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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. v.61 n.3 Rio de Janeiro dic. 2009

 

ARTIGO

 

Mães psicóticas e seus bebês: uma leitura winnicottiana

 

Psychotic mothers and their babies: a winnicottian vision

 

 

Sérgio Luiz Saboya ArrudaI; Elisângela AndrietoII

IUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil
IIUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A teoria de Winnicott enfatiza a relação mãe-bebê desde seus primórdios e sustenta que a saúde mental de qualquer sujeito está relacionada com o desenvolvimento emocional primitivo do bebê. Neste artigo, tomando-se por base a leitura e a discussão de textos de Winnicott, objetiva-se efetuar um estudo teórico a respeito da relação inicial da mãe com o bebê, com ênfase no desenvolvimento emocional de crianças cujas mães tenham tido algum transtorno psicótico. São discutidos temas como a preocupação materna primária, o potencial inato da criança para o desenvolvimento, além de outros conceitos da teoria winnicottiana.

Palavras-chave: Winnicott; A relação mãe-bebê; Criança; Psicose; Desenvolvimento.


ABSTRACT

Winnicott´s theory emphasizes the relationship of the mother to her baby at the beginning and supports that mental health is related to child´s primitive emotional development. Based on Winnicott´s texts, it is discussed the early mother-infant relationship with emphasis on the emotional development of children whose mothers might have been affected by some psychotic disorder. Also the primary maternal preoccupation and the child's inherited tendency towards development are discussed.

Keywords: Winnicott; Mother-baby relationship; Child; Psychosis; Development.


 

 

INTRODUÇÃO

Apesar de se tratar de um estudo teórico, este artigo originou-se da prática clínica com duas crianças atendidas em psicoterapia em um serviço público. Uma das mães era franca e cronicamente psicótica e a outra tivera um transtorno psicótico transitório durante o puerpério.

Tanto as histórias de vida dessas crianças como vários conteúdos trazidos nas sessões iam ao encontro de algumas ideias fundamentais da teoria de Winnicott, relacionadas com a importância da relação mãe-bebê nos primórdios do desenvolvimento emocional da criança. Durante as discussões e supervisões das sessões, considerou-se importante estudar e aprofundar algumas ideias de Winnicott a respeito da díade mãe-bebê, do desenvolvimento emocional primitivo, buscando relacioná-las com a condição de mães com história ou antecedente de quadro clínico psicótico, tais como a esquizofrenia, os transtornos do humor, os transtornos mentais associados ao puerpério e os transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas com sintomas psicóticos.

Na teoria de Winnicott, o desenvolvimento emocional primitivo nos primeiros momentos da vida de um indivíduo depende da unidade mãe-bebê. O bebê é absolutamente dependente da mãe, já que ela terá papel fundamental ao lhe propiciar um ambiente seguro, protetor e confiável que permita ao filho caminhar de um estado de dependência absoluta para um estado de dependência relativa, rumo à independência (WINNICOTT, 1970/1994). O bebê depende da disponibilidade de um adulto genuinamente preocupado com os seus cuidados, isto é, alguém que possa contribuir para uma adaptação ativa e sensível às necessidades da criança, que a princípio são absolutas (WINNICOTT, 1953/1993).

Para que a mãe possa desempenhar este papel, ela vive uma condição denominada de preocupação materna primária:

Esta condição gradualmente se desenvolve e se torna um estado de sensibilidade aumentada durante, e especialmente, no final da gravidez;
Continua por algumas semanas depois do nascimento da criança;
Não é facilmente recordada, uma vez tendo a mãe se recuperado dela;
Eu iria mais além e diria que a recordação que a mãe tem deste estado tende a ser reprimida. (WINNICOTT, 1958/1993, p. 493)

A preocupação materna primária permite à mãe identificar-se com o bebê e, desta forma, criar condições para que o desenvolvimento do mesmo seja possível. Este estado da mãe poderia ser comparado a um estado retraído, ou a um estado dissociado, ou a uma fuga, ou mesmo a uma perturbação em um nível mais profundo, tal como um episódio esquizoide, no qual algum aspecto da personalidade assume temporariamente o controle. Se não fosse a gravidez, seria uma doença. (WINNICOTT, 1958/1993)

O desenvolvimento emocional primitivo saudável ocorre a partir da relação suficientemente boa da mãe com o bebê. A origem de algumas patologias mentais pode estar relacionada com essa fase inicial do desenvolvimento do indivíduo. Assim, neste artigo, pretende-se fazer uma discussão teórica de alguns textos de Winnicott e de autores afins que tratam da relação mãe-bebê, porém tendo como foco específico a discussão da situação na qual a mãe apresenta um funcionamento ou uma estrutura mental psicótica.

 

O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL PRIMITIVO

Na teoria de Winnicott, o desenvolvimento emocional primitivo é um tema bastante amplo e complexo. Portanto, neste artigo, não será possível abarcar todas as questões relevantes a este tema, embora se pretenda estudar as principais características dos processos iniciais do desenvolvimento do bebê, enfatizando a importância da mãe nos mesmos.

Para que o bebê se desenvolva emocionalmente, é necessário que alguém o auxilie neste processo, ou seja, é necessária a presença de uma mãe suficientemente boa,que não necessariamente é a própria mãe do bebê, mas alguém que assuma este papel. Isto é:

[...] aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. A mãe suficientemente boa, como afirmei, começa com uma adaptação quase completa às necessidades do bebê, e, à medida que o tempo passa, adapta-se cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a crescente capacidade do bebê em lidar com o fracasso dela. (WINNICOTT, 1971/1975, p. 25)

Para explicar o desenvolvimento emocional de um bebê, Winnicott (1945/1993) assinala a existência de dois estádios que nos aproximam da observação do desenvolvimento primitivo. O "primeiro" ocorre por volta do nascimento, que é percebido pela diferença entre bebês prematuros e pós-maturos. Segundo Winnicott (1945/1993) ao final do nono mês de gestação, o bebê se torna maduro para o desenvolvimento emocional. Se ele nasce após completar nove meses, ele atinge esse estágio ainda no útero; se nasce prematuro não experimenta muita coisa que seja vital até atingir a idade com a qual deveria ter nascido.

O "segundo" estádio acontece entre 5 e 6 meses de vida. É neste estádio que o bebê adquire a habilidade de agarrar um objeto e levá-lo à boca. É por causa desse movimento que é possível dizer que o bebê mostra sua compreensão de que tem um interior e que as coisas vêm de fora, admitindo assim a existência da mãe com um interior próprio. Este estágio em que um ser humano se relaciona com o outro representa um longo caminho no seu desenvolvimento primitivo (WINNICOTT, 1945/1993). Porém o que interessa, neste artigo, é o que ocorre com os sentimentos e com a personalidade do bebê antes do "segundo" estádio, ou seja, antes mesmo de o bebê conhecer a si mesmo (e como consequência os outros) como a pessoa total que ele é (e que eles são). Esta discussão é possível, pois paralelamente a esses estádios observa-se a presença dos processos de integração, personalização: a apreciação do tempo e do espaço e de outras propriedades da realidade (WINNICOTT, 1945/1993). Deve-se enfatizar o que Winnicott  pontua a respeito da tarefa do bebê. A ocupação do bebê, pelo menos desde o nascimento, nunca é uma tarefa acabada: as conquistas das primeiras semanas e meses, muitas vezes, são perdidas e recobradas de acordo com as voltas do destino (WINNICOTT, 1948/1993).

É também importante assinalar que, para esta discussão, não devemos pensar no bebê como uma pessoa que sente fome, cujos impulsos instintivos podem ser satisfeitos ou frustrados, mas sim como um ser imaturo que está próximo de sofrer uma ansiedade inimaginável. Essa ansiedade pode ser evitada pela função da mãe que é vitalmente importante nesse estágio, ou seja, sua capacidade de se pôr no lugar do bebê e de saber o que ele necessita no cuidado geral de seu corpo e da sua pessoa. (WINNICOTT, 1965/1983)

No estado de dependência absoluta, as necessidades dos bebês vão desde as necessidades do corpo, como virá-lo no berço, colocar ou tirar mais roupas dependendo da condição do tempo, acariciá-lo ao perceber cólicas, limpá-lo e alimentá-lo, até outro tipo de necessidades muito sutis, que só o contato humano pode satisfazer:

Talvez o bebê precise deixar-se envolver pelo ritmo respiratório da mãe, ou mesmo ouvir e sentir os batimentos cardíacos de um adulto. Talvez seja-lhe necessário sentir o cheiro da mãe ou do pai, ou talvez ele precise ouvir sons que lhe transmitam a vivacidade e a vida que há no outro meio ambiente, ou cores e movimentos, de tal forma que o bebê não seja deixado a sós com os seus próprios recursos, quando ainda jovem e imaturo para assumir plena responsabilidade pela vida. (WINNICOTT, 1970/1994, p. 76)

Essas características dos bebês e de suas necessidades ajudam na compreensão da caracterização dos estádios que compõem o desenvolvimento emocional primitivo.

A integração é um processo que começa desde muito cedo na vida do bebê. Ela é ajudada por dois conjuntos de experiências: o cuidado do bebê, que é caracterizado pelos banhos, pelo manuseio corporal, por nomear as suas partes etc; as experiências pulsionais que tendem a tornar a personalidade una a partir do interior. Há diferenças quanto ao momento da vida em que esse processo ocorre em cada bebê: ora imediatamente após o nascimento, ora em momentos posteriores da vida; podendo até ocorrerem momentos de recaídas. (WINNICOTT, 1945/1993)

A integração manifesta-se a partir de um estágio primário não integrado, ou seja, o bebê se compõe de uma série de motilidades e de percepções sensoriais que vão sendo identificadas e integradas por causa da percepção e da compreensão que a mãe suficientemente boa tem das necessidades do bebê. No entanto, a volta a um estado não integrado não caracteriza necessariamente uma fonte de medo para o bebê, em virtude do senso de segurança propiciado pela mãe. Isto, às vezes, é identificado por ele, no simples ato de a mãe segurá-lo adequadamente no colo. Situações como essas conservam o bebê como que unido em si mesmo e, desta forma, a não integração e a reintegração podem ocorrer sem provocar ansiedade. (WINNICOTT, 1965/2005)

Outro processo importante que também faz parte do desenvolvimento emocional primitivo é a personalização, que é o sentimento de que se está dentro do próprio corpo. Como a integração, a personalização é ajudada pela experiência pulsional e pelas repetidas e tranquilas experiências de cuidado corporal que a mãe lhe propicia (WINNICOTT, 1945/1993). É pela ocorrência de um grau razoável de adaptação às necessidades do bebê, que é possível estabelecer, mais rapidamente, uma forte relação entre psique e soma (WINNICOTT, 1965/2005).

O terceiro processo que faz parte desse período do desenvolvimento emocional primitivo é a realização, ou seja, o "perceber" a existência do mundo e o relacionar-se com o mesmo. É um processo bastante complexo, que se relaciona com a ilusão e com a fantasia.

Segundo Winnicott (1971/1975), a ilusão é propiciada pela mãe, ou seja, ela oferece ao bebê a oportunidade para a ilusão de que o seio dela faz parte do bebê, ou seja, de que está sob o controle mágico e onipotente do bebê. A onipotência é quase um fato de experiência e a tarefa final da mãe é gradativamente desiludir o bebê. Assim, desde o início da vida, o bebê está envolvido com aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido.

Newman (2003) comenta que, de acordo com Winnicott, a fantasia faz parte da defesa maníaca do indivíduo ao lidar com a sua incapacidade para aceitar o pleno significado da realidade interna. A fantasia relaciona-se com os esforços do ser humano para aceitar o mundo interno, podendo-se dizer que o controle onipotente da realidade interna implica fantasias sobre essa realidade. Ou seja, o indivíduo chega à realidade externa por meio de fantasias onipotentes elaboradas como uma tentativa de livrar-se da realidade interna.

Winnicott (1971/1975) também descreve a fantasia como um fenômeno isolado, que absorve energia e cuja inacessibilidade relaciona-se à dissociação. Dessa forma é possível compreender que a ilusão e a fantasia relacionam-se intimamente com o processo da realização, pois são necessárias para a concretude desse processo, uma vez que o bebê precisa sentir primeiro a onipotência, que ocorre pela ilusão e pela fantasia, para que possa compreender a realidade externa.

Assim como já ocorreu na integração e na personalização, o processo de adaptação à realidade externa é ajudado pela interação com a mãe, que apresentará os objetos ao bebê. Este passo no desenvolvimento emocional representa um grande avanço, mas nunca é dado e estabelecido de uma só vez. Para explicar tal processo, Winnicott (1968/1994) destaca o par bebê-seio da mãe. O momento da amamentação não se limita apenas à alimentação do bebê, mas também ao início da relação dele com o objeto. O relacionamento com o mundo real baseia-se na forma como as coisas se iniciam e no padrão que gradualmente se desenvolve, de acordo com a experiência que faz parte desse desenvolvimento humano entre mãe e bebê.

A experiência da amamentação leva a um paradoxo: segundo Winnicott, aquilo que o bebê cria já estava ali. Na verdade, o bebê cria parte da mãe que foi encontrada. Não há uma certeza a respeito da idade na qual o bebê percebe pela primeira vez que a mãe é uma pessoa (WINNICOTT, 1948/1993).

Em suma, Winnicott (1945/1993) enfatiza a importância da participação da mãe quer na adaptação do bebê à realidade, quer em todo o processo do desenvolvimento emocional primitivo. Ela tem o papel de protegê-lo de complicações que o mesmo ainda não entende, bem como de fornecer-lhe pedaços simplificados de mundo, que a criança passa a conhecer por intermédio da mãe. Um bebê não pode existir sozinho, psicológica ou fisicamente, ele necessita realmente de uma pessoa que cuide dele no início da vida, propiciando-lhe um ambiente satisfatório para o seu desenvolvimento, percebendo e atendendo as suas necessidades básicas.

 

A PSICOSE E SUAS ORIGENS

O termo psicose foi criado em meados do século XIX como uma forma de substituir o depreciativo vocábulo loucura, então muito em voga, e tentar definir essa doença numa perspectiva psiquiátrica em lugar das hipóteses demoníacas e outras equivalentes, vigentes na Antiguidade. (ZIMERMAN, 2001, p. 339).

Este termo, genericamente, designa um processo deteriorante das funções do ego que, segundo Winnicott (1965-1965), são caracterizadas pela organização das vivências da função do id, da parte instintiva que existe em todo ser humano, a ponto de haver, em graus variáveis, algum sério prejuízo do contato com a realidade. É um termo bastante complexo, podendo levar a confusões na comunicação científica entre os psicanalistas, o que acontece sempre que estiverem em discussão os critérios da analisabilidade, do prognóstico clínico e da apreciação casuística de trabalhos publicados acerca da análise de psicóticos. (ZIMERMAN, 2001)

No entanto, Winnicott (1965/2005) escreve o seguinte acerca do conceito psicanalítico de psicose: representa uma organização de defesas e, por trás dessas defesas organizadas, existe uma ameaça de confusão, que consiste em uma ruptura da integração.

Nos indivíduos esquizoides, é possível perceber uma distinção imprecisa da fronteira que separa a realidade interior da exterior, ou seja, a realidade interna é a que representa o mundo subjetivo do indivíduo e a externa também denominada compartilhada é aquela que existe no mundo real de fato, porém com o olhar subjetivo de cada um. Ao observar com mais profundidade esses indivíduos, é possível perceber sentimentos de irrealidade. Esses sujeitos fundem-se com outras pessoas e coisas mais facilmente do que pessoas sem esse diagnóstico, e têm mais dificuldades de sentirem-se separados enquanto indivíduos. (WINNICOTT, 1961/2005)

Outra característica desses indivíduos é certa fraqueza na integração ego e corpo, ou seja, há falhas no trabalho de parceria entre psique e soma. Assim os limites da psique, às vezes, não correspondem exatamente aos do corpo. Esses sujeitos apresentam dificuldade para iniciar e manter relacionamentos reais, pois estabelecem relacionamentos segundo seus próprios termos (WINNICOTT, 1961/2005).

A prática clínica de Winnicott (1953/1993) com psicóticos forneceu-lhe material clínico para que pudesse relacionar a origem da psicose com o início do desenvolvimento emocional do bebê, já que seus pacientes psicóticos, quando em análise, regrediam até o início da infância, para um estado de dependência quase que absoluta. Dessa forma, algumas contribuições para o estudo dos estádios iniciais do desenvolvimento infantil puderam ser feitas ao analisar questões do bebê em um paciente esquizofrênico:

De fato, o bebê ali está, no divã, no chão ou em qualquer outro lugar, e a dependência esta também ali, na plenitude de sua força; a atuação do psicanalista como ego auxiliar está em ação e a observação do bebê pode ser feita diretamente, a menos que o paciente seja um adulto que possui, naturalmente, um certo grau de sofisticação. Temos que levar em conta esta sofisticação que distorce o foco da nossa lente. (WINNICOTT, 1964/1994, p. 34)

Em um texto no qual trata da psicose e dos cuidados maternos, Winnicott afirma ser de fundamental importância, para esta discussão, o estágio em que o indivíduo passa da dependência rumo à independência, e escreve: "Esta é uma era extremamente delicada do desenvolvimento e é especialmente do seu sucesso que depende o estabelecimento da saúde mental na comparação da psicose" (WINNICOTT, 1953/1993, p. 379). Nos primórdios da vida do bebê, a importância do meio ambiente é tão vital que se chega à conclusão de que a esquizofrenia é uma espécie de doença de deficiência ambiental, segundo Winnicott (1948/1993). Portanto, para este autor, a origem da psicose está nos primórdios do desenvolvimento infantil, em um ambiente insuficiente que não permite ao ego, que ainda é frágil, estruturar-se de forma sadia. Assim, o paciente psicótico é aquele que não teve um ambiente que facilitasse o processo de integração, de personalização e das relações objetais, e seus sentimentos são os de desintegração da personalidade, despersonalização e desrealização, havendo perda do contato com a realidade. (WINNICOTT, 1963/1983)

 

A RELAÇÃO MÃE PSICÓTICA-BEBÊ E O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL PRIMITIVO

No início da vida de um bebê a mãe e o lactante formam uma unidade (WINNICOTT, 1960/1983). Assim, o desenvolvimento emocional do bebê no início da vida depende dessa unidade. Porém, para propiciar o desenvolvimento saudável da criança, a mãe precisa desempenhar um papel de mãe suficientemente boa.

A essência no cuidado materno é que, no geral, as mães tendem a saber o que seus lactantes necessitam, e gostam de prover as necessidades dos mesmos (WINNICOTT, 1960/1983). Contudo, "quando a mãe não é suficientemente boa a criança não é capaz de começar a maturação do ego, ou então ao fazê-lo o desenvolvimento do ego ocorre necessariamente distorcido." (WINNICOTT, 1965/1983, p. 56)

Se os cuidados maternos não são suficientemente bons antes de o bebê distinguir o "eu" do "não eu", ou seja, no período em que ocorre o desenvolvimento emocional primitivo, segundo Winnicott (1965/1983), podem ocorrer distorções da organização do ego que constituem as bases das características esquizoides. Assim pode haver uma dificuldade no cuidado de si mesmo e no desenvolvimento do self.

É importante esclarecer a diferença entre ego e self para Winnicott, termos que "implicam diferentes abordagens sobre a realidade e a função interna" (ABRAM, 2000, p. 221).

O ego é a organização de funções do id,ou seja, da parte instintiva presente em todo ser humano e que existe desde o início da vida da criança. Por seu turno, o self é posterior, pois só pode ser mencionado depois que a criança começa a usar o intelecto para examinar o que os outros vêem, sentem ou ouvem e o que ela mesma pensa quando se encontra com esse corpo infantil. Em poucas palavras, o self consistirá o núcleo da personalidade. (WINNICOTT, 1965-1983)

Segundo Abram (2000, p. 221), "o self é composto por todos os diferentes aspectos da personalidade que, na terminologia de Winnicott, constituem o eu, uma forma distinta do não-eu, de cada pessoa. A palavra self, por conseguinte, representa um sentimento de ser subjetivo."

Os bebês que experimentam falhas ambientais, quando a dependência absoluta é um fato, quando estão se tornando crianças, na melhor das hipóteses, levam consigo a memória latente de um desastre ocorrido com o seu eu. Muito tempo e energia serão gastos para organizar a vida e para que esta dor não volte a ser experimentada. Na pior das hipóteses, o desenvolvimento da criança como pessoa é distorcido para sempre e, em consequência, a personalidade é deturpada, ou o caráter é deformado. (WINNICOTT, 1970/1994)

De acordo com Winnicott (1965/1983), este é um tema complexo por causa dos graus e variantes que a ineficiência materna pode apresentar. Porém as consequências de um apoio defeituoso ao ego do bebê, por parte da mãe, podem ser muito desastrosas e incluem: esquizofrenia infantil, autismo, esquizofrenia latente, falsa autodefesa e personalidade esquizoide.

Segundo Winnicott (1961/2005), pais com características esquizoides, como as presentes na esquizofrenia, fracassam de muitos modos no cuidado de seus filhos. No entanto, podem ser conscientes da própria patologia e assim entregam seus filhos aos cuidados de outras pessoas. Fortunadamente "a psicose dos pais não produz psicose nos filhos" (WINNICOTT, 1961/2005, p. 106). É fundamental que as psicoses parentais e a capacidade de uma mãe cuidar do bebê sejam consideradas em relação aos estágios do desenvolvimento da criança bem como as seguintes situações:

a) perturbação dos pais: se muito perturbados, se há outras pessoas que possam assumir os cuidados dos bebês e crianças;

b) se menos perturbados, se há períodos em que outros indivíduos possam entrar em cena;

c) pais dotados de saúde suficiente para proteger os filhos da própria patologia, que venham a pedir ajuda a outros adultos apenas quando for necessário;

d) pais que a própria patologia inclua a criança, de forma que nada possa ser feito pela mesma, sem a violação dos direitos que todo pai ou mãe têm sobre seus filhos.

Outro aspecto importante é que há diferenças com relação à criança quando a mãe é psicótica e quando o pai é psicótico. Há alguns efeitos sobre o desenvolvimento emocional primitivo que só podem acontecer em virtude da relação mãe- filho, já que a mãe é a primeira que se envolve com a criança. É difícil para uma mãe psicótica desempenhar o papel de mãe suficientemente boa e, assim, propiciar ao seu bebê os processos que compõem o desenvolvimento emocional primitivo (WINNICOTT, 1961/2005).

Há estudos, como o de M. David (citado em MAZET; STOLERU, 1990), que atentam para os perigos da relação precoce entre o lactante e sua mãe psicótica. Os transtornos psicóticos afetam profundamente a capacidade de maternagem das mães, e isto varia em função da intensidade desses transtornos.

A relação entre uma mãe psicótica (transtornos psicóticos, esquizofrênicos, evoluindo há vários anos) e seu bebê parece marcada pela extrema dificuldade para a mãe de ver a criança real, pela inversão da relação mãe-criança, a criança procurando adaptar-se a mãe, o que traz para ambos uma relação de uma angústia intolerável. A mãe não pode perceber as necessidades e desejos de seu próprio bebê, a quem não pode reconhecer como um indivíduo separado, donde um comportamento materno freqüentemente inadaptado, incoerente, imprevisível e portanto deficiente, em contraste com a impressão geral eventual de um 'belo bebê, sorrindo, comendo bem e não chorando.' (MAZET; STOLERU, 1990, p. 301).

Quando precisam ficar sob os cuidados de outras pessoas, os lactantes apresentam uma tendência muito precoce de procurarem as atitudes de sua mãe no substituto materno. Mazet e Stoleru atentam para os riscos dessa relação mãe psicótica-bebê e buscam proporcionar segurança tanto para o bebê quanto para a sua mãe. Porém não abrem mão de que exista o contato entre a mãe psicótica e seu filho (MAZET; STOLERU, 1990).

Pensando preventivamente, Benhaim e Jano (2006) pontuam que, na prática clínica de bebês, é importante que se "descubram" precocemente os distúrbios da interação mãe-bebê. Por outro lado, há necessidade de determinar situações de risco, tais como: prematuridade, doenças físicas ou mentais, depressões, problemas sociais etc, com o objetivo de se acionarem as medidas terapêuticas específicas.

É importante enfatizar que Winnicott (1961/2005) lembra que o distúrbio da criança pertence apenas à criança. Apesar das condições ambientais merecerem alta consideração na etiologia de determinados problemas e transtornos, a criança pode encontrar meios de crescer sadia apesar dos fatores ambientais e, igualmente, pode apresentar distúrbios apesar do bom cuidado materno e ambiental.

Indo ao encontro desta ideia, Santos (1999) escreve que não é o ambiente que faz o bebê crescer, nem determina o sentido desse crescimento, mas apenas facilita, quando for suficientemente bom, o processo de maturação. Segundo este autor, a única herança admitida por Winnicott é o potencial inato para o amadurecimento, que ocorre entre dois estados de não vida. Toda a existência decorre nesse intervalo entre o não ser e o ser, na luta do indivíduo para não sucumbir aos estados de dissolução e estender, ao longo do tempo, a continuidade do seu ser, mediante o funcionamento do processo maturacional.

Zornig e Levy (2006) reconhecem que a qualidade dos cuidados parentais recebidos por crianças nos seus primeiros anos de vida é de vital importância para sua saúde física e mental. Porém lembram que não podemos desconsiderar o potencial criativo e a incrível capacidade regenerativa das crianças na procura de vínculos alternativos que possam lhes fornecer experiências de acolhimento, intimidade e relacionamento contínuo. Eles relatam o caso clínico de uma criança que viveu em condições precárias até os 5 anos de idade com sua mãe visivelmente psicótica e que, após a separação e adoção, pode se desenvolver apesar dessas adversidades.

Apoiada pela teoria winnicottiana, Araújo (2003) assinala outros fatores que estão no ambiente e que podem ajudar a mãe a desenvolver o seu papel. Ressalta que é conhecida a capacidade natural para a maternagem de uma mulher, porém a capacidade para devotar-se ao bebê não evolui se ela estiver com medo, insegura e sentir-se desamparada. Entretanto, para que a mãe possa pedir ajuda, deixar-se cuidar e permitir que cuidem de seu bebê, é preciso que ela tome consciência de seus sentimentos, o que nem sempre acontece, uma vez que muitos dos sentimentos que a invadem são considerados, por ela, como inadequados à condição materna.

Segundo Araújo (2003), no caso da psicose dos pais, ainda que os mesmos não possam ajudar a criança por causa da gravidade do quadro, é importante que a mãe, ou o pai e/ou alguém do ambiente próximo consigam perceber que algo estranho está acontecendo. Dessa forma, nesses casos, a doença dos pais existe e pode ser percebida, quer seja pelo indivíduo (pai ou mãe), quer seja pelo ambiente próximo a este, e algo pode ser feito com a criança.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de se poder particularizar a situação da mãe psicótica em relação ao seu bebê e tomando-se como base o pensamento de Winnicott, procurou-se fundamentar a importância do estado de preocupação materna primária e a condição de uma mãe suficientemente boa no início da vida de seu bebê, e no desenvolvimento emocional primitivo. A relação da mãe-bebê é importante para o estabelecimento da saúde mental do indivíduo em toda a sua existência, da infância à vida adulta.

No entanto, no caso da mãe psicótica, a mesma costuma apresentar dificuldades para assumir o papel de uma mãe suficientemente boa, protetora, cuidadora e confiável, o que poderá influenciar e trazer dificuldades e distorções para o desenvolvimento do seu bebê.

A constatação de sintomas psicóticos na mãe cria uma grande preocupação. Em consequência disso, podem ser observados e tomados cuidados especiais no seu acompanhamento durante a gravidez e o pós-parto, para que a segurança dos dois (mãe e bebê) seja privilegiada.

Principalmente a partir do diagnóstico precoce dos transtornos da mãe é importante iniciar medidas de promoção à saúde do bebê e da sua genitora o mais rapidamente possível. Com isto, de um lado, procura-se tratar a mãe o mais rapidamente possível, evitando um agravamento do seu estado mental. Do outro lado, procura-se garantir ao bebê quer um ambiente facilitador, quer pessoas que estejam preparadas para atender às suas necessidades básicas, parcial ou plenamente, em função do estado mental da mãe e enquanto a mesma não tiver capacidade para tal.

Desta forma, entre as possibilidades existentes, procura-se propiciar as condições facilitadoras para que os diferentes processos do desenvolvimento emocional do bebê, a saber, integração, personalização e adequação à realidade externa, possam ocorrer da melhor forma possível.

Saliente-se que, mesmo que uma mãe psicótica não possa cuidar do filho, é importante que ela e o bebê sejam mantidos em contato, sempre que isto for possível e desde que o estado mental da mãe o permita. É igualmente importante que não se assumam atitudes de rotular quer a mãe, quer a criança, bem como que se evitem previsões do que possa vir a ocorrer no futuro, quer em termos de desenvolvimento emocional saudável, quer de transtornos mentais. Todas as possibilidades levantadas acima podem ocorrer em serviços públicos e privados. Pensamos que um primeiro passo importante poderia ser o conhecimento dessas ideias de Winnicott e a sua discussão pelos profissionais da área da Saúde e da Psicologia que trabalham com mães psicóticas e/ou seus filhos.

Para finalizar, Winnicott enfatiza que há outras variantes que atuam e diferenciam as complicações que uma patologia como a esquizofrenia da mãe poderia causar na relação precoce mãe-bebê. Por exemplo, é muito importante ressaltar que existe um potencial inato da criança para o amadurecimento, um potencial criativo e capacidades regenerativas na procura de vínculos que são próprios de cada indivíduo e que independem do meio ambiente.

 

REFERÊNCIAS

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.        [ Links ]

ARAÚJO, C. A. S. Winnicott e a etiologia do autismo: considerações acerca da condição emocional da mãe. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 8, n. 14, p. 146-163, 2003. Disponível em:<http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282003000100011&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 5 ago. 2008.

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Endereço para correspondência
Sérgio Luiz Saboya Arruda
E-mail:saboya@unicamp.br

Elisângela Andrieto
E-mail:elis.psi@ig.com.br

Submetido em: 07/07/2009
Revisto em: 11/11/2009
Aceito em: 21/11/2009

 

 

1 Para as datas antigas das obras citadas de D. W. Winnicott foram seguidos os critérios e as datas utilizadas por Hjulmand (1999).

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