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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008

 

ARTIGO

 

Jogos teatrais e fracasso escolar: uma proposta de intervenção clínica e pedagógica sob orientação psicanalítica

 

Theatrical games and school failure: A proposal of clinical and pedagogical intervention under psychoanalytical orientation

 

 

Ana Lydia Santiago; Libéria Neves

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa-intervenção clínica e pedagógica, realizada junto a crianças em situação de fracasso escolar. A partir das queixas de dificuldades de aprendizagem identificadas pelos docentes, elaborou-se um programa de vivências semanais, por meio do uso de jogos teatrais, para o período de um ano. Objetivou-se, na escolha dos jogos, a estimulação das funções cognitivas envolvidas nos processos de aprendizagem – o que caracteriza a intervenção pedagógica. Para isso, visou-se abordar questões relativas à subjetividade das crianças participantes em relação às suas dificuldades escolares – o que caracteriza a intervenção clínica. A análise do material e dos efeitos da intervenção pautou-se na contribuição da psicanálise. Foi possível verificar que o uso de jogos teatrais, no âmbito da educação, pode se configurar como uma prática pedagógica e terapêutica do fracasso escolar. Este trabalho descreve um dos seis casos estudados.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Teatro; Jogos teatrais; Subjetividade; Fracasso escolar.


ABSTRACT

This works presents the partial results of a clinical and pedagogical  research-intervention carried out with children in a situation of school failure.  Based on the complaints of learning difficulties identified by the teaching staff, a program of weekly meetings using theatrical games was elaborated for a period of one year. In choosing the games, the stimulation of cognitive functions involved in the learning processes was prioritized – which characterizes a pedagogical intervention. In addition issues concerning the participant children’s subjectivity in relation to their school difficulties were also approached – which characterizes a clinical intervention. The analysis of the material and of the intervention effects was based on the psychoanalysis contribution. It was possible to verify that the use of the theatrical games in the education scope may represent a pedagogical and therapeutical practice for school failure. The present work describes one of the six cases studied.

Keywords: Psychoanalysis; Education; Theatre, Theatrical games; Subjectivity; School failure.


 

 

1. Preâmbulo

O que se pode definir como inclusão? Talvez um processo bilateral em que as pessoas ainda excluídas e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidade para todos. Quem necessita ser incluído hoje, no Brasil? As pessoas em condições desfavoráveis em relação às demais: as pessoas discriminadas, as pessoas com deficiências, as pessoas sem oportunidades, os analfabetos, os diferentes. A escola é o espaço onde, muitas vezes, as diferenças são ressaltadas, sobretudo, na rede de ensino público, espaço que atualmente abriga a diversidade.

Conta-se, no Brasil, com um sistema educacional amparado por uma legislação que pretende a educação para todos, independentemente de raça, cor, condição socioeconômica e limitações. No entanto, inúmeras são as limitações e diferenças evidenciadas na escola, culminando em diagnósticos de fracasso escolar, tão estigmatizantes, para as crianças e jovens, e tão excludentes.

Constata-se uma gama de possibilidades referentes a práticas pedagógicas que visam à inclusão ou reinclusão de alunos com sintomas escolares indesejáveis ao sistema educacional. O presente artigo refere-se à descrição de um estudo de caso oriundo da prática realizada a partir de uma demanda de tratamento psicopedagógico, vinculada a seis crianças, encaminhadas pela rede pública de ensino, sob a queixa de dificuldades de aprendizagem e distúrbios de comportamento, que culminavam no diagnóstico de fracasso escolar.

Utilizou-se a linguagem do teatro, por meio da vivência de jogos teatrais, com objetivos pedagógicos e conseqüentes efeitos subjetivos, que permitiram às crianças elaborar algumas questões, por intermédio da linguagem; tais questões, por vezes, eram responsáveis por seus sintomas pedagógicos e geravam situações de exclusão dentro da escola, da família, da comunidade.

Passar-se-á à breve descrição da gênese e processo do trabalho, às reflexões e conclusões amparadas pela teoria psicanalítica.

 

2. O Texto

Já há algum tempo as autoras deste artigo vêm realizando algumas práticas referentes à utilização do teatro sob uma perspectiva terapêutica e pedagógica, a partir da construção da hipótese da vivência do teatro produzir efeitos sobre os sintomas dos sujeitos participantes. A observação de catarses1 e associações2 (e suas conseqüências) mostravam-se perceptíveis, quando da vivência dos exercícios por parte dos alunos, em aulas de teatro. Tal observação foi, muitas vezes, confirmada em alguns depoimentos em relação às experiências nos jogos teatrais. Além disso, com relação aos pais de alunos menores, pôde-se constatar um discurso recorrente, afirmando uma visível melhora no desempenho escolar de seus filhos, observada após a iniciativa de freqüentar um curso de teatro .

Diante disso, foi possível formular algumas perguntas. Seria, então, a vivência dos jogos teatrais responsável pelo desenvolvimento e estimulação de habilidades físicas e intelectuais, capazes de ampliar o desempenho das funções cognitivas? Seria, também, o espaço dos jogos teatrais um espaço de subjetivação onde a oferta da palavra (além da palavra corporal e musical) pudesse promover efeitos catárticos e associativos, caracterizando uma atividade terapêutica em si? Seria o local do responsável pela ministração dos jogos teatrais um local de transferência especificamente distinto dos demais, ocupados pelos pais, professores ou outros participantes da vida das crianças? Poderiam, então, os jogos teatrais serem utilizados pelos espaços educativos, no intuito de promover efeitos positivos em crianças apresentando distúrbios de comportamento e dificuldades na aprendizagem que culminam no excludente diagnóstico de fracasso escolar?

Diante dessas questões e constatações, decidiu-se realizar um trabalho de aplicação de jogos teatrais junto a um grupo de crianças em situação de fracasso escolar. Para tal, utilizou-se de uma demanda existente em um dos projetos sociais desenvolvidos na cidade de XXXX: crianças apresentando queixas escolares, encaminhadas pelas escolas onde estudavam, para atendimento psicoterapêutico e psicopedagógico.

Seis meninas com idades entre 7 e 11 anos, selecionadas e denominadas por certa profissional da instituição como “as piorzinhas”, foram apresentadas, juntamente com suas mães. Estas concordaram e autorizaram a participação das crianças no trabalho que seria semanal durante um ano; e que este estaria vinculado a uma pesquisa, a ser posteriormente divulgada, preservando-se a identidade das crianças e demais envolvidos.

 

3. Primeiro Ato

O trabalho foi desenvolvido dentro de uma estrutura de pesquisa qualitativa, apoiada em uma estrutura de pesquisa participante, voltada e preparada para a realização de estudo de casos descritivo e observacional. Uma autora e pesquisadora teve participação direta com as crianças como responsável pela elaboração e condução das atividades durante os encontros.  A outra autora e pesquisadora participou como orientadora e supervisora no processo e na análise dos resultados.

Pode-se explicitar a organização do trabalho a partir das seguintes fases:

Fase 1 - Levantamento das hipóteses

Fase 2 - Acolhimento da demanda encaminhada

Fase 3 - Histórico dos casos a partir de entrevistas com as crianças, suas mães ou responsáveis, e com suas educadoras escolares

Fase 4 - Vivência dos jogos
4.a - Seleção, preparação e aplicação dos jogos teatrais, a partir das queixas pedagógicas apresentadas e vinculadas às observações das pesquisadoras
4.b - Observações e registros dos jogos teatrais: observação e registro, por meio de fotos, filmagens e gravações, das vivências dos jogos teatrais

Fase 5 - Segunda fase de entrevistas realizadas com as crianças e mães ou responsáveis

Fase 6 - Seleção e aplicação de jogos (alguns novos e outros já vivenciados na Fase 4)

Fase 7 - Terceira fase de entrevistas realizadas (sujeitos da Fase 3)

Fase 8 - Análise dos dados. Registro e descrição das observações realizadas a partir das Fases 3 a 7. Acompanhamento dos casos para verificar os possíveis efeitos das vivências dos jogos teatrais sobre os sujeitos, a partir da comparação dos resultados apresentados na vida escolar.

Durante todos os encontros, realizaram-se atividades de vivências de jogos teatrais durante cerca de uma hora, precedidos de uma atividade de conversação, em roda, de caráter introdutório, e complementados por mais uma atividade de conversação como encerramento, de caráter conclusivo.

* 1ª etapa: Conversa inicial (duração em torno de 30min): roda inicial, em que cada criança expunha os fatos ocorridos durante a semana (em casa, na escola, no lazer), suas novidades, suas sensações e seus aprendizados. Essa conversa também significava um momento de observação dos temas e comentários trazidos pelas crianças, os quais, percebendo-se a necessidade, muitas vezes, eram trabalhados nos jogos durante aquele encontro.

* 2ª etapa: Vivência dos jogos (duração em torno de uma hora): as atividades coletivas eram vivenciadas pelas crianças a partir de seus interesses, de modo que elas optavam por participar ou não, havendo a possibilidade de escolherem apenas assistir, o que raramente aconteceu.
Os jogos foram escolhidos e/ou elaborados previamente a partir das demandas apresentadas e das queixas oriundas das entrevistas com os sujeitos da Fase 3, no intuito de se trabalharem as demandas pedagógicas das crianças: dificuldades de leitura e escrita, de concentração, de atenção, de realizar cálculos. Muitas vezes, esses jogos foram embasados nas verbalizações surgidas nas conversas iniciais, ou seja, muitas das atividades foram escolhidas durante o encontro.

* 3ª etapa: Conversa final (duração em torno de 10 min): verbalizaram-se os sentimentos vivenciados durante cada encontro: o de que gostou, ou não, e as razões.

Os casos estudados tratam de crianças encaminhadas devido a constatações em seus processos de aprendizagem e/ou na relação com colegas e educadores, caracterizadas como inadequadas. Algumas dessas crianças apresentavam sintomas relacionados à dificuldade de apreensão de conhecimentos (às vezes específicos, às vezes generalizados) e outras apresentavam sintomas relacionados ao comportamento perante estabelecimentos escolares.

Tais queixas, muitas vezes, foram endossadas pelas mães e responsáveis, e até mesmo ampliadas com outras queixas e observações em relação às crianças, em seus ambientes familiares. E, ao se ouvirem as crianças, ao início do processo, registraram-se discursos confirmando as falas das escolas e das famílias.

Entretanto, no decorrer desse período, o que se pôde perceber foi grande disponibilidade das crianças em participarem dos desafios propostos nos jogos teatrais, conquistas diárias no reconhecimento de suas próprias habilidades, e a verbalização de suas experiências, sentimentos e angústias, por meio de seus personagens. Ao final do ano letivo, essas crianças demonstraram resultados escolares satisfatórios e, em alguns casos, surpreendentes. Objetiva-se, nesse artigo, apresentar o trabalho realizado bem como as conclusões construídas a partir de sua análise. Para tal, optou-se pela apresentação de um dos casos (apresentando dificuldade de aprendizagem generalizada) o qual será descrito a seguir.

 

4. Segundo Ato

 

4.1. Caso Antígona3

Idade: 10 anos.
Escolaridade: 4ª série do ensino fundamental (em curso)

 

4.1.1. Investigação da situação de fracasso escolar

Pergunta dirigida à mãe e à educadora: “Qual é a queixa escolar em relação à criança?”.

Mãe: “Antígona não aprende nada na escola. A professora falou que ela é muito fraca. Mudou ela de sala para uma sala pior. Eu não sei o que é que eu faço. Eu brigo com ela, bato nela, ponho de castigo. O médico falou que ela tá muito magra. Eu não tenho tempo, eu tenho que trabalhar, tenho que cuidar do meu filho. E ela mente muito. Não faz o dever de casa e fala que fez, fala que não teve prova, mente demais.”.

Educadora: “Apresenta dificuldades em todas as disciplinas, mas não dá trabalho de comportamento, é quietinha e fica na primeira carteira. O problema é a mãe; que vem aqui brigar todo dia, humilha a menina na frente de todo mundo, morre de medo da menina tomar bomba e perder a pensão do pai biológico. A menina é tratada como uma fonte de renda. Quando não é a mãe que vem (à escola), é a avó ou a irmã gêmea. Aliás, nós conversávamoscom ela(a tia, irmã gêmea da mãe) achando que era a mãe, elas nunca contaram que eram duas pessoas diferentes. Uma loucura! Coitada da menina! E o pior é que este ano ela vai tomar bomba, não tem jeito de ir pra 5ª série desse jeito. E a menina mente pra mãe e fala que a culpa é nossa, que estamos pegando no pé dela, pra a mãe vir aqui brigar. Nessas horas ela é muito espertinha.”.

 

4.1.2. Investigação da dificuldade (sintoma) do sujeito

Pergunta dirigida à criança: “Por que você foi indicada para este trabalho?”.

 Antígona: “Não sei. Eu acho que é porque eu tenho dificuldade na escola e passei pra sala mais fraca. Meus colegas falaram que quem vai na psicóloga é doido. Mas eu acho que tá legal, tem um monte de menina, a gente brinca, faz teatro. A mulher do meu pai não deixa ele me ver e o neném dela morreu; aí ela fala que por desaforo eu vou morrer também. Um dia quando eu tinha um ano eu comi Racumim (veneno para ratos), eu quase morri. A minha mãe gosta mais do meu irmão que de mim.”.

 

4.1.3. Investigação da história da criança

Construção a partir das entrevistas e observações das pesquisadoras.

Antígona é filha única do primeiro casamento de seus pais. Hoje, vive com a mãe, o padrasto (de quem parece gostar bastante) e seu irmão mais novo.

Convive com a história de que seu pai biológico não a aceita, e que sua atual esposa a repudia. A mãe parece não ter condições de ajudar no desenvolvimento escolar e parece não cuidar dos aspectos físicos da criança. Recentemente, levada ao médico, o diagnóstico revelou desnutrição. O irmão, pelo contrário, é uma criança saudável e muito forte, de quem a mãe parece cuidar com todo o zelo. A menina divide seu dormitório (a sala de sua casa) com o mesmo. O padrasto, muitas vezes, leva ou busca Antígona nos encontros e sempre diz que a mãe vai enlouquecer a menina. Antígona parece se isolar do mundo externo e fala, tanto da sua situação na escola quanto de sua história familiar, como se estivesse narrando algo que não lhe pertence, apresentando sempre um tom descomprometido com sua história e um sorriso engessado.

A família (que soma oito pessoas – mãe, padrasto, irmão, irmã de sua mãe, irmã do padrasto, cunhado do padrasto e dois sobrinhos do padrasto) sobrevive com a pensão alimentícia paga pelo seu pai biológico. A mãe deposita na criança a responsabilidade de administrar o dinheiro em prol do sustento da casa. A criança se preocupa com a alimentação da casa, contas de água e luz, e parece não viver uma infância apenas com responsabilidades escolares.

Antígona queixa-se da ausência de ajuda em casa para realizar as tarefas escolares, pois o padrasto e mãe não concluíram a 4ª série do ensino fundamental e o irmão tem apenas 4 anos de idade.

As mães das demais crianças do grupo, em reunião, reforçaram diante da mãe de Antígonasua desatenção em relação à filha. Consideraram que vive em função de não perder o marido, constantemente ameaçando ter que ir embora sozinho para outra cidade em busca de trabalho, pois “o dinheiro da Antígona”não estava dando. A chantagem do padrasto culmina no aumento de cobrança da mãe sobre a criança, que se via responsabilizada por tudo, chegando a se sentir responsável pelas dificuldades de toda a família. Concluíram que Antígona, em função da responsabilidade do sustento da família, não tinha tempo de ser criança, nem de se dedicar ou interessar pelas atividades escolares, faltando-lhe apoio e sossego.

 

4.1.4. Descrição do comportamento do sujeito no grupo

Antígona demonstra extrema baixa estima, porém se sente aceita e valorizada no grupo. Propõe, ajuda, pondera, descobre, ensina, harmoniza. Aparenta uma menina carente de amor e cuidados. Apresenta baixo peso, fraqueza, freqüentes tombos e tropeços, dores no corpo (principalmente no abdômen) e um desejo enorme de brincar, encontrar as meninas e participar de tudo. Nunca falta aos encontros, é a primeira a chegar e sempre reclama que estes sejam tão curtos. Sempre sugere a ampliação dos dias de encontro na semana e cobra cada minuto perdido por algum atraso do início das atividades. Afirma que sua mãe a ameaça de retirá-la do grupo quando necessita controlar seu comportamento.

Com freqüência não sabe dizer quais os conteúdos que aprende na escola e apresenta conceito Regular em todas as disciplinas. Entretanto, durante os encontros, lê e escreve com facilidade, realiza cálculos, raciocina com velocidade, criatividade e sagacidade. Parece viver de maneira contraditória, apresentando atuações completamente distintas nos dois ambientes: o familiar e escolar, e o ambiente do grupo de trabalho .

Quando perguntada, no grupo, sobre o que mais gosta na escola, responde “da merenda”; e com relação à sua maior dificuldade, responde “Português.”

 

4.1.5. Descrição da atuação do sujeito ─ Antígona em alguns jogos

Foram aplicadas dezenas de jogos com finalidades pedagógicas sem, no entanto, descartar a manifestação subjetiva presente nos mesmos. Entre os vários jogos vivenciados pelas crianças ao longo do processo, no que se refere a Antígona, descrever-se-ão alguns daqueles que melhor expressam dados da subjetividade e que parecem se relacionar com os problemas escolares.

Jogo A: Vamos às compras

Objetivos: este jogo foi aplicado logo ao início do processo com o grupo, no intuito de verificar e trabalhar a leitura, a coordenação na escrita numérica, os cálculos matemáticos, as noções de quantidade e valor monetário.

Descrição: as crianças confeccionaram notas de papel contendo os valores de 1, 5, 10, 50 e 100 reais, distribuídas igualmente entre as mesmas. Em seguida, foram apresentados os produtos que estariam à venda num mercadinho imaginário; estes deveriam ser analisados pelas compradoras, e elas deveriam planejar o quanto investir naqueles que desejariam adquirir. Foram oferecidos: chocolate, sapato, carro, viagem, irmão, cachorro, saúde, família, livro, carne, amor, entre outros.

Antígonaconcluiu rapidamente sobre o objeto de seu desejo. Ao ser oferecido o produto viagem, investiu ansiosa e imediatamente todo o seu dinheiro para não correr o risco de perder a compra para outro participante.

Manifestou-se sorridente e vibrante, satisfeita com a aquisição. Ao longo da atividade pôde-se perceber claramente uma mudança de sua expressão indicando frustração com sua escolha. E, no momento da conversação final, quando todas foram conferir suas compras, Antígona se manifesta: “Posso trocar ou devolver a viagem? Eu não quero mais. Eu não tenho para onde ir, eu não sei para onde eu vou”.

Observações: percebeu-se que Antígona não apresentou dificuldades em ler o nome dos produtos, nem tampouco apresentou dificuldades em realizar os cálculos matemáticos. São claramente expressas suas relações de valor e também a plena noção da representação do dinheiro no cotidiano. Entretanto, sua manifestação, juntamente com suas falas, revelaram um momento de possível conflito entre o incômodo com uma situação real e o desconhecimento ou a impotência diante de sua necessidade de encontrar uma saída para lidar com tal situação .

Jogo B: Criação de bonecas

Objetivos: este jogo de criação de personagem e improvisação foi aplicado no intuito de trabalhar a criatividade, a expressão verbal, habilidades pictóricas e a coordenação motora fina, na confecção de adereços para as bonecas.

Descrição: foram disponibilizados: cartolina, novelo de lã, cola, tesoura, fita, papéis coloridos diversos, canetas hidrográficas e giz de cera.

As crianças deveriam confeccionar uma boneca e criar uma história para ela: definindo nome, ocupação, como seria, e em quais aspectos ela se parece com sua criadora. Em seguida fariam uma apresentação cênica das personagens criadas.

Antígona foi a que demorou mais tempo para confeccionar sua personagem. Repetia várias vezes que ela ia ficar linda! Caprichou o máximo que pôde e, ao final, não se mostrou satisfeita com a obra. Foi então a última a se manifestar, apresentando uma boneca feita de cores escuras e com várias (16) bolas vermelhas pelas partes do corpo. Disse desapontada: “Ah! É uma bruxa! Se chama Dezesseis Olhos, ela é má e eu não gosto dela. Não se parece nada comigo”.

Foi tudo o que falou, expressando no rosto o mesmo sorriso engessado, observado quando falava de suas dificuldades na escolaNão quis levar a personagem para casa (como fizeram as demais crianças) e pediu que a jogassem fora em algum lugar.

Observações: Antígona não apresentou dificuldades na confecção da boneca, utilizando muitos recursos plásticos e apresentando boa coordenação motora. Mas percebeu-se uma dificuldade na criação da história da personagem e precariedade na verbalização das características atribuídas à mesma. Houve uma empolgação, seguida de uma decepção com o que o produto de sua participação lhe revelara.

Apesar de não ter sido verbalizado por Antígona, cabe ressaltar que são oito pessoas compondo seu grupo familiar e que vivem sob dependência de sua pensão alimentícia. Talvez se possa associar esse detalhe ao nome que escolheu para nomear sua personagem (bruxa): “Dezesseis Olhos”.

Jogo C: Construindo um clown

Objetivos: este é um jogo cênico circense, também de criação de personagem e improvisação, aplicado no intuito de trabalhar a criatividade, a expressão verbal, a noção corporal, vocal e espacial. E ainda promover a auto-estima. Clown é uma palavra inglesa que quer dizer rústico, rude, torpe; quem, como um palhaço, faz o público rir ao encarnar traços de criaturas fantásticas que exprimem o lado irracional do homem: o instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós; uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. Para as “Artes Cênicas”, a construção de um Clown passa mais por um processo de descoberta do que de criação. Significa um processo de auto-investigação da sua própria ludicidade e sua identificação com os seres fantásticos, habitantes do imaginário.

Descrição: Para essa atividade, foram disponibilizados adereços (nariz de palhaço, lenços, chapéus e toucas), balões, pincéis e maquiagens. E, estimuladas pelo som de músicas circenses, as crianças deveriam se pintar como palhaço, à maneira que quisessem, sozinhas ou solicitando ajuda, escolherem adereços e assim se transformarem nesse personagem. Em seguida deveriam se apresentar no picadeiro de maneira exagerada, anunciando-se como a mais importante atração do circo e contarem sua história (como foram parar no circo).

Antígona manifestou grande interesse na atividade. Pulou, dançou, brincou, enfeitou-se toda com muitas cores e adereços, e realizou demorada apresentação sem o menor constrangimento: “Senhoras e Senhores! Pedimos muita atenção! Pois vamos apresentar a maior atração da noite! Eu! A palhaça Lili!... Eu resolvi ser palhaça quando minha mãe me deixou aqui no circo. Eu comecei a fazer muita palhaçada, fiz muito sucesso e ganhei um montão de dinheiro... Eu gosto muito de ser palhaça...”.

Ficou tanto tempo em sua apresentação que as demais reivindicaram sua finalização para que também pudessem se apresentar. Foi então que Antígona encerrou seu discurso, mas continuou no clima da personagem, do circo, da brincadeira. Decidiu, como as demais, ir embora para casa sem tirar a maquiagem.

Nesse dia, o padrasto de Antígona veio buscá-la acompanhado do filho. Entrou na sala e dirigiu-se à pesquisadora sem reparar o evidente entusiasmo de sua enteada. Disse diante dela do descaso de sua mãe e de seu pai biológico, e do desinteresse da menina pela escola. Enquanto se tentava interrompê-lo e os acompanhava até a porta, sugerindo aquela conversa em outro momento, não foi possível deixar de notar Antígona, com o costumeiro sorriso engessado no rosto, desmanchar a maquiagem com um pedaço de papel, ficando totalmente borrada.

Observações: Antígona não apresentou dificuldade em construir o seu Clown. Muito menos em apresentar-se enquanto tal. Entretanto, pôde-se registrar novamente uma empolgação seguida de uma decepção, dessa vez oriunda da tomada de consciência dos fatos de sua realidade.

Jogo D: Jogo dos bastões

Objetivos: este é um jogo utilizado para estimular a coordenação motora, o desenvolvimento da concentração mediante o exercício da atenção concentrada e difusa, o raciocínio lógico-matemático, memória e linguagem. E ainda promover a autoconfiança.

Descrição: foi formada uma roda entre as crianças, contendo no círculo a pesquisadora e um bastão de madeira de 1 metro de comprimento. O bastão era jogado para a criança, que deveria segurá-lo com apenas uma das mãos e devolvê-lo da mesma maneira à pessoa do centro da roda.

Na segunda rodada a criança deveria, simultaneamente, além de devolver o bastão para o centro da roda, obedecer a alguns comandos: emitir uma palavra iniciada por uma letra solicitada; ou descrever quantas sílabas existiam em uma palavra pronunciada pela pessoa do centro da roda; ou responder o resultado de uma operação simples de soma, subtração, multiplicação ou divisão. Devia assim manter a atenção na coordenação motora e na resposta.

Antígona hesitou em participar e reagiu com nervosismo e medo diante da atividade. Repetia inúmeras vezes que não era capaz de conseguir e que não queria tentar. Ao perceber a participação das demais, decidiu experimentar e se tornou a mais habilidosa participante do jogo, tanto no aspecto motor quanto às demandas de palavras e de operações numéricas.

Observações: Antígona apresentou inicialmente uma impotência e a certeza de sua incapacidade diante do solicitado: exercitar os raciocínios escolares e desempenhar uma atividade vinculada, também, ao seu potencial intelectual, uma vez que vive a história de uma constatação de fracasso escolar .

Entretanto, apresentou nesse jogo, pela primeira vez, a iniciativa de experimentar romper com esse desafio. A percepção de seu desempenho trouxe-lhe certa segurança que contribuiu para seu sucesso em posteriores jogos similares.

Jogo E: Vendas nos olhos

Objetivos: este jogo é adaptado de uma brincadeira tradicional, apesar de pouco praticada pelas crianças atualmente. Foi aplicado no intuito de ampliar a noção e estimular a exploração espacial, além de trabalhar o equilíbrio, a concentração e a confiança.

Descrição: metade das crianças deveria se manter com os olhos vendados, enquanto a outra metade deveria guiá-las pelo salão, ajudando-as a se desviarem de obstáculos (cadeiras, mesa, sapatos) inseridos propositalmente no espaço. Após alguns momentos, os grupos se revezariam na atividade.

Antígona inicialmente fugiu da atividade. Depois aceitou a proposta de participar, sob a condição de ser guiada pela pesquisadora. Agarrando-se fortemente em suas mãos, manifestou muito medo durante a atividade. Ao final, aceitou ser guiada por outra criança, apesar de não ter superado seu medo.

Observações: Antígona não apresentou dificuldade espacial, quando guiada, demonstrando perceber a aproximação das paredes nos momentos certos. Também demonstrou percepção e respeito ao ritmo das outras crianças que foram por ela guiadas, conduzindo-as de maneira tranqüila e sem tropeços .

Também neste jogo, Antígona enfrentou o medo e percebeu que era capaz de confiar em si e no outro e de desempenhar algumas práticas inicialmente analisadas como quase impossíveis de serem realizadas.

Em data posterior, as crianças solicitaram que o mesmo jogo fosse vivenciado novamente. Antígona, dessa vez, participou prontamente da atividade, sem hesitação e com divertimento.

 

4.1.6. Breve análise dos efeitos dos jogos teatrais no sujeito

A partir dos processos de investigação através das entrevistas e dos registros e observações de Antígona na atuação nos jogos teatrais propostos (sobretudo os que foram descritos), pôde-se realizar algumas análises e expor algumas considerações. Para entender os resultados apresentados neste caso, deve-se percebê-lo em três etapas distintas.

A primeira, englobando o primeiro trimestre do trabalho, durante o qual Antígona se apresenta como uma criança que demonstra muito entusiasmo em todas as atividades, geralmente seguido de uma frustração com os resultados que produz .

Vimos, por exemplo, no jogo “Vamos às compras”, a demonstração desseentusiasmo manifesto na compra de uma viagem e uma solução pouco satisfatória para ela, uma vez que Antígona não sabia o que fazer com esse “objeto”. Também pôde-se observar essa repetição no jogo de construção de uma boneca/personagem,momento em que Antígona se manifesta empolgada com a possibilidade de produzir o que foi solicitado e, em seguida, novamente apresenta uma frustração com o produto dessa construção.

Portanto, essa primeira etapa caracteriza um momento em que ela não vê possibilidades, não vê saídas e expressa um desânimo em face do que está pela frente no jogo. E o mesmo parece ocorrer em relação a sua situação escolar e sua situação familiar. Portanto, nesse primeiro trimestre, caracteriza-se como uma criança insatisfeita com o produto de seu trabalho.

Na segunda etapa, que engloba o segundo trimestre do trabalho, ocorre uma mudança subjetiva importante, pois Antígona consegue encerrar suas participações de maneira eufórica e satisfatória diante de sua produção, marcando uma nova etapa no processo. Inicia a saída da situação do impasse e começa a se satisfazer com o produto de seu trabalho no jogo. No entanto, apesar desta mudança de posição presente no jogo, Antígona permanece afetada pela situação familiar, que não será modificada por algum fator externo. Ou seja, ainda lhe falta o olhar dos pais, confirmado, inclusive, no encontro em que seu padrasto registra um depoimento de referência ao descaso e ao desafeto dispensados à menina.

Entretanto, Antígona encontra no espaço do trabalho com os jogos teatrais uma abertura para atividades mais sublimadas; e ainda um espaço onde possa se mostrar e ser vista, e é exatamente isso que essa criança pede o tempo todo, em forma de transferência, e está sendo atendida. Talvez este seja o primeiro espaço que lhe tenha ofertado isso. Portanto, nesse segundo trimestre ela se caracteriza como uma criança que inicia uma mobilização diante da situação do impasse e começa a se satisfazer com o produto de sua participação.

Na terceira etapa, que engloba o período até o final do processo, após uma mudança de posição, em que acredita que possa realizar alguma coisa de maneira satisfatória. O que aparece nos jogos encontra-se mais direcionado à questão da escola. A mesma incapacidade e a mesma impossibilidade aparecem, agora, muito mais ligadas às atividades escolares. Há uma mudança de posição clara no jogo que parece repercutir sobre outras esferas de sua vida.

O momento do “Jogo dos bastões”, em que decide participar da roda, mesmo com receio de não conseguir, parece ter sido muito importante porque proporcionou o movimento de dar um passo a mais diante de uma situação onde o medo aparece, ou o conteúdo fóbico se manifesta. A conseqüência do passo a mais pode ser interpretada no “Jogo de vendas nos olhos”, em que já experimenta e supera o inusitado e o desafiante. Portanto, conclui-se o trabalho caracterizando Antígona como uma criança que se mobiliza diante do medo, agora mais manifesto e observado quando em contato com o desafio das atividades escolares.

Pôde-se complementar essa análise com os registros de expressões gráficas artísticas e de escritos produzidos por Antígona, no início e ao término dos trabalhos. Nestes, pôde-se verificar a melhora do traçado, da escrita, da mobilização da criatividade e da articulação e expressão de suas idéias.

 

4.1.7. Resultado escolar

Antígona, segundo as professoras, começou a apresentar melhora no desempenho escolar a partir do segundo semestre. Passou a se interessar mais pelas tarefas e conseguiu obter pontuação suficiente para ser aprovada em todas as disciplinas, com exceção de Matemática, que foi finalmente concluída, com aprovação, após o período de recuperação. Ao contrário do que se esperava e afirmava, Antígonafora aprovada para a 5a série do ensino fundamental, por intermédio de seus próprios esforços.

 

5. Epílogo

A partir dos dados coletados, dos registros e da análise individual do caso, tentar-se-á construir um paralelo entre a prática desenvolvida e algumas considerações teóricas, no intuito de salientar o caráter pedagógico e também subjetivo dos efeitos dos jogos teatrais sobre as dificuldades escolares dos sujeitos.

O caso apresentado neste artigo trata de uma criança caracterizada como inadequada e encaminhada pela escola para atendimento psicológico ou atendimento psicopedagógico, devido a constatações em seu processo de aprendizagem,

No caso descrito não se percebeu a presença de alterações anatomofisiológicas4 na criança, ou algum relato que apresentasse uma situação justificada em problemas no desenvolvimento da mesma. Acrescenta-se ainda que, a partir do contato com suas educadoras, em visitas realizadas na escola para tal, não se percebeu qualquer falta de atenção ou de conhecimento das particularidades da criança. A escola, gerida pela administração pública estadual, foi observada como relativamente estruturada, do ponto de vista físico – edifício, instalações, móveis e higiene – e do corpo docente. As educadoras entrevistadas demonstraram conhecimento e interesse pelo caso, participaram na sugestão dos encaminhamentos para o “tratamento” dos problemas escolares.

Em que se poderiam justificar as dificuldades escolares desse sujeito e de muitos outros, diagnosticados em milhares de escolas brasileiras? Segundo Lajonquière (1992), em seu livro De Piaget a Freud, há algo que se insere entre o ensinado e o resultado; uma espécie de “substância” capaz de oferecer resistência à aprendizagem, algo que teria tanto a chave que possibilita quanto a que impossibilita as aprendizagens.

De acordo com a psicologia cognitiva, todo conhecimento é, em essência, uma construção oriunda de um processo endógeno de equilibração majorante, o mecanismo básico do desenvolvimento intelectual - processo interno de auto-regulação do organismo, que se constitui na busca sucessiva de reequilíbrio após cada desequilíbrio sofrido, diante de algo estimulado pelo meio e que ainda não fora aprendido. Mas, mesmo sendo possível isolar traços comuns nesses processos dos indivíduos, registra-se um caráter imprevisível e singular no processo majorante de cada sujeito.

A psicanálise não parece se contrapor a essa análise do processo de apreensão do conhecimento, mas sim contribuir com um enfoque que transcende o indivíduo e alcança o sujeito, partindo do pressuposto de que o pensamento é um composto de conhecimento e saber, ou seja, o produto do entrelaçamento da inteligência com o desejo.

Diante das observações e registros realizados no trabalho e explicitados neste artigo, talvez se possa pensar o referido caso de fracasso escolar enquanto forma sintomática, decorrente da relação do sujeito com o saber.

Freud (1972) concebeu o trabalho intelectual como a forma sublimada de obter prazer, mediante um desvio do alvo pulsional. Sobre o tema aprendizagem, especificamente, não se encontra nenhum texto escrito por ele; entretanto, mostram-se claros, em sua obra, os determinantes psíquicos que levam alguém a ser um “desejante de saber”, o que faz compreender o significado de aprendizagem em sua teoria. Segundo Kupfer (2004), esse processo depende da razão que motiva a busca do conhecimento, ou seja, algo habilita a criança para o mundo do conhecimento e se encontra atrelado a algumas circunstâncias, para que essa busca se torne possível .

A gênese desse movimento estaria na interpretação, dada pela criança, à descoberta da diferença sexual anatômica, que estimula a pesquisa sobre a origem dos bebês e sobre a participação do homem e da mulher nessa história. Segundo Kupfer (2004), tal descoberta, além de causar certo desconforto, implica entender que alguma coisa falta ou pode vir a faltar, gerando nova compreensão acerca de antigas perdas à luz desse novo sentimento (o seio, os excrementos...). Constitui-se, assim, o que Freud denominou como “angústia de castração”, e esta, por sua vez, ao final do conflito edipiano, é parcialmente sublimada em “pulsão de saber”, que passa a exigir investimento libidinal em investigações sobre a questão .

Devido a essa angústia, instaura-se na criança a necessidade de definir seu lugar no mundo, que é, em princípio, um lugar sexual situado, primeiramente, em relação aos pais ou àquilo que estes esperam que ela seja. Diante disso, a criança formula sua pergunta que diz respeito à sua origem e a seu destino no mundo, ou seja, “qual minha origem?; e quais são as suas expectativas em relação a mim?”.

Por um lado, a abordagem direta é extremamente angustiante e, por outro, a força da pulsão continua estimulando as perguntas. Diante disso, a criança constrói uma solução para lidar com esse impasse criado em torno de suas investigações sexuais infantis (as quais não são claramente sexuais). Em determinado momento, a investigação pela própria origem se depara com limites da suportabilidade e culmina em um ponto de parada, constituindo o recalque da pulsão que move a investigação. Tal pulsão deve, então, encontrar outro destino escolhido pelo sujeito, constituindo uma solução, muitas vezes, influenciada pelo mundo exterior, porém que significa uma posição inicialmente possível para esse sujeito. O advento do recalque promove, então, um deslocamento dos interesses sexuais para os não sexuais, passando a criança a interessar-se por outras coisas e, assim, a continuar pensando sobre as questões fundamentais, de maneira sublimada. Em outros termos, em busca de respostas para velhas questões ontológicas, uma interrogação sobre o sexo permite a abertura do espectro para questões do conhecimento como um todo. Santiago (2005, p. 131) contribui de maneira conclusiva quando afirma que “em suma, esses destinos da investigação sexual infantil configuram-se como modos de posicionamento do sujeito frente à impossibilidade de saciar a curiosidade sexual infantil, assim como é impossível saciar o desejo com base na sua própria função de causa, estruturada a partir de uma perda fundamental”.

Para Freud (1972), portanto, a mola propulsora do desenvolvimento intelectual é a pulsão sexual, o que não parece considerado nas abordagens cognitivas. Esse motor da investigação intelectual, indicado por Freud, significa a “substância” a que Lajonquière se referiu, e que é capaz de oferecer resistência ou contribuir para a aprendizagem. É o destino dessa pulsão, eleito pelo sujeito como a “melhor” solução, pelo menos em princípio, para esse impasse, que caracterizará a relação do sujeito com o saber. Segundo estudos sobre psicanálise e educação, realizados por Santiago, trata-se de três destinos possíveis. Afirma que “com o advento do recalque, a atividade intelectual ou sua wissentrieb5, em função de sua conexão precoce com a pulsão sexual, pode encontrar três destinos distintos: inibição do pensamento; compulsão neurótica a pensar; e sublimação” (LAJONQUIÈRE, 2005, p. 129).

Para sintetizar essas três soluções ou esses três destinos da pulsão, diz-se que a compulsão neurótica a pensar caracteriza-se pela resistência do pensamento intelectual ao recalcamento. Assim, a investigação sexual reprimida retorna do inconsciente, sob a forma de compulsão e marca a vida intelectual do sujeito pela sexualização do pensamento, reproduzindo o caráter inconclusivo da investigação sexual. Na sublimação, o recalcamento sexual intervém sem reenviar o desejo ao inconsciente, e a libido é sublimada em desejo de saber, associada à pulsão de saber, reforçando-a e permitindo ao pensamento agir de maneira livre em relação ao domínio da investigação sexual infantil, e a serviço dos interesses intelectuais. A terceira solução, ou destino da pulsão, constitui-se na desistência do sujeito em relação à continuidade da investigação que, após o recalque, caracteriza a inibição intelectual, quando o “desejo de saber” fica inibido, bem como fica limitada a livre atividade intelectual .

Sobre a inibição, em especial, muito vinculada às causas de dificuldades em relação à aprendizagem, esta não traz necessariamente uma implicação patológica, podendo então ser definida como uma resistência às funções do ego, a qual funciona como um mecanismo (des)ativador ou apenas como resultado de uma diminuição de energia. Portanto, nem todo processo inibitório pode ser considerado como negativo; este tem função reguladora no psiquismo, uma vez que controla e domina qualquer excedente de excitação sexual. Entretanto, a inibição pode significar uma dificuldade específica ou generalizada da criança, em relação à aprendizagem, e gera variados quadros de fracasso escolar. Quando reforçada no meio externo (família, escola, religião), pode ser agravada, chegando mesmo a quadros de debilidade.

O objetivo deste artigo não consiste em aprofundar na questão da inibição na esfera intelectual ou tratar este aspecto do sintoma escolar no caso apresentado. Deseja-se ressaltar que os diagnósticos de fracasso escolar, tão facilmente deflagrados nos espaços educativos, prescindem de análise subjetiva que inclua o sujeito no processo de aprendizagem .

A contribuição da psicanálise à educação e ao trabalho realizado é a consideração da subjetividade e do desejo em relação ao conhecimento e às aprendizagens, como motor da atividade simbólica, em detrimento de um referencial centrado nas capacidades do organismo para a aquisição e tratamento das informações. Para além da função da cognição, é preciso levar em conta o sujeito do inconsciente que se manifesta, sobretudo por meio de faltas, atos falhos etc. Desse modo, entende-se o enunciado de Lajonquière (1992, p. 146), quando afirma que: “O onipotente funcionar majorante da cognitiva equilibração inteligente produz conhecimentos. O infatigável trabalhar inconsciente do discorrer significante produz sonhos, lapsos, atos falhos e sintomas (isto é, o plus do saber)”.

A partir deste recorte da teoria psicanalítica, torna-se possível pensar o fracasso escolar como uma resposta do sujeito ao real que se apresenta como impossível de suportar. Em outros termos, o fracasso escolar, em alguns casos, possui o estatuto de um sintoma que incomoda e, por isso, pede deciframento quando instaurada uma transferência, dentro de uma dimensão do saber.

Nesta perspectiva, consideram-se as dificuldades escolares da criança escolhida no grupo trabalhado para ser aqui apresentada, como algo particular, elaborado, em seu caso, para responder ao impacto de um não-saber relativo ao real, que se manifesta, então, na esfera da vida escolar sob a forma de impossibilidade de saber .

Antes que esse não-saber do sujeito seja interpretado como falha orgânica, falha cognitiva ou déficit cultural, a proposta consiste em oferecer a essa criança, em situação de fracasso, uma chance para refletir sobre o que não lhe parece possível tratar de outra maneira, senão por meio da expressão de um impasse na vida escolar .

Propôs-se, portanto, a trabalhar na hiância entre o saber pedagógico e o saber psicológico, médico ou outro, oferecendo ao sujeito uma oportunidade de palavra, por meio dos jogos teatrais, atividades plenas de possibilidades pra esse fim.  Trabalhando entre esses saberes é que ocorre a manifestação do sujeito, como esclarece Santiago (2005, p. 26) afirmando que “exatamente nessa hiância entre o pedagógico e o psicológico – em que tanto a eficácia dos métodos de aprendizagem quanto o saber médico-psicológico falham ao tentar anular a expressão da dificuldade enquanto efeito da linguagem –, exatamente nesse ponto há uma chance para o discurso analítico poder operar. E essa operação consiste na transformação de tal dificuldade escolar em um sintoma”.

O que confirmou, no trabalho, a possibilidade de os jogos teatrais se constituírem em uma oferta de palavra foram os próprios testemunhos da criança, em consonância com seus atos durante os jogos, evidenciando mais elementos peculiares à sua história do que desconhecimento a respeito dos fundamentos pedagógicos propostos nas atividades. Esses registros demonstraram a presença de um material subjacente ao focado pelo olhar pedagógico que, ao ser acolhido, ofereceu a oportunidade ao sujeito de ressignificar sua posição subjetiva e a possibilidade de mobilidade desta, no discurso .

Outro fato a se considerar é o de existir outro sujeito no espaço de vivência dos jogos teatrais ofertado às participantes. Tal sujeito ocupa, quase que inevitavelmente, o lugar da transferência atribuído, de maneira particular, pelos sujeitos participantes. Freud (1976) tratou a transferência em, pelo menos, três volumes de sua obra, como condição para a análise e para a cura .

Trata-se de uma posição receptora de endereçamentos, passível de ser vivenciada por educadores e médicos, por exemplo, e desse modo permite pensar o lugar ocupado pela pesquisadora no trabalho. Mais ainda, percebe-se o lugar de “comando”, nas atividades com os jogos teatrais, como um lugar de transferência diverso do geralmente ocupado pelo professor, onde um jogo transferencial entre os inconscientes do professor e do aluno possibilita um espaço para exercer e expressar sentimentos de antipatia, simpatia, entre outros.

A pesquisadora responsável pela vivência dos jogos teatrais foi claramente solicitada, do ponto de vista transferencial, em papéis distintos do papel do mestre, tais como mãe, irmã, amiga, rival. A atividade em si permitiu à pesquisadora se prestar a esses papéis, de acordo com a necessidade do sujeito, o que parece naturalmente difícil no lugar do professor. Neste, o processo se realiza muito mais no plano inconsciente, diferentemente do que parece possível na situação dos jogos teatrais. O lugar atribuído ao professor, muitas vezes, o impossibilita de assumir outros, oriundos da transferência, necessários ao sujeito para a elaboração de suas questões e sintomas.

Também não se objetiva neste artigo um maior aprofundamento das teorias da transferência, mas apenas ressaltar o fato de que o local diferenciado do professor, ocupado pela pesquisadora nas atividades com os jogos teatrais, também se encontra presente no referido ponto de hiância, em que se atinge a dimensão do sujeito .

Considerando os discursos dos sujeitos envolvidos nos processos de aprendizagem da criança apresentada e o registro das falas desta, em relação a suas reconhecidas dificuldades e preferências escolares, e confrontando-os com os resultados escolares finais dessa criança, talvez se possa, diante das questões levantadas, pensar no conjunto de definições – sujeito do desejo, inconsciente, inibição e transferência – como uma possível resposta aos efeitos subjetivos da atividade com os jogos teatrais apresentados no caso descrito.

A contribuição da psicanálise na educação possibilita pensar a subjetividade do educando, agregando à análise da aprendizagem – para além do olhar direcionado ao conhecimento – também o olhar direcionado ao saber. A partir das referências teóricas convocadas para a leitura do trabalho, bem como da análise do caso apresentado, pode-se pensar muitas queixas de aprendizagem, verificadas nos espaços escolares e familiares, oriundas dos aspectos da subjetividade, ou seja, ligadas ao sujeito e não ao indivíduo. Pode-se ler o discurso pedagógico – direcionado aos aspectos da cognição – como insuficiente para responder às questões vinculadas ao sujeito; nesse momento é que se justifica a necessidade de convocar a psicanálise.

Levando-se em conta as relações entre o diagnóstico de dificuldades na aprendizagem, referente ao sujeito apresentado neste artigo, e seu resultado escolar bem-sucedido, pode-se, ainda, pensar a questão segundo a definição de processos de inibição propostos pela psicanálise. A partir dessa ótica, tal sintoma escolar só poderia ser “tratado” do ponto de vista da subjetividade, o que a vivência dos jogos teatrais parece poder oferecer.

Durante a prática dos jogos, pôde-se perceber as competências e habilidades da criança, muitas vezes não percebidas nas atividades peculiares à escola. Além disso, registraram-se manifestações particulares subjetivas que produziram efeitos ao longo do processo. É esta observação, justamente, que permite caracterizar o trabalho com um enfoque pedagógico e carregado de atenção ao subjetivo.

Não se pode afirmar que a prática do uso dos jogos teatrais com esse sujeito tenha promovido a “cura” ou solucionado os problemas de aprendizagem, e talvez seja esta uma afirmação impossível de realizar-se. O que se pode deduzir é que os jogos teatrais, confirmando hipóteses iniciais, são passíveis de uso na educação como prática pedagógica e também como prática que atinge a dimensão da subjetividade (terapêutica e clínica). Portanto, é possível pensar que esse aspecto do efeito de tal prática poderia ser contemplado na formação dos futuros “teatro-educadores” ou profissionais de teatro.

Uma vez preparados para discernir este aspecto, os educadores, dentro das próprias escolas, dos próprios currículos e do próprio processo de aprendizagem em si, poderão promover um auxílio às crianças com dificuldades. Em outros termos, esse aspecto, uma vez contemplado na formação dos profissionais, ou seja, a ampliação da atenção do educador, bem poderá significar um plus no equipamento escolar, a fim de facilitar a inclusão das diferenças.

Cabe enfatizar que este artigo, a partir de tais conclusões, não suporta a pretensão de esgotar as possibilidades da relação teatro, educação e psicanálise, nem tampouco de construir uma solução para os problemas de aprendizagem. Ele significa um recorte dentro das possibilidades do teatro, bem como um enfoque desse recorte. Vale dizer, usou-se o teatro sob o enfoque educacional, partindo da esfera pedagógica, amparada pelas ciências do ensino-aprendizagem; e da esfera subjetiva, amparada pela teoria do sujeito do desejo.

Tornam-se necessárias pesquisas mais específicas, de enfoques mais detalhados e, quem sabe, a sistematização de práticas escolares (lúdicas e artísticas) que possam apoiar as dificuldades peculiares, minimizando os encaminhamentos para “tratamentos” psicopedagógicos externos, muitas vezes estigmatizantes para as crianças e responsáveis pela contramão da inclusão.

 

REFERÊNCIAS

CABRAL, A.; NICK, E. Dicionário técnico de Psicologia. 11. ed. São Paulo, Cultrix, 2001.        [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972.        [ Links ]

______. Conferências introdutórias sobre psicanálise. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. XV/XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

KUPFER, M. C. Freud e a educação: o mestre do impossível. 3. ed. São Paulo: Editora Scipione, 2004.        [ Links ]

LACAN, J. O seminário. Mais ainda. Livro8. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.        [ Links ]

LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1992.        [ Links ]

SANTIAGO, A. L. B. A inibição intelectual na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Ana Lydia Santiago
E-mail:a.lydia@terra.com.br

Libéria Neves
E-mail:liberianeves@hotmail.com

 

 

Recebido em: 09/01/2008
Aprovado em: 02/09/2008
Revisado em: 20/09/2008

1 “Literalmente, purificação ou depuração (do grego Katharsis). Na Estética, Aristóteles empregaria o termo para justificar dois fenômenos: a descarga de tensões emocionais, de sentimentos de medo, ira etc., expressando-os numa experiência de ordem estética como, por exemplo, a representação dessas emoções e sentimentos numa tragédia teatral; e o refinamento desses estados mediante a sua reprodução artística universal. Hoje a catarse é um dos métodos em psicoterapia. Em Psicanálise, denominou-se catarse a remoção de um complexo mediante a sua transferência para o consciente, recebendo aí completa expressão. A revivência emocional das ocorrências do passado (sobretudo as reprimidas) pode ser então francamente enfrentada, ‘agindo o paciente como um espectador de sua própria purificação, representando-se a si próprio sem ansiedades nem tensões’. (cf. J. H. Shultz, Kathartische Methode, 1955).”(CABRAL; NICK, 2001).
2“Princípio psicológico segundo o qual as idéias, sentimentos, ações e palavras se apresentam e exprimem em relação funcional com as experiências atuais e passadas do indivíduo”. (CABRAL; NICK, 2001).
3 Foram escolhidos, aleatoriamente, pseudônimos para se referir às meninas. Trata-se de personagens femininas da dramaturgia mundial. Entretanto, não existe nenhuma relação contextual entre a personagem escolhida e a criança referida. “Qualquer semelhança é mera coincidência”. Antígona épersonagem título de tragédia de Sófocles apresentada em Atenas, provavelmente, no ano de 442 a.C.
4Não houve relatos por parte da mãe acerca de malformações genéticas, síndromes, tumores, paralisia cerebral, nem tampouco comprometimentos congênitos ou decorrentes do parto, que incorram em distúrbios no desenvolvimento intelectual da criança.
5Wissentrieb ou pulsão de saber: “Termo introduzido nos escritos freudianos para questionar o tipo de satisfação que acompanha o exercício da curiosidade intelectual” (SANTIAGO, 2005, p.125). Para maior investigação do termo, ver Jacques Lacan (1992, p. 340).

 

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