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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.60 n.2 Rio de Janeiro jun. 2008

 

ARTIGO

 

O processo de desenvolvimento rumo ao símbolo: uma perspectiva pragmática

 

The process of development towards the symbol: A pragmatic approach

 

 

Carolina Lampreia

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC − Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema da formação do símbolo tem sido discutido basicamente a partir de duas perspectivas filosóficas opostas: uma perspectiva cognitivista com raízes no racionalismo cartesiano e uma perspectiva social com raízes na pragmática. Segundo a perspectiva pragmática, o caminho rumo ao desenvolvimento do símbolo tem início desde o nascimento do bebê, a partir da articulação entre capacidades inatas, específicas da espécie humana, e interações sociais. O objetivo do presente trabalho é retraçar o caminho rumo ao símbolo no desenvolvimento típico, a partir de uma perspectiva pragmática, procurando descrever e salientar os aspectos contextuais e interacionais que fazem parte deste processo desde o nascimento. Serão apresentadas as raízes filosóficas das perspectivas cognitivista e pragmática de linguagem. Em seguida, será detalhado o caminho rumo à formação do símbolo, segundo a perspectiva pragmática, a partir principalmente dos estudos de Daniel Stern, de Elizabeth Bates e de Michael Tomasello. Como conclusão, será apresentada uma tentativa de aproximação entre as considerações filosóficas da pragmática e algumas pesquisas na área da psicologia sobre o processo de desenvolvimento rumo ao símbolo.

Palavras-chave: Desenvolvimento do símbolo; Pragmática; Interação social.


ABSTRACT

The subject of symbol formation has been discussed from two opposed philosophical approaches: a cognitivist approach with cartesian rationalist roots and a social approach with pragmatic roots. According to a pragmatic approach, the road towards the development of symbol begins from birth in articulation with innate capacities, specific of the human species, and social interactions. The objective of the present paper is to outline the road towards the symbol, from a pragmatic approach, describing and emphasizing contextual and interactional aspects which participate in this process since birth. First, the philosophical roots of the cognitivist and pragmatic approaches of language will be presented. Then, the road towards symbol formation will be described in detail from a pragmatic approach, particularly from studies by Daniel Stern, Elizabeth Bartes and Michael Tomasello. In the end, an attempt to bring together the philosophical considerations of pragmatics and some psychological researches about the development towards the symbol will be presented.

Keywords: Development of symbol; Pragmatics; Social interaction.


 

 

O tema da formação do símbolo tem sido discutido basicamente a partir de duas perspectivas filosóficas opostas: uma perspectiva cognitivista/representacional com raízes no racionalismo cartesiano e uma perspectiva social com raízes na pragmática.1 Na perspectiva cognitivista, a linguagem é concebida como uma forma de representação. A criança adquire a linguagem fazendo associações entre palavras e conceitos já formados, a partir de definições ostensivas. Neste caso, o desenvolvimento cognitivo é concebido como sendo anterior à aquisição da linguagem e independente dela. Na perspectiva social ou pragmática, a linguagem é concebida como uma forma de ação, isto é, como uma prática social. A criança aprende a usar a linguagem participando de atividades em um contexto social. Neste caso, o desenvolvimento da linguagem é visto como sendo anterior ao desenvolvimento cognitivo e como o constituindo.

O caminho rumo ao desenvolvimento do símbolo, segundo a perspectiva pragmática, tem início desde o nascimento do bebê, a partir da articulação entre capacidades inatas, específicas da espécie humana, e interações sociais. Isto significa que capacidades inatas e interações sociais não são capazes, por si só, de dar conta do desenvolvimento humano. Diferentemente de outras espécies, o bebê humano vem ‘equipado’ com a capacidade de ser sensível e responsivo às emoções de outros seres humanos, o que lhe permite engajar-se em interações sociais, afetivas e emocionais que serão a base de seu desenvolvimento (HOBSON, 2002; TOMASELLO, 2003).

Em um primeiro momento, do nascimento até por volta dos 9 meses de idade, durante a fase de intersubjetividade primária, o bebê engaja-se em interações diádicas, face a face, com a mãe,2 principalmente por meio das chamadas protoconversações ou comunicação afetiva. Ele estabelece paralelamente interações com objetos. A partir dos 9 meses, na fase de intersubjetividade secundária, ele passa a envolver-se em interações triádicas bebê-mãe-objeto caracterizadas pelos diversos comportamentos de atenção compartilhada ou protolinguagem. Agora, mãe e bebê, além de se engajarem em interações diádicas, passam também a incluir um objeto em suas interações, compartilhando a atenção com relação a ele (TOMASELLO, 2003; TREVARTHEN; HUBLEY, 1978). É o início da comunicação intencional.

A fase de intersubjetividade secundária tem sido considerada uma revolução no desenvolvimento do bebê por proporcionar a base do desenvolvimento simbólico. Inúmeros pesquisadores têm considerado os comportamentos de atenção compartilhada como um andaime para o desenvolvimento da fala (BALDWIN, 1995; CARPENTER; NAGEL; TOMASELLO, 1998; TOMASELLO; FARRAR, 1986). Contudo, é importante considerar, e enfatizar, que a base para o desenvolvimento da atenção compartilhada deve ser encontrada nas interações iniciais diádicas da fase de intersubjetividade primária. Se considerarmos o desenvolvimento como uma construção, para compreender o ponto final da construção do símbolo, é preciso refazer todo o caminho, desde o seu início. Em outras palavras, as novas capacidades da fase de intersubjetividade secundária não surgem repentinamente; não são fruto de uma maturação biológica apenas. Elas envolvem uma construção a partir de uma base inicial que se articula com as interações sociais desde o início. Assim como os comportamentos de atenção compartilhada têm sido considerados precursores da capacidade simbólica e da fala, eles próprios têm precursores na fase de intersubjetividade primária, que não podem ser desconsiderados, se quisermos ter uma compreensão mais integral da formação do símbolo. Habilidades fundamentais para a comunicação simbólica – antecipação, reciprocidade, contingência e alternância de turno – já podem ser encontradas, embora sob outra forma, muito antes.

O objetivo do presente trabalho é retraçar o caminho rumo ao símbolo no desenvolvimento típico, a partir de uma perspectiva pragmática, procurando descrever e salientar os aspectos contextuais e interacionais que fazem parte deste processo desde o nascimento. Isso será feito por meio de um estudo bibliográfico, articulando as áreas da pragmática e da Psicologia do desenvolvimento.

Em um primeiro momento, serão apresentadas as raízes filosóficas das perspectivas cognitivista e pragmática de linguagem. Em seguida, será detalhado o caminho rumo à formação do símbolo, segundo a perspectiva pragmática, procurando caracterizar os diferentes momentos deste processo de desenvolvimento e seus encadeamentos, a partir principalmente dos estudos de Daniel Stern, de Elizabeth Bates e de Michael Tomasello. Isso não significa que estes e outros autores, que serão apresentados no contexto da abordagem pragmática, possam ser nela enquadrados sem qualificação. Significa apenas que dados de suas pesquisas apóiam as análises filosóficas da pragmática. Neste sentido, como conclusão, será apresentada uma tentativa de aproximação entre as considerações filosóficas da pragmática e algumas pesquisas na área da psicologia sobre o processo de desenvolvimento rumo ao símbolo.

 

Raízes filosóficas das perspectivas cognitivista e pragmática de linguagem

O que é um símbolo, ou signo, segundo as perspectivas representacional e pragmática de linguagem? Em seu Dicionário básico de Filosofia, Japiassú e Marcondes (1991) apresentam as definições tradicionais/representacionais para símbolo e para signo que parecem ter o mesmo significado. Símbolo e signo são definidos como um objeto que passa a representar, designar ou indicar outro, a partir de uma convenção – um objeto que fica no lugar de outro, que substitui o referente de forma convencional. O melhor exemplo de símbolo ou signo é a palavra. Porém, seguindo uma perspectiva pragmática, à pergunta ‘o que são signos?’ Wittgenstein (1958a, p. 16-17, tradução nossa) responde:

[...] em vez de dar uma resposta geral a essa questão, irei propor que olhem para casos particulares do que chamaremos ‘operar com signos’. Olhemos para um exemplo simples de operar com palavras. Dou a alguém a ordem: ‘pegue para mim seis maçãs na mercearia’, e irei descrever uma maneira de usar tal ordem: As palavras ‘seis maçãs’ estão escritas em um pedaço de papel, o papel é entregue ao vendedor, o vendedor compara a palavra ‘maçã’ com os rótulos em diferentes prateleiras. A palavra concorda com um dos rótulos, ele conta de um até o número escrito no papel, e para cada número contado ele pega uma fruta da prateleira e a põe em um saco. – E aqui você tem um caso de uso de palavras. No futuro irei chamar sua atenção para o que chamarei de jogos de linguagem... Jogos de linguagem são as formas de linguagem com as quais a criança começa a fazer uso das palavras.

E conclui nas Philosophical investigations: “Todo símbolo, isolado, parece morto. O que é que lhe dá vida? – Só o uso lhe dá vida. Tem, então, em si o sopro da vida? Ou é o uso que é o sopro da vida?” (WITTGENSTEIN, 1958b, § 432, grifo do autor, tradução nossa).

Wittgenstein, em sua segunda fase, a das Philosophical investigations, é um dos principais representantes da visão pragmática de linguagem e um dos filósofos que mais procurou rediscutir, de forma sistemática, a visão cognitivista/objetivista/representacional de linguagem que tem dominado o pensamento ocidental até hoje. Segundo a visão representacional, há por um lado uma realidade-em-si mesma – uma coisa ou objeto – e por outro, a linguagem – a palavra ou nome – que a representa. É a visão nome-objeto. O significado do nome é determinado pelo objeto, a partir de associações por meio de regras naturais.

Wittgenstein (1958b) irá questionar cada uma dessas afirmações analisando sistematicamente o uso ou funcionamento de nossa linguagem cotidiana e irá concluir que ela não funciona da maneira como a visão representacional descreve. Ele apresenta dois argumentos principais: 1) nem sempre a linguagem é usada para representar; e 2) quando ela o faz, o seu significado não é determinado pelo objeto.

Em primeiro lugar, desde o início, a criança, nas interações sociais, aprende a fazer coisas com a linguagem. Ela aprende a usar a linguagem para pedir, ordenar, afirmar, perguntar, justificar, desculpar-se, mentir, e também descrever ou representar – a criança aprende diversos “jogos de linguagem”. Wittgenstein (1958b, § 7, tradução nossa) chama de jogo de linguagem “[...] a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada [...]” e afirma que “A expressão ‘jogo de linguagem’ deve salientar que falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1958b, § 23, tradução nossa). É por esta razão que, na perspectiva pragmática, a linguagem deixa de ser vista como uma forma de representação e passa a ser concebida como uma forma de ação, como uma prática social envolvendo os diversos “jogos de linguagem” citados acima.

A idéia de que a linguagem envolve uma prática, um uso, uma forma de ação pode ser mais bem entendida a partir de duas analogias apresentadas por Wittgenstein (1958b). A primeira é a analogia entre palavras e ferramentas, ou instrumentos, que é utilizada para enfatizar o fato de palavras de determinada categoria gramatical poderem ter usos muito diferentes. Por exemplo, a palavra ‘fogo’ pode ser usada para nomear o fogo, ou como um pedido para se acender um cigarro, dar uma ordem para os bombeiros agirem etc. A segunda analogia é conceber a linguagem como um jogo, i.e., imaginar que jogamos diferentes jogos com as palavras e as sentenças. Assim como podemos jogar diferentes jogos com bola, também podemos jogar diferentes jogos com uma palavra.  E assim como o que irá definir cada um dos diferentes jogos com bola são as suas diferentes regras, também o que irá definir o significado de uma palavra são as suas regras de uso. Portanto, uma palavra não tem um significado único, mas variável, dependendo do ‘jogo de linguagem’ dentro do qual está inserida. O uso da linguagem não pode ser desvinculado da prática que ocorre simultaneamente.

Em segundo lugar, mesmo quando usamos a linguagem para representar, o seu significado não é determinado pelo objeto porque este não pode ser concebido independentemente da linguagem. Não faz sentido falarmos em uma realidade em si na medida em que aprendemos a interpretar essa realidade a partir dos significados dados por nossa cultura. Aqui também, desde o nascimento, a criança é imersa em uma rede de significações dadas por práticas ou formas de vida de sua cultura da qual ela não pode escapar, a não ser para cair em outra rede de significações. Diferentes culturas têm diferentes necessidades e interesses, o que as leva a ter diferentes crenças e mitologias acerca do mundo. E é a partir das crenças, mitologias e “formas de vida” de sua cultura que a criança aprende a interpretar e significar a dita realidade. Em suma, o significado da linguagem não é dado pela coisa, mas por práticas culturais, por regras sociais. A linguagem é anterior à realidade e dessa forma a constitui ou constrói. É por esta razão que ela não é, e não pode ser, uma cópia da realidade.

Neste ponto, dois aspectos importantes da visão pragmática de linguagem merecem ser enfatizados e explorados: sua visão mais ampla de linguagem e a noção de regras sociais da linguagem.

Filósofos, assim como outros pensadores, sabem que linguagem envolve mais do que fala, mas, ao tratarem do tema, acabam restringindo suas análises ao verbal. E isto, segundo a visão pragmática wittgensteiniana, seria um equívoco já que há muito de pressuposto que faz parte do contexto de uso da fala. Segundo a visão objetivista/representacional, quando queremos ensinar a uma criança o nome das cores, apontamos para o objeto e dizemos o nome de sua cor para que ela aprenda a associar o nome ao objeto. Ora, segundo a visão pragmática/não-representacional, ao apontarmos para um objeto, podemos estar nos referindo a outras características tais como forma, tamanho, material de que é feito. Por exemplo, ao apontarmos para uma porta, podemos estar nos referindo ao objeto porta, a sua cor, ao material de que é feita, podemos estar ordenando para que a pessoa saia do recinto ou podemos estar pedindo que a pessoa abra a porta, entre outras possibilidades. Como é que, no caso imaginado, a criança sabe que estamos apontando para a cor do objeto? Para que ela possa fazer a associação, é preciso que ela já saiba que o apontar se refere à dimensão cor e não a outra dimensão qualquer – é preciso que ela já saiba qual jogo de linguagem está sendo jogado, qual dimensão está sendo referida. E isto é dado pelo contexto de uso do apontar.

Em suma, a linguagem pode ser usada para praticar uma série de atos; para jogarmos uma série de jogos, inclusive o de referir, ou seja, representar. Mas para sabermos qual uso está sendo feito em determinado caso, é preciso conhecer o contexto mais amplo das práticas sociais de determinada cultura e o contexto mais atual do caso específico. Portanto, pensar no que seja a linguagem verbal requer que se analise também outros fatores mais abrangentes que participam da significação.

O segundo aspecto fundamental para a compreensão da visão pragmática/não-representacional de linguagem envolve a noção de regras da linguagem. Usar uma linguagem requer seguir regras. A questão é qual é o estatuto atribuído a essas regras. De acordo com a visão objetivista/representacional, as regras da linguagem são regras naturais e, portanto, imutáveis. A criança, por exemplo, aprende o nome das cores porque ela é naturalmente dotada da capacidade de fazer associações; no caso, entre o nome e a coisa. Na perspectiva da visão pragmática/não-representacional, as regras da linguagem são regras sociais, convencionadas como as regras de um jogo e, portanto, mutáveis. Isto significa que, no espectro das cores, os recortes feitos e nomeados dependem de uma prática, de um acordo ou convenção social. Diferentes culturas ou grupos sociais podem fazer um número maior ou menor de recortes, dependendo de suas necessidades e interesses. Segundo esta visão, não há uma realidade-em-si mesma, não há um azul ou vermelho em si. O que temos é uma gama de azuis e vermelhos e o ponto de corte de azul para azul turquesa, ou de vermelho para laranja, depende de uma convenção/regra social. E aqui cabe um esclarecimento quanto à noção de convenção. Uma coisa é convencionar o nome que será dado à cor: “vermelho”, “red”, “rouge” etc. Outra coisa é convencionar os pontos de corte no espectro das cores. No primeiro caso, supõe-se a existência de uma realidade-em-si, enquanto que no segundo caso se considera que a realidade não existe em si mesma, independente de nós, mas é construída de acordo com nossas práticas sociais, passíveis de mudança, bastando para isso que mudemos as nossas convenções ou regras.

Outra questão a ser considerada quando tratamos do caminho rumo ao símbolo é que, além da palavra, o ato de apontar, um desenho ou um objeto como no jogo simbólico também podem ser considerados símbolos ou signos. Mas o símbolo precisa ser diferenciado do sinal natural que não é convencional.

A esse respeito, esclarece Marcondes (2008, p. 54, grifos do autor):

Embora encontremos em diferentes autores diferentes formas de caracterizar o signo e várias distinções possíveis entre os vários tipos de signos, podemos dar uma definição mais geral de signo como tudo aquilo que remete a outra coisa. O exemplo mais simples disso é o ato de apontar, o dedo indicador que remete nosso olhar para algo além do próprio dedo. A função indicativa do signo se caracteriza exatamente por isso, remeter a outra coisa, de fato quando vejo o dedo indicando ou a seta apontando [’], não fixo meu olhar no dedo, nem na seta, mas me dirijo àquilo que indicam.

A partir dessa definição geral dos signos, temos a distinção inicial entre sinais naturais, por exemplo, a fumaça que é sinal de fogo, as pintas vermelhas na pele que são sinais de sarampo, e sinais convencionais, por exemplo, palavras tanto faladas como escritas. Os sinais naturais são ditos assim porque não dependem de nenhuma intervenção humana direta, por exemplo, no caso da fumaça que resulta do fogo. É claro que deve haver sempre alguém que interpreta essa relação entre a fumaça e o fogo, segundo a qual a fumaça indica a presença do fogo, mesmo à distância quando não o vejo. É comum assim utilizar-se a palavra “sinal” em um sentido mais abrangente, e também como se aplicando a sinais naturais, empregando-se a palavra “signo” para os sinais convencionais, embora essa terminologia possa variar de autor para autor.

Assim como Marcondes (2008), Tomasello (2003) também concebe o gesto de apontar como um símbolo/signo convencional. Mas Bates (1979) faz uma distinção importante quando se trata de analisar um processo; o processo de desenvolvimento do símbolo. Ela se refere a sinais convencionais que ainda não são símbolos ou signos, como sons e gestos, cuja função tem concordância e reconhecimento por parte do adulto e do bebê, e se desenvolvem a partir da ritualização. Para esta autora,

A comunicação convencional não é comunicação simbólica até que possamos inferir que a criança objetivou em alguma medida a relação veículo-referente, compreendendo que o veículo (isto é, o símbolo) pode ser substituído pelo seu referente para certos objetivos, ao mesmo tempo que compreende que o símbolo não é a mesma coisa que seu referente.  É o uso particular de uma convenção para evocar, reconhecer, ou ficar no lugar de seu referente que torna este uso convencional um ato simbólico verdadeiro. (BATES, 1979, p. 38-39, tradução nossa).

Em suma, de acordo com o relato de Bates (1979), o bebê passa primeiro por uma fase de uso de sinais naturais/ações que, pelo processo de ritualização, se tornam sinais convencionais/gestos, mas ainda não são símbolos por não se destacarem do objeto referido, por não nomearem.

O caminho que iremos percorrer, a seguir, vai da ação/sinal natural para a palavra/símbolo convencional, passando pelo gesto/sinal convencional. Ele costuma ser dividido em duas fases principais. A primeira – da intersubjetividade primária – inicia-se com as capacidades inatas do bebê de ser sensível e responsivo às emoções dos outros e culmina com o desenvolvimento da intencionalidade do bebê e sua compreensão das intenções dos outros. Ela envolve interações diádicas mãe-bebê, face a face, que constituem uma comunicação afetiva de ações/sinais naturais. A segunda fase – da intersubjetividade secundária – inicia-se com a intencionalidade e culmina com o desenvolvimento da capacidade simbólica. Ela envolve interações triádicas, mãe-bebê-objeto, primeiro por meio dos diferentes comportamentos de atenção compartilhada que envolvem gestos/sinais convencionais, e  depois por palavras/símbolos convencionais. É a fase da comunicação intencional.

 

Da Ação ao Gesto: Do Sinal Natural ao Sinal Convencional

O desenvolvimento da capacidade simbólica envolve um longo e gradual percurso de desenvolvimento. Seu início deve ser identificado nas capacidades biológicas do bebê humano e culmina, nesta primeira fase de intersubjetividade primária que vai da ação/sinal natural ao gesto/sinal convencional, com os diversos comportamentos de atenção compartilhada: engajamento conjunto, seguir o olhar e o apontar, imitação de ações arbitrárias e instrumentais, apontar imperativo e declarativo (CARPENTER; NAGELL; TOMASELLO, 1998). Para isso, é preciso que o bebê seja capaz de compreender a intenção comunicativa do gesto do adulto e que tenha desenvolvido a sua própria intencionalidade, para ele também se comunicar intencionalmente por intermédio de gestos. Vejamos os fatores envolvidos nesse desenvolvimento. 

O bebê humano nasce com a capacidade de ser sensível e responsivo às emoções de outros seres humanos, assim como de expressar suas próprias emoções (HOBSON, 2002). De acordo com Trevarthen e Aitken (2001), existe uma intersubjetividade inata que é o fundamento do desenvolvimento da linguagem. A evidência chave é a mímica neonatal. Bebês recém-nascidos podem reproduzir expressões faciais e estão motivados para se comunicar por meio de formas e ritmos expressivos. As primeiras interações mãe-bebê se dão no contexto da regulação fisiológica do bebê em situações de sono e alimentação. Os comportamentos da mãe de tranqüilizar, conversar, fazer sons e caretas ocorrem em resposta a comportamentos do bebê (STERN, 1992).

Aos dois meses, a situação muda porque o bebê está mais social. Ele sorri, vocaliza, faz contato ocular em resposta aos comportamentos exagerados e repetidos da mãe que apresenta algumas variações na linguagem, nas expressões faciais e jogos de esconde-esconde. Mãe e bebê regulam, então, mutuamente os interesses e sentimentos um do outro por intermédio de padrões rítmicos, sinais multimodais, imitações de expressão vocal, facial e gestual. Eles criam cadeias e seqüências de comportamentos recíprocos que formam diálogos sociais. É aqui que estão sendo desenvolvidos, por parte do bebê, o senso de contingência, isto é, a relação temporal próxima e dependente entre seu comportamento e a resposta da mãe, e o senso de reciprocidade, assim como a antecipação, ou seja, o adiantar do que irá ocorrer a seguir, e alternância de turno entre mãe e bebê que são a base para a comunicação intencional que virá a seguir. São os precursores dos precursores da linguagem. Mas, por enquanto, estas interações sociais iniciais envolvem principalmente a regulação do afeto e da excitação (STERN, 1992). Neste período, a comunicação ainda é basicamente afetiva. Para que o bebê desenvolva a comunicação intencional, será necessário que ele desenvolva a capacidade de intencionalidade entendida como coordenação entre meios e fins (TOMASELLO, 2003). No início, as ações e vocalizações do bebê ainda não são intencionais/instrumentais neste sentido; elas são apenas teleológicas, espontâneas. Visam a um fim, mas ainda não recorrem a um meio para atingi-lo. O bebê usa seu próprio corpo para alcançar o objeto desejado. É por meio das interações com a mãe que ele irá desenvolver as diversas habilidades de atenção compartilhada que envolvem principalmente a capacidade de coordenar meios e fins. No caso do gesto imperativo, o bebê usa a mãe como meio para atingir o objeto fim e, no caso do gesto declarativo, ele irá usar um objeto como meio para conseguir a atenção da mãe como fim.

A atenção compartilhada tem sido vista como um andaime, ou precursor, para a fala no bebê pré-lingüístico e para a compreensão das intenções comunicativas e da imitação com inversão de papéis (CARPENTER; TOMASELLO, 2000). Ela envolve dois tipos principais de comportamento: o seguir e o dirigir a atenção e o comportamento dos outros. No caso do seguir a atenção e comportamento dos outros, o bebê de aproximadamente 12 meses de idade segue o apontar ou a direção do olhar do adulto, olhando para o alvo indicado e de volta para o adulto, conferindo se atingiu o alvo indicado. No caso do dirigir a atenção e comportamento dos outros, encontramos duas funções: a função imperativa – na qual o bebê de aproximadamente 13 meses dirige o comportamento do adulto por meio de gestos ou do apontar, para conseguir seu objetivo – e a função declarativa – quando entre os 12-15 meses, o bebê levanta ou aponta para um objeto com alternação do olhar para que o adulto preste atenção. A alternação do olhar requer a referenciação social e indica que o bebê atribui significado ao comportamento do adulto, tomado-o como referência para a sua própria ação. Nesta fase, o bebê também é capaz de aprendizagem imitativa por intermédio da coordenação de meios e fins, aprendendo um comportamento novo com relação a um objeto e demonstrando compreensão da intencionalidade do adulto, o que é diferente da mímica. (CARPENTER; NAGELL; TOMASELLO, 1998).

Como ocorre, então, a passagem da ação ao gesto? Vejamos primeiro o desenvolvimento do gesto imperativo. Tudo começa com as ações e vocalizações espontâneas do bebê. No início, o bebê chora e o adulto responde, estabelecendo-se um ciclo ação-reação entre bebê e adulto que caracteriza o primeiro passo para o desenvolvimento de pedidos. A partir dos dois meses, o bebê também começa a se interessar por objetos. Um pouco depois, ele começa a apresentar tentativas de se aproximar de um objeto à sua frente, com movimentos motores de todo o corpo e aos 4 meses apresenta as primeiras tentativas de pegá-lo. Aos 6 meses, ele ajusta a postura corporal e estende o braço para o objeto com movimentos de preensão e vocalizações (BATES, 1976). Por exemplo, o bebê estende o braço, ou aponta naturalmente, em direção a um brinquedo fora de seu alcance. Então, a mãe atribui uma intenção ao bebê, aproxima o brinquedo de sua mão e ele o pega. A comunicação aqui é acidental e, pode-se dizer, “primitiva” porque ainda não intencional. Não há intenção comunicativa por parte do bebê. Sua ação é dirigida ao objeto e não à mãe; é um sinal natural e não um sinal convencional. Com a repetição em cenas similares – e por meio de um processo de condicionamento, antecipação e imitação – o sinal natural se torna ritualizado e se transforma em um sinal convencional, como o gesto de apontar imperativo, agora intencional. Ou seja, as conseqüências recorrentes por parte da mãe ao apontar natural do bebê, usado inicialmente para dirigir sua própria atenção, fazem com que o bebê passe a antecipar as conseqüências de sua ação, transformando sua ação natural em uma ação intencional, em um gesto dotado de intenção comunicativa, dirigido à mãe. Além disso, o bebê também observa o adulto apontando para ele e, compreendendo seu objetivo comunicativo, passa a usar o apontar por intermédio do processo de imitação (CLARK, 1978).

Vejamos outros exemplos para se entender o desenvolvimento da intencionalidade e ações instrumentais. Entre os 6-9 meses, o bebê cruza a sala, empurra objetos e puxa a mão do adulto que segura o objeto desejado. A mão do adulto se torna o primeiro meio ou instrumento para atingir um objetivo/fim. Por volta dos 11 meses, o bebê olha para o adulto e espera que ele comece a atividade apropriada. É a partir desses comportamentos mais instrumentais e das vocalizações que os acompanham que o sinal imperativo se desenvolve. À medida que eles são cada vez mais utilizados, estes comportamentos instrumentais vão se ritualizando e abreviando, transformando-se em gestos ou sinais convencionais dotados de intenção comunicativa e significado. Em suma, as ações que eram originalmente meios para atingir fins e o apontar ‘natural’ do bebê se separam gradualmente da tentativa concreta de pegar e, por causa da presença do adulto, se transformam no apontar imperativo que ainda é um sinal convencional, mas não um símbolo (BATES, 1976).

O gesto de apontar imperativo é um sinal convencional porque tem um significado compartilhado entre mãe e bebê. Neste caso, o significado não é mais arbitrariamente atribuído pela mãe depois do aparecimento do gesto do bebê, mas é um aspecto inseparável do próprio gesto (CLARK, 1978). O gesto já é dotado de intencionalidade, de intenção comunicativa, porque o bebê o usa como um meio para afetar o comportamento do outro para atingir um determinado fim; o bebê antecipa a ação do adulto e espera até que ela ocorra.    

O gesto declarativo envolve usar um objeto como meio, com o objetivo de chamar a atenção do adulto e com ele compartilhar seu interesse. Como o bebê chega a desenvolver gesto declarativo?

Os primeiros comportamentos sociais do bebê aos 2 meses de idade constituem o primeiro laço para a formulação da interação social como um objetivo em si. E as habilidades motoras em desenvolvimento serão colocadas a serviço destes objetivos sociais. Aos 4 meses de idade, o bebê toca na face do adulto, pega seu cabelo e agita os braços quando ele se afasta. Aos 9 meses, ele cruza a sala, sobe no sofá ao lado da mãe. Este poderia ser considerado um rascunho do declarativo no sentido de que o bebê usa meios para obter contato físico com o adulto. Ao mesmo tempo, ele também utiliza meios não físicos para atrair intencionalmente a atenção do adulto quando, por exemplo, faz um barulho cômico com a boca e, então, todos os adultos presentes riem. Aqui se vê que o bebê se comporta e antecipa a reação do adulto demonstrando, assim, uma compreensão da agência externa. O próximo passo será lançar mão de um objeto para obter a atenção do adulto. O bebê pode estar brincando com um objeto e estender o braço para que o adulto veja o objeto, ou então pegar intencionalmente um objeto e se dirigir até o adulto para dá-lo. É neste momento, por volta dos 12 meses de idade, que surge o gesto de apontar declarativo, quando o bebê aponta para um objeto, olha para o adulto e de volta para o objeto, procurando compartilhar seu interesse por ele. A diferença entre o apontar imperativo e o declarativo é que no primeiro caso o bebê insiste até conseguir obter o objeto (BATES, 1976).

Da mesma maneira que o apontar imperativo, o apontar declarativo ainda é um sinal convencional, mas não um símbolo. Como se dá, então, a passagem do sinal convencional ao símbolo?

 

Do Gesto à Palavra: Do Sinal Convencional ao Símbolo Convencional

Assim como há ações motoras que se transformam em gestos, ou sinais convencionais – o apontar imperativo e o apontar declarativo – podemos considerar que há vocalizações naturais que se transformam em gestos ou sinais vocais convencionais imperativos e declarativos que se transformam em palavras com valor referencial.  A passagem do uso não referencial de um som – sinal convencional ao seu uso referencial – símbolo , se dá a partir de um processo de descontextualização deste uso inicial. Bates (1976) discrima e descreve a passagem gradual de três tipos de sinais parecidos com palavras: vocalização como sinal, sinal parecido com palavra, fala referencial ou símbolo.

 

Vocalização como sinal natural e convencional

Como visto anteriormente, tudo começa com as vocalizações espontâneas do bebê que, assim como as ações motoras, ainda não apresentam intenção comunicativa. É por meio de suas interações com a mãe que as vocalizações do bebê se transformam em gestos vocais dotados de intenção comunicativa e significado. E pelo processo de ritualização, que é um processo de convencionalização, e do surgimento das intenções comunicativas, estas vocalizações espontâneas/sinais naturais se transformam em gestos vocais/sinais convencionais. A vocalização usada como sinal convencional já apresenta intenção comunicativa, mas sem um valor referencial discernível. Neste caso, o sinal convencional é usado como parte de um procedimento como em uma vocalização imperativa. Como exemplo, pode ser citado o uso do som ‘Umm’ acompanhado do apontar para pedir um objeto ao adulto (BATES, 1976).

 

Sinal convencional parecido com a fala referencial

O segundo tipo de sinal é mais parecido com a fala referencial,mas seu uso é mais restrito do que o nomear. Bates (1976) apresenta o exemplo de uma menina de catorze meses de idade que diz ‘da’ no contexto de troca de objetos com o adulto. Mas ela não usa o som para descrever o ato de dar em que ela não participa nem para dar uma ordem quando quer um objeto do adulto. Neste caso, ‘da’ ainda não representa a atividade de dar, mas é parte da atividade de dar; ‘da’ é usado apenas como um procedimento durante um jogo e não como uma palavra referencial para nomear uma ação. Outro exemplo citado por Bates (1976) é de outra menina que estando na varanda diz ‘cão’ quando vê um cão e também quando vê qualquer outra coisa. De acordo com Bates, a menina nomeou sua própria posição e atividade e não um referente externo. Portanto, aqui, a palavra ‘cão’ ainda não é um símbolo verdadeiro.

 

Fala referencial ou símbolo

Posteriormente, o som passa a se desligar de contextos de usos particulares para ser usado em uma variedade deles; é o terceiro tipo de sinal que está mais próximo dos requerimentos da fala referencial. Sendo a fala usada para descrever um evento ou objeto em vários contextos, a expressão parece relacionar a palavra a seu referente. Como exemplo, Bates (1976) cita o caso em que uma menina de 12 meses de idade usa uma onomatopéia para nomear animais em seu livro e brinquedos. Para Bates, esse comportamento constitui um verdadeiro ato de referência porque a menina generaliza e reconhece outros animais fora do contexto de jogo anterior. É neste momento que Bates (1979) considera que a criança passou a ter uma noção das relações veículo-referente a partir de um lento processo de descontextualização. Agora,a palavra como procedimento não é mais usada em um jogo único, que pode ser multifacetado, mas em uma variedade de contextos ligados pela presença ou envolvimento de um referente particular para esta palavra.  É neste momento, por volta dos 12-13 meses de idade, que a criança descobre que as coisas têm nomes. Mas é importante enfatizar que a passagem para a fala referencial é gradual, tornando-se difícil especificar o momento exato em que os sons são usados para representar.

A noção de ‘cenas de atenção conjunta’, de Tomasello (2003), pode nos ajudar a melhor compreender a dinâmica das interações por meio de vocalizações e suas implicações para o desenvolvimento do símbolo. É no contexto de cenas de atenção conjunta que a criança ‘extrai’ o significado do símbolo lingüístico empregado pelo adulto. Isso acontece porque essas cenas envolvem atividades sociais estruturadas recorrentes – tomar banho, comer, ver figuras em um livro – que a criança pode compreender.     

De acordo com Tomasello (2003), cenas de atenção conjunta envolvem interações sociais nas quais adulto e criança estão prestando atenção para uma coisa e para a atenção do outro a essa coisa. Mais especificamente, ele diz:

A cena de atenção conjunta é [...] composta daqueles objetos e atividades que a criança sabe fazerem parte do foco de atenção dela e do adulto, e ambos sabem que esse é seu foco e  [...] cenas de atenção conjunta são definidas intencionalmente; extraem sua identidade e coerência da compreensão que a criança e o adulto têm de ‘o que nós estamos fazendo’ em termos de atividades voltadas para um objetivo nas quais estamos envolvidos. (TOMASELLO, 2003, p. 136-137).

E acrescenta:

Mas cena de atenção conjunta não é a mesma coisa que cena referencial explicitamente simbolizada num elemento de linguagem; cena de atenção conjunta simplesmente fornece o contexto intersubjetivo em que se dá o processo de simbolização. (TOMASELLO, 2003, p. 137).

Em outros termos, isso significa que a cena de atenção conjunta não é nem um evento perceptual – porque só inclui um subconjunto de coisas percebidas – nem um evento lingüístico – porque inclui mais coisas do que as explicitamente indicadas em símbolos lingüísticos (TOMASELLO, 2003). Ou seja, se imaginarmos, como o faz Tomasello, um exemplo em que mãe e criança estão na sala em dois momentos diferentes realizando atividades diferentes como brincar ou trocar a fralda, teremos duas cenas de atenção conjunta diferentes. Embora possa parecer que o contexto físico perceptual seja o mesmo, ele não o é porque aquilo a que ambas estão prestando atenção é diferente em cada caso. E o contexto de significação também é diferente porque as atividades em que estão engajadas também são diferentes. Podemos concluir considerando com Tomasello que:

 A questão é que a intersubjetividade dos símbolos lingüísticos humanos – e sua natureza perspectiva, que decorre dessa intersubjetividade – significa que os símbolos lingüísticos não representam o mundo de forma mais ou menos direta, como representações perceptuais ou sensório-motoras, mas são usados pelas pessoas para induzir outras a interpretar certas situações perceptuais/conceituais – prestar atenção a elas – de uma maneira e não de outra. (TOMASELLO, 2003, p. 178).

A partir desses dados da perspectiva pragmática do desenvolvimento do símbolo na Psicologia, será analisada a seguir a possibilidade de aproximá-la das reflexões filosóficas do segundo Wittgenstein, a partir de suas noções de linguagem como ação, jogos de linguagem e regras.

Filosofia da linguagem e a perspectiva pragmática do desenvolvimento do símbolo

Filosofia e Psicologia têm propósitos diferentes, o que não recomenda uma extrapolação direta de uma a outra. Em primeiro lugar, as reflexões de Wittgenstein se referem à fala. Porém, por adotar uma visão mais ampla de linguagem, envolvendo práticas comunicativas em contexto, podemos tentar refletir a respeito daquilo que pode estar envolvido no desenvolvimento dos seus precursores. Em segundo lugar, no Blue book, que antecedeu as Philosophical investigations, Wittgenstein chegou a imaginar exemplos sobre a aquisição da linguagem na criança, mas nas Philosophical investigations a ênfase mudou de como a criança aprende uma parte de nossa linguagem para ‘linguagens primitivas’ (BAKER; HACKER, 1985). Seu objetivo não era, nem nunca foi, realizar uma análise genética da aquisição da fala. Por isso, a análise que será apresentada a seguir é apenas uma tentativa de aproximação. Ela se justifica pelo fato de a visão pragmática de Wittgenstein e algumas pesquisas na área do desenvolvimento parecerem ser, em alguma medida, complementares. As reflexões de Wittgenstein parecem estar muito próximas das pesquisas realizadas por Bates (1976, 1979) e Tomasello (2003), que chegaram a nelas se inspirar.

Adotar uma visão pragmática de linguagem significa conceber a linguagem como uma prática, como uma forma de ação, como uso. Vimos que, no desenvolvimento simbólico no bebê, temos no início apenas a ação espontânea, voltada para o objeto. Ela não pode ser concebida como linguagem ainda porque não envolve uma comunicação intencional, isto é, não envolve a intenção de afetar o comportamento do outro de uma forma específica. A comunicação ainda é puramente afetiva e ocorre nas interações face a face. Mas a intencionalidade não envolve uma dimensão cognitiva. O que está envolvido aí é uma transformação de uma ação espontânea em um gesto significativo intencional que se dá a partir das ações, ou melhor, das reações da mãe à ação do bebê. Ao apresentar uma ação contingente e recíproca à ação do bebê, a mãe está atribuindo significado a ela. E este significado será ‘apropriado’ pelo bebê no sentido de ele passar a adotar outro uso para essa ação, um uso que envolverá afetar o comportamento da mãe. Por exemplo, como visto, no início o bebê tenta alcançar um objeto ou aponta para ele para dirigir sua própria atenção. A partir das conseqüências apresentadas pela mãe, esta ação se transformará em uma ação voltada para dirigir a atenção, agora, da mãe transformando-se assim em um gesto intencional. A ação de apontar adquire um novo uso. O que se quer enfatizar aqui é que o desenvolvimento da linguagem envolve uma dimensão pragmática, envolve o desenvolvimento de novas práticas, de novas habilidades.

Mas linguagem não envolve apenas ações e reações. Ela se dá em um contexto mais amplo, no contexto de jogos de linguagem. Contextos de jogos de linguagem envolvem não apenas o contexto físico no qual a atividade ocorre, mas também a própria atividade. Como mencionado anteriormente, na atividade da mãe de apontar para um objeto e nomear, é preciso que a criança saiba para qual dimensão do objeto a mãe está apontando, para que possa aprender. E isso é dado por práticas anteriores e também faz parte do contexto, além de sua dimensão física. Em outras palavras, contextos de jogos de linguagem envolvem contextos de atividades conjuntas nas quais estão engajados ambos os participantes. Isso significa que é o contexto dentro do qual se dá o gesto de, por exemplo, apontar que permitirá dizer que se trata de um pedido ou de compartilhar o interesse por um objeto ou evento. É o contexto e não uma intenção cognitiva que dá o significado ao gesto. O bebê sabe qual é a intenção da mãe por ter participado de atividades conjuntas similares no passado. O que ele faz não é compreender de forma empática o que se passa na mente da mãe, mas antecipar o que virá a seguir.

A noção de cenas de atenção conjunta de Tomasello (2003) parece muito próxima da noção de jogos de linguagem de Wittgenstein (1958b). Relembrando e parafraseando suas citações apresentadas acima, diríamos que: cenas de atenção conjunta extraem sua identidade e coerência da compreensão que a criança e o adulto têm de ‘o que nós estamos fazendo’ em termos de atividades; cena de atenção conjunta fornece o contexto intersubjetivo em que se dá o processo de simbolização; símbolos lingüísticos ou gestos são usados pelas pessoas para induzir outras a prestar atenção a certas situações perceptuais/conceituais de uma maneira e não de outra. De que maneira a pessoa deverá prestar atenção depende da cena de atenção conjunta da qual participa. Ao longo do processo de desenvolvimento, o símbolo passa a substituir o gesto com a mesma função indicativa e tira seu significado do contexto intersubjetivo, daquilo que as pessoas estão fazendo juntas, da cena de atenção conjunta.

Finalmente, a noção de regras tão importante na filosofia de Wittgenstein pela sua dimensão social. Ao contrário das concepções tradicionais cognitivistas, de cunho naturalista, que atribuem um papel causal às regras, além de reificá-las e localizá-las no cérebro ou na mente, a concepção de Wittgenstein atribui outro papel às regras da linguagem. Elas devem ser concebidas como regras pragmáticas e normativas, no sentido de estabelecerem a norma de uso, a partir de uma convenção social (LAMPREIA, 1992). Nesse sentido, as regras da linguagem não são inatas, mas adquiridas no contexto de interações sociais. Elas são adquiridas pelo bebê desde os primeiros meses de vida no contexto das situações estruturadas recorrentes, anteriormente mencionadas. E são dadas pela mãe no contexto das práticas em que ambos estão conjuntamente engajados. No início, ainda na fase da ação ou do gesto, não precisam ser explícitas, ou verbais, mas se dão sob a forma das respostas recorrentes da mãe às ações e gestos do bebê. A ritualização, que antecede a convencionalização do símbolo, parece ser uma demonstração do domínio de uma regra por parte do bebê. Mais tarde, as explicações e correções dadas pela mãe servirão de regras de uso convencional do símbolo/palavra fora de contextos específicos de aprendizagem inicial. Ou seja, agora, o uso da palavra ‘cão’ será generalizado para novos contextos; para novos cães, para novas imagens de cães.

A apresentação separada das noções de linguagem como ação, jogos de linguagem e regras teve o intuito de facilitar a análise, mas é claro que estão todas interligadas e constituem uma visão pragmática de linguagem.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência

Carolina Lampreia
E-mail:lampreia@puc-rio.br

 

 

Recebido em: 06/08/2007
Aprovado em: 08/06/2008
Revisado em: 22/09/2008

 

 

1As considerações da fenomenologia hermenêutica sobre este tema não serão aqui abordadas, pois para fazê-lo seria necessário realizar uma discussão epistemológica que está fora do escopo do presente artigo.
2Embora o termo “mãe” abranja o sentido de “cuidador”, ele será privilegiado aqui tendo em vista que a mãe costuma ser o principal cuidador do bebê.

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