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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.1 Rio de Janeiro abr. 2009

 

ARTIGO

 

Identidade narrativa: papéis familiares e de gênero na perspectiva de meninas ciganas

 

Narrative identity: Family and gender roles in a perspective of roma girls

 

 

Adolfo Pizzinato

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, Brasil Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta como algumas meninas ciganas da região metropolitana de Barcelona (Espanha) avaliam os papéis familiares e de gênero, tanto de uma perspectiva intra como intercultural (em relação à cultura paya)1. Para a obtenção desses dados, organizaram-se entrevistas grupais com meninas entre sete e nove anos de idade, participantes de atividades educativas extracurriculares em uma associação cigana de sua cidade. Os resultados apontam uma visão influenciada pelos valores tradicionais de sua cultura, com marcada diferenciação de papéis familiares e de gênero, tanto entre os diferentes subsistemas familiares, como entre a cultura identificada como cigana e a identificada como não cigana, também vista como mais flexível, ainda que não como mais positiva.

Palavras-chave: Papéis familiares; Papéis de gênero; Identidade cultural; Ciganos.


ABSTRACT

This article aims to present the way that some gypsy girls in the metropolitan area of Barcelona (Spain) evaluate the family and gender roles, from an intra and intercultural point of view (in relation to non-Roma - paya - culture). To obtain these data, group interviews with girls between seven and nine years old were organized, participating in extra-curricular educational activities at a Roma association of their city. The results indicates an evaluation strongly influenced by traditional values of their culture, with marked differentiation of roles of gender and family, among the different family’s subsystems, and also between cultural aspects identified as roma or non-roma, these one, seen as more flexible, though not as more positive.

Keywords: Family roles; Gender roles; Cultural identity; Gypsies.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta a avaliação que algumas meninas integrantes de um grupo etnocultural cigano da Catalunha (Nordeste do Estado espanhol) fazem sobre os papéis familiares e de gênero em sua cultura. Em diferentes lugares do mundo convivem (de forma melhor ou pior) grupos de origens etnoculturais distintas e, no contraste entre essas diferentes perspectivas, geram-se atitudes, conceitos (e preconceitos) e saberes utilizados para entender e relacionar-se com estes "outros". Esses "outros" não necessariamente necessitam ser entendidos como imigrantes ou minorias étnicas oficiais; podem ser pessoas que formalmente pertençam ao mesmo grupo cultural, mas, por definições de gênero e papéis familiares, figuram como atores sociais diferenciados em relação aos valores da cultura majoritária.

As relações que se estabelecem historicamente intra e intergrupos geram um script, um roteiro, que de alguma maneira simplifica - mesmo que por reducionismo - as relações entre os que se percebem como diferentes. Esses saberes são gerados das mais diversas formas, tanto formal como informalmente. Em muitas ocasiões, as teorias científicas e as elaborações intelectuais depositam-se na sociedade como um argumento de "sentido comum", como algo que se apresenta como óbvio, "natural", como uma certeza atemporal, e não como um produto histórico-cultural (LALUEZA; CRESPO, 2001). Inclusive quando tais teorias e elaborações perdem força ou são rechaçadas nos contextos onde foram produzidas, permanecem como ideias populares que servem de interpretação da realidade e articulam o discurso social (FOUCALT, 1969).

Processo semelhante se desenvolveu em relação ao discurso sobre o conceito de raça, elaboração antropológica do século XIX, que mais de um século depois, mesmo descartado por muitos(as)  antropólogos(as)  e biólogos(as), segue fortemente apegado no fundo de discursos que se estabelecem em torno das relações entre culturas humanas. Depois da Segunda Guerra Mundial, poucos(as) - ainda ousam classificar os seres humanos por seu pertencimento a raças, definidas como biologias diferenciadas (PIZZINATO; SARRIERA, 2004). No entanto, o velho conceito de raça, transmutado agora no de cultura, subjaz à pretensão de estabelecer uma hierarquia de estágios no desenvolvimento social, de forma que um sistema cultural pode ser colocado em um determinado grau de desenvolvimento (de mais primitivo, a mais moderno) a partir da avaliação de seu sistema de crenças, de sua atividade econômica e de sua organização social (LALUEZA; CRESPO, 2001).

A noção-chave nesse projeto cultural (mais ou menos consciente) é a de modernidade, entendida como um processo necessário, inevitável, que estabelece uma meta única para todas as culturas (SANTOS, 2001; PIZZINATO, 2003). Desde uma versão radical desta forma de pensar, as culturas se diferenciariam essencialmente em seu grau de modernidade, o resto seria acessório, folclore que adornaria uma via de sentido único no desenvolvimento histórico (LALUEZA; CRESPO, 2001). Sob essa perspectiva, aqueles grupos, cuja cultura é diferente da majoritária ocidental (euro-orientada), se encontrariam em um estágio inferior de seu desenvolvimento histórico-cultural. Necessariamente, algum dia haveriam de chegar a ser como nós (ou desapareceriam). Assim o melhor favor que se poderia fazer a eles/elas seria o de acelerar sua modernização. No caso de não o aceitarem, apenas estariam confirmando seu primitivismo e sua ignorância, tanto em relação aos valores sociais mais amplos, como em relação aos papéis e expectativas familiares e de gênero. Parece que a própria cultura majoritária perdeu gradativamente a noção de como essas definições foram sendo construídas e reconstruídas historicamente mesmo nos marcos culturais mais homogêneos. Essa naturalização dos saberes, das práticas e das definições de papéis sociais coloca qualquer elemento de "diferença" como algo anormal, ou a ser mudado ou, ainda, não evoluído o suficiente na direção dos valores globalizados.

Nesse sentido, por meio de um contato direto com grupos de origem étnico cigano, busca-se se aproximar o melhor possível de como os "saberes" tradicionais ciganos e o contato com os valores da cultura majoritária catalã engendram os conceitos familiares de desenvolvimento e de gênero em meninas ciganas de uma comunidade da região metropolitana de Barcelona. Se consideramos que o principal espaço evolutivo de (re)construção e (re)significação desses saberes e valores culturais é a própria família, é fundamental que se analisem algumas de suas características.

A etnia cigana tradicionalmente figurou como a única minoria étnica "oficial" (ou oficiosa) em uma sociedade relativa e oficialmente homogênea. Entretanto, com o crescimento das ondas migratórias e a forçosa modernização de uma Espanha cada vez mais vinculada aos ideais europeus contemporâneos, a própria relação com a minoria cigana passa a ser ressignificada. As velhas formas de conceber as famílias ciganas como representantes máximos de uma cultura tradicional e sua configuração de excluídos oficiais, hoje necessita ser revista na complexidade da sociedade espanhola contemporânea e globalizada, em um contexto multicultural de imigração recente e intensa.

Falar de família na atualidade, seja na Espanha ou não, nos leva a falar de diversidade e, no marco que se propõe este artigo, de diversidade cultural. Além da pluralidade com que devemos nos referir à instituição familiar, é certo que as definições de família, por mais variadas que sejam, residem hoje nas relações interpessoais, dando a ideia de que a família é antes de tudo um projeto relacional que não faz referência necessariamente a laços de sangue (GONZÁLEZ-TORNARÍA, 2000).

Os valores, atitudes e expectativas, que desta forma se transmitem, constituem o que alguns autores (GONZÁLEZ-TORNARÍA, 2000) chamam currículo familiar. Esse currículo familiar não está escrito - à diferença do escolar -, mas conta com objetivos, conteúdos, "metodologias" que determinam os signos de identidade de cada família, e contribuem para a geração de aprendizagens entre seus membros. As famílias se diferenciam não apenas pelos conteúdos, mas também pelos estilos com que transmitem esses conteúdos (MARTÍNEZ, 1996).

Lalueza e Crespo (1996) propõem que só conhecendo as condições ecológicas (de caráter eminentemente social) em que se dá o desenvolvimento, podemos compreender a linha que este seguirá, definindo as atividades a realizar e as habilidades necessárias para subsistir em um dado contexto. Assim, a cultura não é uma variável a mais, mas o marco no qual o desenvolvimento da família e de seus valores ganha sentido. Ela forma o "nicho evolutivo" no qual toda ação adquire significado, ao tempo que define o leque de canalizações que pode adotar a evolução dos indivíduos em cada microcontexto, ainda que esse microcontexto seja diretamente conectado com o macrocontexto maior onde está inserido (LALUEZA; CRESPO, 1996).

Essa perspectiva ecológica expõe a identificação com um currículo familiar e com práticas culturalmente relevantes; padrões culturais de comportamento, únicos entre indivíduo e grupo, como possíveis facilitadores à adaptação entre pais/mães e filhos em seu ambiente, além de valores, crenças e atitudes culturalmente distintas sobre paternidade/maternidade e desenvolvimento familiar, como elementos fundamentais para a compreensão deste microssistema (QUINTANA; VERA, 1999; LINDSEY; MIZE, 2000; OHAN et al., 2000).

Essa identificação com um currículo e com algumas práticas culturais significativas, no que diz respeito à concepção de papéis familiares, também abrange outra dimensão psicossocial importante, que é a validação das diferenças de gênero, tendo como base os valores tradicionais familiares e a ideologia de papel de gênero. Diferenças de papéis e expectativas de gênero são fatores de estresse e tensão em tais comunidades, sobretudo em relação aos novos contatos e formas de relação com a comunidade majoritária, que produz novas formas de relação cultural na contemporaneidade. Tais diferenças (em relação à pressão exercida em direção a papéis de gênero diferenciados) acabam por intensificar as diferenças psicológicas de herança etnocultural entre homens e mulheres de alguns grupos minoritários, como os ciganos na Catalunha, por exemplo.

Mas a leitura de gênero, ainda que fundamental, não deve obviar que nem sempre são úteis os postulados eurocêntricos das análises feministas mais frequentes no contexto cultural ocidental, em que a globalização parece marcar a tônica (DION; DION, 2001).

Uma análise que se pretende mais acurada no tocante às questões etnoculturais, deve considerar que o gênero é investido com um considerável significado social em diferentes sociedades. Como um construto social, o gênero refere-se a todos os deveres, obrigações e condutas em geral que uma determinada cultura considera apropriados para homens e mulheres. A identificação de uma pessoa como homem ou mulher é uma categorização social fundamental que pode ser dada pelos que a percebem como tendo grande valor informativo em relação a outras questões sociais (DION; DION, 2001).

Ainda que o discurso de gênero seja um fator crucial no processo de construção da identidade, para que se possa construir um marco referencial mais coerente com as demandas que a complexidade do fenômeno que se pretende discutir no presente artigo, é fundamental que seja considerado o papel da linguagem na construção do senso de identidade, seja ela familiar, de gênero ou étnica.

Nessa pesquisa, adotou-se um conceito de identidade de acordo com a postulada por Lopes de Oliveira (2006), em que a linguagem tem um papel central como expressão da identidade e como constitutiva de nossa experiência de mundo. Seguindo essa perspectiva sociocultural, o senso de identidade pode se expressar na forma de histórias - vividas, contadas, recontadas e intersubjetivamente transformadas. Esse caráter "narrativo" da identidade permite que se refira a ela como identidade narrativa. As histórias contadas por uma pessoa são simultaneamente uma prática social (dirigidas a uma audiência, estruturadas com base em uma língua pela qual a pessoa torna pública a experiência privada, e contendo crenças, valores e ideologias provenientes do contexto sociocultural), e uma atividade autoepistêmica (LACASA et al., 2005; LOPES DE OLIVEIRA, 2006; WORTHAM, 2000), por meio da qual o sujeito se reconhece e se transforma, ao gerar significados e comportamentos e ao assumir uma postura frente a eles.

Dessa forma, pode-se compreender que as narrativas das participantes constituem um contexto microgenético em que os sujeitos se apresentam publicamente e (se) constituem em relação ao espaço gerado pelo contexto socioinstitucional onde se insere a relação, uma noção de si sustentado intersubjetivamente (KOROBOV; BAMBERG, 2004; LOPES DE OLIVEIRA, 2006; PIZZINATO, 2007a; POVEDA, 2004). No contexto das interações discursivas, os sujeitos aprimoram estratégias retóricas que vão fornecer o suporte necessário para a constituição de um senso de si, ao mesmo tempo imaginário (apoiado em imagens sociais e pessoais) e discursivo. Essas estratégias visam ainda a garantir que o outro social, no contexto intersubjetivo, interprete cada um de modo coerente com o projeto subjetivo dele (BAMBERG, 2004; POVEDA, 2004).

Assim, considerando tal enfoque sociocultural e discursivo, estruturou-se uma abordagem investigativa, embasada na narratividade e na construção subjetiva da identidade de gênero, familiar e cultural de algumas meninas ciganas da periferia de Barcelona.

 

2 MÉTODO

Participou desta investigação um grupo de seis meninas ciganas (entre sete e nove anos), moradoras na região metropolitana de Barcelona, escolhidas intencionalmente por sua participação em atividades educativas extracurriculares junto à Associação Cigana de sua cidade. Tal associação, por de convênio com um grupo de pesquisa da Universitat Autònoma de Barcelona, coordena uma investigação de maior escopo no local. A coleta dos dados realizou-se por meio de entrevistas, em local combinado com as famílias (no caso, nas dependências da própria associação). Os tópicos que nortearam as três entrevistas foram suas noções de família, expectativas de papéis familiares e de gênero e considerações em relação à sua percepção da cultura paya.

Toda informação gerada foi digitalizada, ou seja, as transcrições das entrevistas grupais foram reunidas em um corpus único, seguindo a perspectiva proposta por Garay et al. (2002).

 

3 ANÁLISE DOS DADOS

Para a análise se utilizou a ferramenta informática para análise qualitativa de dados textuais Atlas/Ti. Essa ferramenta é um dos cada vez mais numerosos programas informáticos desenvolvidos para facilitar o trabalho dos analistas qualitativos, principalmente quando se encontram com uma grande quantidade de dados.  O Atlas/Ti está embasado nos princípios da Grounded Theory, ainda que permita ao analista realizar a análise praticamente sob qualquer perspectiva teórica.

Neste caso, não se pode afirmar que o método utilizado tenha consistido em uma análise tipo Grounded Theory clássica, posto que não cumpre alguns dos princípios de tal teoria, como poderia ser a de amostragem teórica, ou seja, a coleta e análise de novos dados à medida que avança o processo de análise e o analista considera necessário incidir nos aspectos concretos não abordáveis com os dados disponíveis. Por outro lado, a presente análise assume outro dos princípios fundamentais da Grounded Theory, uma vez que não se partia de hipóteses preconcebidas que se quisera pôr à prova, mas o objetivo aqui era o "descobrimento e desenvolvimento de teoria", tal como propõem Garay et al. (2002).

Na pesquisa qualitativa o desafio é dar sentido a uma quantidade massiva de dados, reduzir o volume de informação, identificar pautas significativas e construir um marco para comunicar a essência do que revelam os dados. Esta ideia de redução de dados é um dos princípios fundamentais de qualquer pesquisa qualitativa. Em outras palavras, seja qual for o marco teórico ou metodológico assumido pelo(a) pesquisador(a), a classificação, categorização ou codificação dos dados é uma das primeiras atividades que se realiza. Ainda que a presente análise tenha sido realizada utilizando-se o Atlas/Ti, o conceito de codificação empregado é mais próximo ao utilizado habitualmente na pesquisa qualitativa de caráter discursivo. Acodificação se processa mediante o desenvolvimento intencional e o "etiquetado" de conceitos no texto que o pesquisador considera de relevância potencial para o problema que está sendo estudado.

A codificação axial foi o seguinte passo na análise, posto que, uma vez criados códigos - tanto específicos como genéricos (categorias e subcategorias) - procedeu-se à identificação de relações entre os mesmos. O programa informático oferece a possibilidade de relacionar códigos entre si de forma simples, permitindo ao analista escolher dentre os tipos de relações previamente definidos no programa ou criando as suas próprias relações (de hierarquia, de intencionalidade, de relação direta, de antecipação temática etc.).  Essas relações (em terminologia Atlas/Ti: networks) representam graficamente os códigos e as relações percebidas pelo analista e permitem obter uma imagem rápida da ideia que se está representando, considerando os dados obtidos e o referencial teórico adotado (GARAY et al., 2002).

 

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio da análise do discurso das meninas participantes da pesquisa, pode-se entender uma concepção, um currículo familiar, desde a formação do casal, passando pelos rituais de casamento, de criação do filho, da divisão de gênero dos papéis familiares e do que se espera dos diferentes atores familiares, pais, mães, irmãos e irmãs, avôs e avós. Essa etnografia familiar também passa pela evidente diferenciação entre a comunidade cigana e a comunidade paya, ainda que na maioria das vezes essa diferenciação é apenas referencial, e não descritiva. Ainda que entendam que são diferentes da comunidade não cigana, sua situação de relativo gueto faz com que muitas dessas inferências sejam de caráter indireto, com representações mediáticas ou com estereótipos sociais muito marcados. Assim, ao estruturarem diretamente seu discurso sobre família, indiretamente começavam a estruturar o discurso de diferenciação de gênero e também o de diferenciação étnica. Esse processo, posteriormente, gerava um corpus discursivo mais coeso, em que esses mesmos eixos adotavam uma relação hermenêutica e acabavam por se justificarem uns aos outros, especialmente em relação à audiência a que se dirigia. Essa audiência, ao mesmo tempo que pode ser identificada como sendo as próprias participantes (em uma relação mais justificada), também, muitas vezes, poderia ser entendida como o entrevistador, ou seja, o participante "externo" ao eixo cultural compartilhado e que, portanto, necessita ser introduzido didaticamente no discurso compartilhado no contexto etnocultural de referência cigana.

Ainda que muitas vezes a representação dos papéis familiares, de gênero ou de identidade procurem dar uma ideia "do quão ciganas são", ou seja, do quão identificadas e conhecedoras de sua cultura tradicional essas meninas são, cabe ponderar dois aspectos muito importantes para o entendimento dos resultados. O primeiro diz respeito à noção de audiência (WERTSCH, 1993). Toda ação discursiva tem um receptor, ainda que suposto e, nesse sentido, o discurso dessas meninas precisa ser entendido como um discurso dirigido a um payo, como um discurso a não membros da comunidade e, portanto, carentes de determinadas informações vivenciais básicas do entendimento da vida cultural cigana. Ao mesmo tempo que isso identifica o pesquisador como alguém passível de ser enganado, também o identifica como alguém a ser temido, visto ser essa a lógica das relações sociais entre esses dois grupos nesse determinado entorno (PIZZINATO, 2007a, tradução nossa).

[...] os payo são muito estranhos... e não entendem bem as coisa... (participante R., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 34).

É que os payo se acham muito esperto, mas não sabem uma ova! [risadas] Sempre dizem muitas coisa de nós, mas não sabem a verdade, não sabe o que é ser cigano (participante S., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 12).

O segundo elemento a se levar em consideração é o quão valorizado na comunidade cigana é uma criança que conheça sua cultura tradicional. No nicho cultural cigano espanhol a noção e a manutenção de algumas tradições identificadas com a cultura tradicional cigana são extremamente valorizadas, o que pode ter gerado uma espécie de discurso investigativo nas entrevistas, buscando evidenciar para o pesquisador o quanto sabiam e, por conseguinte, o quão ciganas eram.

Ser cigano é respeitar aos mais velhos, é respeitar os teus pais, tua família, tuas coisas. É fazer bem, como sempre... Isso de que te "peçam", do casamento, da festa, do "lenço" [risadas]... isso é ser cigana... mas cigana de verdade! (participante M., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 34).

A Figura 1 apresenta o modelo construído para o entendimento do discurso das participantes.

Esse modelo sugere que a relação de um casal depende de sua idade, um dos marcadores importantes que justificam certos rituais, como o pedido da mão e as regras sociais de namoro, marcadas pelo controle familiar e social. Além disso, os rituais de casamento e de comprovação da virgindade da noiva e o papel dos pais do noivo na formação de um modelo para o novo casal são elementos fundamentais.  Caracteriza-se, assim, um modelo de definição de papéis sociais e de criação dos filhos definido pelo sexo, pelas pautas laborais e de criação dos filhos e pela centralidade da mãe na ordem familiar. Para o leigo em temas ciganos, talvez possa parecer exagerada a ênfase em tais processos. Entretanto, nesse marco etnorreferencial, o peso da família e dos rituais que a constroem é destacado na construção discursiva da identidade. Se a análise aqui seguir os postulados defendidos por Ogbu (1994), pode-se categorizar com facilidade o discurso das participantes como um discurso identificado com os valores "tradicionais", ou seja, do coletivismo, da lealdade familiar, das relações comunitárias e da necessidade de rituais e scripts de atuação bem definidos para a construção dos papéis sociais. Essa característica, ainda que possa referenciar certa rigidez frente às novas demandas da contemporaneidade, estabelece um terreno seguro para a manutenção dos valores culturais de um grupo etnicamente marginal.

Toda essa construção discursiva ainda é carregada de avaliações críticas quanto à diferença entre os modelos tidos como ciganos e os modelos tidos como não ciganos, um dos eixos fundamentais do discurso para uma audiência não totalmente familiarizada com todos os elementos presentes na referenciação étnica do discurso. Não que todos os elementos sejam básicos em seu eixo discursivo "interno", mas são fundamentais no discurso para um não cigano.

Boa parte do discurso do grupo faz uma referência exagerada às relações do subsistema conjugal. Na sociedade cigana, a família, junto com a idade, outorga papéis bem definidos a serem desempenhados. Como em boa parte das culturas tradicionais, existem rituais bastante marcados para as diferentes fases do ciclo vital (GREENFIELD; COCKING, 1994; OGBU, 1994). Por exemplo, a relação "oficial" entre um casal começa com o pedido de noivado, por parte da família do rapaz à família da moça.

- [...] e se os noivo querem... fazer suas coisa [risadas]... Tem que casar antes... e antes de casar, ser noivo... E antes de ser noivo, tem que se pedir... não é como com os payo, onde as mulher andam com muitos... (participante C., sessão de entrevista 3, segmento discursivo 24).

- Sim, mas a paya pode escolher melhor... eu gostaria de ter um namorado payo... são mais bonito... e ganham mais [salários]. E também, não te incomodam tanto, deixam as paya mais solta. (participante L., sessão de entrevista 3, segmento discursivo 33).

- Sim, mas para mim isso não é cuidar... um homem se compromete com o pai de sua mulher, a cuidar dela, e não deixá-la pela rua, com todo mundo olhando... promete ao seu pai... e o pai do marido também (participante S., sessão de entrevista 3, segmento discursivo 34).

Nesse sentido, as verbalizações ilustram que o matrimônio é uma questão social e cultural destacada, desde o ritual de pedimiento, quando duas famílias se põem em contato e começam uma nova relação que as unirá, indelevelmente, ao longo do tempo. As participantes, por exemplo, ilustram que, de acordo com a cultura cigana tradicional, quando esse ritual não se dá, supõe uma ruptura. Essa ruptura vai além do marco familiar, assume uma dimensão comunitária e também pressupõe um ritual social em sua negação, já que a exclusão (ainda que temporária) de seus papéis sociais também necessita ser ritualisticamente referendada pelo mesmo grupo cultural.

- Tem que pedir para ser namorado... Se não se pede, te rala... com teus pai e com os pais... fica muito mal falada, e daí ninguém vai querer que as outras moças falem com ela... O certo é o cara pedir à moça se pode pedi-la ao seu pai... se a moça diz que sim, o cara pede ao seu pai que a peça ao pai da moça... é coisa de família... (participante L., sessão de entrevista 4, segmento discursivo 6).

- ... sim, mas também o pai do cara pode pedir para um tío ir pedi-la... para garantir... um tío também pode dizer se o casamento esse convém... se são família, se a moça é boa... se já pode casá, se já menstruou, se pode ter filho... isso é o que se deve, é o cigano...( participante S., sessão de entrevista 4, segmento discursivo 7).

- Sim, mas existe muito "apayado" por aí... que se vão juntos como se não importasse nada... aí a coisa fede... (participante C., sessão de entrevista 4, segmento discursivo 8). - Por quê? (Ent. sessão de entrevista 4, segmento discursivo 9).

- Porque se expulsa... já não são gente boa, já não podem viver por aqui... aí o que devem fazer é ir viver com familiares de longe, e esperar que se acalme tudo... depois falá com um tío2 para ajeitar a coisa entre a família... se não, pode acabar com os payo... sem ninguém (participante L., sessão de entrevista 4, segmento discursivo 10).

 - Pobre do cigano que se vai e tem que viver com os payo... esses sofrem... os payo não aceita o cigano... vivem de quarqué maneira... o melhor é pedir desculpas e voltar... falar com um tío... se fugiu pá casá, é melhor... se fugiu por droga, é mais difícir... Os pai perdoam... já está perdida a honra (virgindade)... agora o melhor é perdoá pá que não se perca tudo... um cigano que não vive com um cigano está mal (participante R., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 16).

Além da questão ritual, a questão de idade também foi marcada pelas participantes. É fundamental ter em conta a idade das participantes e o viés que a dimensão evolutiva impõe à tônica do discurso, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo. Evidentemente que, se tal investigação tivesse sido desenvolvida com participantes adultas, os resultados teriam outro tom, já que boa parte dos fenômenos que tanto destacam em seu discurso foi vivenciada apenas na condição de espectadoras. Ainda que a chegada da primeira menstruação marque a entrada formal na adolescência da menina cigana, a adequação à legislação europeia e espanhola já não permite ver com naturalidade o casamento de uma menina de 12 anos, por exemplo. Isso, além de ilustrar um processo marcante de assimilação cultural da normativa da cultura majoritária (BERRY, 2001; SARRIERA, 2000) também ilustra uma "flexibilização" (muitas vezes negada pela cultura majoritária) e uma ressignificação de rituais tradicionais, ainda que em sintonia com outro aspecto da cultura globalizada, aparentemente contraditório: o estabelecimento de fronteiras culturais de identidade, em que a "ciganidade" possa ser mantida em segurança e, ao mesmo tempo, em relação com as formas majoritárias de relacionamento conjugal.

A obsessão pelas fronteiras de identidade se deriva do desejo, consciente ou inconsciente de procurar um lugar suficientemente confortável, acolhedor e seguro, em um mundo que se mostra selvagem, imprevisível, ameaçador; resistir à corrente, proteger-se das forças externas que parecem invencíveis, e que não se podem controlar nem deter. Seja qual for a natureza dessas forças, identifica-se pelo mesmo termo que confunde: a globalização (BAUMAN, 2006; PIZZINATO; SARRIERA, 2008).

Pelo fato de esta concepção ser indiscriminadamente usada, a contribuição da Psicologia para o entendimento da globalização tem sido ainda predominantemente indireta. Embora os efeitos indiretos da globalização em aspectos da identidade e da aculturação sejam descritos em pesquisas e teorias psicológicas, a globalização exerce uma influência primária em muitas questões da identidade atualmente, sobretudo pela mídia global (PIZZINATO, 2003; PIZZINATO; SARRIERA, 2008).

No ritual de noivado, que antecede o "namoro" formal na comunidade, é mais evidente uma postura tradicional, já que relatam ser fundamental a aprovação das famílias ou, em caso de litígio, dos "tios", ou do conselho de idosos da comunidade. Em caso de uma desaprovação à união, resta a fuga.

Segundo o relato das participantes, na maioria das vezes essa ruptura possui um caráter temporário, mas também existem aqueles casais que, com essa ruptura, rompem com o eixo cultural cigano, orientando-se para um estilo de vida identificado como da cultura paya, ainda que quase nunca acabem sendo aceitos totalmente por esta (CERRERUELA et al., 2001; SAN ROMÁN, 1998).

A ameaça ao eixo cultural cigano vai desde as proibições e estigmatizações das suas maneiras de vida até a recente (e crescente) necessidade de "europeização" de uma Espanha (ou no caso, de uma Catalunha) cada vez mais globalizada e identificada com o projeto cultural da modernidade e de seus derivativos (LALUEZA; CRESPO, 2001). Assim, o "território" cigano fica restrito às manifestações culturais aceitas, tal como el cante y el baile (PIZZINATO, 2007b).

Essas fugas, como bem ilustram as participantes, podem gerar muitas dificuldades ao novo casal. Primeiro, pela sua segregação e marginalização de seu grupo de referência (BERRY, 2001) e, em segundo lugar, pelas poucas possibilidades de integração com a cultura e comunidade catalãs de modo geral. Corre-se o risco de cair em um "vazio identitário", em que já não pertencem ao grupo de referência, pelo rompimento da norma, e tampouco apresentam os critérios para serem aceitos pela comunidade majoritária.

Quando a situação se dá de maneira positiva, supõe um casamento com grandes festejos e uma inevitável mudança do jovem casal para a casa da família do rapaz. Essa passa a ser a família de referência de ambos e os responsáveis formais e morais da jovem também. Depois disso, o esperado são os filhos, muitos e rapidamente, ainda que os dados demográficos indiquem certo descenso da natalidade neste grupo (DIPUTACIÓ DE BARCELONA, 2000). Segundo as participantes, a principal tarefa da educação dos filhos e filhas consiste em falar com eles.

- A moça se casa e vai viver com a nova família... o cigano é viver com a família do namorado... por um ano, pelo menos... A minha mãe me disse que ficou um ano sem voltar à casa de seus pais... depois de casar, os pais são os pais do marido... são eles que mandam (participante A., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 6).

- As mulher cigana, melhor que fiquem em casa, com os filho... com o marido, a sogra... se a sogra deixa, pode ir vender...  (participante R. 2:23).

- Mas... toda mulher que se casa tem filhos? (Entrevistador, sessão de entrevista 2, segmento discursivo 24).

- Claro! Se não tem filho é por que... [risadas]... Não funciona... com o marido [risadas]... (participante R., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 25).

- E como é ter filhos? Que se faz? (Entrevistador, sessão de entrevista 2, segmento discursivo  26).

- Se fala... se dá banho, se dá de comer... quando é mais velho se leva ao colégio... não sei... se fala... (participante L., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 27).

- Sim... minha mãe fala, e fala, e fala... me xinga muito... mas não cozinha... cozinha a minha avó... (participante R., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 28).

Além disso, identificam que as mães tendem a ser mais permissivas que os pais, que são consultados apenas em situações de maior gravidade. A educação da prole é tarefa quase que exclusivamente feminina: da mãe e da avó paterna, segundo seus relatos. Os pais e avôs são vistos como "guardiões morais", menos compreensivos e mais agressivos em seu controle, ainda que muito situacional.

- Os "vôs" são os que decidem as coisa... os que sabem... (participante L., sessão de entrevista 3, segmento discursivo 38).

- Se fazes algo errado... tua mãe te xinga... mas se é alguna coisa muito errada, tua vó te xinga, te bate... se é grave, se chama a minha vó... (participante I., sessão de entrevista  3, segmento discursivo 12).

Os pais e os irmãos tendem a ter um papel secundário no processo educativo, e as irmãs podem, depois de certa idade, desempenhar tarefas da criação dos irmãos mais novos. Uma família sem filhos homens pode gerar também uma predestinação de uma das filhas: a de ficar solteira e assim cuidar dos pais no futuro, já que não terão noras para fazê-lo.

Os "castigos" e punições são identificados com reprimendas verbais e castigos físicos, nos casos de desobediência.  Como a autonomia infantil não é algo que tenha um papel central na criação das crianças ciganas, o papel dos pais na decisão do certo e do errado é grande.

Ainda que identifiquem em seu discurso ambos os genitores como potencialmente punitivos, diferenciam hierarquicamente entre eles. Os pais castigam de maneira mais contundente, já que se ocupam de temas educativos considerados mais graves por elas. Esse resultado não surpreende, já que o peso do patriarcado é muito explícito no relato de vários pesquisadores em contato direto com a cultura cigana, sobretudo com as comunidades de postura mais tradicional.

- O pai não se mete muito... não gostam que a gente fale se estão vendo a TV, ou o futebol...

- Sim, mas se incomodam... batem... e não com pantufa... batem com a mão... mas só se fez alguma coisa muito grave... assim, de fugir, de bater nos pequenos... (participante I., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 10).

- [...] tem que se obedecer à mãe... sempre... assim é como faziam os antigos... se não se obedece... elas se irritam e gritam... (participante A., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 5).

Segundo as participantes, os ciganos e as ciganas são muito diferentes dos não ciganos e das não ciganas, ainda que não tenham conseguido definir muito bem em que consiste essa diferença. Onde isso fica mais claro, segundo elas, é na relação com o mundo do trabalho, em que os homens ciganos tendem a trabalhos esporádicos, informais e pouco remunerados em relação aos payos. Já segundo as meninas, as tarefas das mulheres são mais vinculadas ao lar e à venda ambulante, quando consentida pelos sogros e pelo marido.

- Os pai trabalham de qualqué coisa... de pedreiro, de vendedor, de cuidá construção ... (participante R., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 36).

- ... vender carro... (participante C., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 37).

- As mãe vendem... se precisa... se não, trabalham em casa, lavam, passam, limpam... cuidam os filho... (participante A., sessão de entrevista 2, segmento discursivo 18).

 - As paya... são muito assim... de trabalhá, não? Trabalham de professora, de enfermeira, médica, caixa... igual que um homem... (participante S., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 28).

- ... sim, não são como as cigana... o marido das paya não cuida muito delas... não lhes da de tudo, tem que trabalhá... (participante R., sessão de entrevista 1, segmento discursivo 29).

Essas frases ilustram, ainda que parcialmente, a necessidade de justificar a divisão do trabalho entre os gêneros dentro de uma perspectiva de cultura tradicional, ao mesmo tempo que ilustram aspectos marcantes da contemporaneidade, como a comparação e o estabelecimento de fronteiras entre os grupos. Nesse caso, a própria construção da identidade narrativa em relação a gênero e trabalho passa pela construção de uma identidade em oposição à da cultura majoritária.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados apresentados indicam que um dos principais conceitos discutidos aqui é o conceito de papel. Na Sociologia clássica, esse conceito se definia tipicamente como um conjunto de expectativas e comportamentos associados a uma posição específica na sociedade; tal como mãe, filho(a), amigo(a), e assim sucessivamente. Em um modelo ecológico de desenvolvimento, enquanto modelo de raiz sociocultural, dois componentes da definição poderiam ser sistematicamente diferenciados: as expectativas e o desempenho de papéis sociais. Especificamente, as expectativas de papel são vistas como determinadas, em primeira instância, pelo mundo exterior (cultura). As mudanças em expectativas de papel, usualmente levam às correspondentes mudanças em comportamentos e atitudes (ou seja, desempenho de papel) que, se persistem no tempo, conduzem mudanças no desenvolvimento (em sua concepção ecologicamente mais ampla). Assim, as expectativas de papel constituem aspectos flexíveis, fluidos no ambiente que, quando alterados, podem ter significativas consequências no desenvolvimento.

Os papéis sociais, desempenhados ou, especialmente, identificados no discurso das participantes, são elementos fundamentais na construção da sua identidade narrativa. Ainda que se saiba, pela aproximação direta com esses grupos, que os dados presentes no discurso dessas meninas não são absolutos em todas as famílias da comunidade, quando elegem tais temáticas e a ênfase que dão a elas, constroem sua identidade narrativa, caracterizando a si mesmas (em relação aos demais) por essas temáticas. Elegem como temáticas significativas do discurso exatamente aqueles temas que percebem como mais específicos e exclusivos de seu grupo em relação à cultura majoritária. Tal dinâmica também é paradoxal. Ao mesmo tempo que com isso reforçam os elementos culturais que as distinguem enquanto integrantes de um grupo cultural específico (no caso, cigano), afasta-as do eixo cultural majoritário, em que as meninas de sua mesma faixa etária não utilizam tanto os elementos ritualísticos de formação de papéis familiares e de gênero como constituintes de seu discurso de identificação narrativa.

Além disso, se consideramos a construção do discurso que apresentam essas meninas, podem-se identificar os principais interlocutores a quem é dirigida sua fala. De um lado, aos interlocutores formais, aos entrevistadores, identificados (e facilmente identificáveis) como payos, como não membros de seu referencial cultural tradicional; como claramente não ciganos e, portanto ignorantes de um conhecimento que elas possuem. Assim, parte do discurso se dirige a um tipo de ouvinte que, além de ser entendido como alheio a seu referencial cultural, é entendido como um "opositor" a ele, como alguém marcadamente crítico e potencialmente detrator da cultura cigana.

A outra face marcante do discurso apresentado era para elas mesmas, como se de alguma maneira necessitassem reafirmar ao seu próprio grupo cultural de referência, o quanto de fato são portadoras e reprodutoras de seu legado, apesar da contaminação com a cultura paya na escola e na comunidade em que vivem. Na encruzilhada identitária em que se encontram, sabem que face aos seus necessitam reforçar o quanto "sabem" ser ciganas, em um contexto em que figuram muitos tipos de marginados sociais, mas nenhum com o peso histórico de exclusão cultural como o coletivo cigano.

Assim, pode-se concluir que as participantes, em suas entrevistas, ilustram sua situação psicológica e suas representações de papéis familiares e de gênero de uma forma congruente com a contemporaneidade globalizada: um cruzamento de identificações culturais que integram a etnicidade, a etapa do desenvolvimento, a tradição e o sentimento de pertença a um grupo cultural, que se debate com uma nova forma de relacionar-se com as formas majoritárias de conceber as formas "validadas" de organização familiar.

 

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Endereço para correspondência:
Adolfo Pizzinato
E-mail:adolfo.pizzinato@pucrs.br

Submetido em: 12/06/2008
Revisado em: 04/02/2009
Aceito em: 31/03/2009

 

 

1 Termo pelo qual os ciganos espanhóis definem os não ciganos, pertencentes à cultura majoritária - ocidental europeia.
2 Tío é a forma como são referidos os anciões do grupo tradicional cigano. Não se refere a um parentesco direto, mas a um guardião moral, um "sábio" conhecedor da cultura cigana. Sempre um homem de mais idade, preferentemente grisalho e reconhecido pela comunidade.

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