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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.2 Rio de Janeiro ago. 2009

 

RESENHA

 

Revolução na Psicologia

 

Revolution in psychology: Alienation to emancipation

 

 

Fernando Lacerda Jr

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), Campinas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

(PARKER, Ian. London: Pluto Press, 2007. 265 p.)

Vivemos em um período no qual a pesquisa que capta a determinação reflexiva entre teoria e realidade, com o objetivo de criticar e transformar o mundo, perdeu espaço para propostas que, em última instância, desviam a atenção da pergunta central para aqueles interessados na mudança social: como superar as diversas formas de alienação e exploração na contemporaneidade? Esta é a questão que permeia o presente livro de Ian Parker, professor de Psicologia na Metropolitan Manchester University. O autor teve alguns de seus trabalhos sobre Psicanálise e Teoria Social lacaniana divulgados no Brasil. Já a obra resenhada é parte das discussões sobre marxismo e Psicologia como o livro "Psychology and society: Radical theory and practice" (PARKER; SPEARS, 1996) e trabalhos1 escritos após um período de diálogo polêmico com setores da Psicologia crítica2.

O livro é uma introdução crítica à Psicologia, analisando como esta funciona enquanto aparato de controle social. A bibliografia revista é impressionante e vemos uma abordagem histórica que problematiza a formação de um conjunto de profissionais que, usualmente, aderem ao individualismo e que estão prontos para dizer quem somos e o que devemos fazer de nossas vidas. O livro divide-se em doze capítulos que discutem: a origem histórico-social e as diversas áreas e abordagens da Psicologia, um balanço das propostas que se apresentam como críticas, o impacto na Psicologia de processos revolucionários do século XX, a presença da cultura psicológica nos círculos de esquerda, lutas psicológicas no presente e, por fim, um programa de transição para superar a Psicologia. A seguir apresentarei algumas das idéias principais do livro.

A "Introdução" discute o objetivo do livro: pensar como a Psicologia traiu a promessa de ajudar as pessoas e o que deve ser feito para que psicólogos contribuam com mudanças sociais. Para tal, é preciso entender o que é a Psicologia como experiência individual isolada dos outros e como disciplina. Os primeiros capítulos "O que é Psicologia" e "Psicologia enquanto ideologia" traçam as raízes sociais da disciplina em processos engendrados no capitalismo que transformaram a compreensão de cada pessoa sobre o seu lugar no mundo. Em condições sociais que demandam individualismo e competição, a Psicologia justifica uma ordem social desigual apontando as raízes desta na natureza humana. Em seguida, Parker discute como a disciplina foi construída. Inicialmente, a Psicologia buscou explicar delimitar um espaço próprio, com o fim de se tornar importante para autoridades estatais e para indivíduos que olhavam para si como entidades isoladas. A força fundamental por trás da Psicologia é a psicologização, isto é, a conversão de condições sociais e históricas de alienação em questões individuais e psicológicas.

Os capítulos seguintes - "A Psicologia no trabalho", "Patologizando o dissenso" e "Interesses materiais" - analisam como a Psicologia abordou o trabalho, a família, a ação coletiva, o comportamento individual e a vida cotidiana. Por exemplo, Parker discute como as teorias psicológicas hegemônicas naturalizaram vários processos sociais do capitalismo, tal como a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual ou a separação entre trabalho instrumental e trabalho emocional. A Psicologia olhou para as ações coletivas que enfrentam o capitalismo, mas foi assumindo a tese de que os desacordos e as ideias políticas vêm dos indivíduos e não dos grupos e, por isso, a ação coletiva seria irracional.

Uma análise importante é a relação da disciplina com redes de práticas com interesses políticos e econômicos específicos. Por exemplo, é analisada a relação da Psicologia com a Psiquiatria e a indústria farmacêutica que, a partir dos anos 1950, foi transformada graças ao sucesso do tratamento com drogas. Atualmente, o conhecimento "verdadeiro" sobre o comportamento é dado pela pesquisa sobre drogas que afetam processos biológicos que possibilitam o pensar e o agir e, neste contexto, a Psicologia apenas se subordinou às noções difundidas pela indústria farmacêutica. Alguns profissionais na Psicologia da saúde tentaram contestar o poder médico, definindo-o como subordinado à Psicologia, mas, em última instância, o que predomina neste campo da Psicologia são conselhos sobre uma vida saudável que reforçam a privatização e a desregulamentação neoliberal dos serviços de saúde.

A partir do sexto capítulo, Parker passa a criticar centralmente novas abordagens psicológicas e mostra como elas ainda são respostas psicologizantes às mudanças contemporâneas do capitalismo. São analisadas as abordagens que focam a emoção e a espiritualidade em oposição à "velha" Psicologia racionalista - que tentou eliminar toda experiência que não pode ser mensurada. No entanto, estas propostas não são alternativas, pois apenas mudam a ênfase de uma dimensão para outra, não superando a divisão reificada entre razão e emoção.

Outras novidades são aquelas que brotaram da percepção de que há algo errado com a Psicologia. Este é o caso das abordagens interpretativas, discursivas e críticas que surgiram como parte do debate sobre "novo paradigma" ou pós-modernidade. As diversas "psicologias críticas" formularam teses importantes, mas, em geral, perderam de vista o estudo do poder e reproduziram situações como a divisão entre quem fala e quem interpreta ou a eliminação do histórico e social ao afirmarem que "não há nada fora do texto". O foco na linguagem ainda é parte do processo de psicologização, pois alimenta a ilusão de que basta a criação de novas linguagens, novos discursos, para que mudanças substantivas ocorram.

Surgiram propostas progressistas para a Psicologia em momentos de revolução, quando noções hegemônicas de sociedade e indivíduo foram desafiadas. O oitavo capítulo discute como a atividade de mudar o mundo enquanto ele é interpretado revela a sociabilidade da individualidade e, assim, transforma disciplinas como a Psicologia. Parker resgata cinco choques revolucionários que atingiram a Psicologia: (a) a Revolução Russa de 1917 e o surgimento de novas ideias sobre infância, linguagem e desenvolvimento formuladas por Vygotsky e outros; (b) o acirramento das lutas anti-imperialistas e o crescimento de partidos comunistas pelo mundo impulsionando novas formas de conceber o ser humano, tal como fizeram Frantz Fanon, Lucien Sève e Klaus Holzkamp; (c) os levantes de 1968, representados nas discussões de Foucault sobre irracionalidade, disciplina, sexualidade e subjetividade; (d) o fortalecimento das lutas por direitos civis nos EUA, especialmente o feminismo da segunda onda que impulsionou reflexões críticas na Psicologia elaboradas por Donna Haraway e outras pesquisadoras feministas sobre o caráter histórico e situado de seu objeto de estudo e das generalizações teóricas que eram feitas a partir de pesquisas feitas com animais; (e) as lutas na América Latina impulsionadas pela Revolução Cubana que têm seu impacto representado na Psicologia da libertação de Ignacio Martín-Baró.

O nono capítulo aborda como a esquerda lidou com a cultura psicológica. Normalmente, círculos de esquerda olham para a Psicologia para buscar limites ou catalisadores para a mudança social. No primeiro caso há aqueles que tentam explicar as derrotas da política radical usando a Psicologia para mostrar que a natureza humana é um limite ontológico para mudanças. Já no segundo caso há tentativas de forjar uma "psicologia alternativa" - no sentido de uma experiência diferente do isolamento e do individualismo. Este é o caso de propostas norte-americanas como o coaconselhamento ou a terapia social, que enxergam na terapia a condição para a política radical. O problema é que a cultura psicológica incentiva as pessoas a buscarem possibilidades de mudança no seu interior, em vez de olhar para fora, resultando, muitas vezes, na hostilidade à política.

O décimo capítulo aborda lutas psicológicas que entraram em choque com o capitalismo e o Estado. Os elementos fundamentais que configuram as práticas de oposição são: luta contra aspectos disciplinadores da Psicologia; combate à psicologização; e ligação das lutas psicológicas com lutas políticas progressivas. São apresentadas quatro experiências de práticas de oposição na Psicologia: as lutas no campo da "deficiência" e da "competência" nas escolas, as lutas por desinstitucionalização (como a experiência italiana ligada à figura de Franco Basaglia), as propostas de construção de novas normalidades e a problematização da família no campo da terapia familiar sistêmica. O balanço do autor é o de que as práticas de oposição são limitadas e contraditórias, mas prefiguram práticas sociais importantes.

O capítulo 11 discute as possibilidades de um engajamento crítico na e contra a Psicologia, isto é, como é possível lutar por algo melhor que a Psicologia. O autor apresenta três condições para um engajamento crítico em relação à Psicologia: (a) debater o que significa natureza humana; (b) colocar a análise política como condição de toda discussão sobre o papel da Psicologia; (c) ligar as lutas no campo da Psicologia com lutas políticas mais amplas pela mudança social. Destas condições e a partir da análise apresentada nos capítulos anteriores, Parker apresenta uma série de demandas transicionais3 para ir além da Psicologia.

São apresentados quatro conjuntos de demandas com objetivos distintos: (1) dissolver a divisão entre experts dotados de conhecimento psicológico e aqueles que são alvo deste conhecimento; (2) eliminar as divisas que protegem e delimitam um espaço exclusivo para psicólogos atuarem na sociedade; (3) desmistificar o conhecimento e a pesquisa psicológica; e, por fim, (4) deslegitimar qualquer explicação "psi" da política. A forma como cada demanda é trabalhada depende de contextos particulares e da relação entre lutas psicológicas e lutas gerais na sociedade, assim como das alianças entre psicólogos e usuários de serviços psi. No último capítulo há indicações bibliográficas sobre estudos críticos da Psicologia4.

O presente livro possui diversos limites para uma análise crítica das teorias e práticas psicológicas produzidas no Brasil. Por outro lado, nele encontra-se uma importante contribuição para problematizar a função social da Psicologia enquanto complexo de práticas, experiências e técnicas que, em geral, não podem ajudar em processos de mudança social radical.

 

REFERÊNCIAS

Parker, I. (Org.). Social constructionism, discourse and realism. London: Sage, 1998.        [ Links ]

______. (Org.). Critical discursive psychology. Houndmills: Palgrave MacMillan, 2003.        [ Links ]

______. Cultura psicanalítica: discurso psicanalítico na sociedade ocidental.São Paulo: Idéias e Letras, 2006.        [ Links ]

______. Psychology is so critical, only Marxism can save us now. 2003. Disponível em: <http://www.psychminded.co.uk/news/news2003/oct03/psychologysocritical.htm>. Acesso em: nov. 2008.         [ Links ]

______. Critical psychology and revolutionary Marxism. Theory & Psychology,v. 19, n. 1, p. 71-92, 2009.        [ Links ]

______; Spears, R. (Org.). Psychology and society: radical theory and practice. London: Pluto, 1996.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Fernando Lacerda Jr
E-mail:fernando_lac@yahoo.com.br

Recebido em: 19/03/2009
Aprovado em: 14/05/2009
Revisado em: 11/05/2009

 

 

1 Ver Parker (2003) e Parker (2009).
2 Algumas polêmicas estão nos livros: Parker (1998) e Parker (2003).
3 A noção de demanda transicional foi elaborada por Leon Trotsky no "Programa de Transição" de 1938 que sintetizou o conjunto das experiências marxistas de luta teórica e política. Uma demanda transicional coloca uma necessidade dialogando com o nível presente de consciência das massas, mas de forma que possibilita a conclusão de que a satisfação desta necessidade só é possível mediante a ruptura com a sociedade atual.
4 Poder-se-ia questionar o fato de a obra não discutir as teses psicanalíticas. No entanto, é preciso lembrar que o autor, devedor das elaborações dos círculos lacanianos, faz uma clara distinção entre Psicanálise e Psicologia. A Psicanálise foi objeto de análise do autor em obra já traduzida para o português (ver, Parker (2006)).

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