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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGO

 

A contribuição de Tellenbach e Tatossian para uma compreensão fenomenológica da depressão

 

Tellenbach's and Tatossian's contributions for a phenomenological understanding of depression

 

 

Maria Edvania LeiteI; Virgínia MoreiraII

IUniversidade de Fortaleza (UNIFOR), Brasil
IIUniversidade de Fortaleza (UNIFOR), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A depressão, na atualidade, tem sido estudada sob as mais diferentes óticas e, também, tem sido alvo de crescente preocupação em virtude da repercussão do aumento dos índices epidemiológicos de sua incidência nos últimos anos. Compreender este fenômeno do ponto de vista da Psicopatologia Fenomenológica revela aspectos voltados à superação do modelo tradicional em Psicopatologia, propondo, a partir do contato com a experiência vivida da pessoa deprimida, um enfoque que priorize a ruptura com o paradigma da dualidade, e que não conceba o homem como um organismo puramente biológico, mas imbricado em sua história e sua cultura. Este artigo tem como objetivo apresentar a contribuição de Tellenbach (1969/1999) e Tatossian (1979/2006) para a construção desta perspectiva.

Palavras-chave: Depressão; Psicopatologia Fenomenológica; Tatossian; Tellenbach.


ABSTRACT

Nowadays, depression has been studied from very different perspectives and has also been object of concern due to increased repercussion indices of its epidemiological occurrence in the last few years. Understanding this phenomenon by the phenomenological psychopathology point of view has revealed aspects that lead to a further approach to traditional models in psychopathology, which suggests a focus that gives priority to a breakthrough with duality paradigm, given the contact with the experience lived by the depressed patient. This is a view in which man is not perceived as a mere biological being, but as someone who is openly overlapped in his story and culture. This article aims to present Tellenbach's (1969/1999) and Tatossian's (1979/2006) contributions for constructing this idea.

Keywords: Depression; Phenomenological Psychopathology; Tatossian; Tellenbach.


 

 

O FENÔMENO DA DEPRESSÃO NA ATUALIDADE

O fenômeno da depressão chama a atenção na atualidade, como se pode constatar pela grande quantidade de pesquisas desenvolvidas nesse campo, bem como pelo alto investimento da indústria farmacológica na medicação antidepressiva, cuja expectativa de resultados vem se tornando cada vez maior (DEL PORTO, 1999; MOREIRA, 2007; RODRIGUES, 2000; STEFANIS; STEFANIS, 2005; WIDLÖCHER, 2001). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) (em inglês, WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2008), desde a década de 1990 a depressão, considerada a quarta doença mais cara em todo o mundo, vem ocupando lugar de destaque no rol dos problemas de saúde pública. Ainda segundo a OMS, tal síndrome, no ano de 2020, será a segunda doença que mais afetará os países desenvolvidos e a primeira em países em desenvolvimento (LAFER; AMARAL, 2000; NASCIMENTO, 1999; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2008).

A prática clínica mostra que é grande a incidência de pessoas com diagnóstico de transtorno depressivo que têm procurado a psicoterapia, por conta de encaminhamentos médicos, como forma de complementar a terapia medicamentosa, por livre iniciativa, ainda sem diagnóstico médico, mas contaminadas por informações adquiridas nos mais variados veículos de comunicação. O trabalho com tais pacientes é desafiador, uma vez que eles buscam, na maioria das vezes, um bem-estar, para eles distante e inatingível, e se debulham em intermináveis queixas físicas e emocionais no sentido de se fazerem compreender em seu sofrimento (BERLINCK; FÉDIDA, 2000; WIDLÖCHER, 2001; REZENDE; MORAES, 2003; KEHL, 2009).

A depressão constitui um constructo diagnóstico complexo, que tem no humor deprimido e na perda de interesse os principais sintomas. Stefanis e Stefanis (2005) destacam que a depressão se apresenta, clinicamente, sob a forma de uma experiência afetiva (estado de humor), de uma queixa (considerada como sintoma) e de uma síndrome, definida por critérios operacionais, entre os quais se configuram: humor deprimido, anedonia (perda da capacidade de sentir prazer), perda de interesse, perturbações cognitivas e psicomotoras e sintomas vegetativos e de ansiedade.

Ao longo de nossa existência, estamos submetidos a situações e a eventos desagradáveis que nos fazem experimentar pesar, tristeza e sensação de que seremos alvo de tais sentimentos para sempre. Tal fenômeno, no entanto, pode ser considerado parte da experiência de vida de qualquer ser humano e não pode ser confundido com uma condição psicopatológica. Segundo Stefanis e Stefanis (2005, p. 13), confundir a depressão - um transtorno psicopatológico - com a atitude emocional que envolve os dramas humanos é questionável e pode gerar uma situação perigosa:

[...] em contraste com as respostas emocionais normais a eventos indesejados e estressantes, a depressão clínica é um transtorno mental, que devido a sua gravidade, tendência a recorrência e alto custo para o indivíduo e a sociedade, é uma condição medicamente significativa que precisa ser diagnosticada e tratada de forma adequada.

Portanto, a maneira mais adequada de distinguir uma atitude emocional transitória da depressão em sua forma clínica é o uso do termo "transtorno depressivo" (STEFANIS; STEFANIS, 2005, p. 13) para designar sua manifestação psicopatológica. Compreendemos que a preocupação atual de caracterizar e definir adequadamente o que usualmente se chama de depressão traduz a preocupação com a dimensão que ela vem assumindo na atualidade, sendo reconhecida como um problema prioritário de saúde pública.

Canale e Furlan (2006) apontam que, para a Psiquiatria Clínica contemporânea, a depressão é considerada como um transtorno de humor, não constituindo uma entidade clínica única, pois pode apresentar várias facetas e uma variedade de etiologias. Tal concepção contribui para a ideia da complexidade do diagnóstico em Psiquiatria e suscita a questão sobre qual seria o melhor critério classificatório em Psicopatologia.

Widlöcher (2001) destaca a complexidade do fenômeno da depressão e das diferentes lógicas que têm sido utilizadas na sua compreensão, seu diagnóstico e seu tratamento. Para ele, a posição dualista entre organogênese e psicogênese na clínica da depressão ainda se encontra fortemente enraizada na prática clínica, cuja tendência atual é o reducionismo, ou seja, conceber a depressão em seus mecanismos biológicos, tomando os fatores psicológicos por acontecimentos acidentais, sem valor desencadeante ou, no sentido inverso, a negação do fator biológico, em que se atribui uma coerência lógica entre o estado de humor do doente e as circunstâncias de sua existência. Ainda segundo Widlöcher, tal questão é reforçada pela necessidade de inserir a depressão em um modelo causal que revela, também, o permanente debate das relações entre o pensamento e o corpo. Neste sentido, afirma que

[...] por detrás do debate teórico entre a organogênese e a psicogênese se perfila uma posição entre duas formas de curiosidade científica e dois modos de prática clínica fundados sobre diferentes tradições de escola e ensinos, mas também sobre aptidões e gostos intelectuais distintos. [...] a posição dualista e o debate entre organogênese e psicogênese testemunham uma mesma dificuldade em aceitar a ideia de que a ação humana depende igualmente do funcionamento cerebral e do intercâmbio de informação com o mundo (WIDLÖCHER, 2001, p. 13).

Widlöcher considera, ainda, que, de acordo com uma abordagem clínica - que se baseie no surgimento, constância e evolução dos sintomas para chegar ao diagnóstico -, é necessário detectar os sinais (queixas e comportamentos característicos) correspondentes ao quadro clínico de uma doença. A observação do doente é fundamental. No caso da depressão, o processo torna-se bastante complexo, uma vez que o deprimido apresenta uma infinidade de queixas e características próprias da manifestação da doença, com traços objetivos e subjetivos que refletem uma condição concreta e individual. Por conta das particularidades da depressão (o conjunto de sintomas), Widlöcher descreve, na verdade, uma síndrome depressiva que pode se caracterizar por dois traços fundamentais: a tristeza e a lentificação psicomotora. Para ele, todas as descrições de depressão enunciam um conjunto de traços gerais que correspondem a essas duas características, estando os outros sinais associados a elas.

Ao descrever a tristeza do deprimido, Widlöcher (2001) afirma tratar-se de um sentimento que impregna todo o mundo subjetivo do doente. É, portanto, uma tristeza vital - marcada pelo remorso e nostalgia em face das recordações do passado, tédio e desinteresse em relação ao presente e apreensão em relação ao futuro -, que se apresenta como uma constante ameaça. A representação de si mesmo encontra-se desvalorizada e marcada pelo sentimento de incapacidade e de recriminação. A anestesia afetiva também está presente e marca tanto a relação com os outros quanto o interesse pelo mundo. A segunda característica apontada é a lentificação motora e de ideias, marcadamente presente na marcha, na postura e na mímica. No deprimido os gestos são lentos, o rosto perde a expressão, a voz perde a modulação e as respostas são pobres. É evidente a lentificação do fluxo das ideias e o pensamento arrasta-se sem vivacidade ou renovação.

Apesar de não ser concebido um diagnóstico de depressão sem que a tristeza vital e a lentificação psicomotora estejam presentes, Widlöcher (2001) nos adverte para os limites da abordagem clínica, pois são encontradas, em diferentes culturas e idiomas, particularidades diferentes para descrever a mesma sintomatologia. Neste sentido, apenas se pode conceber uma prática clínica da Psicopatologia que se proponha a ir além dos sintomas, tendo como suporte metodológico e teórico uma abordagem que rompa com o paradigma da dualidade e que não conceba o homem como um organismo puramente biológico. A abordagem fenomenológica está em consonância com tal perspectiva, o que é enfatizado por Tatossian (1997/2001a, p. 134-135):

[...] a fenomenologia, também, pode e mesmo deve fundar uma psiquiatria universal, na medida em que por método ela se proíba de separar o sujeito do objeto, o indivíduo do mundo, mais precisamente, do mundo humano. O vivido fenomenológico liga indissoluvelmente comportamento exterior e significação (significado). Contrariamente a uma opinião difundida, as análises do tempo e do espaço vividos, da corporeidade e de mundo, no sentido fenomenológico, são sempre implicitamente análises culturais, porque a subjetividade é sempre intersubjetividade e historicidade, quer dizer culturalidade. Isto explica a importância cada vez maior na psiquiatria fenomenológica da análise do Lebenswelt, do 'mundo da vida', ou melhor, do 'mundo da vida cotidiana'. A culturalidade humana é onipresente não como cultura abstrata, coisificada em termos de 'fatores culturais' de 'dados culturais', mas como cultura vivida.

Conforme podemos observar, o fenômeno da depressão envolve uma complexidade tal que exige um cuidado acentuado no que concerne ao seu processo de identificação. O fato de nos debruçarmos sobre tal tema se justifica pelo grande sofrimento a que estão submetidas as pessoas que, cada vez mais frequentemente, no mundo atual, vivem tal experiência. Neste sentido, os estudos de Hubertus Tellenbach (1969/1999) e Arthur Tatossian (1979/2006) podem contribuir sobremaneira para uma perspectiva mais abrangente sobre o fenômeno da depressão na atualidade.

 

A CONTRIBUIÇÃO DE HUBERTUS TELLENBACH

O Conceito de Endon

Para uma compreensão mais ampla do significado do transtorno depressivo na atualidade, faz-se necessário que se conheça, também, o significado do que é denominado, na Psicopatologia Fenomenológica, como typus melancholicus, a partir do pensamento de Tellenbach (1969/1999). Em sua obra são abordados os conceitos de situação, de tipo e de endon, no sentido de discutir uma importante questão da Psicopatologia: o problema da etiologia.

Há uma disposição para a doença mental? Esta é a principal questão que permeia a discussão sobre o caráter endógeno, em oposição ao exógeno, em Psicopatologia. O conceito de endógeno foi introduzido em Psiquiatria por Moebius, em 1892. O termo é proveniente da botânica e foi utilizado, inicialmente, para fazer oposição a externo. Para ele, os transtornos endógenos dependiam, fundamentalmente, de uma predisposição individual, tendo os outros fatores conotação secundária (PEREIRA, 1999). No entanto, o desenvolvimento de tal ideia manteve a questão da endogeneidade como um tema que gera muitas controvérsias, uma vez que se aproxima do somático, além de ter origem causal obscura. A dualidade imanente à Psicopatologia Tradicional proporciona à questão, portanto, um valor negativo.

Tellenbach (1969/1999, p. 164) aborda o tema da endogeneidade a partir de uma abordagem fenomenológica e analítico-existencial. Considera o valor positivo do caráter endógeno a partir da noção de endon - terceiro campo etiológico, não se limitando aos campos somático e psíquico:

[...] a psiquiatria distingue três grupos de transtornos: somatógenos, psicógenos e endógenos. Evidentemente, esta distinção repousa sobre uma delimitação de três campos causais. Os dois primeiros podem ser chamados soma e psique. O terceiro, até agora não tem nome. Por razões lógicas, deveríamos denominar endon o campo causal das alterações endógenas. 'Endógeno' quer dizer 'nascido dentro' (ou seja, na casa). 'Endon' designa, por conseguinte, uma origem e, neste sentido, também uma procedência.

Desta forma, o sentido de endon, para Tellenbach (1969/1999, p. 165), compreende

[...] a instância espontânea e original que se manifesta em certas formas fundamentais do ser-do-homem, e que essas formas fenomênicas - tanto em momentos de saúde como, e com maior razão, em momentos de psicose - são o que queremos designar como endógeno.

Partindo do fenômeno, não da instância causal, o endon, na concepção de Tellenbach, remete à globalidade, ou seja, ao campo fenomênico ou à corporeidade humana como totalidade, assim como à singularidade da experiência humana, ultrapassando o aspecto causal. Refere-se a tudo o que tem caráter vital no homem, mas que se apresenta como unidade. Tal originalidade peculiar ao endon precede e supera tanto o impessoal do biológico quanto o campo singular da existência.

Para Tellenbach (1969/1999), as chamadas psicoses endógenas constituem uma forma de exteriorização do endon,cuja natureza orgânica fundamental seria transformada pelo contato com o mundo ameaçador. O problema da disposição para o transtorno mental, sob tal ótica, nunca é a expressão direta de um fator biológico, nem independente ou, mesmo, um reflexo direto da existência individual de um ser humano. Para Tellenbach, a psicose endógena é, antes de tudo, uma modificação do Dasein1 a partir de uma condição existencial intolerável. Tellenbach (1969/1999, p. 168) considera, então, os processos endógenos como movimentos advindos de uma crise vital. Afirma que

[...] deve-se chamar enfaticamente a atenção para o fato de que em todos os processos endógenos - tanto os normais como os modificados - o homem nunca aparecem em sua realidade objetiva pura, nem em sua própria subjetividade. Sonho e vigília, comer e beber, criar e procriar: todos esses atos têm naturalmente u aspecto somático e um aspecto psíquico, dos quais, todavia, nunca se compreende mais do que uma única faceta. Por mais constitutivas que para certos métodos de nossa investigação sejam as distinções tais como interior e exterior, sujeito e objeto, físico e psíquico, a consideração dos fenômenos nos quais se desdobram o endon em manifestações endógenas nos conduz, apesar de tudo, a um nível que é transubjetivo em vez de transobjetivo, meta-somático ao mesmo tempo.

Conhecendo as particularidades do endon, podemos, então, contatar com o que se chama de situação nos fenômenos psicopatológicos. A Psiquiatria Tradicional considera a questão da situação, em Psicopatologia, tomando como referência a oposição entre somatogênico e psicogênico. Considerada de forma dicotômica, a situação em Psicopatologia marca a posição distinta eu/mundo ou psique/soma, de maneira que a situação passa a ser vinculada a um vivido psíquico ou a uma condição objetiva independente do indivíduo. Ou seja, a situação, para a Psiquiatria Tradicional é determinada pelos eventos de fora ou de dentro do indivíduo. Para a Psicopatologia Fenomenológica, a situação - ocasião ou conjuntura na qual emerge o fenômeno - deve ser considerada na interseção do universal com o singular.  Tellenbach afirma que a situação é operação constante do ser-no-mundo: é existência humana, espacialização e temporalização, e não pode ser considerada de outra forma senão como constituição do vivido fenomenológico.

Tatossian (1979/2006, p. 181), em consonância com tal concepção, afirma que

[...] não é menos verdadeiro que a situação não é nem o psíquico subjetivo, simplesmente 'acompanhado' de fenômenos somáticos, nem um conjunto infinito de dados objetivamente presentes, pois ela é projetada pela característica significativa disto que encontra (o sujeito) no mundo circundante e no mundo humano. A situação é indissoluvelmente situação do corpo vivido ao mesmo tempo histórico e mundano.

Portanto, é compreensível o lugar do corpo vivido no que concerne à observância dos processos psíquicos. O corpo vivido, que não é o corpo objeto da Anatomia e da Fisiologia, é dotado de significado e capaz de se expressar, sendo o veículo de comunicação com o mundo. Nesta perspectiva, é uma ressonância de nosso ser-no-mundo, sendo, também, movimento. É neste sentido, na relação com o corpo vivido, que a situação pode ser considerada constitutiva do ser-no-mundo, não um processo estático de causalidade, eminentemente psíquica ou somática. A partir desta ideia, Tellenbach (1969/1999) desenvolve a noção de tipo.

O typus melancholicus

Para Tellenbach (1969/1999), a noção de tipo não é aquela da Psiquiatria Tradicional - que ressalta a tipologia no sentido de predestinação ou desenvolvimento patogênico -, mas uma noção com base em uma atitude fenomenológica, na qual está presente o movimento. Não há, aí, oposição entre fatores constitucionais e do meio, nem relação causal com a situação. A noção de tipo foi desenvolvida por Tellenbach (1969/1999, p. 172) a partir da experiência imediata com os sujeitos, na sua experiência clínica, o que fez com que ele descrevesse o typus melancholicus:

[...] o que pensamos quando falamos de 'tipo' não é o resultado de medições, nem tampouco o de um esquema teórico - por exemplo, caracterológico - mas unicamente da intuição imediata. Obtemos traços essenciais do tipo melancólico não por meio da análise de propriedades e de sua estruturação sistemática, mas pelas experiências no encontro com aqueles que já foram melancólicos.

É tal perspectiva da Psicopatologia Fenomenológica que dá alma e vida ao contato entre o profissional e o paciente, pois não se trata de promover um enquadramento da descrição dos sintomas do paciente em um quadro nosológico específico para, a partir daí, escolher as ferramentas necessárias à compreensão do processo. Compreender a doença de acordo com a Psicopatologia Fenomenológica não é relegar a pessoa que sofre a um segundo plano, priorizando os sintomas, nem, tampouco, desvalorizar ou supervalorizar o campo no qual está imerso o fenômeno descrito pela pessoa. É compreender a pessoa e a doença em mútua constituição, em movimento, a partir de sua corporalidade, do corpo vivido, que é, também, espacialidade e temporalidade. Não se pode fazer tal descrição do vivido, a não ser no contato direto com a pessoa que vive a experiência.

No contato clínico com uma centena de pacientes que apresentaram um ou vários acessos melancólicos, Tellenbach (1969/1999, p. 172) descreve como "ordenalidade" o traço essencial do typus melancholicus. A aplicação, a escrupulosidade, a consciência do dever e a formalidade marcam a vida profissional, as tarefas diárias, as relações interpessoais e a relação consigo mesmo do tipo melancólico.

Mas qual a distinção entre a ordem imposta por tal tipo a si mesmo e a do sujeito comum - todos nós que vivemos sob a égide de uma sociedade rigorosamente competitiva? Segundo Tellenbach (1969/1999, p. 173), a falta de elasticidade, marcadamente presente nesse tipo, faz com que um traço de rigidez, um estar fixado, marque a atuação do tipo melancólico. Tal estar no mundo, relacionado à vida profissional, do tipo melancólico, é assim descrito:

[...] a exigência do próprio rendimento é, sem exceção, muito viva. O trabalho é sempre uma 'tarefa' que deve ser cumprida. Tem uma predileção pelo planejado, e sempre existe repulsão frente à improvisação. Realiza o planejado com a maior meticulosidade possível. As donas de casa esforçam-se pela limpeza mais escrupulosa; pode-se comer no chão. Toda atividade - importante ou insignificante - é executada com igual intensidade.

Compreende-se daí que, para o tipo melancólico, o sentido da própria existência está na tarefa, ou seja, a atividade assume valor existencial. A autoexigência e o esforço sobre-humano são, portanto, constantes nesse tipo, cuja meticulosidade nas tarefas é o imperativo. Depreende-se daí que tanta exigência e meticulosidade com que realiza uma tarefa podem comprometer o volume de trabalho realizado, sendo a relação inversa também verdadeira, o que faz com que tal tipo aumente mais ainda o caráter obsessivo de seu traço para que nem a quantidade de trabalho nem a perfeição do resultado sejam comprometidas:

[...] semelhante círculo de exaltação da autoexigência no rendimento, por um lado, e da minuciosidade, por outro, pode ser pernicioso e facilitar o desenvolvimento de uma depressão. (TELLENBACH, 1969/1999, p. 173).

Outra característica de tal tipo, descrita por Tellenbach (1969/1999), diz respeito às relações inter-humanas. Segundo ele, tal aspecto é vivido pelo tipo melancólico de duas formas bastante evidentes: o "ser-para-o-outro e o ser-um-com-o-outro" (TELLENBACH, 1969/1999, p. 173). Tais aspectos evidenciam uma existência em que o sentimento de amorosidade não é possível, ou não é o bastante, sendo sua importância para o outro medida pelo grau de rendimento de tal relação, ou mesmo com uma ligação simbioticamente firme que provoque a sensação da impossibilidade de ruptura, seja por separação ou por morte. Segundo Tellenbach, tais características, da esfera da convivência, são especialmente marcantes na relação com o cônjuge e com os filhos e geram significativos problemas, principalmente quando há a impossibilidade da realização do domínio, nas circunstâncias de adoecimento e de envelhecimento, ou na possibilidade de vivenciar a solidão.  Como podemos observar, o caráter rigoroso, que marca a existência do tipo melancólico, é, também, aplicado às suas relações com os outros. Tellenbach considera, ainda, que esse mesmo traço possa ser encontrado na forma como o sujeito lida consigo mesmo. A tal traço, deu o nome de escrupulosidade, afirmando que

[...] o depressivo revela uma extraordinária sensibilidade da consciência moral, de tal modo que a mesma tem perante tudo uma função proibitiva. Está atento a evitar toda a culpa, por pequena que seja; e quando se vê carregado por alguma, esta é rapidamente anulada por uma conduta expiatória (TELLENBACH, 1969/1999, p. 174).

Sentir-se sob a pressão da culpabilidade é, portanto, o pior dos males para tal pessoa. Ela mesma é capaz de se impor as mais terríveis culpas, dada a notória intolerância consigo, a presença de uma consciência moral bastante rígida e o fato de, na maioria das vezes, se impor tarefas cujo grau elevado de exigência pode levar ao seu não cumprimento.

Para a Psicopatologia Crítica (MOREIRA; SLOAN, 2002), a "ordenalidade" (TELLENBACH, 1969/1999, p. 172), conforme descrito por Tellenbach, seria perfeitamente aceita no mundo ocidental, que instiga a produção constante e competitiva:

[...] acredito que o typus melancholicus é culturalmente adequado ao mundo ocidental capitalista, na medida em que tem características de personalidade que são bem vindas a uma ideologia que pretende manter o status quo (MOREIRA; SLOAN, 2002, p. 194).

Desta forma, a autoexigência ingênua do tipo melancólico é compatível com as exigências da sociedade moderna, que, muitas vezes, impõe ao sujeito a manutenção da ordem prevista. O espírito de ordem, conforme descrito por Tellenbach, que envolve um alto grau de exigência nos papéis profissional, social e íntimo, pode gerar um grande sofrimento psíquico para o sujeito, mas, ao mesmo tempo, atende às necessidades de uma sociedade cujo caráter individualista reforça tais posturas fundamentais à manutenção do modelo cultural da desigualdade social.

Para Tellenbach (1969/1999), o mundo da ordenalidade em que vive imerso o tipo melancólico tem importância patogênica, pois predispõe a encerrar o indivíduo dentro de limites rígidos, dificilmente transcendidos. É assim, muitas vezes, que se apresenta a pessoa em depressão: presa em limites autoimpostos e restrita em sua corporalidade.

 

A CONTRIBUIÇÃO DE ARTHUR TATOSSIAN

A Crítica aos Modelos Classificatórios em Psicopatologia

Como podemos compreender o diagnóstico e a classificação psicopatológica do ponto de vista da fenomenologia? Consideramos tal questão bastante instigante, e seu eixo central encontra-se na superação do pensamento dualista. Assim, como compreender o diagnóstico da depressão sem incorrer no equívoco de fazer uma passagem do modelo médico ao modelo filosófico ou antropológico, e sem desconsiderar o entrelaçamento entre eles? Para tanto, é fundamental que busquemos uma postura crítica diante de tal modelo, sem desqualificar as categorias diagnósticas e sua importância como trabalho de investigação. Compreendemos que diagnosticar é apenas um dos momentos na compreensão dos fenômenos psicopatológicos. A partir daí, podemos fazer contato com a experiência vivida da pessoa diagnosticada e, de fato, compreender a sua patologia para além da sintomatologia.

Encontramos no pensamento de Tatossian (1997/2001b), ao se referir às relações entre psiquiatria e cultura, uma importante contribuição para a postura crítica em relação aos modelos classificatórios da Psicopatologia. Ele critica o relativismo cultural no que concerne às noções de normalidade e de anormalidade: "a cultura pode influir sobre os quadros clínicos e sobre a validade das teorias, mas também sobre a definição do normal e patológico" (TATOSSIAN, 1997/2001b, p. 139). Ou seja, não se trata de reconhecer um mesmo comportamento, apenas diferenciado pela influência cultural, mas, além disto, trata-se de reconhecer o vivido como fenômeno em que o horizonte cultural de um comportamento subjetivo faz parte da sua compreensão. É em tal concepção que se fundamenta uma prática clínica que não se limita ao sintoma: "[...] uma tal psiquiatria, não pode se ater ao plano do sintoma e deve operar ao nível da significação que é o que unicamente decide o que é normal ou anormal e os diversos tipos de normalidade" (TATOSSIAN, 1997/2001a p. 133).

Os estudos da Psicopatologia Fenomenológica, assim como as pesquisas transculturais, podem demonstrar em que medida o olhar para o fenômeno psicopatológico, com isenção da visão naturalista e dicotomizada, pode contribuir para um enfoque em que a pessoa, e não apenas os sintomas, seja priorizada. Para Tatossian (1979/2006, p. 25),

[...] a fenomenologia se define, com efeito, por uma mudança de atitude que é o abandono da atitude natural e 'ingênua', quer dizer, uma certa atitude onde, psiquiatras ou não, apreendemos isto que encontramos como realidades objetivas, subsistindo independentemente de nós, quer sejam realidades psíquicas ou materiais.

Ele discute as relações entre a Psiquiatria e a Filosofia, intermediadas pela Fenomenologia, propondo um novo caminho que contemple a experiência psiquiátrica, mas que não seja nem totalmente descritivo nem essencialmente filosófico. Uma das principais consequências de tal forma de lidar com a experiência psiquiátrica é a distinção que o psiquiatra fenomenólogo faz entre sintoma e fenômeno:

[...] os fenomenólogos precisamente, não se interessam pelo sintoma, mas pelo fenômeno, no sentido heideggeriano do termo, tal como o apresenta Tellenbach e, neste sentido, o fenômeno que corresponde ao vivido de Glatzel não é alcançado imediatamente por intermédio do comportamento material, mas é diretamente dado na experiência psiquiátrica, na condição de que ela se faça experiência fenomenológica, que é mais do que experiência empírica no sentido usual, enquanto sendo mesmo totalmente experiência e não inferência (Tatossian, 1979/2006, p. 42).

Assim, a proposta de Tatossian de uma Psicopatologia Fenomenológica consegue atingir seu objetivo, pois se propõe a unificar a experiência positivista-objetiva e a experiência fenomenológica-eidética - na qual não há nem a predominância da postura filosófica nem da Psiquiatria clássica -, e propicia a ideia de uma nova construção teórica, que transcende as duas posturas no encontro com a pessoa em sofrimento.

A Experiência da Depressividade

Qual a natureza da experiência melancólica? No que diz respeito ao sofrimento, tal experiência não pode ser comparada ao sofrimento natural, pois se trata, nas palavras de Tatossian (1979/2006, p. 117), de um sofrimento "anormal, pervertido, deformado". Assim, Tatossian diferencia o sofrimento normal, experimentado pelo ser humano sadio ou pelo deprimido reativo, do sofrimento melancólico, que é considerado uma experiência completamente estranha, até mesmo para quem a vive. Ele propõe um estudo crítico das relações entre a afetividade e o sofrimento melancólico para conhecer sua natureza e se aproximar da tristeza em tal experiência.  É como se nem mesmo a tristeza pudesse, de fato, ser sentida pelo indivíduo, que não sustenta mais do que um sentimento de vazio, de petrificação, de não viver. O distanciamento do sentimento marca a experiência de não sentir do sujeito melancólico. Tatossian se refere a tal experiência como a experiência da depressividade. Portanto, lança mão do conceito de "tristeza vital" (TATOSSIAN, 1979/2006,  p. 117) para explicitar tal questão: de fato, a descrição do sentimento melancólico parece ser de tal ordem que afeta todo o ser. A tristeza é localizada tanto no seu corpo, quanto é associada aos vividos por meio de queixas e sensações corporais - o que, talvez, iniba os sentimentos pessoais, já que a experiência no corpo parece ser extremada. Neste caso, no contato com o fenômeno da melancolia, deve ser priorizada não a tristeza, mas o caráter vital de tal experiência. O problema da tristeza como reação ao vivido nuclear, na melancolia, leva Tatossian a considerar a melancolia como distúrbio do humor, não do sentimento: "o vivido nuclear da melancolia não é, portanto, a tristeza, mesmo que ela seja vitalizada, mas resulta da alteração da Stimmung (humor) ou da afetividade-contato" (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 120).

A melancolia é considerada por Tatossian (1979/2006) na perspectiva do corpo próprio, afirmando que a tristeza melancólica não tem movimento: o eu assiste à sua tristeza, sendo incapaz de entrar em relação com ela. Tal incapacidade invade, também, toda a ação, causando uma inibição vital e um vazio temporal: "a tristeza melancólica é um tipo de vivido perceptivo do corpo próprio em sua globalidade e da corporalidade como modo de ser humano" (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 122). Traduz o vivido corporal do melancólico a partir da ideia de "corpo-portador" (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 122), ou como aquele que não é senão peso e carga insuportável. Nesta perspectiva, perde-se a noção de fluxo contínuo no vivido corporal e a experiência constante de peso não dá lugar à afetividade, que se aniquila ou se torna estranha para o sujeito. Carregar o peso do próprio corpo, de forma constante e ininterrupta, faz com que o melancólico leve o mundo, a identidade e os papéis sociais a eles atribuídos, a sério demais, sem considerar a sua própria subjetividade como liberdade. Como já tratamos antes, Tatossian relaciona tais questões aos estudos de Tellenbach (1969/1999), que o levaram a descrever um typus melancholicus.

Outro aspecto considerado por Tatossian (1979/2006) em relação ao corpo melancólico consiste na perda da comunicação com outrem, implicada pela atrofia da confiança. Tatossian afirma que, neste aspecto, há impossibilidade de o melancólico  relacionar-se com o outro como indivíduo, uma vez que os processos relativos à experiência vivida do sujeito são mediados pelo corpo e, na melancolia, ele vivencia uma anestesia afetiva.

A concepção de Tatossian (1979/2006, p. 119, 122) da melancolia como experiência de depressividade parece demonstrar que tanto o caráter de alteração da Stimmung (humor) quanto o caráter do "corpo-portador" ou o distúrbio na "afetividade-contato" convergem em direção à alteração do tempo vivido. Tal questão é considerada fundamental para Tatossian (1979/2006, p. 125) na descrição da experiência melancólica:

[...] nos anos 1920, Minkowski e Strauss, seguidos por Von Gebsattel, descobrem, cada um isoladamente, como 'distúrbio fundamental', 'sintoma axial' ou 'distúrbio gerador' da melancolia, a alteração do tempo vivido, e esta independência evoca que a época estaria madura para a compreensão temporal, iniciada por outros autores como Pierre Janet.

Quando nos referimos a tempo vivido, nesta perspectiva, não tratamos do tempo das coisas do mundo - do tempo dos relógios -, mas de um tempo propriamente humano. Tatossian distingue o tempo transitivo, ou transcendente ao vivido, do tempo imanente ao vivido, ou tempo do eu. Na melancolia há estagnação do tempo imanente, pondo o sujeito em contato com a impossibilidade do futuro.

A estagnação do tempo vivido, no melancólico, implica, também, a perda do poder ou a incapacidade basal para a ação:

[...] ser melancólico é fundamentalmente não poder comer, pensar, compreender, trabalhar, fazer amor, mas é também registrar cruelmente esta incapacidade e, portanto, também sempre ensaiar agir, lutar contra o inacabamento obrigatório das ações (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 128).

Há, aí, segundo ele, um sentimento de ser impotente para viver, o que implica uma relação peculiar com a morte, que passa a ser imanente ao sujeito. Ou melhor, há o desejo da "morte imanente" (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 128), mas ele é, na verdade, desejo de vida e torna-se um projeto paradoxal do melancólico, pois não há como viver mortes parciais.

Ainda sobre a alteração do tempo vivido na compreensão fenomenológica da melancolia em Tatossian (1979/2006), encontramos uma descrição do fenômeno da despersonalização-desrealização. Para ele, o não fazer e o não ser têm intrínseca relação com a estagnação do tempo vivido, não da ordem da relação causal, mas porque a experiência vivida da melancolia lança o sujeito em uma existência no vazio: "desrealização e despersonalização são os dois aspectos de uma única e mesma alteração da comunicação, onde separado do mundo, separado do outro, está separado de si". (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 132). Ou seja, toda a presença do ponto de vista da existência encontra-se comprometida, pois é uma existência vazia, que não é capaz de se comprometer com o fazer, o agir e o ser.

Tatossian (1979/2006) compara o tempo vivido no homem sadio e no melancólico, considerando que, no sadio, ele representa alargamento, crescimento, devir mais, engrandecimento, enquanto, no melancólico, é sempre devir menos, decrescimento. O melancólico vive a imobilização do tempo presente, caracterizada pela estagnação do tempo vivido, o que leva à barreira do futuro, que passa a ser ameaçador e inquietante, carregado de catástrofes e declínios. Nenhum ato ou esforço próprio do sujeito, no entanto, são capazes de impedir tal futuro, pois o melancólico não busca a mudança no futuro, mas no passado. Na experiência da melancolia, o passado é falta inapagável e culpa. É débito com o devir, que suscita o não poder.

A relação com o mundo, também, é contemplada por Tatossian (1979/2006, p. 132), em sua descrição do vivido melancólico:

[...] a existência no vazio comporta a alteração da relação fundamental entre homem e mundo que permite o poder e o devir e funda, portanto, a possibilidade de todos os atos particulares. Na falta desta relação, o 'solo' onde se desenvolvem todos os atos cognitivos, volitivos e afetivos se esconde.

Assim, para Tatossian, tal tipo de relação com o mundo, caracterizado pela existência no vazio, se insere na fenomenologia do espaço vivido, marcadamente presente nos estudos fenomenológicos. O vivido espacial na experiência de depressividade do melancólico é, portanto, alterado e atinge, não somente a percepção do sujeito em relação ao espaço, mas o conjunto eu-mundo. Tal alteração tem como traço fundamental a "perda da proximidade existencial com as coisas" (TATOSSIAN, 1979/2006, p. 133), o que marca o isolamento em que vive o melancólico. O contato vital com o mundo se perde, uma vez que, distante das coisas, não é capaz de apreender sua utilidade e, muito menos, de se relacionar com elas, seja no campo sensorial, seja no afetivo.

Pensar o modo de ser-no-mundo na experiência da depressividade do melancólico significa refletir sobre suas possibilidades corporais como representação do sujeito no espaço. Tatossian (1979/2006, p. 135) observa que não há possibilidade de projeção do corpo no espaço, pois "o corpo totalmente estático do melancólico perdeu toda a capacidade de se projetar no mundo e o espaço não pode ser mais que vazio". Assim, corpo pesado no espaço vazio e impossibilidade da Presença marcam o vivido na experiência da depressividade do melancólico, conforme Arthur Tatossian, em seu percurso pela fenomenologia na busca de compreender tal fenômeno psicopatológico.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno da depressão, na atualidade, constitui um problema de saúde pública. No entanto, mais do que estudá-la do ponto de vista epidemiológico, faz-se necessário uma abordagem que contemple sua compreensão, dado o grau de sofrimento em que está envolvida a pessoa deprimida. Mais do que uma doença mental, há um sofrimento de caráter vital, que permeia toda a vida do indivíduo em suas relações consigo mesmo, com o mundo e com o outro.

O estudo da depressão pode ser um grande desafio, principalmente se o considerarmos a partir de um posicionamento crítico que priorize a noção de pessoa mutuamente constituída com o mundo. Tal perspectiva, em Psicopatologia, compreende o ser humano em interação com a história, a cultura, as relações sociais e as estruturas sociais (normas, classes socioeconômicas, instituições sociais etc.), indo além da visão da ciência tradicional. Assim, compreender o fenômeno da depressão do ponto de vista da Psicopatologia Fenomenológica revela aspectos voltados à superação do modelo tradicional em Psicopatologia, propondo, a partir do contato com a experiência vivida da pessoa deprimida, um enfoque que priorize a ruptura com o paradigma da dualidade, e que não conceba o homem como um organismo puramente biológico, mas imbricado em sua história e sua cultura.

Os estudos de Tellenbach (1969/1999) sobre a melancolia proporcionam uma concepção compatível com a perspectiva crítica. Seu objetivo consistia em penetrar a essência da melancolia e retomar a questão do endógeno em uma perspectiva fenomenológica. Tellenbach rganiza as noções de situação, tipo e endon, sempre considerando a relação original entre a pessoa e o mundo, não como um fato estático, mas como movimento constante do ser-no-mundo, que engloba corporalidade, espacialidade e temporalidade. Assim, nesta perspectiva, a situação é sempre situação vivida e o tipo uma potencialidade específica. A manifestação psicopatológica atua, então, em um campo aquém do somático-biológico e do psíquico, designado como endon. Tal ideia, no estudo da melancolia, rompe com a tradição dualista da ciência tradicional e a aborda, não em seus sintomas - que remetem sempre às questões somáticas de valor causal -, mas em seus fenômenos. Consiste em uma visão impregnada de historicidade e intersubjetividade, na qual as dimensões cultural, endógena e situacional se encontram entrelaçadas. A descrição do typus melancholicus de Tellenbach, cuja principal particularidade é a ordenalidade ou o espírito de ordem, traduz perfeitamente as características do fenômeno da depressão na contemporaneidade (MOREIRA; SLOAN, 2002). A lentidão e a estagnação em que vivem os deprimidos, associadas à necessidade de serem cumpridores da ordem vigente, torna-os cada vez mais vulneráveis às imposições do mundo capitalista, enquanto a identificação exagerada com o papel social faz com que eles sejam mantenedores da ordem vigente, abrindo mão de sua identidade em prol da manutenção do status quo (MOREIRA; SLOAN, 2002) .

Neste sentido, podemos compreender como uma visão fenomenológica da Psicopatologia, eminentemente histórica, cultural e intersubjetiva como a descrição do typus melancholicus de Tellenbach (1969/1999), pode contribuir para a compreensão do fenômeno da depressão na contemporaneidade, bem como para uma clínica psicológica que privilegie uma perspectiva crítica.

Encontramos no pensamento de Tatossian (1979/2006) outra importante contribuição à Psicopatologia Fenomenológica, pois revela a importância de compreender o significado da experiência Psicopatológica, adentrando no fenômeno em si, com todas as suas nuances. Sublinha, ao longo de sua obra, toda a ambiguidade de tal caminho, na medida em que assinala que o real interesse da Fenomenologia não consiste na atitude natural da ciência tradicional, mas nas condições de possibilidade acessadas pela redução fenomenológica, que suspende as afirmações da atitude natural, sem esquecer, como afirma Merleau-Ponty (1945/2006, p. 10), que a redução é sempre inacabada: "O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa".

O estudo da melancolia e da depressividade por Tatossian (1979/2006, p. 117) revela a descrição de tais fenômenos como experiências globais, ou seja, que afetam o indivíduo em seu encontro consigo mesmo, com o mundo e com outrem. No que diz respeito ao sofrimento, tal experiência, no melancólico, não é comparada ao sofrimento natural, pois se trata, nas palavras de Tatossian, de um sofrimento "anormal, pervertido, deformado". O fenomenólogo propõe um estudo crítico das relações entre a afetividade e o sofrimento melancólico para, assim, aproximar-se do que seria a tristeza nesta experiência. Considera a distinção entre o sofrimento normal, experimentado pelo ser sadio ou pelo deprimido reativo, e o sofrimento melancólico, que é considerado uma experiência completamente estranha até mesmo para quem a vive. É como se nem mesmo a tristeza pudesse, de fato, ser sentida pelo indivíduo, que não sustenta mais do que um sentimento de vazio. Não se trata, portanto, da tristeza reativa que acompanha os eventos cotidianos, mas de uma experiência de definhamento do vivido, que engloba até mesmo a incapacidade de sentir. Trata-se, então, de definir a depressividade não a partir da experiência, ou seja, saindo dela e raciocinando sobre ela, mas sobre e na experiência.

A Psicopatologia Fenomenológica, tal como ilustram as contribuições de Hubertus Tellenbach (1969/1999) e de Arthur Tatossian (1979/2006; 1997/2001a; 1997/2001b), ressalta uma compreensão do fenômeno psicopatológico que ultrapassa o caráter dualista que permeia a perspectiva da Psicopatologia Tradicional, propondo uma concepção de homem que transcende o caráter biológico e considerando as diferentes manifestações culturais no aparecimento dos sintomas. Tal concepção contribui para a compreensão do fenômeno da depressão na atualidade, indo além da manifestação puramente patológica, ao destacar seu eixo existencial. Tal perspectiva amplia a compreensão da depressão como fenômeno, contribuindo para a prática clínica, pois a concebe como uma manifestação de estar-no-mundo.

 

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Endereço para correspondência
Maria Edvania Leite
E-mail:edvanialeite@oi.com.br

Virgínia Moreira
E-mail:virginiamoreira@unifor.br

Submetido em: 13/07/2009
Revisto em: 04/10/2009
Aceito em: 25/10/2009

 

 

1 O termo Dasein,tomado na Fenomenologia de Heidegger em seu aspecto psicológico e ontológico, designa o caráter específico da existência humana, a presença intencional do Ser (DUROZOI, 1996).

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