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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008

 

ARTIGO

 

Loucura e razão: produzindo classes interativas

 

Madness and reason: Producing interactive classes

 

 

Andrea Cristina ScisleskiI; Cleci MaraschinII

IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe a discussão de algumas configurações atuais da loucura, revisitando, em um primeiro momento, as idéias de Ian Hacking para pensar este modo de existência como efeito operativo de uma matriz que constitui classificações e categorias sociais interativas. Em um segundo momento, a discussão incorpora as problematizações de Michel Foucault, especialmente aquelas apresentadas em seu livro clássico intitulado A história da loucura na Idade Clássica, para pensar os deslocamentos na matriz que constituem a idéia de loucura. O trabalho de Foucault revela não uma linearidade dos discursos sobre a loucura, mas descontinuidades que conformam e legitimam formas de existência, que são classificadas como adequadas ou não em relação a um determinado regime de verdade. Neste artigo, busca-se pensar criticamente as próprias práticas e referenciais em direção às possibilidades de promover inserções menos estanques e menos determinísticas. Insiste-se que a prática classificatória, tal como a dos diagnósticos psi, não interage somente com os classificados, mas reverbera as limitações do próprio trabalho dos agentes classificadores.

Palavras-chave: História da loucura; Matriz social; Classes interativas.


ABSTRACT

The article proposes a discussion of some present configurations of madness, reviewing, in the first moment, the ideas of Ian Hacking, in order to think this existence mode as an operative effect of a matrix that constitutes social interactive classification and categories. In a second moment, the discussion incorporates Michel Foucault's problematizations, especially those presented in his classical book, The history of madness in the Classical Age, aiming to think the displacements in the matrix that makes the idea of madness. Foucault's work does not display a linearity of speeches about madness, but otherwise shows discontinuities that conform and legitimate existence's forms, that are classified as suitable or not, depending on the truth regime. The authors discuss critically the madness classification practices and referentials, searching for possibilities to promote less rigid and deterministic insertions. We emphasize that the classificatory practice, as the psychological and psychiatrical diagnoses, does not only interact with the ones classified, but also reverberate the limitations of the work of its own classifier agents.

Keywords: History of madness; Social matrix; Interactive classes.


 

 

Introdução: Fazendo Classes, Produzindo Pessoas

Para os gregos, o louco era considerado um portador de mensagens cifradas dos deuses, que necessitavam de uma interpretação, podendo a loucura ser concebida tanto como a expressão de um dom ou de uma graça como a de um castigo. Na Idade Média, o louco era visto, por vezes, como um “eleito de Deus” ou também como um “signo da possessão pelo demônio”. Estas diferentes concepções instituíam práticas e modos de relacionamento que variavam entre a caridade e o castigo (PALOMBINI, 2003). A discussão sobre a idéia de “louco” como “doente mental” pode ser apoiada no fato de que a relação loucura-doença nem sempre existiu da forma como existe hoje. Para Hacking (2001), o que tomamos como algo naturalizado poderia ter acontecido de outro modo, caso as configurações constitutivas fossem outras. Pensar as vias pelas quais os objetos e os sentidos se constituem implica levarmos em consideração o conceito de matriz: “as idéias não existem no vazio. Habitam um marco social. Vamos chamá-lo a matriz no interior da qual se forma uma idéia, um conceito ou classe” (HACKING, 2001, p. 33).

O que aqui nos interessa não é tanto retomar a historicidade da loucura desde os gregos até nossos dias, mas marcar que as descontinuidades são relativas à transformação nas próprias matrizes no interior das quais essas idéias se constituem e tomam vida. Trata-se, portanto, de um enfoque dinâmico, mais do que semântico.

A matriz pode ser pensada como matriz sociotécnica, já que ela se configura na interligação de elementos heterogêneos, tendo uma função produtiva, constitutiva. No caso, a matriz que forma a idéia de “jovens usuários de drogas” ou de “loucos” é composta por um complexo de instituições, de práticas de diagnóstico, de decisões judiciais, de notícias veiculadas nos meios de comunicação de massa, de técnicas terapêuticas. As classificações em sua matriz adquirem importância no social. A aquisição de determinadas categorizações possibilita acesso aos distintos elementos sociotécnicos que compõem a matriz. Ser “cidadão” ou ser “psicólogo” não se refere apenas a um título, mas ao acesso a uma rede sociotécnica correspondente.

Quando as possibilidades de classificação em diferentes matrizes são muito restritas, existe um efeito que pode parecer paradoxal: uma categorização como “deficiente” ou “jovem em vulnerabilidade social” pode se transformar em uma chave para acessar programas governamentais, projetos em Organizações Não Governamentais (ONGs), entre outros. Em casos ainda mais restritos, nos quais as classificações parecem remeter mais a limitações do que a acessos, dependendo das circunstâncias de vida das pessoas, essas classificações podem ser fontes de viabilidades – tal é o caso de muitas famílias que obtêm, por meio de medidas judiciais, a internação de seus filhos em hospitais psiquiátricos.

As classificações como “louco” ou “dependente químico” não se referem a um sujeito individual, mas a uma categoria de pessoas, ao mecanismo dessa classificação e à matriz dentro da qual funciona esse mecanismo. O “louco” também não é somente uma classe de pessoas – é uma entidade psiquiátrica e uma entidade legal – usada por comissões, serviços de saúde mental, trabalhadores das áreas psi, ativistas e loucos.

Certamente as categorias ou classes produzem efeitos subjetivos. Para Hacking (2001), as pessoas aprendem as características que necessitam desenvolver para se adequar a determinadas classes que lhes parecem favoráveis, evitando e/ou resistindo às desfavoráveis. O que leva o autor a postular que “pode ter sentido dizer que os próprios indivíduos e suas experiências são construídos dentro de matrizes” (HACKING, 2001, p. 33). Essa constatação possibilita pensar que existem categorias que não são indiferentes às matrizes classificatórias, categorias essas que agem diante das classificações, denominando-as de classes interativas. Os “loucos” e suas experiências de si são transformados quando classificados. O que está aqui em jogo não é apenas o processo de classificação, mas a aparente inevitabilidade desse processo. Assim, nesse procedimento, “as próprias pessoas ficam afetadas pela classificação e o mesmo indivíduo é socialmente construído como certa classe de pessoa” (HACKING, 2001, p. 34), podendo ou não reagir à mesma. O autor faz questão de enfatizar que seu conceito de interatividade não qualifica as pessoas classificadas em determinada categoria (uma vez que qualquer ser vivo é interativo), mas qualifica classes, ou seja, as classes é que podem influenciar aquilo que classificam.

Um ponto interessante para nossa reflexão é que, segundo Hacking, a consciência dos “doentes mentais” ou dos “loucos” a respeito das classificações que lhes individualizam não é necessariamente pessoal, mas coletiva. Os loucos, como indivíduos, podem desconhecer como são classificados, e nem mesmo reagir à classificação. Certamente não estão impossibilitados de fazê-lo, mas “a interação ocorre na matriz mais ampla de instituições e práticas que rodeiam essa classificação” (HACKING, 2001, p. 173), o que permite pensar que as classificações diagnósticas podem repercutir nas pessoas classificadas, nas instituições envolvidas, em seus processos e em suas práticas. Tal é o caso na prática da internação psiquiátrica (SCISLESKI; MARASCHIN; SILVA, 2008), ou mesmo da possibilidade de abertura do enclausuramento da loucura decorrente dos avanços da contenção química (“loucos bem medicados não são perigosos”).

A matriz no interior da qual se gesta a idéia do louco trata, então, dos indivíduos que “cabem” nessa idéia, da interação entre a idéia e a pessoa, das múltiplas práticas sociais e institucionais que essas interações implicam.

Nosso intuito a seguir é apontar alguns deslocamentos na operatividade da matriz no interior da qual se gestou a classe do “louco” e mais recentemente do “doente mental”. Tomamos a genealogia de Foucault (2000), para tentar perseguir alguns dos desdobramentos da operatividade dessa matriz que, segundo este autor, se faz na produção concomitante de loucura e de razão.

Da Loucura à Psiquiatria: Discursos e Práticas Produzindo Classes

No decorrer do livro A história da loucura na Idade Clássica, Foucault (2000) deixa transparecer movimentos que promovem os processos de classificação perante a construção de uma razão e do seu duplo, a loucura. O autor apresenta vários episódios em diversas épocas da constituição da modernidade que abordam a gestação da loucura como desrazão, como anormalidade e posteriormente como doença mental, na qual seu nascimento expressa o surgimento de uma patologia e de uma psiquiatria. O que queremos destacar aqui é que, ao seguir o caminho da descontinuidade das configurações das práticas da loucura, podemos encontrar patamares de continuidades – as classes – que incidem predominantemente em determinadas configurações de experiência de sujeitos, como classe social, pobreza, hábitos.

Foucault (1982a) fala também sobre as transformações pelas quais passa o espaço hospitalar. Na Idade Média, por exemplo, a medicina ainda não era exercida como uma prática hospitalar, pois o hospital destinava-se a ser um lugar para morrer e não para tratar e curar. Os próprios leprosários carregavam consigo a lógica da exclusão, advinda das práticas de isolamento. A loucura emerge como uma configuração que segue esta descontinuidade lógica, da morte e da lepra, passando a ser, diferentemente da lepra que era considerada uma depredação do corpo, um desmantelamento da alma, do espírito e da mente.

Além de afastado do espaço social, o louco também foi analisado como um ser desprovido da capacidade de pensamento e raciocínio. Justamente em uma época em que o Iluminismo começa a se impor como vertente paradigmática, a loucura passa também a ser alvo de atenção.  É nesse momento, quando o homem trancafiou a loucura em nome da lógica racional, que ele também se alienou de si mesmo, em um crescente recrudescimento das instituições modernas às quais progressivamente as sociedades ocidentais se submetiam.

As concepções terapêuticas a respeito do louco denunciam a criação de um saber que se está constituindo sobre determinada “natureza da loucura”. Ou seja, forja-se uma idéia de substância para a loucura – como vemos hoje na busca de uma explicação essencialmente genética, por exemplo ─, mas tal concepção encoberta algumas configurações sociais que são tidas como patológicas, tal como atualmente o consumo de drogas. Dessa forma, esse saber sobre a loucura se legitima e se consolida como prática de regulação social e, simultaneamente, como prática científica (GARCIA, 2007).

O próprio internamento ilustra o intuito de controle social pela via da exclusão, no momento em que retira de circulação grande parte da população marginalizada, especialmente os loucos. De modo concomitante, medidas políticas e jurídicas vão sendo ampliadas, como o assistencialismo, principalmente no âmbito do Estado; o aparecimento de leis como norma de regulação social; o próprio esvaziamento dos leprosários e o surgimento do hospital. Além disso, pela instauração da urbanização na Idade Moderna iniciada pelos pequenos burgos da Europa, a medicina pôde ocupar um lugar na construção de um saber, em virtude de somar seu conhecimento ao aspecto da salubridade dos espaços de circulação social (FOUCAULT, 1982a). Ao morto, por exemplo, era dado outro esquadrinhamento urbano, com a criação do cemitério, destinando assim, espaços físicos para os vivos e para os mortos. O pobre também era colocado em local separado no esquema de ocupação do espaço, pois não compartilhava o mesmo território do rico, passando a habitar a vila e a periferia da cidade.

Como fruto destes movimentos de higienização urbana e de racionalidade civilizatória, na perspectiva de organizar os lugares e os corpos em territórios adequados à racionalidade, surge o hospício, no século XVIII, como produto e espaço do exercício do saber sobre a loucura – esta, progressivamente, instituindo-se e legitimando-se como doença mental. Na medida em que a loucura é tomada como doença, o saber médico consolida-se como um conhecimento científico, soberano e verdadeiro diante da loucura. 

O trabalho de Foucault sobre a loucura (2000; 1984) revela a presença de uma matriz sociotécnica que conforma, delimita e agrega elementos que compõem uma lógica classificatória sobre um determinado objeto de conhecimento. Do surgimento da idéia de anormalidade até a idéia de doença mental houve transformações nos elementos e na operatividade da matriz geradora. Ao mesmo tempo que reúne certas características para produzir um objeto específico, a matriz sociotécnica moderna e ocidental constrói sua própria legitimidade por meio de instituições e de práticas de transformação de si. Uma vez que cria a categoria “loucura”, a lógica posta nessa classe concerne a práticas e a formas de produzir doenças e de governar a conduta das pessoas.

Como mostra Foucault (2000), em seu método genealógico a loucura é uma classe que foi construída historicamente; contudo, nela não preexiste uma relação de inevitabilidade lógica, mas, sim, histórica e matricial.

Tecendo Idéias

No âmbito da ciência e do cotidiano, deparamo-nos com a operatividade de matrizes que agregam saberes, práticas e instituições que produzem, legitimam ou interditam formas de existência e subjetividades. Freqüentemente consideramos leis probabilísticas como determinísticas. Tomamos os comportamentos muito prováveis como normais, aos quais tentamos nos enquadrar e nos adequar, fazendo prevalecer uma forma de conduta a ser exercida, tendo por fim um determinado padrão em nossas formas de ser. Baseados nessas relações de assimilação, fazemos classificações de o que seria adequado e incorporamos essas atitudes, fazendo-nos normais (HACKING, 2001).

As práticas normativas geram conhecimentos que se colocam a serviço do controle social.  Por isto é possível estabelecer classes de estilos de raciocínio, de modos de vida que podem tanto resistir, criar, como reproduzir e moldar pessoas. Estas classificações implicam  circunstâncias que transformam e conduzem profundamente o que decidimos fazer, quem tratamos de ser e o que pensamos de nós mesmos. Desse modo, não somente desenvolvemos um determinado conhecimento sobre as pessoas, mas também criamos várias classes de modos de existência e nos autoproduzimos nesse processo.

Dentro da lógica classificatória, as inserções e exclusões de seres em determinadas categorias produzem não só objetos, mas processos, formas de sistematizações classificatórias, legalidades, instituições. Se, por um lado, não há como escapar ao pensamento classificatório, existem formas de lhe fazer resistência.

As categorias nas quais nos incluímos nos dão algum tipo de reconhecimento social, de espaço vital.  No caso da loucura, o foco da lógica classificatória aponta para sua diferença, sua excentricidade em relação aos modos de existência, de pensamento e de expressão tidos como típicos ou normais. O espaço vital e social constituído a um louco difere do constituído a um não louco.  Dessa maneira, espaço vital também é assimilado como uma conseqüência individual. Ser pobre e ser adicto passam a ser decorrência de ser louco. A loucura é seguidamente tomada como produção individual, e os indícios que apontam para pensar a loucura para além do âmbito individual – como os fatores de marginalidade social – são colocados em segundo plano, quando chegam a ser levados em consideração na elaboração das classificações de diagnósticos.

A equivalência entre probabilidade-determinismo e sujeito-espaço vital são operações que acarretam normatização e individualismo. Além disso, devemos acrescentar o caráter autoprodutivo da criação de classes. O sujeito que classifica se torna também refém de suas categorizações e, para permanecer em alguma delas (as mais convenientes), necessita inventar diferentes mecanismos de restrições, regulando passagens e impedimentos, isto é, toda uma legalidade regulatória de fronteiras e de passagens que garanta a conservação da distinção entre as classes. O conhecimento que produzimos também nos produz e diz o que somos e o que nos tornamos como sujeitos. Nossas perguntas e respostas, talvez, muito mais do que garantir certezas ou mesmo provocar questionamentos, apontam para os limites do nosso conhecimento. E é dentro dele que consideramos o que pode ou não ser pensável, legítimo e válido.

Quando Classificar É Configurar Caminhos Recorrentes

O Manual de Classificação Internacional de Doenças (CID-10) (OMS, 1999), específico para Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, apresenta um vasto conjunto de psicopatologias nas quais a categorização fenomenológica dos sintomas pode ser, com certa facilidade, aplicável a diversas pessoas em muitos momentos da vida. No instante em que os diagnósticos são corporificados, definindo “casos”, passam também a identificar classes, produzindo, ao mesmo tempo, a direção de tratamento terapêutico, o delineamento de prescrições comportamentais, medicamentosas e a elaboração de políticas públicas tanto curativas quanto profiláticas. Além de construir sentidos sobre a experiência subjetiva, transversalizando os demais aspectos do viver pela doença, a classificação produz no social uma rede de tecnologias e instituições que passam a configurar realidades.

A recorrência das classificações revela e reforça processos consensuais, tornando não visíveis os embates e as tensões em jogo. Um caso clássico e representativo dos impasses que apontam dificuldade de um consenso sobre a questão das classificações diagnósticas é o de Pierre Rivière, um jovem francês que mata a mãe, a irmã e o irmão degolando-os no século XIX na França, abordado por Michel Foucault (1982b) em um livro cujo título é Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio no século XIX. O caso gera uma ampla polêmica entre a Medicina e o Direito, de modo que alguns médicos classificam o jovem como doente mental e outros, não; e os juízes, por seu turno, não sabem que sentença determinar, uma vez que não há um consenso sobre sua situação, permanecendo em aberto se o ato foi realizado por um criminoso ou por um doente mental.

Castel (1982) no mesmo livro dedica um capítulo que aborda o problema de classificação entre esses dois núcleos de saberes: seria Pierre louco ou culpado? Dependendo da resposta a essa pergunta, o jovem seria levado à prisão ou ao manicômio. Entretanto, Castel (1982) assinala que, neste caso, o que está em jogo são as formas de como uma configuração entre os saberes acarreta uma intervenção – jurídica penal e médica – de maneira a manter as exigências de uma ordem pública e social. A tomada de decisão por uma classificação pode servir de padrão recorrente para decisões ulteriores. Isso explicaria a incidência de identidade entre os diagnósticos, que reforçariam práticas terapêuticas e políticas públicas, constituindo um ciclo recursivo que age reforçando a classificação, criando sujeitos e práticas de tratamento.

Desse modo, as conseqüências produzidas na relação entre quem classifica e quem é classificado se materializam em formas de subjetivações. Isto é, em última instância, produzimos e somos produzidos em categorias que denunciam formas de existir no mundo.

Fazer classes é também uma forma de produção subjetiva. O que queremos dizer, por meio da ilustração dos diagnósticos com os quais nos deparamos no cotidiano das práticas psi, é que tanto os profissionais de saúde quanto os pacientes também são pertencentes a categorizações; essas, por sua vez, produzem não apenas possibilidades subjetivas, mas também formas de reconhecimento social. Ou seja, de acordo com as classificações disponíveis, inserimo-nos em determinados grupos que, de uma maneira ou de outra, interatuam conosco – as classes interativas, na acepção de Hacking –, seja para acolher ou para excluir, por exemplo.

A questão que se impõe é, portanto, não a de evitar as classificações, mas de possibilitar que essas nos permitam ampliar os espaços de existência em diversas experiências do próprio viver, e não aprisionar a vida a uma experiência reducionista. No caso de práticas com a dimensão de uma intervenção rigorosa, como é o caso da internação psiquiátrica, por exemplo, há a produção tanto da possibilidade de um estigma – atrelado à concepção de loucura – como da possibilidade de um questionamento diante das suas próprias experiências, sendo que, neste último aspecto, existe a potencialidade de um redirecionamento e de uma reconfiguração de sentidos à vida desses sujeitos.

Considerações Finais

A noção de matriz do filósofo Ian Hacking possibilita compreender a construção de classificações e categorias sociais como efeitos da operatividade de redes sociotécnicas. Tal é o caso da idéia de “louco”. A partir do trabalho de Michel Foucault, observamos como a loucura se constitui, privilegiadamente, como um objeto de saber e de práticas psiquiátricas e psicológicas, conservando-se também como foco de controle e de regulação social, a matriz que sustenta a idéia de loucura.

A relação entre a doença mental e a experiência crítica da loucura perante a idéia de razão é problematizada em Foucault, principalmente por meio das constantes tentativas de aprisionamento da experiência da loucura pelo saber racional. Tal é o caso da transformação da dimensão outrora trágica da loucura naquilo que hoje se configura como doença mental, tornado objeto de saber e de prática da Psiquiatria e da Psicologia – tese central desenvolvida pelo autor no livro História da loucura na Idade Clássica. Este movimento de focalização na doença e não na experiência trágica se intensifica atualmente na medida em que o espectro dos diagnósticos se expande, abarcando novas sintomatologias características do que é considerado como doença mental. As contribuições de Hacking na exploração dos mecanismos dos processos classificatórios tornam-se relevantes para um questionamento e para uma elaboração crítica sobre as formas classificatórias na contemporaneidade.

Destacamos a relevância de Foucault e de Hacking para uma reflexão sobre as práticas contemporâneas da Psicologia, posto que ambos, em suas discussões, afrouxam as amarras de um pensamento calcado em pressupostos positivistas que reivindicam o estatuto de uma cientificidade absoluta. A atualidade crítica desses autores explicita os efeitos que se dão, simultaneamente, nas subjetividades individuais e no corpo social, por meio dos processos de classificação e de categorização de pessoas, enfatizando a artificialização presente nesses procedimentos cotidianos, tomados freqüentemente como naturais.

Desnaturalizar essas categorias nos permite o exercício de um posicionamento ético ante nossas próprias práticas e nossos próprios referenciais. Esta desnaturalização possibilita ainda uma reflexão crítica que conjuga uma responsabilidade política com o próprio fazer. Se, por um lado, não há como viver a vida em uma sociedade como a nossa sem que haja processos de assujeitamento e sem que nos enquadremos em determinadas categorias sociais, por outro lado, podemos buscar e promover inserções menos estanques e menos deterministas. Este exercício pode potencializar produções coletivas, tensionando com as formas hegemônicas de viver e de categorizar o viver.

 

REFERÊNCIAS

CASTEL, R. Os médicos e os juízes. In: FOUCAULT, M. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1982.        [ Links ]

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982a.        [ Links ]

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PALOMBINI, A. Das mãos de Deus aos avatares da ciência: o estigma da diferença. In: MARASCHIN, C.; FREITAS, L. B. L.; CARVALHO, D. C. Psicologia e Educação: multiversos sentidos, olhares e experiências. Porto Alegre: UFRGS, 2003.        [ Links ]

SCISLESKI, A. C. C.; MARASCHIN, C.; Silva, R. N. A. Manicômio em circuito: os percursos dos jovens e a internação psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, p. 342-352, 2008.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Andrea Cristina Scisleski
E-mail:ascisleski@yahoo.com.br

Cleci Maraschin
E-mail:clecimar@orion.ufrgs.br

 

 

Recebido em: 24/09/2007
Aprovado em: 26/12/2007
Revisado em: 15/09/2008

 

 

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