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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

A subjetividade na sociedade de consumo: do sofrimento narcísico em tempos de excesso e privação

 

The subjectivity in the consumer society: about the narcissistic suffering in excess and deprivation times

 

 

Angela Maria Pires CaniatoI; Merly Luane Vargas NascimentoII

IDocente- Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).Maringá. Paraná. Brasil
IIMestranda-Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá(UEM). Maringá. Paraná. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo toma por base uma pesquisa qualitativa e problematiza a questão do sofrimento narcísico, bem como algumas das características culturais e sociais envolvidas em sua promoção, ou perpetuação, na atualidade. Refletimos sobre a sociedade de consumo a partir de duas noções consideradas cruciais para seu entendimento - o excesso e a privação - e apontamos algumas relações entre esse modo de organização social e o modelo de subjetividade que lhe corresponde. A fim de explicitar o que se entende por sofrimento narcísico, abordamos o conceito de narcisismo, tal como elaborado por Freud para, em seguida, acrescentar as elaborações de autores contemporâneos que relacionam tal conceito ao modo de subjetivação promovido pela cultura contemporânea. Por fim, descrevemos algumas das formas pelas quais os efeitos desses mecanismos sociais de promoção/disrupção do narcisismo repercutem nas subjetividades individuais, vínculos afetivos e nos relacionamentos entre os indivíduos.

Palavras-chave: Sociedade de consumo, narcisismo, sofrimento psíquico.


ABSTRACT

This article is based on a qualitative research and it rends problematics  the issue of narcissistic suffering, such as some cultural and social features involved in its promotion or perpetuance in present times. On this purpose, the consumer society  were investigated based in two notions considered crucial for its comprehension - the excess and the deprivation - and some relations between this type of social organization and the subjectivity pattern relative were appointed. In order to elucidate the meaning of narcissistic suffering, the concept of narcissism in Freud is approached. In addition to that, contemporaneous elaborations about this concept and its relation with the culture and society are presented. Finally, we describe some repercussions of the narcissism social promotion/disruption mechanisms, individuals' subjectivities, in the affective ties and in the relationships among the individuals.

Keywords: Consumer society, narcissism, psychic suffering.


 

 

Introdução

O momento histórico presente vem sendo caracterizado pela invalidação dos grandes discursos ou "metarrelatos" (LYOTARD, 2004) pela queda das figuras e instituições que detinham autoridade (TENZER, 1991), por uma mudança radical na maneira de lidar com o tempo e o espaço (LYOTARD, 2004; LIPOVESTKY, 2004 e 2007), por um clima de insegurança generalizada proveniente do aumento do desemprego e dos índices de violência urbana (BAUMAN, 1998 e 2008b), pelo turbocapitalismo (LUTTWAK, 2001) e turboconsumismo (LIPOVETSKY, 2007). E, enfim, por mudanças que influenciam as vidas e as relações dos indivíduos em nossa sociedade de diversas maneiras.

Ao entendermos o homem enquanto construtor da cultura por meio de sua atividade material, o trabalho, ao mesmo tempo em que se constitui como sustentáculo subjetivo da realidade objetiva na qual está inserido, percebemos que cada forma de organização social, além de determinar ou influenciar o modelo de subjetividade preponderante, também dele necessita para sustentar-se. Dessa forma, se quisermos compreender a subjetividade contemporânea, ou ao menos alguns de seus aspectos, temos que investigar o modo pelo qual as transformações econômicas, sociais, políticas e culturais de nossa época - que ocorrem em um ritmo frenético e sem precedentes (GIDDENS, 1991) - podem repercutir no âmbito subjetivo.

Tendo em vista essa dimensão histórica de nosso objeto de estudo, bem como a compreensão de que a mera reprodução de teorias não é suficiente para explicar fenômenos que se constituem e se transformam no decorrer de um processo histórico, assumimos, em nosso trabalho, "o caráter construtivo e interpretativo do conhecimento" (REY, 2005, p.5) que a realização de uma pesquisa qualitativa pressupõe. O estabelecimento de relações entre algumas das concepções teóricas analisadas e a interpretação de significados, que podem ser depreendidos a partir de tais relações, evidenciam o caráter de tal conhecimento a ser produzido por meio da pesquisa qualitativa. A interpretação emerge como método preferencial porque abordamos o psiquismo a partir da psicanálise a fim de captar/acompanhar a construção dos processos identificatórios projetivos e introjetivos. O procedimento utilizado é o da pesquisa bibliográfica que, de acordo com Lakatos e Marconi (1989), consiste no levantamento de documentos escritos e publicados que tenham relação com o objeto de estudo, com o intuito de obter informações para respaldar as análises realizadas.

Nosso estudo da relação entre subjetividade e cultura no contexto contemporâneo parte da correlação feita por alguns autores - tais como Baudrillard (1995), Lasch (1983); Costa, (1988) e Severiano (2001) - entre a assim denominada personalidade narcísica e a sociedade de consumo. Nesse sentido, apontamos, em um primeiro momento, algumas características da sociedade de consumo, enfatizando aquelas mais diretamente relacionadas com o surgimento do sofrimento de caráter narcísico. Assim, exploramos os aspectos dessa cultura, a qual, de acordo com nosso referencial teórico, define-se como Indústria Cultural (ADORNO, HORKHEIMER, 1947-2006) e, ao utilizar-se de mecanismos de padronização das subjetividades, iguala os "pseudo-indivíduos" até mesmo na forma de expressão do sofrer. Isso implica em contextualizar tal sofrimento, o que evita naturalizá-lo ou restringir suas causas ao âmbito individual, seja em termos de características biológicas ou psíquicas.

Em seguida, abordamos os mecanismos psíquicos envolvidos nesse processo de promoção social do narcisismo (PEDROSSIAN, 2008), bem como algumas conseqüências desse processo do ponto de vista das subjetividades, principalmente em termos de sofrimento psíquico. As características desse sofrimento permitirão considerá-lo menos como uma exacerbação do "auto-amor" e do investimento narcísico do indivíduo em seu próprio eu do que como uma manifestação de indiferença a si mesmo, aos próprios sentimentos e aos sentimentos alheios. Disso decorre uma especificidade desse trabalho em relação às teorias consultadas, a saber: compreender esse narcisismo de hoje como um fenômeno bastante diferente daquele originalmente descrito por Freud (1914-2004), principalmente no que se refere aos aspectos integradores do psiquismo ou ao que podemos chamar a dimensão saudável ou constitucional do narcisismo. Assim, o chamado narcisismo contemporâneo é antes entendido como "anti-narcisismo" (MATOS, 2002) do que como narcisismo propriamente dito, apesar de também possuir semelhanças com o chamado narcisismo de morte, tal como descrito por Green (1988b) e com o narcisismo patológico descrito por Lasch (1983), cujas algumas características Freud (1914-2004) já apontara.

Os esforços teórico-metológicos empreendidos no sentido de desvendar as particularidades que nosso objeto de estudo adquire no contexto da sociedade e cultura contemporâneas  visam a contribuir com formas mais abrangentes de compreensão e de práticas, principalmente no que se refere à clínica psicanalítica. O intuito é o de evitar tanto reducionismos, que localizem as possíveis causas do problema apenas no âmbito individual, quanto o desvirtuamento do sentido vincular do narcisismo, tendo em vista a indispensabilidade desse último para o enamoramento. Entendemos que o indivíduo supostamente narcisista da contemporaneidade é, de fato, aquele que se privou do amor do outro e de si mesmo, em uma onipotência ufana que apenas denuncia aspectos de auto-destrutividade. Diante de seu considerável sofrimento psíquico, o rótulo de doente ou uma culpabilização exclusiva por tal estado antes tendem a agravar o problema do que propriamente ajudar o indivíduo a suplantá-lo. Ademais, essa psicologização intimista não deixa ser uma outra forma de violência, entre as já muitas perpetradas pela cultura.

Como nos permite compreender Pedrossian (2008), em tempos de desamparo subjetivo acirrado nos quais a sociedade torna-se injusta por não ter entre seus objetivos a felicidade e a autonomia individuais, não obstante proclamá-las como seus valores, não convém atribuir culpa ou patologia ao indivíduo, como se ele fosse o único responsável pela totalidade que oprime. Cabe-nos, antes disso, procurar saber o que sustenta e perpetua esse modo injusto de organização social, a fim de buscar meios para sua superação e - acrescentamos - para o fortalecimento do indivíduo-sujeito.

 

A sociedade de consumo: excesso e privação

O advento da sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1995), sociedade de consumidores (BAUMAN, 2008c) ou sociedade de hiperconsumo (LIPOVETSKY, 2007) traz em seu bojo transformações radicais seja no modo de organização do social seja nas relações que se constituem entre os indivíduos. Uma de suas características mais evidentes, já que exacerbada, é o excesso: profusão de objetos, informações, tecnologias, mensagens e imagens (estas principalmente de caráter publicitário). Isso salta aos olhos não apenas dos pesquisadores, mas de qualquer um que assista à televisão, saia para passear nas ruas ou simplesmente vislumbre o cenário urbano da janela de seu prédio.

Não obstante, do interior de toda essa dinâmica de proliferação de elementos concretos e abstratos, a realidade gritante da privação faz-se ouvir. Não é sem motivos que Rico (2005) caracteriza a sociedade de consumo como sociedade da miséria material e psicológica. Poderíamos, inclusive, acrescentar , miséria moral e afetiva, que abordaremos adiante. A "negação mágica e definitiva da rareza" (BAUDRILLARD, 1995, p.16) da qual o excesso pretende incumbir-se pode ocultar, momentaneamente, o que um olhar mais crítico e um entendimento menos narcotizado pela ideologia da abundância percebem sem maiores esforços.  O exagero produz a escassez: é porque poucos têm demais que muitos sofrem com a falta; em outras palavras, é o mesmo processo a produzir o excesso que gera a privação.

Para contextualizarmos melhor tal processo, precisamos considerar alguns aspectos do desenvolvimento do capitalismo de consumo. Segundo Lipovetsky (2007), o período compreendido entre as últimas duas décadas do século XIX até a Segunda Guerra Mundial foi marcado por um aumento vertiginoso da produção industrial. O avanço tecnológico permitiu que as indústrias produzissem em abundância e de uma forma muito mais veloz. É quando os mercados locais cedem lugar aos grandes mercados nacionais, graças ao desenvolvimento do transporte e do comércio. A produção de massa, característica dessa fase, permitirá que se instale o consumo de massa. No capitalismo de consumo, o lucro passa a dar-se mais pelo volume de vendas do que pelo preço unitário dos produtos, o qual tem agora uma margem de ganho menor. Essa primeira fase de seu desenvolvimento, segundo Lipovetsky (2007), cumpriu as primeiras condições para dar-se semelhante dinâmica, pois "inventou o marketing de massa, bem como o consumidor moderno" (p. 29). Além disso, criou a marca - o nome dos produtos - e também os grandes magazines. Esses últimos, segundo Lipovetsky (2007) foram responsáveis por um extraordinário aumento no volume das vendas e, principalmente, por dar glamour ao consumo com as técnicas de marketing que inauguraram o "consumo-sedução" (p.31) e o "consumo-distração" (p.31) que perduram até hoje.

A segunda fase do capitalismo de consumo inicia-se, segundo Lipovetsky (2007), por volta de 1950 e desenvolve-se principalmente durante as três décadas seguintes. Trata-se de um período de grande desenvolvimento econômico, coincidente com a "sociedade de abundância" (p.32) e o consumo de massa propriamente dito. O sistema de crédito é difundido e há uma revolução comercial caracterizada pela super competitividade dos preços. O modelo "taylor-fordista" é apontado pelo autor como o grande responsável tanto pela otimização da produção - diminuição do tempo e custo da mesma ao mesmo tempo em que aumentava seu volume - quanto pelo incremento da produtividade dos trabalhadores industriais e progressão dos salários. Com a ampliação do poder de compra dessa classe social, passou a ser acessível à massa "uma demanda mais psicologizada e individualizada, um modo de vida (bens duráveis, lazeres, férias, modas) antigamente associado às elites sociais" (LIPOVETSKY, 2007, p.33).

Ainda na segunda fase, emergem "as políticas de diversificação dos produtos bem como processos visando reduzir o tempo de vida das mercadorias" (LIPOVETSKY, 2007, p. 34). A lógica é a da moda, o imperativo é renovar sempre e com rapidez em busca de um hedonismo centrado em satisfações imediatas. O individualismo exacerba-se e, consequentemente, há um desinvestimento nos ideais e nas causas coletivas. O consumo, entretanto, ainda é, na fase II, mais do tipo "para o outro" (LIPOVETSKY, 2007, p.42) no sentido de que os objetos de consumo são adquiridos no afã de se obter status e diferenciação social - os quais deverão ser apreciados/invejados pelos demais.

A fase III do capitalismo de consumo - iniciada a partir das últimas décadas do século XX - inaugura o "consumo emocional" (LIPOVETSKY, 2007, p.45), marcado pela hiper-individualização da demanda e destinado a propiciar, sobretudo, "experiências afetivas, imaginárias e sensórias" (p.45) com a proliferação desenfreada de produtos cuja obsolescência é programada já em sua fabricação. Doravante, as motivações individuais e a busca por novas e prazerosas sensações suplantam o desejo de ostentar símbolos de superioridade econômica. A função do consumo atinge um nível mais profundo: o que está principalmente em questão para o consumidor agora é a tentativa de encontrar a si próprio, o que acabará equiparando-o ao nível da mercadoria: "Numa época em que as tradições, a religião, a política são menos produtoras de identidade central, o consumo encarrega-se cada vez melhor de uma nova função identitária" (LIPOVETSKY, 2007, p.44-45). A relação com as mercadorias adquire um novo significado na fase do consumo emocional: por meio delas o hiperconsumidor logrará conferir um sentido, muito embora superficial, como assinala Lipovestky (2007), ao mundo que o rodeia e à sua própria existência.

O consumo de signos de distinção social não desaparece na chamada fase III do capitalismo de consumo. O poder das marcas é ainda soberano e, assim, é a imagem do produto e não sua realidade objetiva ou funcionalidade que seduz o consumidor à compra. Entretanto, a relação do consumidor com as marcas e com os signos do consumo, "psicologizou-se, desinstitucionalizou-se, subjetivou-se" (LIPOVETSKY, 2007, p.49). O consumidor emocional ainda quer impressionar e obter admiração, porém o que mais lhe importa é a imagem que pode construir de si mesmo por meio desses signos. A famosa idéia de que 'o importante é sentir-se bem consigo mesmo' ilustra claramente a "onda" neo-individualista na qual esse consumidor, ao pretender nela "surfar", frequentemente acaba sendo levado (talvez fosse mais adequado dizer arrastado) aos destinos pré-determinados pelos caprichos da moda.

O chamado "culto das marcas" (LIPOVETSKY, 2007, p.50), que diz respeito ao glamour e à exaltação das mesmas pelos consumidores, tem um importante sentido nesse tipo de sociedade, pois perfaz a busca de 'segurança' subjacente a ansiedades específicas do homem contemporâneo. As tradições e os referenciais das culturas de classe encontram-se em ampla dissolução com o acesso da massa ao consumo e o desaparecimento das formas de socialização que, no passado, "distinguiam inequivocamente o alto e o baixo, o bom gosto e o mau gosto, a elegância e a vulgaridade, o chique e o popular" (p.49). Em consequência, o consumidor, temeroso, confuso e ansioso, recorre às pretensas garantias de autenticidade, bom gosto e condições sanitárias que as marcas logram representar.

A dissolução das tradições e dos referenciais está relacionada à crise de autoridade vivenciada na sociedade contemporânea, devido à queda de vários sistemas historicamente construídos como elementos de unidade que serviam como referenciais coletivamente determinados e aceitos. Tenzer (1991) afirma que nossa sociedade se desagrega em uma multiplicidade de grupos de interesse, em virtude dessa queda da autoridade que abrange não só o campo político, mas também o escolar, o familiar e o jurídico. A autoridade, conforme definida pelo autor, tem a finalidade de convergir interesses e constitui-se, assim, como condição indispensável para que se instaure um sentido de comunidade do mundo, sentido este que não pode existir se não se reconhece a hierarquia dos princípios fundadores de ordem intelectual e política.

O descrédito diante dos referenciais éticos e religiosos e dos ideais políticos-coletivos gera uma nova disposição nos indivíduos que, para um "pseudo-resgate de seu narcisismo noucateado" (SEVERIANO, 2001, p.19) procuram realizar-se individualmente pela busca do prazer, não mais com o outro, mas com objetos materiais. Ou seja, diante de um clima de insegurança perene, que lhes ameaça a integridade identitária e mesmo as formas de sobrevivência (graças à desregulamentação universal que atinge o mundo do trabalho, fazendo desaparecer o emprego estável), os indivíduos passam a buscar no prazer individual sua principal forma de subsistir. Para Severiano (2001) esse "caráter solitário do consumo" é o que confere ao mesmo sua característica narcísica:

A ideologia do consumo, apesar de paparicar seus membros prometendo-lhes a realização plena de seus ideais, interpela-os isoladamente (...) não exige compromisso social, não há feitos a realizar em comum por seus membros, sua única exigência é a adesão. E é justamente essa adesão direta aos seus códigos e o investimento em desejos estritamente pessoais e imediatos, prescindindo de qualquer forma de interação humana, o que funda a natureza fragmentária e narcísica do consumo.(p.155)

A fase III do capitalismo de consumo marca ainda a passagem do consumo centrado na família para o consumo centrado no indivíduo. A era da escolha cede lugar à era da hiperescolha e os objetos de consumo se multiplicam ainda mais para atender a uma demanda cada vez mais individualizada. Cada indivíduo, com seu uso do espaço e do tempo e com suas preferências de utilização de bens de consumo, constitui tal demanda. Nesse contexto, a produção em excesso atinge, como tudo mais, a sua fase 'hiper' -  assim como temos o hipertexto, o hipermercado, o hipercapitalismo e o hiperindividualismo (LIPOVETSKY, 2004).

Falamos, desse modo, de um capitalismo de consumo radicalizado, intensificado, superlativo - o "turbocapitalismo" (LUTTWAK, 2001) - caracterizado por uma produção cada vez mais intensa e, assim, por um consumo veloz no qual a substituição das mercadorias deve ser sempre acelerada. Para que isso ocorra, os indivíduos deverão ser encorajados a consumir para satisfazer suas necessidades, bem como a descartar rapidamente as mercadorias vistas como causas de sua insatisfação. Novas aquisições, por sua vez, realizam-se na busca de uma nunca alcançada plenitude que os objetos anteriores, obviamente, não puderam oferecer. Portanto, a sociedade de consumo é baseada no consumismo, na produção de excessos e no desperdício, de modo que não pode ser pensada sem "uma florescente indústria de remoção do lixo" (BAUMAN, 2008c, p.31).

Por esse motivo a destruição coloca-se ao lado da produção intensa como característica essencial e indelével dessa forma de sociedade. O desperdício maciço, segundo Baudrillard (1995) agrega mais valor à mercadoria, e o destruir configura-se como necessidade tanto como o ato de consumir. A destruição permanente permite, assim, manter o ritmo da produção e do consumo. Bauman (2005) postula o excesso como "aliado e cúmplice do lixo, leal e inseparável, principal responsável por sua obesidade colossal e exponencialmente crescente" (p. 36). Desse modo, defende que o modo de sobrevivência na modernidade líquida ou pós-modernidade irá depender em grande parte da capacidade de remoção dos refugos, os quais ganham essa qualidade nos projetos humanos, pois não possuem nada que lhes seja inerente para classificá-los como tal.  A estratégia do excesso, como denomina o autor, consiste em separar e excluir o que se tornou inútil em um modo de viver orientado para o consumo da novidade.

Como explica Baudrillard (1995) "a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo" (p.47). Mas trata-se de uma felicidade mensurável pela aquisição de objetos e signos do conforto e bem-estar, uma felicidade à qual o consumo deverá aferir provas materiais para que exista.  O hedonismo, que encontrará no consumo sua via de expressão máxima, aliado à pretensa liberdade individual passa, então, a ser "o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados" (BAUMAN, 1998, p.9). Os indivíduos, separados entre si, são instigados pelo mercado a experimentarem sensações sempre novas e cada vez mais intensas, a se deleitarem com o ato de vestir e despir identidades, resistindo a qualquer possibilidade de fixar compromissos; o que faz dessa suposta felicidade do consumidor algo pontual e evanescente. O "turbocapitalismo" (LUTTWAK, 2001), caracterizado por uma produção cada vez mais intensa, encontra nesse modelo de subjetividade o escoadouro ideal para as mercadorias cuja criação é milimetricamente calculada para obtenção do "máximo impacto e obsolescência imediata" (BAUMAN, 1998, p.127-128). Assim, a profusão desordenada de objetos passa a ser o traço descritivo mais evidente de nossa época: "à nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos e dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana.". (BAUDRILLARD, 1995, p.15).

O sentido político do excesso é a dominação das massas (ADORNO, HORKHEIMER, 1947-2006). O aumento da produtividade econômica não contribui para a obtenção de um mundo mais justo ou para a abundância das sociedades pós-industriais como um todo, mas para o aumento do poder dos que a controlam. Sobre a relação entre o poder e o excesso, Adorno e Horkheimer (1947-2006) afirmam: "Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados" (p.14). Ainda sobre o excesso, Baudrillard (1995) explica que o sistema se estabiliza em redor de determinado nível de distorção e, assim, não importa qual seja o volume absoluto de riquezas, tem-se a miséria como apanágio da desigualdade sistemática inerente ao sistema.  Isso significa que não importa quanto excesso possa haver em uma sociedade capitalista, sempre se terá, concomitantemente, a privação: a miséria, a impossibilidade de satisfação de necessidades básicas, a dificuldade em satisfazer outras necessidades, e assim por diante.

Alba Rico (2005) afirma que o capitalismo não apenas produz uma economia, pois para fazê-lo tem que construir ou reformar uma psicologia e uma sociedade. Tal reforma estará relacionada com a invasão da subjetividade pela lógica do mercado. Bauman (2008c) nos fala sobre "um transplante da regra do mercado de bens para o domínio dos vínculos humanos" (p.31-32). Segundo ele, na assim chamada sociedade de consumidores, as pessoas tendem a tratar umas às outras como objetos de consumo e, desse modo, a se substituírem mutuamente com a mesma facilidade que o fazem ao comprar novas mercadorias. Desse modo, essa forma de organização social obsta a possibilidade de vínculos duradouros e de trocas amorosas significativas entre os indivíduos. Esse é mais um dos elementos para se pensar a desintegração narcísica. Além disso, essa psicologia reformada pelo capitalismo caracteriza-se por um "desinteresse narcisista pelo mundo exterior subjacente à demanda por gratificação imediata" (LASCH, 1983, p.141). Ao atingir o mundo das relações, semelhante demanda configura-se a partir da rápida substituição de todas aquelas consideradas menos satisfatórias.  Alba Rico (2005) desdobra essa psicologia do consumidor em uma tríplice falência de nossas capacidades: de experenciar a realidade, de responsabilizar-se pela sociedade que está criando e de estabelecer um contrato social com regras válidas para constituir uma comunidade.

Concomitantemente, o pensamento é arrebatado pela oferta orgíaca de imagens, objetos, conceitos e estilos de vida a serem consumidos e substituídos vorazmente. A indústria cultural (ADORNO, HORKHEIMER, 1947-2006) exalta a vontade individual do consumidor fazendo-o crer em sua própria liberdade de escolha e na diretividade de suas ações. A promessa quase mística de satisfazer-se instantaneamente com apenas um click, um test drive ou uma aquisição não apenas desrespeita a inteligência do consumidor, mas aposta em sua regressão, na preponderância dos desejos sobre o discernimento que a oferta pretende alcançar. O pensamento mágico e a crença na onipotência dos pensamentos são características de um eu narcísico regredido, que faz uma "reinterpretação do mundo para uso interno" (BAUDRILLARD, 1995, p.25), reinterpretação que é, ao mesmo tempo, resultado e causa do empobrecimento da experiência individual-coletiva.  Sobre a forma preponderante de o pensamento manifestar-se na sociedade de consumo, Baudrillard (1995) diz: "éo pensamento mágico que governa o consumo, é uma mentalidade sensível ao miraculoso que rege a vida cotidiana, é a mentalidade primitiva, no sentido em que foi definida como baseada na crença de onipotência dos pensamentos" (p. 21).

Baudrillard (1995) considera que o consumo "faz da exclusão maximal do mundo (real, social e histórico) o índice máximo de segurança. Tende para a felicidade por defeito, eliminando as tensões" (p.26). E, diante do preço a pagar, que é o mais alto que a sociedade do consumo cobra, um sentimento de insegurança generalizada, o indivíduo tende a certo afastamento da realidade em troca de uma inconsciência feliz que lhe permita ter a ilusória sensação de que tudo está bem. De acordo com Severiano (2001), é devido a uma realidade hostil que o ego, ameaçado por sentimentos de impotência e desamparo, desinveste sua libido dos objetos e dos ideais e aciona os mecanismos de defesa. Trata-se, para Lasch (1983) de estratégias de sobrevivência, às quais o ego recorre, tais como: a preocupação exclusiva com o desempenho pessoal em detrimento das causas coletivas; o enaltecimento do poder pessoal; ilusões de onipotência; super-valorização do presente com desprezo pelo passado e atitude negligente em relação ao futuro, entre outras.  

Tenzer (1991) ao analisar a crise de autoridade, menciona a perda da "memória dos séculos" (p.161), ou seja, da historicidade. Ao lado do abandono das tradições, temos também o abandono do sentido, que constitui um sintoma essencial da crise do pensamento intelectual, conforme assinala o autor: "hemos dejado de vivir en un mundo común en el que todas las palabras que utilizamos tienen el mismo sentido para todos. (...) Parece que nos aprestáramos a vivir en un mundo sin sentido" (p.177). Isso explica porque a autoridade, com a função de dar unidade, também logra conferir sentido à realidade. Sobre esse ponto, Tenzer (1991) revela ser esclarecedor o resgate etimológico da palavra: o termo autoritas deriva-se de augeo que significa aumentar; esse aumento, segundo ele, é o do próprio sentido da realidade. Isso significa que o real é uma variável dependente da autoridade. Costa (2004) ressalta o valor da autoridade para a formação ética do indivíduo: "Autoridade e tradição são face e verso da vida ética. Reconhecemos o que é "o Bem" porque herdamos crenças tácitas sobre sua natureza que nos foram transmitidas por "quem tem autoridade". (p.169).

Sobre a questão do "abandono do sentido do real", de acordo com Alves (2008), um dos conceitos cuja definição se modificou irremediável e definitivamente na contemporaneidade foi o conceito de realidade, alteração que decorreria da ruptura radical com anteriores paradigmas. Por esse motivo a realidade deixou de ser segura e, conseqüentemente, menos digna de confiança. Bauman (2008a) nos fala de uma incapacidade de lidar com a realidade específica dos indivíduos contemporâneos. Mesmo os limites do eu ameaçam ser confundidos em tal situação. Para Severiano (2001),  "a supressão dos limites do eu" se dá por uma falsa conciliação entre o sujeito e objeto operada pelo mass media, levando à mimese com a totalidade social. Segundo essa autora, com o declínio do papel da autoridade familiar na socialização do indivíduo, são os meios de comunicação de massa, entendidos como instituições racionais e totalizantes, que passam a exercer essa função. As formas de socialização são, então, administradas diretamente por um sistema impessoal e racional de administração totalitária. Daí decorre uma fragilização do ego, na qual seu poder de arbítrio é reduzido "havendo uma substituição dos processos conscientes de discussão e julgamento por reações automáticas, espontâneas, quase corporais" (SEVERIANO, 2001, p.32). O ego, assim expropriado de seus atributos, adere mimeticamente ao todo social de forma passiva e mecânica, o que resulta na dissolução da individualidade.

As subjetividades são, assim, expropriadas de sua pontencialidade reflexiva e levadas a buscar soluções imediatas, regressivas, contrárias à emancipação e ao esclarecimento do indivíduo (ADORNO, HORKHEIMER, 1947-2006). Ocorre uma "pseudo-individuação" que não visa à diferenciação entre o indivíduo e a sociedade, mas sim à mimese, de modo que não pode ser considerada uma individuação verdadeira. Tudo isso é feito devido à ação do mass media que possui "um poder simbólico fundamental no remanejamento do psiquismo, inscrevendo sua lógica não ao nível da racionalidade crítica, mas do inconsciente, atuando como estruturantes invisíveis na construção da realidade" (SEVERIANO, 2001, p. 22).

A lógica hiperindividualista do mercado e a "cultura consumista" (BAUMAN, 2008c) estão intimamente relacionadas, portanto, com a decadência de duas capacidades fundamentais do homem, a saber: a oposição crítica - que poderia conduzi-lo à utopia ou transcedência - e o estabelecimento de vínculos amorosos que são a constituição mesma de sua subjetividade. A tensão entre ideologia e realidade é dissipada. Os interesses dos grupos privilegiados, dirigentes da sociedade, passam a ser o interesse de todos. A possibilidade de conflito e, assim, de superação, é suplantada. Além disso, o imperativo do gozo e do consumo praticamente proíbe comprometimentos ou apego (Bauman, 2009). Os consumidores tornados mercadorias (BAUMAN, 2008c) declinam gradualmente em sua capacidade de dar e receber amor, amizade ou mesmo empatia.

Para Severiano (2001) a individualidade na sociedade do consumo não passa de uma ficção que "reduz todo narcisista a um produto de uma cultura homogeneizante" (SEVERIANO, 2001, p. 142). Assim, a individualização do homem contemporâneo - narcisista e em mimese com a ideologia dominante - só seria possível na esfera da personalização, pela aquisição de bens diferenciados de consumo. Outra forma de dizer, assim como Bauman (2008c),  que a subjetividade do consumidor é reduzida à suas opções de compra.

Temos, portanto, uma cultura pautada em privações em plena era proclamada como da abundância e do consumo. A saber, privação de uma autoridade unificadora e orientadora, privação nos modos de subsistência e sobrevivência física e psíquica, privação de amparo social e o conseqüente distanciamento e indiferença em relação a causas coletivas, privação de segurança, privação da historicidade e, por fim, privação de amor e laços significativos.

 

A subjetividade na sociedade de consumo

Nesse contexto, há um significativo aumento das patologias narcísicas na clínica psicanalítica, causado, principalmente, pela decadência do papel do outro na constituição do eu (LAZZARINI, VIANA, 2006), bem como a emergência de novas formas de socialização caracterizadas pelo que Pedrossian (2008) denominou "narcisismo coletivo" (p.51). Essas últimas são caracterizadas pela infantilização do indivíduo promovida por mecanismos utilizados pela indústria cultural para suscitar ilusões infantis e estimular o consumo. Tais mecanismos são destinados também a identificar os interesses do indivíduo aos objetivos da sociedade de consumo de modo que eles não percebam que tal sociedade pode ser alterada e, concomitantemente, não percebam ou desliguem-se de seus próprios desejos, anseios e metas pessoais de felicidade. Ao se identificarem com uma cultura que promove/corrompe o narcisismo e "que não deixa de ser uma totalidade sombria e melancólica" (PEDROSSIAN, 2008, p.59) os indivíduos são também privados de sua autonomia.

Freud (1914-2004), ao caracterizar o narcisismo, define a libido narcísica em oposição à libido objetal, como podemos depreender das seguintes afirmações: "A libido retirada do mundo exterior foi redirecionada ao eu, dando origem a um comportamento que podemos chamar de narcisismo" (p. 98); "constatamos também haver, grosso modo, uma oposição entre a libido do eu e a libido objetal. Quanto mais uma consome, mais a outra se esvazia" (p. 99). O narcisismo é, portanto, um estado em que a libido é dirigida para o eu, sendo, para tanto, retirada dos objetos do mundo externo.

Apesar de o narcisismo ser postulado pelo autor como uma etapa do desenvolvimento psicossexual normal, o retorno a esse estado dar-se-ia, em etapas subseqüentes do desenvolvimento, apenas em situações específicas. Freud (1914/2004) cita as seguintes possibilidades: quando o sujeito é acometido por alguma doença física, no caso das esquizofrenias e doenças megalomaníacas e no estado de sono. A defesa narcísica, caracterizada por um retorno maciço da libido ao ego em situações adversas, é apontada por alguns autores, tais como Lasch (1983) como uma outra possibilidade dessa regressão ao estado narcísico. Assim, embora se possa considerar que certa parte do narcisismo originário é mantida por toda a vida, já que a libido investida no ego no momento de sua constituição nunca o abandona por completo (FREUD, 1914-2004), a regressão do indivíduo ao modo de funcionamento propriamente narcísico, exceto quando está adormecido, não constitui fato ordinário da vida psíquica. Conforme ressaltara Freud (1914-2004) "o doente recolhe seus investimentos libidinais para o eu e torna a enviá-los depois da cura" (p. 103). O autor ainda explica que "um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, no final, precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos amar" (p.106). O equilíbrio psíquico depende, portanto, de um balanceamento energético entre os investimentos no eu e nos demais objetos - o que supõe enamoramento.  A superação da fase narcísica é, desse modo, imprescindível para o desenvolvimento do ego maduro.

Entretanto, o homem contemporâneo, em face à adversidades e ameaças de desintegração do eu e vazio interior, vive, em uma "cultura do sobrevivencialismo", conforme postula Lasch (1983). As previsões catastróficas sobre o mundo, o destino cada vez mais incerto desse último concomitante à queda dos sistemas explicativos que, no passado, davam conta de torná-lo inteligível; bem como o desaparecimento das redes pessoais de amparo representadas pela família, vizinhança e agrupamentos de classe, são algumas das razões apontadas pelo autor para que a  regressão narcísica em nossa época seja uma alternativa até certo ponto inevitável.

De acordo com Green (1988b), exceto pelo desinvestimento natural do eu em relação ao mundo exterior durante o sono reparador de toda noite, "a retração narcisista não requer nenhum comentário particular, a não ser a lembrança de que ela é a resposta a um sofrimento e um mal-estar". (p. 49). É nesse sentido que a sociedade de consumo, por estar baseada na infelicidade, no engano e na promoção de reiteradas frustrações dos indivíduos (Bauman, 2008c) acaba por esvaziar a dimensão integradora do narcisismo. Trata-se de um tipo específico de narcisismo, motivado por intenso sofrimento e caracterizado pelo desinvestimento maciço nos objetos. Tal desinvestimento generalizado - incluindo, nessa generalização, o próprio eu do indivíduo - corresponderia ao que Green (1988b) denomina "narcisismo de morte".

Além disso, ao realizar "identificações idealizadas" (PEDROSSIAN, 2008, p.140) com a mesma sociedade e cultura que o oprime, os indivíduos investem libidinalmente objetos que jamais poderão retribui esse investimento, daí o empobrecimento libidinal de seus 'eus'. A "mimese compulsiva dos consumidores" (ADORNO, HORKHEIMER, 1947-2006, p.138) com a totalidade social injusta pela qual confundem suas verdadeiras necessidades com aquelas programadas pela indústria cultural impede o alcance de metas de realização e felicidade pessoais. Essa mimese, portanto, força uma situação em que os indivíduos desligam-se de seus próprios afetos, desejos e anseios. Tal desligamento é definido por Matos (2002) como o fenômeno do "anti-narcisismo".

Não cumpre nesse artigo, dadas suas limitadas proporções, diferenciar fenômenos tão complexos como narcisismo de morte e "anti-narcisismo". É mais favorável aos propósitos aqui definidos evidenciar suas semelhanças. Hornstein (2006), ao referir-se ao conceito de narcisismo de morte de Green, explica que "el exceso de frustración también puede conducir a un agotamiento, a una extinción de la capacidad de investir. Un sufrimiento excesivo puede facilitar la desinvestidura propia de la pulsión de muerte" (p.57).  Portanto, o narcisismo de morte (ou narcisismo negativo) seria o resultado da ação da pulsão de morte no investimento que conduziria a um desinvestimento geral dos objetos de amor, incluindo o próprio eu do indivíduo (objeto do investimento narcísico). Também o "anti-narcisismo" é caracterizado pelo desinvestimento libidinal do eu, especificamente no que se refere aos sentimentos, desejos e afetos do próprio sujeito. Segundo Matos (2002) trata-se de uma defesa primitiva e radical na qual "a denegação não atinge a realidade externa, sobretudo percebida; mas especificamente a realidade afetiva" (p.14). É como uma assepsia das questões afetivas: o cérebro nem triste nem alegre, tal como definido por Matos (2002), ilustra a neutralidade (ou indiferença) em relação aos afetos. Green (1988a), baseado em Freud, concebe que o objetivo da pulsão de morte é eliminar toda e qualquer perturbação. A mesma visa, portanto, neutralizar o desejo, o qual confere ao sujeito a consciência de separação em relação ao objeto e, assim, da falta.

Por meio da concepção de anti-narcisismo de Matos (2002), podemos acrescentar que as perturbações causadas pelos afetos (características intrínsecas do ato de viver), deverão também ser neutralizadas, de acordo com as metas da pulsão de morte.  Green (1988a) explica que, enquanto as pulsões de vida garantirão uma "função objetalizante" (p.59) caracterizada por estabelecer laços com o objeto, a pulsão de morte cumpriria a função contrária: "(...) a meta da pulsão de morte é realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento. (...) não é somente a relação com o objeto que é atacada, mas também os substitutos deste - o eu, por exemplo, e o próprio investimento, à medida que sofreu o processo de objetalização" (p.60). Assim, Green (1988b) concebe o narcisismo de morte como expressão dessa tendência desobjetalizante que é a busca "do nada, isto é, de uma redução das tensões ao nível zero, que é a aproximação da morte psíquica" (p.23). O desligamento dos afetos, característicos do anti-narcisimo, representam também uma manifestação dessa tendência da pulsão de morte, na medida em que correspondem a uma tentativa do indivíduo de não mais sentir, de não se perturbar com as emoções e os sentimentos. Nesse sentido, é fundamental compreendermos o que poderia levar a uma defesa tão radicalizada: o que haveria de tão perturbador no objeto para que o sujeito preferisse retrair-se em seu próprio vazio interior - equivalente ao estado inorgânico - ou no que Green (1988b) denomina "anorexia de viver" ( p.24)?

Parece de maior efeito explicativo, todavia, considerar o que não há nesse objeto. Como já vimos, com a equivalência dos indivíduos, a mercadorias na sociedade de consumidores e a transformação de suas relações, agora inscritas na lógica da obsolescência programada, há uma importante decadência das funções do objeto para o eu. Segundo Hornstein (2006), o objeto cumpre várias funções para o sujeito, sendo que o eu desse último é "alimentado" pelo primeiro. As funções enumeradas pelo autor são: "balance narcisista, vitalidad, sentimiento de seguridad y proteción" (p.136). Não obstante, quando o objeto deixa de cumprir seu papel de espelho, de continente e de auxiliar do eu, o que o autor denomina "aspecto trófico" (p.45) do narcisismo - graças ao qual a atividade psíquica mantém sua coesão, a estabilidade temporal do sentimento de si e a auto-estima - cederá lugar ao narcisismo negativo, ou seja, ao narcisismo de morte (Green, 1988b). O indivíduo deixa de investir no objeto - o qual não é visto mais como digno de seu amor - para retornar para um interior já devastado, visto que não foi enriquecido pela diferença e amor que só o outro pode conferir. Como explica Crochik citado por Pedrossian (2008) "quando todos os objetos são oferecidos como equivalentes, e, portanto, indiferenciados, são os representantes da pulsão de morte que se fortalecem" (p. 99).

Costa (1988) explica que os distúrbios narcísicos de nossa época resultam de uma ampliação da experiência de impotência e desamparo, bem como de um clima de desorientação e ansiedade que tendem a se generalizar em nossa sociedade. Segundo o autor, "o Ego narcísico encarrega-se de evitar a dor, o desprazer, o sofrimento ou a privação" (p.158). Em tempos nos quais o excesso de itens materiais e simbólicos toma uma dimensão tal que acaba por multiplicar as necessidades, maximizando seus efeitos reais e imaginários, o limiar para a privação, segundo o autor, tenderia a diminuir do ponto de vista subjetivo, tornando a experiência de sentir-se privado muito mais comum entre os indivíduos. Os mecanismos psíquicos que engendram a adesão do indivíduo a uma totalidade que é a da dominação social possuem, portanto, uma dimensão defensiva. Mas o enfraquecimento do eu e, consequentemente, de sua função mediadora entre o pulsional e a realidade nos revela algo mais.

Com a infantilização do indivíduo, promovida por uma cultura que lhe priva de valores humanos, referenciais de autoridade e amparo subjetivo proporcionado pela figura do outro, o ego regridee, assim, "perde-se a mediação e, portanto, a perspectiva de diferenciação, de modo que o indivíduo passa a responder de forma imediata a estímulos exteriores" (PEDROSSIAN, 2008, p.60). Essa resposta, por sua vez, será marcada pela preponderância, na esfera psíquica, do objetivo negativo do princípio de prazer. Freud (1911-1996) explicitou como dimensão positiva e negativa do princípio do prazer, respectivamente: a obtenção de prazer e a tendência a evitar o desprazer. Segundo Costa (1984) a meta positiva do princípio do prazer é obstada pela violência impingida ao indivíduo pela sociedade contemporânea. Assim, esse indivíduo é forçado a buscar o prazer não como uma forma de satisfazer a si mesmo, mas como uma forma de defender-se do estado de privação em que é socialmente mantido.

Souza (2005), seguindo uma linha de pensamento semelhante, considera que o investimento narcísico pode ser compreendido não só como uma resposta aos ideais da cultura ou como uma busca permanente de gozo, mas também "como uma forma de enfrentar o medo do sofrimento, da solidão, e da morte que tanto assombram o homem moderno" (p.85). Apoiada na análise de outros autores, Souza (2005) afirma que o indivíduo contemporâneo é violentado antes de ser narcisista. Em uma cultura de extrema violência contra o indivíduo, o narcisismo seria uma estratégia de enfrentamento da dor intrínseca ao ato de sobreviver.

Ainda segundo Pedrossian (2008), o indivíduo "somente interioriza a ideologia se esta vai ao encontro de suas necessidades psíquicas" (p.64). Vimos aqui algumas dessas necessidades que, pelo modo de organização da sociedade atual, são maximizadas em nossa época: defender-se da experiência de desamparo objetivo e subjetivo ao qual a sociedade o abandona; promover sua auto-conservação; enfrentar a experiência de solidão em uma sociedade que dificulta a experiência da troca afetiva gratificante; ampliar seu poder pessoal por adesão (sem reflexão) a uma totalidade tida como 'forte', o que, por outro lado, a faz quase imutável do ponto de vista do indivíduo solitário. Segundo os autores consultados, todas essas necessidades estão envolvidas no acionamento, pelo sujeito, de mecanismos narcísicos, o que implica em regressão e sofrimento - não importa quanto esse último possa ser negado - nada auxiliando na busca de possibilidades de enfrentamento e superação da injustiça e dominação sociais. Esse sofrimento narcísico, por seu turno, representa uma diminuição (ou em casos extremos, como no narcisismo de morte, uma extinção) do investimento libidinal em seu próprio eu e nos objetos.

 

Considerações finais

As mudanças intensas e, por vezes, bruscas que caracterizam o contemporâneo têm acuado os indivíduos em vários sentidos, e o medo, assim como a sensação de impotência, parece imperar em nossa época (BAUMAN 1998 e 2008c). Por outro lado, a sociedade de consumo ao intensificar os efeitos de ananké (COSTA, 1988) defronta o consumidor com exigências sempre novas, bem como frustrações freqüentes. Nesse cenário, a resposta mais comum desses homens e mulheres parece ter sido a adesão à mesma totalidade que os oprime no intuito de defenderem-se ou mesmo de procurarem um poder ilusório na única forma de 'integração coletiva' que lhes é outorgada.

Entretanto, esse social ao qual o indivíduo conforma-se - seja no sentido de aceitação plena, seja no sentido de tomar-lhe a própria forma para si, confundindo-se com ele em mimese - não leva em conta suas verdadeiras necessidades. Como explica Bauman (2008c), a sociedade de consumo é baseada na infelicidade e no engano dos indivíduos que dela fazem parte e não pode prosperar senão dessa maneira, pois sem as reiteradas frustrações que sua economia promove perderia seu principal combustível. Assim, a satisfação das necessidades, desejos ou vontades do consumidor deve ser promovida de maneira meticulosamente calculada para gerar novas e mais intensas necessidades e pretensões. Não parece estranho, portanto, que o narcisismo -  enquanto resposta natural ao sofrimento - seja a característica psicológica prevalente em uma sociedade que deve estar baseada na infelicidade pessoal e no mal-estar social.

O retorno a si característico do modo de funcionamento narcísico, por seu turno, resulta em embotamento afetivo e, consequentemente, em solidão. Assim "o sentido de humanidade se perde, pois somente nos tornamos indivíduos na proximidade com as outras pessoas, ou melhor, o sujeito busca o outro na diferenciação" (PEDROSSIAN, 2008, p.5). Por outro lado, esse retorno a si não é caracterizado por um excesso de amor ao seu eu, mas por indiferença em relação aos próprios sentimentos, desligamento dos afetos e defesas primitivas que implicam a ação da pulsão de morte.

Conforme nos lembrara Freud (1930-1981), nossa felicidade e mesmo nossa saúde depende diretamente da capacidade de amar. Em uma cultura que desencoraja e mesmo impede esse tipo de vínculo, teremos indivíduos cada vez mais frágeis, submetidos, solitários. Se o amor ao outro depende do amor a si mesmo e vice-versa, o indivíduo que é incapaz de amar outrem também se torna impossibilitado de devotar amor a si mesmo, mesmo que isso, aparentemente, engrandeça seu eu. É nesse sentido que o narcisismo contemporâneo "tem mais em comum com o ódio voltado para o próprio indivíduo do que com auto-admiração" (LASCH, 1983, p.56). Antes do ódio de que fala o autor, preferimos falar em indiferença em relação ao próprio eu e aos próprios sentimentos, o que, em todo caso, não deixa de ser uma manifestação de hostilidade a si mesmo, já que obsta as possibilidades de realizações pessoais e afetivas. Temos, portanto, que essa forma de narcisismo leva a outra privação essencial (entre todas as outras mencionadas anteriormente), a saber: a privação da possibilidade do indivíduo contemporâneo vivenciar a verdadeira felicidade.

Diante disso, a ciência - e, sobretudo aquelas mais relacionadas com as demandas humanas, tal como a psicologia - é chamada ao papel de questionar os aspectos de uma cultura que, por estar mais submetida às leis de valorização do capital do que aos princípios éticos e à proteção dos seres humanos (PEDROSSIAN, 2008), perde sua característica fundamental de ser um processo de humanização que prima pelos objetivos da pulsão de vida (Freud, 1930-1981). O presente texto pretende contribuir para tal questionamento, embora (ou justamente porque) sejam poucas as possibilidades que se vislumbram no horizonte da sociedade de consumo no sentido de sua modificação em prol do ser humano. Ainda que possamos apenas "arranhar" a superfície dessa totalidade com a análise de alguns de seus elementos desagregadores do psiquismo, consideramos a realização dessa pequena tentativa como preferível à mera adaptação ou conformismo.

 

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Endereço para correspondência
Angela Maria Pires Caniato
E-mail:ampicani@onda.com.br

Merly Luane Vargas Nascimentol
E-mail:merly_nascimento@hotmail.com

Recebido em: 16/04/2010
Aprovado em: 07/08/2010
Revisado em: 16/08/2010

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