va coucher l’autre et lui mettre la mâchoire sur la gorge.» [N. T.].
22 No original: « Les gens vivant en dehors de la norme m’ont toujours fasciné, écrit-il. Incapable d’aborder la vie et les gens sans rompre, sans casser, ma vie n’est que fractures, départs, fuites [...].»[N. T.].
23 No original: «[...] a choisi, comme il le dit, son itinéraire en fonction des courants d’air[...].»[N. T.].
24 No original: « [...] une furieuse envie d’explorations nocturnes. Le soir, lâchement, je laissais mon petit monde à la maison. Je m’attardais dehors et ne résistais jamais au plaisir de plaire [...].»[N. T.].
25 No original: « [...] à cause, précise-t-il, d’une jolie strip-teaseuse.» [N. T.].
26 No original: «[...] des voix joyeuses. Une bande de jeunes gens jouaient dans la piscine. Une jeune femme superbe était avec eux […]. Elle éclate soudain d’un rire cristallin qui se répandit. Le rire du bonheur, de l’aisance, de l’insouciance absolue. Ce cristal pénétra en moi, comme un coup de poignard, car ce rire me disait : ‘Ce monde n’est pas pour toi, pas pour toi.’ Ce monde, j’en étais exclu, reprend-il en écho.» [N. T.].
27 No original: « (...] j’étais bien, j’avais trouvé ma place[...].»[N. T.].
28 No original: « Ces 7 ans, je les dois à Elise. Elise, la passion de ma vie, qui m’a tout donné, tout repris.» [N. T.].
29 No original: « (...) s’achevaient dans le néant (...).» [N. T.].
30 No original: « J’avais investi ma vie en Elise, je l’imaginais même penchée sur mon lit de mort.» [N. T.]”.
31 No original: « Ce départ déclencha une anorexie totale. Du jour au lendemain, toute envie me quitta. [N. T.].
32 No original: (...) je me sens abandonné par la vie. Ce départ m’a brisé, la vie ne veut plus de moi. [N. T.].
33 No original: « (...) un sentiment absolu de dévalorisation, l’impression de n’être rien, de ne servir à rien, de ne rien valoir, de ne plus avoir la moindre importance pour personne, d’être abandonné de tous. A quoi bon se laver, s’habiller correctement, se cultiver ? A quoi bon manger ? L’extrême solitude amène à se déliter, à se dégrader progressivement. Plus rien à prouver à personne.» [N. T.].
34 No original: «(...) un dialogue continu avec le vin.» [N. T.].
35 No original: «(...) j’ai toujours une bouteille de vin dans mon sac.»[N. T.].
36 No original: «(...) pour éviter toute réaction de manque &– c’est trop douloureux et angoissant. Je ne veux plus retomber dans les pommes ni dans les mains d’autrui. Je ne supporte pas l’enfermement. Je veux être libre.» [N. T.].
37 No original: « Le cachalot est échoué (...). Libéré de ses sangles, il plonge, réémerge, replonge, émerge de nouveaux, reprend ses jeux sur l’océan… Les hommes le regardent, émus. Tout à coup, il s’enfonce dans l’eau, assez profondément pour prendre un élan formidable et il fait le plus grand bond de cachalot jamais observé de mémoire de marin. La reconnaissance, le bonheur de retrouver son pays, la liberté… Les hommes ne parlent plus. Ils lui doivent quelque chose. » [N. T.].

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