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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008

 

ARTIGO

 

O desafio da clínica na atenção psicossocial

 

The challenge of the clinic in the psychosocial attention

 

 

Doris Luz Rinaldi; Daniela Costa Bursztyn

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A reforma psiquiátrica, ao colocar em questão a hegemonia do saber médico-psiquiátrico sobre o tratamento das psicoses e neuroses graves na assistência pública, abriu espaço para a construção de novas formas de abordar o sofrimento psíquico, por meio da conjugação de diferentes saberes e práticas. Este trabalho aborda os impasses e os desafios da prática clínica desenvolvida no campo da saúde mental, em particular nos novos serviços criados a partir da reforma psiquiátrica brasileira, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Procuramos analisar o lugar da clínica no conjunto das ações institucionais, levando em conta a pluralidade de dispositivos clínicos presentes no cotidiano da atenção psicossocial, em que destacamos o dispositivo médico – psiquiátrico –, os dispositivos de atenção psicossocial trazidos pela reforma e o dispositivo psicanalítico.

Palavras-chave: Atenção psicossocial; Psicanálise; Clínica do sujeito.


ABSTRACT

The psychiatric reform, in placing the issue of hegemony of the medical-psychiatric knowledge in treating severe psychosis and neurosis suffering in the public assistance, has opened space to the building of knew forms of psychic suffering though the relating of different knowledge and practices. This work approaches the stalemate and challenges of the clinical practice developed in the field of mental health, in particular to the new services created from the Brazilian Psychiatric Reform, as the “Centers of Psychosocial Attention” (CAPs). We have tried to analyze the place of the clinic along with the institutional actions, taking into account the plurality of clinical devices which are present in the psychosocial attention daily-life where we highlight the medical psychiatric device of attention brought by the reform and the psychoanalytical device.

Keywords: Psychosocial attention; Psychoanalisis; Clinical of subject.


 

 

A desconstrução da excludente ordem manicomial e a concomitante construção de novas formas de lidar com a loucura constituem um trabalho permanente de crítica ao paradigma médico-psiquiátrico e ao modelo asilar de tratamento da loucura que a aprisiona ao saber médico sob a forma de “doença mental”. No Brasil, esse trabalho de transformação se desenvolveu em direção à proposta de uma reforma psiquiátrica, com a discussão do Projeto de Lei nº 3657/89 ampliada na virada do século com a aprovação da Lei nº 10.216, ocasionando o aparecimento de novos serviços que reformulam a assistência em saúde mental.

Ao problematizar a hegemonia do saber médico no tratamento da loucura, a reforma psiquiátrica abriu espaço para a construção de novas formas de abordar o sofrimento psíquico, propondo um trabalho multidisciplinar que reformule o antigo formato de assistência e que reoriente a prática clínica nos serviços públicos de saúde. Nesse cenário, a luta pela cidadaniado louco constitui-se como a principal bandeira da reforma, dando a este movimento um caráter político que orienta as reformulações, seja no âmbito das instituições e das políticas públicas, seja no âmbito da clínica propriamente dita. O campo da atenção psicossocial é atualmente marcado por diferentes orientações, desde aquelas que, oriundas da psiquiatria democrática italiana, privilegiam a dimensão política propondo uma supressão da clínica em prol do cuidado, até aquelas que retomam a clínica, seja incorporando os procedimentos de atenção psicossocial passando a designá-la como clínica ampliada, seja como clínica do sujeito, em que se faz notar a presença do discurso psicanalítico.

A existência de novos dispositivos de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), no entanto, ainda convive com o antigo paradigma hospitalocêntrico e manicomial, desafiando-o na perspectiva de uma assistência psicossocial e na reinvenção de uma prática clínica manejada por diferentes profissionais. Se os asilos ainda permanecem em número elevado como depósitos de casos de exclusão e abandono, a expansão de uma nova rede de cuidados representa um processo de transformação dos modos tradicionais de lidar com a loucura, que não se resume à desospitalização e à criação social e administrativa de novos serviços, mas implica, sobretudo, a articulação de diferentes saberes e práticas presentes no campo da atenção psicossocial.

Neste artigo, pretendemos discutir os procedimentos clínicos que se realizam atualmente nos CAPs, levando em conta a pluralidade de discursos que atravessam o cotidiano da atenção psicossocial, em que destacamos o dispositivo médico-psiquiátrico redimensionado, os dispositivos de atenção psicossocial trazidos pela reforma, que privilegiam a reabilitação psicossocial, e o dispositivo psicanalítico, que sustenta uma clínica que visa o sujeito do inconsciente. É importante assinalar que privilegiaremos na discussão a inserção do dispositivo médico-psiquiátrico nesse novo contexto não manicomial e as contribuições do dispositivo psicanalítico para o trabalho em equipe multidisciplinar.

 

A clínica na atenção psicossocial

Ao tomarmos a clínica que se desenvolve nos CAPs como objeto de pesquisa1, devemos inicialmente destacar a importância do saber médico na origem da própria noção de clínica. Na vida do homem moderno, o discurso médico ocupa um lugar determinante, pois fundado na ciência, promete a saúde como forma de salvação ainda que reconheça o inevitável da morte. A doença é abordada de forma objetiva e dissociada da existência do sujeito como um conjunto de sintomas e signos a ser decifrado pelo saber médico. Na psiquiatria, primeira “medicina especial”, essa dissociação está presente na própria definição de doença mental (RINALDI, 1998, p. 104), que transforma a loucura em objeto de uma terapêutica, separando-a do homem, seja para relegá-la ao universo da desrazão, seja para reduzi-la a um distúrbio orgânico.

A descoberta freudiana do inconsciente e a construção de um novo campo de saber – a psicanálise – subvertem, entretanto, a dissociação promovida pela ordem médica, dando à “clínica” um novo sentido, a partir da suposição da existência de uma razão inconsciente e de uma implicação do sujeito em seu sintoma2. Ao retomar a relação entre a problemática da doença e a existência do sujeito, a reforma psiquiátrica empreendeu uma crítica à concepção médica de clínica em que se pode perceber a influência das formulações da psicanálise, ainda que estas não tenham sido decisivas para a conformação deste novo campo, marcado fortemente pela política, por meio da luta pela cidadania do louco e da preocupação com a reabilitação psicossocial.

A clínica que hoje se desenvolve no campo da saúde mental não se confunde mais com a clínica psiquiátrica strictu sensu, incluindo os procedimentos de atenção psicossocial e incorporando a dimensão do sujeito. É pelo viés do sujeito que consideramos fundamental a contribuição do discurso psicanalítico aos dispositivos3 clínicos que hoje se desenvolvem nos novos serviços de atenção psicossocial, contribuição possibilitada pelo engajamento de psicanalistas nas instituições públicas e pela discussão permanente sobre a clínica.

 

Os dispositivos clínicos dos CAPs

A partir dos dados extraídos na pesquisa “Clínica do sujeito e atenção psicossocial: novos dispositivos de cuidado no campo da saúde mental”4, procuramos analisar o lugar da clínica no conjunto das ações institucionais, assim como discutir as diferentes abordagens clínicas em jogo no trabalho dos CAPs.

A investigação que realizamos tomou como premissa metodológica a orientação de Freud (1912-1990) de que, em psicanálise, a clínica é o solo privilegiado da pesquisa. Partindo desse princípio, acompanhamos as atividades clínicas dos CAPs selecionados por meio da imersão dos pesquisadores por cerca de sete meses nos serviços, em que participaram ativamente de algumas atividades clínicas, colocaram-se como observadores em uma série de outras atividades, participaram de reuniões de equipe e assembléias gerais, além de realizarem entrevistas abertas com a maior parte dos profissionais, e também com alguns usuários e familiares.

De saída, podemos indicar a diversidade de sentidos atribuídos à categoria clínica neste campo, em que ela surge freqüentemente adjetivada como clínica ampliada, clínica do sujeito, clínica do encontro, clínica no coletivo ou clínica do cotidiano.

Para avançar nessa discussão, não podemos deixar de levar em conta, entretanto, a importância que o discurso médico ainda ocupa na configuração desses serviços. A forma como pacientes, familiares e membros da equipe se relacionam com esse discurso no cotidiano dos CAPs – seja por meio da forte demanda de tratamento medicamentoso por parte dos usuários e seus familiares, seja pelas intervenções terapêuticas de controle de psicotrópicos levadas a efeito por parte da equipe, ou ainda das dificuldades encontradas no trabalho clínico quando da eventual ausência de psiquiatras nos serviços – evidencia a importância do saber médico no imaginário de todos aqueles envolvidos nas atividades dos CAPs. Não raro, notamos evidentes resquícios de práticas hospitalares e ambulatoriais que fazem do atendimento médico um capítulo à parte do resto do trabalho dos CAPs. Em um dos CAPs pesquisados, um paciente intrigado com a ausência do médico no serviço dirigia à equipe seu pedido de medicação sob a seguinte exclamação: “A psiquiatria que me inventou, me viciou!”. Essa afirmativa denuncia certa tensão em torno da função da clínica médica nos novos serviços, entre a força da tradição, que confere ao saber médico um poder desmedido enraizado no imaginário social, e as tentativas de redimensioná-lo para um trabalho em equipe. Se alguns psiquiatras reproduzem o modelo ambulatorial de atendimento no contexto dos CAPs sem maiores problemas, outros, por sua vez, vêm interrogando sua inserção nesse novo formato de assistência, em que as práticas multidisciplinares ganham proeminência. Convém salientar que este questionamento é partilhado com profissionais de outras formações que compõem a equipe na tentativa de construção de uma prática clínica que incorpore ofertas terapêuticas variadas.

Alguns profissionais médicos se queixam do excesso de atendimentos individuais para prescrição medicamentosa, comparando-os ao modelo de atendimento ambulatorial em que a sobrecarga de trabalho que devem absorver provoca soluções como a redução do tempo de consulta, o que não é sem conseqüências para o trabalho clínico, burocratizando o atendimento e transformando-o em uma prática repetitiva de reprodução de “receitas”. Na nova concepção de clínica introduzida pela reforma, isto seria teoricamente inadmissível, pois o atendimento médico deveria estar integrado à dinâmica do serviço, baseada em um trabalho em equipe multidisciplinar. Entretanto, na prática, isto nem sempre ocorre, em virtude de dificuldades dos próprios médicos e da equipe, assim como em decorrência das demandas da população assistida. Qual seria, então, o lugar do médico nos CAPs?

Esses questionamentos indicam a dimensão do desafio de se construir um outro modo de fazer operar a clínica nestes serviços, que reoriente a clínica médica e inclua outros dispositivos clínicos, como os dispositivos de atenção psicossocial e o dispositivo psicanalítico, a partir de um trabalho em equipe. Se a reforma psiquiátrica se instituiu como uma crítica à hegemonia do discurso médico-psiquiátrico na abordagem da chamada “loucura”, isto não significa, contudo, que o saber médico não seja importante ou mesmo imprescindível nessa clínica. Não se trata, portanto, de dispensar saberes, mas de discutir sob que forma discursiva eles se sustentam. Por isso, tornou-se pertinente reformularmos as perguntas referidas acima, apresentadas pela equipe de um dos CAPs pesquisados, para interrogarmos: Qual o lugar do discurso médico nos CAPs?

Podemos dizer que o discurso médico se aproxima do que Lacan (1969-1992) designou, em sua teoria sobre os quatros discursos, como discurso do mestre, uma vez que o saber está no médico que toma o outro a quem se dirige (o paciente) como objeto, a partir de sua caracterização como portador de uma doença. Como dissemos, ele separa o homem de sua “doença”, desconsiderando qualquer interpretação subjetiva que o paciente possa ter sobre o que lhe ocorre. O poder do discurso médico está justamente em nomear a doença, pelo diagnóstico, propor uma terapêutica e apresentar uma perspectiva de cura. Com isso, ele atribui sentido a uma série de estados enigmáticos, puro não-senso, que provocam sofrimento. Ao fazer afirmações do tipo: “Você está deprimido e a depressão é uma doença” ou “Você tem transtorno bipolar e nós vamos tratá-lo”, ele contribui para reduzir a angústia de pacientes e familiares. Seu poder advém, sobretudo, das respostas que ele pode apresentar, mas é também aí que se revela sua impotência quando, diante dos enigmas da psicose – a grande maioria da população que freqüenta os CAPs é de psicóticos –, ele se vê na iminência de não ter respostas a dar ou de reduzir sua intervenção a “compensar” os pacientes.

Os psiquiatras que aceitam o desafio de trabalhar em CAPs de alguma forma estão advertidos quanto às dificuldades que essa clínica impõe e à necessidade de um trabalho que conjugue diferentes saberes. Diferindo da tendência reducionista da psiquiatria biológica, os médicos – neurologistas e psiquiatras – inseridos no campo da saúde mental sustentam a abordagem e a construção de um caso clínico a partir de aspectos amplos e complexos que envolvem o cotidiano do serviço e de seus pacientes. Neste cenário, a investigação diagnóstica de uma psicopatologia vem sendo alinhada a uma prática clínica que leve em conta “uma lógica que busca o sujeito, que reúne os sintomas e os contextos sociais diversos”, como definido por um psiquiatra entrevistado em um dos CAPs pesquisados.

A análise das entrevistas realizadas com os médicos dos CAPs evidencia o questionamento de sua posição e de suas dificuldades diante do contato e da construção de um caso orientados sob uma nova lógica de tratamento. Sua atividade específica consiste fundamentalmente na prescrição de psicofármacos, prescrição essa que deve ser feita levando em conta o discurso do paciente dirigido ao médico, principal via de abordagem para o diagnóstico e para o manejo do tratamento, já que a investigação dos fenômenos psicopatológicos está conjugada ao que é apreendido pela via do discurso. No cotidiano de sua prática clínica nos CAPs, os psiquiatras apostam, cada vez mais, na responsabilidade que cada paciente, juntamente com seus familiares, devem assumir diante do uso e do controle de sua medicação ao longo do tratamento, sendo esta uma das maneiras possíveis de descentralizar o poder do discurso médico, redimensionando-o para um trabalho de articulação entre o saber médico e outros saberes, recolhidos das falas do paciente e dos demais técnicos que dele se ocupam. Se, por um lado, a tendência da psiquiatria neurobiológica visa, cada vez mais, reduzir a atividade dos psiquiatras a uma lógica de prescrição de psicofármacos para regulação de diversos mecanismos neuronais alterados nos portadores de transtornos mentais, por outro, a inserção de psiquiatras no campo da atenção psicossocial vem inaugurando uma nova proposta de fazer operar a clínica de modo a que possa considerar os fatores subjetivos do adoecimento, assim como os elementos psicossociais presentes na construção e na condução de cada caso. Sob essa nova lógica, alguns médicos vêm se ocupando de seus pacientes nas oficinas terapêuticas, tentando, como revelado por outro psiquiatra dos CAPs,“encontrar sua clínica, para não enrijecer sua prática”com condutas estritamente prescritivas e medicamentosas.

Mas como conjugar perspectivas e abordagens diferentes na efetivação desta nova clínica? Nas discussões que se realizam neste espaço coletivo, dois dispositivos vêm se destacando como importantes para o desenvolvimento de um trabalho em equipe. São eles os dispositivos do técnico de referência e da supervisão.

Quanto ao técnico de referência, trata-se de uma função introduzida pela reforma que ainda está cercada de muitas dúvidas e perguntas sobre a melhor forma de exercê-la. Encontramos, ao longo da pesquisa nos CAPs, diferentes modos de concebê-la e de implementá-la, pois os profissionais referidos a esta função não se restringem aos fundamentos de uma formação profissional específica, mas à proposta de uma prática multidisciplinar. Na análise que fizemos, contudo, observamos a sua importância no desenvolvimento do trabalho clínico, principalmente quando aparece definida a partir do vínculo que se estabelece entre técnicos e paciente. Nesta concepção, a função do técnico de referência não é apenas a de atender o sujeito na recepção do serviço, mas a de efetivamente acompanhá-lo em seu projeto terapêutico. Na perspectiva da psicanálise, o vínculo é lido a partir do conceito de transferência, instrumento imprescindível à realização da clínica.

Em alguns dos CAPs pesquisados, notamos que o dispositivo do técnico de referência tem assumido um papel clínico fundamental ao diluir a referência única dirigida ao saber médico, possibilitando, como efeito, a construção de novos modos de operar a clínica. Em um deles, no intuito de problematizar o lugar da medicação no conjunto do tratamento, a equipe propôs uma articulação entre técnico de referência e médico, por meio de reuniões com os pacientes comuns, para que estes possam tomar a palavra, abordando diversos temas e/ou apresentando suas dúvidas em relação à própria medicação.

As soluções clínico-institucionais que se desenrolam no cotidiano desses serviços indicam, portanto, a necessidade de interlocução entre profissionais orientados por diferentes saberes que circulam nesse campo. Sem negligenciar a importância do saber médico e, tampouco, do saber produzido pelo discurso da cidadania trazido pela reforma, o técnico de referência assume o desafio de construir um viés clínico que considere a demanda apresentada por cada paciente, no estabelecimento de um projeto terapêutico.

Contudo, diante da pluralidade de formações que compõe o quadro de profissionais nesses serviços, de que discurso se retira os referenciais que possibilitam a articulação deste trabalho? A aposta que vem sendo lançada se dirige ao plano de um trabalho em equipe provocado nos encontros de supervisão.

Nesse contexto, acompanhamos as reuniões de supervisão de alguns CAPs, cujos supervisores psicanalistas orientam a discussão de casos clínicos e de questões institucionais. Cabe ressaltar que as intervenções realizadas pelos supervisores não buscam exclusivamente a prática de uma clínica analítica stricto sensu nesses serviços, mas, atravessados pelos referenciais analíticos, esses supervisores sustentam uma prática que tome o sujeito e suas escolhas como o eixo de um trabalho clínico. Orientado pelo discurso do analista, o psicanalista realiza o seu trabalho “entre muitos”5.

Neste ponto, queremos ressaltar que o discurso do analista é também um dos discursos destacados por Lacan (1969-1992) em sua teoria dos quatro discursos, já referida anteriormente. Para Lacan, além de sustentar um laço social específico, esse discurso tem também uma outra função, que é a de promover a circulação dos discursos. Ao contrário do discurso do mestre, que parte do Um que ordena, o discurso do analista parte da falta desse UM, pois sua efetividade depende da sustentação pelo analista de um lugar vazio – de um nada– de onde se dirige a um sujeito para que ele se produza nos intervalos de seu discurso. Para isso, o analista deve colocar seu saber em reserva6, oferecendo uma escuta aberta ao imprevisível da fala de um sujeito convocado ao trabalho, seja na análise com cada sujeito, seja na discussão em equipe na instituição.

No trabalho propriamente clínico que se desenvolve na instituição, nas reuniões de equipe e nas parcerias entre membros da equipe, esse vazio, entretanto, não pode ser sustentado por um só, mas depende de cada um, um por um, na medida em que cada um deve tomá-lo não como sinal de impotência, mas como causa de desejo que o coloca a trabalhar. A referência a este vazio, enquanto não-saber que orienta o trabalho, é particularmente benéfica para o trabalho em equipe, permitindo escapar dos efeitos imaginários que estão presentes em todo coletivo, porque o não-saber coloca todos os membros da equipe em uma posição de humildade em relação à clínica, melhor dizendo, em uma “posição de aprendizado e de pesquisa”(ZENONI, 2000, p. 20) em relação à clínica. Para além das hierarquias existentes na instituição, o momento da reunião clínica deve ser a oportunidade de enfrentar os impasses e os desafios que a própria clínica coloca a todos, seja qual for a formação de cada um, em que se possa tomar a palavra e sustentá-la a partir de um lugar específico. Não se trata apenas de interlocução, mas de um trabalho em que se enfrenta o real da clínica, a partir da posição de cada um no caso clínico em discussão e da dificuldade com que cada membro da equipe se depara em sua prática. Coordenar este trabalho parece ser o principal desafio dos supervisores que tomam como referência ética e clínica o discurso do analista.

 

O papel da supervisão no trabalho clínico nos CAPs

Como vimos em alguns dos CAPs pesquisados, a presença de supervisores psicanalistas vem reconfigurando o trabalho em equipe, ao possibilitar a circulação dos discursos nas reuniões de equipe, tendo em vista a construção de uma prática clínica que se funda na escuta como ferramenta imprescindível para o tratamento e toma o sujeito como eixo central de seu trabalho.

Trazendo outro exemplo da pesquisa, observamos em um dos CAPs a criação de um espaço de trabalho clínico no lugar da espera da consulta com o psiquiatra, em que se verificou a importância da escuta dos pacientes que conviviam aguardando “o doutor”. Ao reunirem esses pacientes, dois profissionais formaram um encontro de discussão de temas livres, em que pacientes e familiares associam livremente alguns acontecimentos relacionados ao tratamento, à dinâmica familiar e social, indicando, sobretudo, uma direção para o seu tratamento. Com isso, podemos reconhecer a importância do discurso analítico na articulação com as propostas e diretrizes de cuidado em saúde mental, principalmente ao despertar na equipe o interesse pela palavra do sujeito na condução de um trabalho clínico.

A contribuição do discurso psicanalítico aos dispositivos clínicos que hoje se desenvolvem nos novos serviços de assistência em saúde mental vem sendo possibilitada, assim, pela discussão permanente sobre a clínica que se reinventa a partir dos atravessamentos da instituição e dos discursos que circulam nesse espaço. Ao levar em conta “o que os pacientes falam” nas oficinas e na convivência provocada pela dinâmica do serviço, esta nova clínica não apenas revela a sua dimensão política, mas abre espaço para que se considere o dizer e a escolha do sujeito, para além das discussões institucionais, como indicativo para a direção do tratamento.

Nas discussões fomentadas pelo dispositivo da supervisão, é possível combinar a clínica com a lógica institucional, uma vez que a supervisão pode articular aspectos importantes como equipe, serviço e discussão clínica. Se aliados os determinantes clínico e institucional, a discussão indispensável de um caso clínico direcionará a equipe a formular ofertas institucionais que sustentem o sujeito na manutenção de seu desejo. Se isoladas, as discussões limitam-se às dificuldades burocráticas, à organização de eventos culturais e entretenimento, à insuficiência de recursos, entre outras limitações práticas que excluem o sujeito e a possibilidade de uma discussão clínica.

Nesse sentido, a supervisão vem operando como dispositivo central e como eixo do trabalho clínico em alguns CAPs, sustentando mais uma aposta no sujeito do desejo, na interlocução com os coordenadores do serviço e com os profissionais que se ocupam dos pacientes. Além disso, esse dispositivo é capaz de produzir a elaboração a posteriori das produções de fala dos sujeitos nas intervenções de quem os escuta, tal como dos efeitos de uma prática em que várias orientações profissionais se articulam na dinâmica institucional sob uma direção clínica comum.

O relato de um médico psiquiatra sobre os encontros de supervisão pareceu-nos elucidativo: “Eu acho que o trabalho de supervisor é o trabalho de analista – mesmo para os supervisores que não são psicanalistas –, ou seja, aquele que ouve e convoca, mais do que alguém que orienta, alguém que explica o que é pra fazer ou o que não é pra fazer”.Nessa direção, a contribuição do discurso psicanalítico vem se fazendo sem a reivindicação de uma especialidade, mas produzindo maior implicação dos técnicos nos dispositivos clínicos a serem reinventados a cada novo caso que os convoque a um trabalho terapêutico. Ainda que as tensões imaginárias dos “especialismos” compareçam na dinâmica do serviço, é na posição de aprendizes da clínica que os profissionais de diversas formações são convocados a contribuírem na direção de um trabalho clínico partilhado entre várias orientações.

Enquanto a pergunta Qual o lugar do médico nos CAPs? não cessa de ecoar no trabalho em equipe desses serviços, essa questão não se desvia de um posicionamento discursivo fundamental para qualquer profissional que se ocupe do trabalho clínico nos CAPs. Ainda que para alguns profissionais médicos a expectativa de não obter respostas para tal pergunta caracterize a prática clínica nos CAPs como algo insustentável, que os impede de avançar na condução de um trabalho na atenção psicossocial, para outros esse questionamento vem criando condições para que o saber médico lance suas contribuições, seja na relação individual com o paciente ou pelo agenciamento do próprio espaço coletivo como dispositivo clínico para cada paciente. Afinal, é em torno de questionamentos como esse que a proposta de aprendizes da clínica deve movimentar-se, não delimitando a priori “o que se deve fazer pelo paciente”, mas aprendendo com ele “o que pode ser feito” na direção de um tratamento.

A contribuição do discurso analítico encontra-se na possibilidade de convocar a equipe a uma posição de aprender em relação à clínica, a partir de um esvaziamento dos saberes prévios que possibilite perceber as indicações que o próprio paciente dá para o seu tratamento. Esta é, aliás, uma recomendação de Freud, quando diz que cada caso deve ser tomado como se fosse o primeiro e que o analista deve esquecer o que sabe para poder escutar. Desse modo, ainda que os profissionais não “saibam” medir previamente os efeitos de suas intervenções, ou como inseri-las no cotidiano do serviço, essas dúvidas podem apresentar-se como proposta de um trabalho em equipe que ocasiona sempre novas descobertas sobre a clínica que se realiza nos CAPs.

A construção de um saber sobre a clínica, a partir do que cada técnico faz e não do que cada profissional sabe, é um dos desafios do trabalho clínico na atenção psicossocial. Nessa direção, os supervisores psicanalistas ocupam-se da condução de casos clínicos procurando perceber o percurso que cada paciente indica para o seu tratamento, sustentando, com isso, a aposta de que há ali um sujeito e seu desejo, que pode emergir como resultado do trabalho clínico. Ao contrário de uma postura moral que tem em seu horizonte um ideal de cura como ideal de bem, e que parte de modelos prévios sobre o que é melhor para o paciente, a ética da psicanálise dirige-se ao sujeito na sua diferença radical para que ele mesmo trace o caminho possível para a sustentação do seu desejo e de seu lugar no mundo.

 

REFERÊNCIAS

DI CIACCIA, A. A prática entre vários. In: LIMA, M.; ALTOÉ, S. Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: ______. Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1912-1990.        [ Links ]

______. Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XVII. O sentido dos sintomas. In: ______. Obras psicológicas completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1917-1990.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Variantes do tratamento padrão. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1955-1998.        [ Links ]

______. Seminário XVII. In: ______. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE, 1969-1992.        [ Links ]

RINALDI, Doris. A ordem médica: a loucura como “doença mental”. Em Pauta, Rio de Janeiro, n. 13, jul.-dez. 1998.

ZENONI, A. Psicanálise e instituição – a segunda clínica de Lacan. Abrecampos, Belo Horizonte, ano 1, n. 0, jun. 2000.

 

 

Endereço para correspondência

Doris Luz Rinaldi
E-mail:doris_rinaldi@yahoo.com.br

Daniela Costa Bursztyn
E-mail:daniela@lb.com.br

 

 

Recebido em: 17/02/2008
Aprovado em: 28/07/2008
Revisado em: 19/08/2008

 

 

1 A pesquisa atualmente se desenvolve em três Centros de Atenção Psicossocial do município do Rio de Janeiro.
2 Ver Freud (1917-1990).
3 Entendemos como dispositivo clínico o conjunto de mecanismos, orientados a partir de um determinado campo de saber, que implicam determinadas posições neste campo e se dispõem a um determinado fim no cenário clínico.
4 Pesquisa desenvolvida no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) desde outubro de 2003, sob a coordenação da profª drª Doris Luz Rinaldi, cujo objetivo se volta à análise dos discursos e práticas vigentes nos novos dispositivos de assistência à saúde mental, criados a partir da reforma psiquiátrica.
5 Esta expressão é retirada da noção introduzida por psicanalistas europeus – pratique à plusieurs –para caracterizar a sustentação do dispositivo analítico na instituição pública de saúde mental, em especial aquelas dirigidas a crianças autistas e psicóticas (DI CIACCIA, 2005). Neste texto, atribuímo-lhe um sentido mais amplo, ao nos referirmos ao trabalho do psicanalista em meio a profissionais de diversas formações na instituição.
6 Ver Lacan (1955-1998).

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