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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGO

 

Proust-Deleuze: do aprendizado da vida ao aprendizado da arte

 

Proust-Deleuze: From the Learning of Life to the Learning of Art

 

 

Regina Orgler Sordi1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa contribuir para a compreensão da aprendizagem humana por meios das visões literária e filosófica de Marcel Proust e de Gilles Deleuze. Do romance, escrito pelo primeiro, e da análise filosófica, empreendida pelo segundo, surge uma compreensão da aprendizagem, que supera as concepções tradicionais, comumente voltadas para a aprendizagem da ciência. Se, para essa visão, a inteligência tem precedência para a aquisição do conhecimento, para a aprendizagem da arte, a precedência está no acaso ou naquilo que força a pensar. Caminhamos da razão para a sensibilidade, da sensibilidade ao signo, da recognição à decifração, da verdade da vida à verdade da arte, da existência à essência. São apresentados e discutidos os passos para a aprendizagem do artista, tal como Deleuze realizou em sua leitura e análise da obra de Proust.

Palavras-chave: Aprendizagem; Signos; Vida; Arte; Essência.


ABSTRACT

This article aims to contribute to the understanding of human learning through the literary and philosophical visions of Marcel Proust and Gilles Deleuze. From the romance written by the former and from the philosophical analysis made by the last, it emerges an understanding of learning that overcomes the traditional conceptions which describe the apprenticeship of science. If, for this vision, the intelligence has a precedence for the acquirement of knowledge, for the apprenticeship of art, the precedence is on the incidental, on what forces to think. We move from sense to sensibility, from sensibility to sign, from recognition to deciphering, from the truth of life to the truth of art, from existence to essence. There are presented and discussed the steps for achieving the apprenticeship of the artist, carried through Deleuze's reading and interpretation of Proust´s work.

Keywords: Learning; Signs; Life; Art; Essence.


 

 

INTRODUÇÃO

Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos (DELEUZE, 2006, p. 21).

O campo da aprendizagem humana é múltiplo e complexo, podendo, por vezes, ser comparado a um caleidoscópio em permanente movimento, no qual as combinações de espelhos e cores formam sempre novas e surpreendentes configurações. Por vezes, pensamos que todas as combinações já foram realizadas, mas ainda assim, movidos pela curiosidade, arriscamos mais um movimento e surpreendemo-nos com uma nova composição que subverte toda a ordem anterior. Onde antes predominava um amarelo brilhante, com alguns tons avermelhados ao fundo, agora irradia-se um vermelho formado de peças pontiagudas, que mal deixam revelar, em suas extremidades, o amarelo brilhante que antes quase recobria o todo.

Foi com essa mesma surpresa e fascinação que, na busca por novas compreensões sobre a aprendizagem, encontramo-nos com o filósofo Gilles Deleuze (2006), dissertando sobre a monumental obra de Marcel Proust - Em busca do tempo perdido (1983a)2 -, expondo o aprendizado de um homem de letras. As noções sobre a aprendizagem, até então prioritariamente estudadas pelas teorias psicológicas e em interlocução com outras áreas do conhecimento, foram abrindo o espaço para um encontro inusitado entre a Filosofia e a Literatura, ao mesmo tempo em que as peças coloridas do caleidoscópio rotaram gradativamente para fora do eixo central da imagem, espalhando-se por todos os lados, dando passagem a zonas obscuras e imagens enigmáticas. Sobretudo, renovou-se o olhar do pesquisador.

Este artigo tem por objetivo expor o significado de aprendizagem, na perspectiva de Deleuze e Proust, cujas compreensões divergem das concepções mais consagradas e que, com frequência, consideram a inteligência como uma condição sine qua non para o aprender. Visa igualmente aprofundar o significado da célebre frase de Deleuze (2006, p. 48): "A arte é o destino inconsciente do aprendiz".  

Para aqueles entre nós, dedicados a estudar o caminho percorrido por todo ser humano para construir o conhecimento capaz de organizar e simbolizar o mundo, o tema da inteligência sempre ocupou um lugar de protagonismo. Por um lado, a Epistemologia Genética e, por outro, as fecundas teorizações articulando conhecimento e afetividade, conceituaram a inteligência como a capacidade de adaptar-se ao mundo e solucionar problemas.  Piaget (1973) definiu a inteligência como um funcionamento que precede e engendra a lógica construtora do mundo, sendo concebida como a totalidade das estruturas mentais que o organismo tem à disposição em determinado período do desenvolvimento e que tem por função essencial estruturar o universo.  A ênfase recai, neste domínio, sobre a concepção de uma inteligência que precede e engendra, ou seja, sempre vem antes e é indissociável da construção do pensamento. Este, por sua vez, é o conhecimento válido, partícipe da tradição da ciência moderna, inaugurada por Galileu no século XVII, operando por leis gerais e sempre na busca de maior racionalidade. Mas é também um conhecimento aceito e explicado pela Filosofia, que orienta a análise filosófica do que significa "pensar".

De acordo com Deleuze (1988), trata-se de uma Filosofia que supõe o pensamento como sendo naturalmente reto, formado por faculdades concordantes, fundada no sujeito pensante - ergo logo sum - e se exercendo sobre o objeto qualquer sob a forma do Mesmo. É o Mesmo o que precisa ser representado pelo sujeito pensante, pois a lei já está conhecida antes mesmo de aplicá-la. Deleuze critica a utilização ou o elogio da generalização, que é da ordem das leis, uma vez que estas só determinam a semelhança dos sujeitos que estão a elas submetidos e a sua equivalência aos termos que designa.

A ideia filosófica apresentada por Proust, como mote da Recherche du temps perdu, é a de que o pensamento depende de um encontro com alguma coisa que força a pensar, a procurar o que é verdadeiro. E essa "alguma coisa" não é dada pela inteligência, que sempre vem depois. Pelo caminho de faculdades divergentes, em que cada uma descobre uma paixão que lhe é própria, conclui que somente a arte, na sua potência de atormentar, interrogar vitalmente, é que compele à busca da verdade. A precedência já não se encontra mais na inteligência, mas na própria coação ou no acaso. Se, para a ciência moderna, a verdade só pode ser buscada a partir do caminho lógico, traçado pelos ditames da própria ciência, para Proust, a verdade científica pode ser apenas considerada lógica, mas não necessariamente correta. Em O tempo redescoberto (1983b), diz que esta é tributária da inteligência, enquanto que a primeira pertence a um livro carregado de caracteres figurados, não traçados por nós, que antes de serem compreendidos pela lógica, precisam sofrer a coação do encontro para serem decifrados. E é esse livro de caracteres figurados que lhe interessa, pois ele é que "dá que pensar".

O caminho proposto, então, é o de que não podemos contar com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa, mas, ao contrário, contar com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de elevar e instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar (DELEUZE, 1988)

Trata-se de caminhar em outra direção, para um antilogos,3 uma não adesão à estrutura racional do discurso e encontrar os materiais sensíveis, que compõem o aprendiz de artista. Como explica Bellour e Ewald (1991), a Recherchenão é uma obra que explora a memória, mas uma obra emissora de signos, modos de emissão que se proliferam no meio de outras espécies de signos, dos quais se torna necessário descobrir a natureza, a matéria, o regime. Em se tratando de uma obra literária, Proust revoluciona, em 1913, com a publicação do primeiro volume da Recherche, as leis do romance: sua obra é fragmentada, num encadeamento de partes inconciliáveis, não compondo nem um todo que contém as partes, nem partes que exprimem um todo, do qual teriam sido arrancadas. Empreende-se numa labiríntica busca pela verdade, mas não uma verdade lógica, pressuposta pela Filosofia, e sim aquela revelada pelas rupturas  sobre o pensamento produzidas através da arte. Em se tratando da análise filosófica de Deleuze, a publicação de Proust e os signos, em 1964, revela-se um exercício essencial para o desenvolvimento de sua tese, publicada quatro anos mais tarde, intitulada Diferença e repetição, na medida em que permite formular uma Filosofia que se opõe à identidade e à representação, cuja matéria-prima já se encontra presente na obra literária de Proust. Há, portanto, como que o acoplamento de duas máquinas - a literária e a filosófica -, cujo movimento é sempre de ruptura de suas engrenagens e o produto, sempre estranho a uma ideia de identidade, fechamento e unificação.

No seguimento, o artigo buscará desenvolver alguns dos conceitos sistematizados por Deleuze - a primeira e a última palavra do aprendizado (como ele mesmo intitulou) -, bem como explicar o caminho do aprendizado fora dos eixos do sistema lógico. As considerações finais retomarão a motivação inicial da escrita deste artigo - o alargamento das noções relativas à aprendizagem - perspectivando esta temática na ótica Proust-Deleuze, cujo giro desloca o foco do homem como aprendiz de cientista para o homem como aprendiz de artista.

 

O CAMINHO DO APRENDIZADO

Primeira Palavra do Aprendizado: Signo

Costuma-se pensar que a aprendizagem se desenvolve e se organiza em um sistema lógico: sob a égide da inteligência, conectamos nossas observações, descobrimos leis e vinculamos as partes e o todo, dando uma coerência ao cosmos, onde antes era puro caos. Na tradição da Filosofia ocidental, Deleuze (1988, p. 224) intitula de recognição a esse modelo que se define pelo exercício concordante e harmonioso de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo, como visando ao idêntico.

De um lado, é evidente que os atos de recognição existem e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana: é uma mesa, uma maçã, é um pedaço de cera, bom-dia Teeteto. Mas quem pode acreditar que o destino do pensamento se joga aí e que pensemos quando reconhecemos?

Na Recherche, entretanto, o aprendizado dá-se por outra via, que não é a recognição. O que força a pensar é o arrombamento, a violência, e nada supõe a Filosofia do logos, tal qual no modelo da representação. Se o encontro já não é mais com o Mesmo, como pode ele acontecer? "Aprender diz respeito essencialmente aos signos" (DELEUZE, 2006, p. 4). Talvez, pensando com Deleuze, estejamos mais próximos a uma compreensão não filosófica da própria Filosofia, pois, enquanto esta última opera por conceitos, a primeira opera por perceptos e afectos. É da própria razão que emergem os afectos, efeitos de potência sobre a vida, e os perceptos, novas maneiras de ver ou perceber. Por isso, falamos em signos, não em representações. Os signos reenviam aos modos de vida, que resistem a todas as formas de captura, as possibilidades de existência.

O que é encontrado, só pode ser apreendido por tonalidades afetivas diversas - a ênfase, aqui, é sobre o que só pode ser sentido e é a esse respeito que o signo se opõe à recognição:

[...] pois o sensível, na recognição, nunca é o que só pode ser sentido, mas o que se relaciona diretamente com os sentidos num objeto que pode ser lembrado, imaginado, concebido. Ele pressupõe, pois, o exercício dos sentidos e o exercício de outras faculdades num senso comum (DELEUZE, 1988, p. 231).

O objeto do encontro, ao contrário, faz realmente nascer a sensibilidade no sentido: não é uma qualidade, mas um signo; não é um dado, mas aquilo pelo qual o dado é dado. Estamos, portanto, navegando num plano que não é  o do sujeito, nem o do objeto, tal como preconiza o logos em sua distinção entre o sujeito e o objeto do conhecimento racional. É a própria matéria que emite signos e não o dado em si mesmo, enquanto dado identitário. A matéria tanto podem ser objetos ou pessoas, mas não em suas formas acabadas e, sim, naquilo que emitem como uma qualidade, uma essência ou diferença. Sempre vindo de fora, o signo interpela por qualquer lado, forçando a pensar. Segundo Deleuze, já não se trata mais de um trabalho de recognição, mas de decifração, tal como o do egiptólogo que decifra hieróglifos.

Num primeiro momento, caímos na tentação de pensar que os signos são emitidos pelo próprio objeto. Nessa perspectiva, resta-nos ser o sujeito cognoscente, que, apelando para sua memória voluntária, e com a ajuda da inteligência, anseia por uma explicação sobre o objeto que contém os signos. Essa é a face objetiva do signo, na qual signo e objeto se confundem. Todavia, "o signo é mais profundo que o objeto que o emite, sendo o seu sentido mais profundo que o sujeito que o interpreta" (DELEUZE, 2006, p. 34). Pela mesma razão, a face subjetiva do signo não se confunde com o sujeito, já que a cadeia associativa de ideias, atividade puramente subjetiva, ainda não é o destino final do aprendiz. Para chegar à aprendizagem da arte, há que se passar pela decepção de renunciar, tanto à perspectiva objetivista, quanto à subjetivista:

A decepção é um momento fundamental da busca ou do aprendizado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não nos revela o segredo que esperávamos. [...] Cada linha de aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva em que reconstruímos conjuntos associativos (DELEUZE, 2006, p. 31-32).

Antes de podermos ultrapassar os estados de subjetividade e as propriedades de objetividade, deter-nos-emos um pouco mais sobre os sistemas de signos.

Na obra proustiana, os signos aparecem formando sistemas totalmente recusados pelo logos, por meio do qual a Filosofia delimita um método prévio para resolver um problema: na Recherche, os signos recortam o mundo sem formar relações entre continente e conteúdo, nem relações entre as partes e o todo. O estilo da escrita é o de multiplicação de pontos de vista em uma mesma frase, desenvolvendo velocidades segundo cadeias associativas e, novamente, dividindo-se em muitos mais pontos de vista diversos, não comunicantes - como partes ao lado de partes. Essa forma fragmentada do romance consegue traduzir uma bela imagem do tempo, característica fundamental para a compreensão do sistema de signos. Se o caminho do aprendizado passa pelos signos mundanos, amorosos, sensíveis, até chegarem aos signos da arte, tais como detectados por Deleuze (2006, este sistema não se dá de forma linear: há como que linhas de tempo privilegiadas, que atravessam cada sistema de signos, num movimento ascendente e descendente, em que cada sistema de signo participa de modo desigual. Uma vez alcançado o universo mais espiritual - signos da arte -, esse sistema arrasta consigo todos os outros, como um atrator caótico, conferindo um sentido totalmente novo para os sistemas que o precedem. O ponto de vista da arte constitui o aprendizado final. Na Recherche, os signos da arte reagem e retroagem sobre os outros sistemas e tempos - tempo que se perde (signos mundanos), tempo perdido (signos amorosos), tempo que se redescobre (signos sensíveis) - para conferir-lhes um caráter de verdade que, de outra forma, cada sistema em si mesmo não conseguiria alcançar.

Não fora, sob este ponto de vista, a própria natureza que me pusera no caminho da arte, não era ela o começo da arte, ela que tantas vezes só muito mais tarde, e através de outra, me permitira conhecer a beleza de uma coisa, o meio-dia em Combray pelo repicar de seus sinos, as manhãs de Doncières pelo ruído de nosso calorífico? A relação pode ser pouco interessante, medíocres os objetos, pobre o estilo, mas sem isso nada se faz (Proust, 1983b, p. 138).

Num primeiro nível, estão os signos mundanos, aqueles que descrevem a vida frívola e superficial de sua época, final do século XIX, primeiros anos do século XX. Segundo Deleuze, são signos vazios, que anulam o pensamento por sua carência de sentido, mas que, atravessados pelos signos da arte, se revelam ricos em suas zonas obscuras, pura emissão de signos. Ao caracterizar a burguesia que frequentava os salões, Proust (1983b, p. 139) escreve:

Exaltam-se ante as obras d'arte mais do que os verdadeiros artistas porque, não provindo de um duro labor de aprofundamento, sua exaltação derrama-se para fora, aquece as palavras, inflama a fisionomia: creem realizar-se ao gritar até perder a voz: "Bravo! Bravo!" após a execução da peça preferida.

Mais profundos que os primeiros, os signos amorosos dizem respeito aos segredos que o amante atribui ao ser amado, como portador de signos. Não são signos vazios, como os mundanos, mas enganosos. O engano parece ser a crença numa paixão amorosa pelo outro, quando, em verdade, o segredo do amor está em restituir uma harmonia perdida em nós mesmos, nosso hermafroditismo original. Como, nos encontros intersexuais, essa fusão originária nunca poderia ser alcançada, o amor é sempre enganoso e produz dor.

A potência de diferir encontra sua força maior nos signos amorosos. O que aproxima o amante do seu amado não é a soma das identificações que, num movimento retroativo, remontam à busca do objeto-mãe. O que aproxima não está nem no sujeito que ama, nem no objeto amado, mas num fundo que há na própria repetição de diferir de si mesma: não é o mesmo no outro, mas o outro no mesmo. É preciso esquecer os velhos amores para que surjam os novos, pois é o esquecimento que libera a potência de diferir.

O terceiro sistema da Recherche diz respeito aos signos sensíveis, qualidades e impressões que, por causarem um efeito imediato, já se diferenciam de seus precedentes. São signos, por excelência, que forçam a pensar, pois a qualidade experimentada, a sensação provocada, não aparece como propriedade do objeto, mas de algo diferente. Mesmo assim, ainda estão presos a certa materialidade e, frente a esta, o autor trabalha por analogias e associações: uma coisa faz-lhe lembrar ou imaginar outra.  Mesmo os signos sensíveis ainda portam uma certa opacidade.

Não é possível que uma escultura, uma música que dá uma emoção que sentimos mais elevada, mais pura, mais verdadeira, não corresponda a uma certa realidade espiritual. Certamente, ela deve simbolizar alguma, para dar essa impressão de profundeza e de verdade. Por isso, nada se assemelhava mais do que certa frase de Vinteuil àquele prazer particular que eu sentira algumas vezes em minha vida, por exemplo, diante dos campanários de Martinville, de certas árvores de uma estrada de Balbec ou, mais simplesmente, no começo desta obra, ao beber uma xícara de chá (PROUST, 1983c, p. 321).

Em busca do tempo perdido é uma obra magistral, que percorre o caminho do artista em busca de uma revelação que só pode ser alcançada pelos signos da arte, que são desmaterializados, espirituais. Chegamos, assim, à última palavra do aprendizado.

Última Palavra do Aprendizado: Essência

O caminho da arte implica uma ruptura com as cadeias associativas, sem, entretanto, negá-las, pois os signos sensíveis já são meio caminho para a realização da arte; todavia, é um caminho que se coloca ao lado dessas cadeias, num ponto de vista superior aos próprios indivíduos e aos próprios objetos. A escrita da Recherche, em cada frase, em cada parágrafo, anuncia os vários sistemas de signos, descreve os signos mundanos e amorosos, mas os faz, já atravessados pelo ponto de vista superior da arte. Por isso, a arte é um atrator caótico, que carrega junto consigo os outros sistemas. Para alcançar esse objetivo, que em nada segue a linha reta do romance, a Rechercheimprime um estilo antilogos, rompe com os pontos de vista exatamente ali onde eles tendem a se fixar, para, então, dividi-los em muitos outros: onde poderiam se assemelhar, advêm pontos de vista não comunicantes; e onde nunca se encontrariam, acontecem ressonâncias insuspeitadas. É no estilo transversal que a obra se compõe, "em que a unidade e a totalidade se organizam por si mesmas sem unificar nem totalizar objetos ou sujeitos" (DELEUZE, 2006, p. 161).

Toda a obra é uma busca pelo aprendizado. Mas o que é que o narrador da Recherche precisa apreender para aprender e realizar a obra arte? Ele precisa explicar o sentido do signo, na sua unidade, e não procurá-lo em outra coisa, como nas associações e analogias.

Não é suficiente "aprender da memória", nem por um retorno ao passado, nem por um conhecimento tão singular e subjetivo como a vivência de situações análogas, distantes no tempo e no espaço. Mesmo num patamar que não reflete uma simples associação de ideias, como a experiência das madeleines4("bolinho pequeno e cheio)5, e onde a lembrança involuntária intervém no aprendizado para abrir novos caminhos, o herói6 da Recherche não está pronto para entender o porquê. Qual a qualidade última, que não está nem na madeleine nem no herói? É disso que tratam as essências, última palavra do aprendizado. Elas ultrapassam os estados de subjetividade e de objetividade, são alógicas, constituindo a unidade imaterial e o sentido espiritual do signo, tal qual é revelada na obra de arte. Fragmentos de memória aparecem, mas que não servem mais do que como álibis para escrever sobre a experiência do tempo em seu desenrolar. A escritura da Recherche é a própria obra de arte em forma de literatura, a revelação para/do artista das essências que se expressam na liberdade de suas palavras, tão mais porosas do que as palavras pretendem ser e que se aliam para se confundirem umas às outras, mais emitindo signos do que significados acabados.

O aprender pelo caminho do signo, do sentido e da essência, leva à revelação. A essência é a própria revelação.

Entretanto, percebo ao cabo de um momento, depois de refletir sobre essas ressurreições da memória, que, de outro modo, impressões obscuras me haviam, já em Combray, no caminho de Guermantes, solicitado, tal como estas reminiscências, a atenção, encerrando, porém, não uma velha sensação, mas uma verdade nova, uma imagem preciosa que eu tentava desvendar por meio de esforços semelhantes aos que fazemos para recordar alguma coisa, como se nossas mais velhas ideias fossem músicas que nos voltassem sem nunca as termos ouvido, e buscássemos escutar, transcrever (PROUST, 1983b, p. 129).

Nisto consiste a superioridade da arte sobre a vida: "Todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual" (DELEUZE, 2006, p. 39).

Onde está a verdadeira Combray? De acordo com esse importante trecho, a Combray já não é mais a da percepção, nem a da reminiscência associada ao sabor da madeleine. Combray aparece como obra de arte, como não podendo ter sido vivida em sua realidade, mas totalmente nova, em sua verdade. Superando as relações entre causa e efeito, superando as pretensões realistas de descrever as coisas, o narrador verifica, a cada experiência, o que realmente se passa com ele e exprime, em palavras, esse "livro essencial, para o qual o escritor não precisa, no sentido da palavra corrente, inventá-lo, pois já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo. O dever e a tarefa do escritor são as de um tradutor" (PROUST, 1983b p. 138). Paradoxalmente, podemos dizer que a verdade aparece como uma traição ao artista, pois não é apelando para a boa vontade de sua memória que encontra a revelação, mas é Combray não vivida pela lembrança involuntária que o assalta de fora.

Por isso, devemos nos perguntar se é o sujeito que explica a essência, ou se é a essência que se implica, que se envolve no sujeito. Uma coisa é o sujeito exprimir o mundo, e outra é a essência que, uma vez experimentada, faz nascer o mundo, uma Combray totalmente nova, uma criação. A expressão da essência é explicada pelo narrador como aquilo que é mais difícil, trabalhoso, que independe da boa vontade da memória ou do desejo e, por infortúnio, é o mais relegado pela literatura, pois é dado como inexprimível. Buscar a impressão que provoca a experiência, deixando de lado o que constitui essa impressão, não extraindo dela nenhuma mensagem nova, dá a ilusão de uma comunicação entre espectadores que falam sempre sobre o idêntico, como se os mundos de todos os artistas fossem apenas um e não múltiplos.

O nascimento do mundo que se dá pela revelação da arte, impossível por meios diretos e conscientes, diferença qualitativa decorrente da maneira como o encaramos, é largamente explicado pelo herói da Recherche, em sua obra O tempo redescoberto:

Em suma, esta arte tão complicada é justamente a única viva. Só ela exprime para os outros e a nós mesmos mostra nossa própria vida, essa vida que não pode ser "observada", cujas aparências observáveis precisam ser traduzidas, freqüentemente lidas às avessas, e a custo decifradas. O trabalho feito pelo amor-próprio, pela paixão, pelo espírito de imitação, pela inteligência abstrata, pelos hábitos, é o que há de desmanchar a arte, na marcha em sentido contrário, na volta que nos fará empreender aos abismos onde jaz ignorado de nós o que realmente existiu (PROUST, 1983, p. 143).

Este trabalho do artista, em busca de uma diferença, que se acha sob a matéria, sob a experiência, sob as palavras, precisa de instrumentos que não são dados, nem pela memória, nem pela inteligência. Ambas participam, são necessárias, mas não constituem a matéria prima do aprendizado.

A seção seguinte, tratará sobre o caminho do aprendizado da arte, destino inconsciente do aprendiz.

O Aprendizado da Arte:

Deleuze nos diz que o essencial do aprendizado não é a memória, mas o signo e o tempo. Aprofundar o sentido do signo e desvencilhar-se do tempo que apenas passa, permite descobrir o segredo do aprendizado.

No começo de sua obra, o herói narra sua infância em Illiers Combray. Sua narrativa, entretanto, já está marcada, desde o início, pela não adesão aos fatos em si, convidando o leitor a empreender junto com ele uma exploração por caminhos não previamente traçados, apenas intuídos. Foram os signos que deram início ao seu romance, que, por sua vez, nasceu do singelo ato de degustar um pedaço de madeleine. Foi essa sensação, junto a uma colherada de chá que lhe provocou uma intensa felicidade, que deu sentido e unidade à busca do tempo perdido. Até então, o herói despertava durante as noites, assaltado por recordações de Combray, mas que eram fugidias, impalpáveis, como lanços luminosos. Ele sabia que aquilo era importante e tentava explicar aquela "Combray, consistindo em apenas dois andares ligados por uma estreita escada, como se nunca fosse mais do que sete horas da noite"(PROUST, 1983d , p. 44). Num esforço para compreender aquelas imagens recortadas de luz em meio a trevas, acabava resignando à memória voluntária, que lhe trazia uma Combray tal qual existiu no passado. Esta é também a memória da inteligência, aquela que, através de um exercício voluntário de representação, pensa encontrar o segredo do signo no objeto ou no sujeito com suas associações e analogias.

Sua obra, no entanto, não nasce deste esforço primeiro, da memória voluntária ou da memória da inteligência. Ela nasce da brusca sensação produzida pela despretensiosa mistura, em sua boca, da madeleine com o chá e associa a felicidade sentida, naquele momento, com o gosto da madeleine, em Combray, em sua infância, em seu quarto, nas manhãs de domingo, em que sua tia oferecia esse biscoito mergulhado no chá. Quantas vezes, em sua vida, vira outras tantas madeleines em confeitarias? Quantos anos se passaram? Por que haveria de ser naquele instante que a lembrança súbita apareceria? Esta é a resposta que somente a arte poderia dar.

Primeiro, há o trabalho da memória involuntária, experimentando a sensação que retirara nosso herói bruscamente do foco, da vida de todos os dias. Neste estágio, já estamos a caminho da essência, pois a memória involuntária é diretamente solicitada pelo signo sensível. Por sua vez, o signo ainda está preso, de alguma forma, às armadilhas do sujeito e do objeto, entre a relação material madeleine-Combray. A arte surgirá quando a sensação de provar a madeleine e o chá revelarem para ele uma nova Combray, tal qual um cenário de teatro, totalmente diferenciada,

[...] como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d´água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens, consistentes e reconhecíveis [] (PROUST, 1983b, p. 47).

Essa revelação, proporcionada pela memória involuntária, pode ficar, todavia, num plano de fugacidade, se não for pelo esforço do artista em fixar, na obra de arte, sua experiência de penetração no âmago da realidade/criação. É neste estágio avançado que a inteligência pura é chamada a extrair as verdades do efeito violento do signo, produzido pela memória involuntária. É neste estágio, também, que compreendemos que a essência já estava na lembrança involuntária ou na alegria experimentada do signo sensível. Por isso, uma vez revelada pela arte, o caminho de volta aos signos pode acontecer, mostrando que as essências já estavam lá, encarnadas nos objetos, nos odores, no tempo perdido. A obra Em busca do tempo perdido é uma nova tradução das essências que já estavam presentes na vida do narrador, mas que ele ainda não conhecia, e cujo exame das causas precisou adiar. Ele redescobre o tempo no tempo perdido, em que transitou pelos ocos e periféricos signos mundanos, para deles extrair uma infinidade de materiais até então inacessíveis para o artista: "nada provoca tanto a nossa curiosidade quanto como saber o que se passa na cabeça de um tolo" (PROUST, 1983b, p. 146).

Sob a pressão da sensibilidade, trabalha a inteligência, momento segundo na obra de arte. Se assim não fosse, saborear o bolinho apenas com o gosto da inteligência, se contentaria em localizar o período da infância em que este sabor foi experimentado, trabalhar sobre linhas estanques e superfícies fechadas. A inteligência chamada pela sensibilidade trabalha sobre o esquecimento da História, para reencontrar os personagens, não como foram vividos pelos fatos, mas como foram sendo inventados, criados, vividos intensivamente, inteligência pura, tempo puro, verdade última, vida em essência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo inicia e encerra com a mesma preocupação: buscar alargar a compreensão sobre a aprendizagem humana. Num primeiro giro do caleidoscópio, podemos vislumbrar uma figura dividida em duas partes que, embora divergentes, não se opõem entre si: uma delas diz respeito ao conhecimento como representação do mundo, enquanto a outra, diz respeito ao conhecimento como invenção do mundo. Trata-se das dimensões recognitiva e inventiva da aprendizagem. Para esta última, nosso caleidoscópio mais uma vez girado, já não mais se dividirá em duas partes, mas em uma série de pequenos fragmentos de espelhos coloridos, campos teóricos, cujas potências de invenção nascem justamente ali onde esses campos não se esgotam em si mesmos, onde ressoam com outras diferenças, outras linguagens, novas rachaduras. Nesse giro, encontramos os temas da estética, da dimensão receptiva do conhecimento, das ressonâncias corporais e afetivas advindas dos encontros com aquilo que surpreende, que provoca estranhamento. São encontros sígnicos, nos ensinará Deleuze; estamos num campo mais dúctil, as categorias de sujeito e objeto já estão bem mais borradas, mas ainda estamos no campo da vida. Somos decifradores dos mistérios, buscamos dar uma significação a cada segredo. Embarcamos na onda como egiptólogos a decifrar hieróglifos, mas por precaução e despreparo, consideramos acabada nossa tarefa quando o último signo é decifrado.

A máquina Proust-Deleuze propõe-nos outro giro, mais radical, para o qual as clássicas categorias do conhecimento já não têm mais utilidade.

Os signos da arte revelam que a busca não tinha de ser feita no contato direto, nem com a matéria, nem com as reminiscências, mas no contato direto com o si mesmo7. Já não se trata mais de um subjetivismo, porque não estamos no plano do sujeito dogmático, identitário. O contato direto com o si mesmo é também a saída de si, para contemplar o mundo multiplicado, cuja revelação pulsa sob a matéria, sob as palavra, sob a vida. Contato direto com a essência que, uma vez enrolando-se no sujeito, o exprime e o explica desde o ponto de vista da arte, necessariamente metamorfoseado, necessariamente outro.

O aprendizado que esteja precedido pela inteligência nos conduz a esclarecer aquilo que já estava claro, mas não nos pertence. Pertence ao mundo das leis mecânicas, que estabelecem relações entre as coisas, dadas como naturais. Uniformizam a percepção, ditam leis que organizam o mundo.

O aprendizado do artista não está precedido pela inteligência, mas pela sensação provocada pelo encontro com o fortuito, com o acaso. Não é a inteligência, mas o encontro que força a pensar; a gênese criativa que emana do signo e não do objeto identitário. É deste estranho encontro, portador de segredos, que o aprendiz extrai outras tantas leis, buscando decifrar os mistérios que a sensibilidade apreende no signo. A inteligência vem depois, para explicar seu sentido. Também não é com a inteligência do logos que o narrador irá escrever sua obra e nisso reside uma das facetas mais surpreendentes da Recherche: é a inteligência da arte, das essências, cujo poder é de não totalizar, não unificar, remeter ao sempre inacabado. Por isso, do aprendizado da vida, portadora dos mistérios, ao aprendizado da arte, decifradora das essências, qualidades diferenciais que vão além de qualquer conteúdo e desvelam um mundo único, jamais visto ou vivido, efeito do gênio do poder refletor e não da qualidade intrínseca do espaço refletido:

E como a arte recompõe exatamente a vida, em torno das verdades em nós mesmos atingidas, flutuará sempre uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério que não é senão o vestígio da penumbra que atravessamos, a indicação, marcada com precisão de altímetro, da profundidade da obra (PROUST, 1983b, p. 144).

 

REFERÊNCIAS

BELLOUR, R.; EWALD, F. Signos e acontecimentos. In: ESCOBAR, C. H. (Org.). Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991.        [ Links ]

DELEUZE, G. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 1988.        [ Links ]

______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.        [ Links ]

PIAGET, J. Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.        [ Links ]

PROUST, M. Em busca do tempo perdido. Porto Alegre: Ed.Globo, 1983a.        [ Links ]

______. O tempo redescoberto.  Porto Alegre: Ed. Globo, 1983b.        [ Links ]

______. A prisioneira:  Porto Alegre, Ed. Globo, 1983c.        [ Links ]

______. No caminho de Swann.  Porto Alegre, Ed. Globo, 1983d.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Regina Orgler Sordi
E-mail:sordi.voy@terra.com.br

Submetido em: 27/02/2008
Revisto em: 02/04/2009
Aceito em: 05/04/2009

 

 

1 A autora agradece aos alunos da disciplina "Proust e os signos - Leitura Dirigida", ministrada no curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional/UFRGS e que foram os principais inspiradores para a escrita deste artigo: Anna Luiza K. da Silva, Bruno Graebin, Eduardo S. Barcellos, Gilcéa V. Zanette, Juliane T. Farina, Maria Helena De-Nardin, Neusa K. Hickel, Nilce A. Cardoso, Regina L. Jaeger, Sandra Maria Kuhn e Selma A. Cavalcanti.
2 1) "No caminho de Swann"; 2) "À sombra das raparigas em flor"; 3) "O caminho de Guermantes"; 4) "Sodoma e Gomorra"; 5) "A prisioneira"; 6) "A fugitiva"; 7) "O tempo redescoberto".
3 Antilogos, termo apresentado por Deleuze (2006) para qualificar a Recherche como uma obra feita de fragmentos que não podem mais se reajustar, composta de pedaços que não fazem parte do mesmo puzzle,que não pertencem a uma totalidade prévia, que não emanam de uma unidade, mesmo que tenha sido perdida
4 "E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto" (PROUST, 1983d, p. 47).
5 "Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago" (PROUST, 1983d, p. 5).
6 Esta é a denominação que Deleuze atribui ao narrador da Recherche.A hipótese aqui sustentada é a de que o narrador é um personagem múltiplo, ora podendo ser Proust, ora Swann, efeito da condição de desestabilização identitária da obra.
7 O único modo de apreciá-las melhor, seria tentar conhecê-las mais completamente lá onde se achavam isto, em mim mesmo, torná-las claras até suas profundezas. (Proust, TR, p. 128).

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