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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Dramatizações e psicologia comunitária: um estudo de processos de mediação simbólica

 

Drama and community psychology: a study of the processes of symbolic mediation

 

 

Francisco Pablo PinheiroI; Veriana Rodrigues ColaçoII

IMestre em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho investigou os processos de mediação simbólica por meio do uso de técnicas de dramatização em intervenções de psicologia comunitária, visando compreender e articular teoricamente estas técnicas com questões relativas à arte e à brincadeira. O estudo fundamenta-se na teoria histórico-cultural para a compreensão do funcionamento psíquico. A pesquisa foi realizada no contexto de uma intervenção em psicologia comunitária com um grupo de jovens de uma ONG em Fortaleza, Ceará. Registrou-se em vídeo a situação escolhida para análise. O procedimento de análise foi construtivo-interpretativo com a intenção de produzir nexos de inteligibilidade diante dos fenômenos estudados. Os resultados apontam para as construções possibilitadas a partir da dramatização, compreendendo que esta técnica traduz e objetifica não somente uma experiência individual, mas uma vivência histórica e socialmente matizada, além de abrir espaço para a reelaboração da experiência como ato criador.

Palavras-chave: Psicologia Comunitária; Dramatização; Arte; Brincadeira; Mediação Simbólica.


ABSTRACT

This research investigates the processes of symbolic mediations by means of drama techniques in interventions of Community Psychology, aiming to understand and articulate theoretically drama and questions related to art and playing. The psychic functioning was understood from Historical Cultural Theory. This empirical study was conducted from an intervention in Community Psychology with a group of youngsters from an NGO in Fortaleza, Ceará. The intervention situation analyzed was filmed. The analysis procedure was taken as constructive, interpretative intending to produce evidences that allowed to trace nexus of intelligibility facing the phenomena studied. The results appoint to the constructions made possible from drama, understanding that drama may objectify not only an individual experience, but also represents a way of life passed through the place history and the social interactions established, as well as it opens space for a new elaboration of the experience as a creator act.

Keywords: Community Psychology; Drama; Art; Playing; Symbolic Mediation.


 

 

Introdução

A investigação relatada neste artigo apresenta os resultados de uma pesquisa-intervenção desenvolvida por meio de uma atuação em psicologia comunitária 1.

O objetivo deste trabalho foi averiguar como se davam os processos de mediação simbólica por meio do uso da técnica de dramatizações em intervenções da psicologia comunitária, tendo em vista compreender e articular teoricamente tal procedimento com questões relativas à arte e à brincadeira. A metodologia de análise foi tida como construtivo-interpretativa, segundo a proposta de pesquisa qualitativa desenvolvida por González Rey (2002). Vários momentos da intervenção foram registrados em vídeo, de maneira que as discussões apresentadas neste trabalho dizem respeito a uma análise de conteúdo produzida sobre uma situação específica de dramatização recortada do processo de intervenção.

O trabalho em psicologia comunitária deu-se junto a um grupo de adolescentes participantes de duas organizações não governamentais (ONGs) sediadas em Fortaleza, Ceará. Em linhas gerais, estas ONGs prestam serviços e assistência a famílias residentes no Jardim Iracema e no Padre Andrade, bairros periféricos da cidade.

Este estudo encontrou fundamento teórico na teoria histórico-cultural, sendo também relevantes as concepções da psicologia comunitária. A teoria histórico-cultural tem como uma de suas teses centrais a defesa da origem social das funções psicológicas superiores (VYGOTSKY, 1995; LURIA, 1990; KOZULIN, 1994; ROGOFF, 1993). Nesta direção, conforme Pérez e Martin (2004, p. 30), “a ideia que subjaz a defesa da origem social é a historicidade da natureza do psiquismo humano”2.

Para essa perspectiva, a interação social (COLAÇO, 2001; 2004) compreende um espaço de apropriação de significados, de modo que “a internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica, tendo como base as operações com signos” (VYGOTSKY, 2000, p. 75). Estas operações estão relacionadas à noção de mediação semiótica (VEER; VALSINER, 1996; VYGOTSKY; LURIA, 1996; WERTSCH, 1988), tratadas por Vygotsky (1995, p. 82) como vinculadas “à criação e ao emprego de estímulos-meio artificiais e à determinação da própria conduta com a sua ajuda”.

A psicologia comunitária (MONTERO, 2004; FREITAS, 1996; 1998), por sua vez, aponta que é necessário compreender os moradores das comunidades como atores sociais implicados com a construção da sua história. Os sujeitos deixam de ser considerados alvos passivos da atuação do psicólogo e passa-se a valorizar as potencialidades locais, buscando o fortalecimento dos membros das comunidades e das instituições ali existentes.

A ação da psicologia comunitária é fundamentada no método de “facilitação do modo de vida comunitária” (GÓIS, 1994). Esse processo pressupõe uma atuação dialógica e cooperativa (GÓIS, 2005), fornecendo orientações quanto à postura do facilitador nas relações que são estabelecidas com a comunidade. Nessa proposta, são indicadas várias metodologias de trabalho com grupos, como ferramentas para a intervenção em psicologia comunitária, entre as quais a técnica de dramatizações. Entende-se, grosso modo, que as interações sociais têm um caráter mediador no processo cooperativo de transformação da realidade, de tal maneira que a atividade dentro do contexto comunitário pode adquirir novas significações. Situando mais especificamente a técnica das dramatizações, esta, em resumo, é realizada a partir de vários diálogos em grupo, intercalados com a elaboração e a encenação de situações que representem o tema debatido, de maneira a auxiliar na discussão e/ou na construção de atividades.

Como proposta teórica central, procurou-se traçar uma analogia das dramatizações com a brincadeira, esta última compreendida segundo a perspectiva de Vygotsky (2000). Para este autor, o jogo infantil está vinculado à imaginação, que, por sua vez, é tomada como a brincadeira sem ação. Além disso, esta função psicológica (VYGOTSKY, 1996a) possibilita ao homem projetar-se no futuro, criar imagens de um passado, de objetos ou de ações que não necessariamente vivenciou; de modo geral, permite a superação das limitações situacionais impostas pela realidade.

Vygotsky (2000) afirma, ainda, que a brincadeira envolve uma situação imaginária baseada em regras. Segundo ele, “não existe brinquedo sem regras” (VYGOTSKY, 2000, p. 124). Mesmo quando estas regras não estão estabelecidas a priori, a situação imaginária da brincadeira contém regras de comportamento. Tal ideia pode ser explicitada quando as crianças coincidem situações de brincadeira com a realidade, como no exemplo das irmãs que brincam de ser irmãs:

Na vida, a criança comporta-se sem pensar que ela é a irmã de sua irmã. Entretanto, no jogo em que as irmãs brincam de “irmãs”, ambas estão preocupadas em exibir seu comportamento de irmã; o fato de as duas irmãs terem decidido brincar de irmãs as induz a adquirir regras de comportamento. Somente aquelas ações que se ajustam a essas regras são aceitáveis para a situação de brinquedo [...]. O que na vida real passa despercebido pela criança se torna uma regra de comportamento no brinquedo (VYGOTSKY, 2000, p. 125).

Por outro lado, todo jogo com regras, tendo em vista que as possibilidades de ação se tornam por elas limitadas, contém uma situação imaginária. Nesse sentido, o jogo só existe em função das regras que o determinam.A brincadeira (PINTO; GÓES, 2006; QUEIROZ et al., 2006) também funciona como um pivô para que a criança supere sua dependência em relação a determinantes concretos para significar sua experiência, de tal modo que atua ampliando as possibilidades de abstração e controle consciente do comportamento. Isto se dá na medida em que o jogo infantil coloca para a criança a possibilidade de “dirigir seu comportamento não somente pela percepção imediata dos objetos ou pela situação que a afeta de imediato, mas também pelo significado dessa situação” (VYGOTSKY, 2000, p. 127). Assim, o brinquedo constitui esse pivô em torno do qual o infante se torna capaz de realizar a separação entre significados e objetos e entre significados e ações. Em síntese, três aspectos caracterizam o jogo infantil: estar intrinsecamente relacionado à imaginação; as regras nas quais ele está baseado, sejam elas tácitas ou explicitas; e as possibilidades de abstração e de controle consciente do comportamento que ele permite.

De forma análoga à brincadeira, a dramatização pode ser um pivô, alavancando processos de abstração e movimentos de controle consciente do comportamento, para a modificação dos entendimentos sobre objetos, atitudes, relações, entre outros implicados com as atividades comunitárias3. O uso dessa técnica poderia, ainda, trazer novos significados para regras, tácitas ou explícitas, que norteiam o comportamento, de maneira a reorganizar os parâmetros de ação na realização de atividades desenvolvidas nas comunidades.

Tal qual nas brincadeiras, em torno das atividades comunitárias é construída uma série de regras que dirigirem o comportamento e as possibilidades de expressão e compreensão. Essas regras são apreendidas dentro de um campo social e, ao longo do tempo, tornam-se tácitas, o que acaba por deixar implícitos os sentidos e significados (VYGOTSKY, 2002) aos quais essas atividades se subordinam.

Para ajuizar melhor essa comparação, faz-se necessário situar as atividades comunitárias a partir de uma definição dada por Vygotsky (2000) sobre o trabalho, tratado dentro de uma perspectiva marxista (ZANELA, 2004), entendido como uma atividade fundamentada em regras. Regras que acabam por permear as construções culturais de um modo geral (HAGUETTE, 2003; COULON, 1995), na medida em que, conforme LEONTIEV (1987, p. 69) “a criança, no curso de seu desenvolvimento, penetra ativamente no mundo das relações humanas que a rodeia, assimilando (primeiro de forma muito concreta e real) as funções sociais das pessoas, as normas e as regras de comportamento socialmente elaboradas”.

Portanto, entendem-se as dramatizações como uma técnica com a qual é possível reconstituir eventos ou situações, de modo que é possível debater sobre regras que circunscrevem as atividades comunitárias. Ao se fazer uso das dramatizações, é pedido aos participantes do grupo que tragam à tona as contingências que determinam suas atividades; os procedimentos exigidos para realizá-las; e que se esclareça o uso dos instrumentos (materiais ou imateriais) que se fazem necessários. Também é possível dialogar sobre as relações estabelecidas entre os papéis desempenhados e, consequentemente, se preciso for, que existam reformulações diante de tudo o que foi visto. Todo esse procedimento é favorecido pelas possibilidades de ampliação da autorregulação do comportamento e dos procedimentos de abstração que o uso dessa técnica coloca, tendo a imaginação, na sua relação essencial com o pensamento e com a linguagem (VYGOTSKY, 2002), como função psicológica a ser mediada.

Isto posto, entende-se que realizar este procedimento de debate sobre tais regras implica em um processo bastante singular de construção de conhecimento. Produz-se aquilo que González e Padilla (1995) entendem como “conhecimento social”. Segundo estes autores, esse conceito visa a explicitar “o modo através do qual os seres humanos vão compreendendo as realidades sociais” (GONZÁLEZ; PADILLA, 1995, p. 165). Por outro lado, as dramatizações também possibilitam que surjam uma série de ponderações e valorações sobre a performance dos indivíduos nas interações sociais. Isso vem a constituir a ideia de “juízo moral”, que, por sua vez, “ocupa-se das noções que vamos gerando acerca de como é correto ou incorreto comportar-se nesse mundo social [...] em suma, inclui um componente de decisão e avaliação acerca de como deve-se agir nesse mundo” (GONZÁLEZ; PADILLA, 1995, p. 165).

 

Orientações metodológicas

No que tange ao desenvolvimento da pesquisa com o grupo de adolescentes, o trabalho pautou-se na perspectiva da pesquisa-intervenção4(AGUIAR; ROCHA, 2003; 2007; PAULON, 2005). Aguiar e Rocha (2007, p. 650) definem este procedimento como uma “investigação participativa que busca a interferência coletiva na produção de micropolíticas de transformação social”. Para Paulon (2005) a pesquisa-intervenção visa a criação de possibilidades para se operar invenções, recriações e a produção de singularidades em meio às serializações impostas à subjetividade pelo capitalismo.

O trabalho com as ONGs foi efetivado por um dos autores do presente artigo, e vários dos encontros realizados com o grupo de adolescentes foram registrados, com o auxílio de uma câmera de vídeo (LOIZOS, 2002). Realizaram-se reuniões que usualmente ocorriam duas vezes por semana e se deram entre os meses de dezembro de 2007 e maio de 2008. Destes encontros, sete foram filmados, mas somente um deles, no qual foi realizada uma dramatização, é apresentado nas análises aqui discutidas.

O procedimento de análise dos dados produzidos por esta pesquisa se inspirou na proposta de pesquisa qualitativa desenvolvida por González Rey (2002). Este autor entende, em consonância com Vygotsky (1996b; 2000), o caráter qualitativo como vinculado à necessidade de estudar os objetos em sua integralidade, de forma processual (FREITAS, 2003; PINO, 1990), compreendendo, também, que muitos fenômenos não são diretamente acessíveis à experiência, de tal forma que a explicação produzida não pode prescindir da ideia de que os eventos estabelecem entre si relações dinâmicas e complexas.

A metodologia de análise foi compreendida, por conseguinte, como construtivo-interpretativa (GONZÁLEZ REY, 2002). Nesta proposta, tem-se que os fatos estudados não são tomados exclusivamente como constatação empírica direta, todavia são sistematicamente elaborados para a construção de um marco teórico de orientação do pesquisador. Não se trata, contudo, de incluir o objeto em categorias preconcebidas, com o intuito de aprisionar sua complexidade e singularidade. Intenta-se ordenar momentos parciais e provisórios, formando proposições que, muitas vezes, apresentarão uma relação indireta com o objeto de estudo, mas que participam de um contínuo que compõe as elucubrações do pesquisador.

Tendo à disposição a transcrição do momento em que uma dramatização fora realizada, procedeu-se uma análise de conteúdo e primou-se por elaborar indicadores que permitissem estabelecer correlações com a perspectiva teórica trabalhada, com a finalidade de produzir um processo constante e sempre provisório de integração e construção de um marco mais amplo de inteligibilidade. Também é relevante dizer que a análise de conteúdo, aqui, não é tomada em sua acepção clássica, mas ganha uma conotação singular ao ser compreendida como “aberta, processual e construtiva e [que] não pretende reduzir o conteúdo a categorias concretas restritivas” (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 146).

 

O procedimento de intervenção

O procedimento de intervenção tentou realizar as etapas demarcadas por Góis (1994) para a ação na comunidade, a saber: escolha e entrada na comunidade; diagnóstico-ação; autossustentação; continuidade e ampliação; e desligamento progressivo. Em linhas gerais, intentava-se ampliar os espaços de reflexão sobre questões que perpassavam o contexto comunitário e, se possível, construir algum tipo de ação na comunidade.

Após uma série de conversas com as coordenadoras das ONGs, foi iniciada a intervenção com o grupo, atividade que contou com o apoio de voluntárias integrantes dos projetos. A princípio, foram convidados vinte participantes. Ao longo do tempo, doze adolescentes tornaram-se frequentadores assíduos das reuniões. Diversos temas foram debatidos no decorrer dos encontros realizados.

No encontro que aqui será analisado, cuja temática era a adolescência, as atividades efetivamente iniciaram-se com um jogo, inspirado em uma proposta de Boal (1983), que consistia em sortear, entre os jovens, papéis contendo nomes de animais, macho e fêmea. Depois do sorteio, cada um teria que imitar o animal que tirou, sem falar ou fazer qualquer ruído e, depois de algum tempo, achar o seu par correspondente. Seguiu-se, então, para a dramatização.

Os participantes foram divididos em dois subgrupos. Cada subgrupo foi incumbido de elaborar uma situação e, por conseguinte, realizar uma dramatização. A dramatização que se seguiu foi efetivada em três momentos. No primeiro, atividades cotidianas dos jovens foram reconstituídas, e houve uma discussão prévia sobre o local onde as ações costumavam ocorrer e sobre os objetos utilizados. O local e os objetos foram reproduzidos com os materiais que estavam disponíveis no momento, ou foram simplesmente imaginados e figurados na ação durante a dramatização. Os papéis foram estabelecidos e divididos entre os participantes do grupo. Houve uma discussão sobre como cada personagem deveria se portar, e cada participante do grupo ficou encarregado de improvisar falas que fossem coerentes com o papel escolhido. Em seguida, houve um debate sobre a cena apresentada. Os diálogos posteriores à primeira dramatização, contudo, foram travados por todo o grupo, e não nos subgrupos.

No segundo momento, realizado após o debate, a cena foi novamente construída, porém colocou-se a ideia de estabelecer outras formas de comportamento para cada personagem, tendo em vista as implicações dessas novas formas para uma reorganização e um novo planejamento das atividades. Por fim, houve mais um momento de diálogo para sintetizar o apanhado das questões discutidas e elaborar um encaminhamento posterior. O trabalho de intervenção culminou com a realização de um seminário concebido, organizado e executado pelos adolescentes que pretendia propiciar um espaço de diálogo com os pais dos jovens, no que dizia respeito a questões relativas à adolescência.

 

O procedimento de análise dos dados

As análises aqui discutidas dizem respeito ao encontro realizado no dia 20 de fevereiro de 2008 com o grupo de adolescentes das ONGs referidas anteriormente. Naquele momento, as atividades encontravam-se na fase de diagnóstico-ação do procedimento de intervenção em psicologia comunitária. Estavam presentes doze adolescentes, duas mães e ainda as voluntárias Vera, Francisca, Fátima e Creuza5. Adolescência, como dito acima, era a temática a ser discutida naquele dia e a técnica de dramatizações foi utilizada. Este encontro compreendeu um dos sete momentos que foram filmados. Seu conteúdo foi inteiramente transcrito, mas manteve-se o sigilo quanto à identidade dos participantes.

No procedimento de interpretação dos dados realizado adiante, as ideias de “conhecimento social” e “juízo moral” foram tomadas como categorias de análise, porque a partir delas se deu inteligibilidade aos processos psíquicos implicados com o discurso dos jovens. Tendo esta tarefa em foco, faz-se necessário aclarar que o “juízo moral” (FIERRO, 1995) foi tomado como um processo de avaliação que os adolescentes faziam do seu próprio comportamento e do comportamento alheio com repercussões para a autorregulação.

Também é preciso assinalar que, para a categoria “conhecimento social”, fizeram-se presentes dois procedimentos: “esquemas de conhecimentos” e “habilidade de adoção de perspectivas”, este último relacionado com as possibilidades de se colocar no lugar do outro e tentar compreender seu ponto de vista. Os “esquemas de conhecimento” subdividem-se em três modalidades, quais sejam: esquemas de pessoa, em torno dos quais é elaborado o entendimento sobre características pessoais de si mesmo e dos outros; esquemas dos papéis sociais exercidos por indivíduos, instituições sociais ou grupos; e “esquemas de eventos ou situações, também chamados roteiros, que podem incluir dentro de si outros esquemas e que se referem a uma seqüência de ações relacionadas causal e/ou temporalmente em um contexto social” (GONZÁLEZ; PADILLA, 1995, p. 166-167).

É relevante ressaltar que estes conceitos tiveram um caráter analítico e não teórico neste trabalho. Não foi objetivo desenvolver uma discussão sobre “conhecimento social” ou “juízo moral”, mas, a partir deles, entender a dinâmica psíquica envolvida nas dramatizações, na medida em que as elaborações propiciadas pelo uso desta técnica os têm como efeito.

Isto posto, no encontro aqui analisado, percebeu-se que, em princípio, as formas apresentadas para conceituar a adolescência, bem como uma série de comportamentos que se compreendem vinculados a esta fase, surgiam para os jovens que participavam do grupo a partir das performances cotidianas desempenhadas por cada um deles. Nas relações familiares, na escola, no encontro com outros jovens e em vários outros espaços, parecia haver uma série de regras constituídas socialmente, que determinavam as possibilidades de comportamento e de expressão, na medida em que eles se percebiam e eram percebidos como “adolescentes”. Regras que, não raro, eram contraditórias entre elas e simplesmente vivenciadas de forma tácita.

O exercício diário e espontâneo de tais regras não necessariamente exigia uma reflexão mais aprofundada por parte dos jovens. O processo do grupo pareceu criar a necessidade ou dar vazão para que essas regras fossem tratadas de alguma maneira. É justamente a partir destas regras sociais, ou melhor, da definição implícita e/ou da ausência de reflexão sobre elas que se enquadra certo uso das dramatizações.

 

O primeiro momento de diálogos e encenações

Fez parte do primeiro momento da técnica de dramatizações, conforme já exposto, um diálogo em grupo para a construção da cena a ser dramatizada. Nessa etapa de conversas, foram compartilhados pontos de vista diferentes, modos distintos de se relacionar com as pessoas, compreensões diversas sobre as posturas desempenhadas em determinadas situações, entre outras questões, que puderam auxiliar os participantes na montagem da cena. Fundamentalmente, pode-se discernir esse momento, como os demais que se seguem, como propiciando a emergência de Zonas de Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 2001), entendidas como espaços simbólicos de construção de significados (MEIRA; LERMAN, 2001).

Um dos subgrupos (subgrupo 1) decidiu montar uma cena que tratava de problemas relativos a afazeres domésticos. Questionaram que, ao chegar a casa, depois da escola, o almoço ainda não estava pronto e isso causava discussões entre eles e as mães. Segundo eles, tais discussões ainda se agravavam por conta da falta de dinheiro. No outro subgrupo (subgrupo 2), as garotas conversaram sobre vivências pessoais que diziam respeito aos limites impostos pelos pais sobre as possibilidades para sair de casa e encontrar com amigos ou “paqueras”. Nesse primeiro momento, a categoria de “conhecimento social” faz-se presente, na medida em que foram trabalhados “esquemas de papéis sociais”, ou seja, discutiu-se como cada personagem da cena poderia se portar na situação ali debatida. O trecho a seguir é ilustrativo da conversa do subgrupo 2:

Karla: Eu sou a mãe dela. A cena vai começar em casa... Ela vai dizer que vai sair; eu vou dizer que não... Ela vai dizer “tchau” e vai sair. Ela sai, eu vou lá...
Paulinha: Não! Quem vai primeiro é o meu pai...
Karla: Eu vou lá e [vou] mandar ela ir pra casa...

A compreensão em relação a esse procedimento de conversas em grupo para a montagem da cena pode ser aprofundada, tendo em vista que a imaginação (VYGOTSKY, 2006), função psicológica central para a realização das dramatizações, trabalha com a combinação de elementos da realidade. Portanto, quanto maior for a experiência acumulada, maiores serão as possibilidades de combinação. Além disso, é a experiência social que vai refratar o modo como as combinações vão se dar. Vygotsky (2006) aponta quatro vínculos entre a imaginação e a realidade. Dois deles são significativos para o momento.

O primeiro indica que todo material com o qual a fantasia trabalha é oriundo de combinações de elementos trazidos da realidade. A segunda forma de vinculação se dá quando produtos da fantasia são utilizados para construir elementos complexos da realidade com os quais não se teve contato direto, como eventos históricos e lugares ainda não visitados. Vem à tona a experiência social, pois é ela quem permite que este tipo de vínculo se dê. É a experiência acumulada que orienta o modo como a fantasia vai realizar suas combinações.

Retomando o encontro com os adolescentes, é preciso dizer que, em ambos os grupos, durante seu primeiro momento de diálogo para a construção da cena, vários elementos da experiência pessoal de cada jovem foram trazidos até que a cena fosse elaborada efetivamente. Isso nos aponta indícios do primeiro vínculo entre imaginação e realidade, ou seja, a cena surgiu da combinação das ideias compartilhadas na conversa. Além disso, vê-se também o segundo vínculo entre imaginação e realidade, pois os adolescentes não necessariamente tinham experiências coincidentes, mas construíram elaborações a partir das experiências compartilhadas. Antes de interpretar as situações, foi pedido que cada grupo explicasse a sua proposta. Em termos de “conhecimento social”, este momento revelou algo relativo aos “esquemas de situações”, pois foi apresentado um roteiro que teria relação com as performances cotidianas desempenhadas pelos jovens.

Continuando com o desenrolar do encontro, na medida em que as cenas eram explicadas, passava-se para as interpretações. No subgrupo 1, a cena ocorria na área de serviço de uma casa. Creuza, que interpretava a mãe, tentava fazer gestos que demonstravam que ela realizava afazeres domésticos, como varrer e lavar louça. Em contraponto a isso, a postura dos adolescentes tentava caricaturar certa incompreensão diante do que eles entendiam como um atraso na preparação do almoço. Os personagens interpretados tentavam tornar palpável a discussão realizada anteriormente, na qual foram debatidos os motivos para essa impaciência diante do atraso do almoço e, ao mesmo tempo, as razões que a mãe teria para não conseguir realizar essas tarefas.

O subgrupo 2 tentou trazer à tona a dificuldade na relação entre pais e adolescentes no que dizia respeito aos limites impostos e às possibilidades de negociação diante destes limites. Ao mesmo tempo, tentou mostrar como essa situação podia repercutir na relação com os amigos. A cena passava-se em dois locais: inicialmente em casa, onde a mãe indicaria o horário para a filha retornar, e, depois, na rua, onde a garota encontraria com suas amigas. Este segundo cenário é apresentado no excerto a seguir:

Taís (Mãe): A menina saiu de casa oito horas e oito e meia... Eu vou buscar ela!
[Dirige-se para a adolescente que interpreta a filha.]
Taís (Mãe): Mulher, o que é que tu tá fazendo aqui?!
Paulinha (Filha): Mãe, o que é que tu tá fazendo aqui, mãe?
Taís (Mãe): Pra casa baixinha! Procurar o que fazer!
Paulinha (Filha): Mãe?
Taís (Mãe): Tem um monte de roupa suja lá, a casa pra ver, as coisas pra lavar! E tu tá aqui conversando?!
Paulinha (Filha): Mãe?!
Taís (Mãe): E vocês?
[Dirigindo-se às amigas da garota interpretada na cena.]
Taís (Mãe): Também não têm o que fazer, não? Meu Deus do céu!

Retomando as questões sobre o funcionamento psíquico nas dramatizações, entende-se que, com a cena realizada, surge a ideia do pivô, colocada anteriormente na analogia com a brincadeira. Ao realizar a cena concretamente, e não só imaginá-la, facilita-se a separação entre objetos e significados. A partir da cena, os participantes podem ampliar suas possibilidades de abstração diante da atividade. Também se torna possível uma maior independência entre as ações e seus significados, de forma a ampliar as possibilidades de controle consciente do comportamento. Reduz-se a subordinação à percepção imediata, seja em relação aos cenários, objetos e mecanismos com os quais as atividades estão implicadas, seja em relação aos papéis desempenhados. Adiante, serão mostradas indicações do que é colocado aqui a partir da conversa que se seguiu às interpretações.

 

O segundo momento de diálogos e encenações

Voltando ao desenrolar do encontro aqui discutido, chega-se então ao momento de diálogo posterior à dramatização. Este talvez tenha sido um dos momentos mais férteis e que deu inúmeros indícios da perspectiva defendida neste trabalho. Na tentativa de estimular que os adolescentes avançassem nas elaborações sobre o que havia sido tratado nas interpretações, foi sugerido que eles pensassem em outra solução para aquelas situações. Diante da interpelação colocada pelo pesquisador, várias questões foram apresentadas. O excerto seguinte, que diz respeito à situação apresentada pelo subgrupo 2, ilustra alguns indícios importantes:

Karla: Assim, é porque... Eu não passo por isso que ela passa, mas eu vou dar um exemplo, assim, como se eu fosse ela. Eu acho que, nessa situação aí, eu não gostaria que minha mãe fosse lá, né? Se ela quisesse me levar pra casa, dissesse: “Karla, já tá na hora, né? Te espero em casa”. Não ficasse discutindo na frente dos amigos e ainda perguntar se não tinham o que fazer enquanto eu estivesse conversando com ela. Acho que isso não seria bom! Eu acho que... [Se] ela quisesse levar pra casa: “Tá bom, tá na hora!” e saísse numa boa. Dava boa noite e tchau!

Quando Karla coloca “Eu não passo por isso que ela passa, mas eu vou dar um exemplo, assim, como se eu fosse ela”, algumas indicações são percebidas. Uma delas é de que está havendo a elaboração de “conhecimento social”, na medida em que ela está exercitando o que foi chamado anteriormente de “habilidade de adoção de perspectivas”, porque há uma tentativa deliberada de se colocar no lugar da personagem “adolescente” que foi dramatizada e, em certa medida, compreender as contingências da situação que determinam os comportamentos apresentados. Continuando a observar a fala de Karla, surge também outro aspecto que diz respeito ao “juízo moral”, pois, ao dizer “isso não seria bom”, a adolescente avalia o comportamento da personagem “mãe” na cena e, ao indicar a sua proposta, dá sinais do que entende como um comportamento adequado.

Tendo em vista os diálogos desenvolvidos pelo grupo, na medida em que várias regras foram explicitadas, quando se pôde, por exemplo, compreender melhor os porquês dos pais imporem certos limites e as motivações dos filhos em desobedecerem tais limitações, pôde-se construir elaborações e avaliar o que está em jogo nos papéis desempenhados por pais e filhos. É fundamental ressaltar que o intercâmbio propiciado pela dramatização facilita este processo, permitindo o compartilhamento de significados e a elaboração de sentidos. Vale dizer que, nos momentos de interação, os signos e os seus significados “são o resultado de um processo de negociação em que o dito significado é acordado entre os participantes. Quer dizer, constrói-se de maneira conjunta de modo que permita dar sentido e organizar a experiência que os afetam” (SANTIGOSA; RODRÍGUEZ, 2005, p. 168).

Outra indicação na fala de Karla diz respeito à técnica de dramatizações em si, pois, quando ela afirma “Eu não passo por isso que ela passa, mas eu vou dar um exemplo”, surge um indício de que o conhecimento social e os juízos morais que estão sendo construídos foram mediados pelo contato com a cena interpretada. Ou seja, aquele evento não é vivido concretamente por Karla, mas, a partir da encenação (“nessa situação aí”), ela pôde imaginar o ocorrido, manejar os elementos que o compõem e, adiante, propor uma situação alternativa, sem necessariamente ter que experimentá-la. Pode-se retomar, por conseguinte, a ideia dos vínculos entre imaginação e realidade, sobretudo o segundo, aquele que diz que a imaginação permite lidar com eventos com os quais não se teve contato. E, ainda, para realizar tais elaborações, coloca-se como fundamental o papel da linguagem na sua relação com a atividade, na medida em que: “[ela permite] orientar e organizar [a] atividade atendendo a outros contextos evocados lingüisticamente (atividade simbólica, exemplificado pelo jogo do “como se), e até mesmo descontextualizá-la, substituindo o contexto por referenciais verbais, isto é, significados criados lingüisticamente” (VILA, 1995, p. 163).

Nesse sentido, observando o que foi colocado até aqui sobre a fala de Karla, a ideia central defendida neste artigo pode ser ressaltada: a dramatização funciona como um “pivô” para, neste ponto, alavancar processos de abstração, pois a leitura e a avaliação realizadas em torno da situação estão implicadas com um raciocínio categorial. Para isto, faz-se necessário inferir, a partir dos comportamentos apresentados na cena, as regras sociais envolvidas na situação e, no mínimo, inseri-las em categorias que as enquadrariam como aceitáveis ou não, ao serem comparadas a certos parâmetros. Nesse sentido, é significativa a colocação de Luria (1987, p. 202-203) ao afirmar que “a presença da linguagem e de suas estruturas lógico-gramaticais permite ao homem tirar suas conclusões com base em raciocínios lógicos”. No caso aqui apresentado, raciocínios mediados pelo processo imaginativo propiciado pela dramatização.

Retomando o desenrolar do encontro, o pesquisador interpelou, mais uma vez, cada um dos grupos para que uma nova cena fosse formulada e interpretada, de modo que se elaborasse uma solução alternativa às questões colocadas até então. Para a situação do subgrupo 1, avaliou-se possível auxiliar nas tarefas domésticas e tentar dividi-las com a mãe para que o almoço pudesse estar pronto mais rapidamente. Na solução elaborada para a situação fornecida pelo subgrupo 2, aos pais caberia serem mais razoáveis na negociação dos limites e não constrangerem os jovens na frente dos amigos. Os adolescentes, por outro lado, deveriam cumprir com os limites estabelecidos. Em ambos os casos, a partir dos “conhecimentos sociais” construídos e dos “juízos morais” feitos dos papéis desempenhados, foi possível configurar, de outra forma, os comportamentos e estabelecer novas possíveis modalidades de ação.

Na perspectiva trabalhada aqui, quando outras possibilidades de agir são dialogadas e a atividade é novamente construída após o debate, colocam-se maiores chances de fazer escolhas diante das situações vivenciadas. Novamente surge a ideia do pivô, mas agora se evidenciam os indícios sobre o avanço na autorregulação do comportamento. Coloca-se a ideia de que o pensamento abstrato permite lidar com a dimensão objetiva da imaginação (VYGOTSKY, 1996a). Tal aspecto propiciaria a produção de novas perspectivas relativas à atividade imaginada. Isto permitiu a elaboração das sugestões que foram dadas para novas performances nos comportamentos desempenhados pelos personagens criados pelos adolescentes que representavam os pais e a si mesmos.

Dando sequência ao procedimento, pediu-se que mais uma vez a encenação fosse realizada. No que tange ao subgrupo 2, conforme dito anteriormente, duas possibilidades para novas formas de desempenhar os papéis foram apresentadas. Segue o excerto no qual a proposta diria respeito aos pais tentarem não constranger os adolescentes na frente dos amigos:

Paulinha (Filha): Mãe, [vou sair] de novo! A senhora disse que se eu fizesse as coisas...
Taís (Mãe): Sete horas...
[Simulando olhar o relógio.]
Paulinha (Filha): Sete horas...
Taís (Mãe): Nove e meia é para estar em casa.
[...]
Pesquisador: [O tempo] passa, dá dez e meia e ela resolve ir pra casa.
Paulinha (Filha): Não... Gente, está muito tarde. Tenho que ir pra casa... Tchau!
[Caminha em direção a Taís.]
Taís (Mãe): Que horas? Dez e meia!
[Mais uma vez simulando olhar o relógio.]
Paulinha (Filha): Mãe, eu não tenho culpa! A senhora sabe que eu não tenho relógio, né? Se a senhora não compra relógio pra mim... Até poderia ser que eu chegasse em casa cedo!
[...]
Taís (Mãe): Tu tem sorte que eu não fui lá fazer vergonha. Agora eu não vou mais fazer vergonha a tu. Agora eu vou esperar tu chegar pra eu poder conversar contigo.
Paulinha (Filha): Ah, assim está melhor.

A cena cristaliza novas modalidades de ação que foram decididas e aviadas, novos instrumentos de negociação de papéis que puderam surgir, outras posturas que foram definidas. Assim, os elementos que compuseram o desenrolar do encontro até ali puderam ser dissociados e novamente combinados em uma nova imagem complexa, que surge marcada por toda uma série de interpretações e avaliações de regras sociais que orientavam o comportamento dos jovens. Todo este processo, notadamente mediado pela imaginação criadora (VYGOTSKY, 2006), foi desenvolvido na interação entre os jovens. Interação que foi proporcionada pelas dramatizações realizadas.

Tais avaliações e interpretações alavancaram uma reorganização de atitudes que sugerem uma modificação na autorregulação do comportamento. Díaz et al. (1993) expõem que, no processo de desenvolvimento, o avanço na autorregulação implica uma superação das determinações imediatas dos estímulos oriundos do meio em direção ao estabelecimento consciente de objetivos que orientam o comportamento e os processos cognitivos. Tal avanço se daria por meio da interação social que propiciaria o compartilhamento de símbolos e instrumentos que atuariam como mediadores. Além das capacidades de elaborar representações simbólicas, a autorregulação também lida com conhecimento e a compreensão de demandas sociais.

Tendo estas ideias em vista, entende-se que a série de interpretações e avaliações que a dramatização propiciou serviu para que as regras que orientavam os comportamentos discutidos fossem manipuladas e reorganizadas, na medida em que esta técnica facilitou a construção de “conhecimento social” e a elaboração de “juízos morais”. Isto ratifica, mais uma vez, a ideia do pivô discutida anteriormente, mas agora dando ênfase à questão da autorregulação do comportamento.

 

O encerramento do encontro

O processo, no entanto, não se encerrou com a realização da nova encenação, pois, por fim, ocorreu mais um momento de diálogo. Destacou-se a necessidade de se ampliar as possibilidades de interlocução com os pais, porque se questionou que os jovens eram muito convocados a escutar, mas raras vezes tinham a oportunidade de se colocar e serem compreendidos. Desse questionamento, surgiu a ideia de se realizar um seminário voltado para os pais, no qual esta interlocução se faria possível. De início, foi sugerido que o pesquisador que facilitava o grupo conduzisse essa atividade, mas foi decidido que os próprios adolescentes, depois de um período de preparação e com o devido suporte, viabilizariam e conduziriam esse evento.

Esse fato foi tão significativo que norteou todo o desenrolar posterior do grupo. Nesse sentido, as novas formas de ação vislumbradas, em decorrência da metodologia utilizada, não se restringiram ao desempenho de papéis cotidianos, mas recolocaram as próprias possibilidades de atuação do projeto e dos jovens que ali estavam participando.

 

Considerações finais

Tendo em vista as análises empreendidas neste trabalho, foi possível visualizar como os momentos de interação em grupo, facilitados pela técnica de dramatização, viabilizam a elaboração de conhecimento social e a produção de avaliações sobre as atitudes, comportamentos e situações debatidas. Os resultados apontam que a situação de dramatização pode constituir um processo mediado que traduz e objetifica não somente uma experiência individual, mas uma vivência perpassada pela história do lugar e pelas interações sociais estabelecidas, além de abrir espaço para reelaboração da experiência como ato criador. Ao mesmo tempo, a dramatização pode ser compreendida, assim como é concebida a brincadeira em uma visão histórico-cultural, não como uma ação simbólica isolada, mas como vinculada à imaginação, que, tal como as demais funções psicológicas superiores, é oriunda da ação.

As questões levantadas, portanto, reforçam a ideia de um funcionamento psíquico análogo entre a brincadeira, o jogo simbólico e a construção das encenações. Contudo, é preciso ressaltar que há algumas diferenças a serem frisadas. A brincadeira coloca à criança possibilidades ainda não desenvolvidas, produzindo avanços significativos. Na situação de dramatização, quando se utiliza a técnica com adolescentes e adultos, não é a necessidade de se avançar na capacidade estrutural de produzir abstrações e regular o comportamento que está em jogo, mas a possibilidade de superar uma série de construções sociais que não propiciam o diálogo sobre as regras estabelecidas. A dimensão interativa da dramatização e o uso das cenas em si propiciam um espaço de trocas simbólicas, portanto de Zonas de Desenvolvimento Proximal. Tais situações possibilitam as elaborações desenvolvidas pelos participantes do grupo, tendo a imaginação, na sua relação fundamental com o pensamento e a linguagem, como função psicológica mediada.

A atuação da psicologia comunitária junto à ONG, por sua vez, mostrou a importância da criação de espaços para a interlocução e o avanço que foi possível na recriação de ações individuais e coletivas diante das atividades comunitárias ali desenvolvidas.

 

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Endereço para correspondência
Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
E-mail:pablohuascar@gmail.com

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
E-mail:verianac@uol.com.br

Recebido em: 30/07/2009
Revisto em: 23/12/2009
Aceito em: 23/12/2009

 

 

1 Este trabalho é o resultado de pesquisa de Dissertação de Mestrado em Psicologia realizada na Universidade Federal do Ceará, no período de 2006 a 2008, com o apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), por meio de bolsa de estudo.
2 Todas as citações dos textos em espanhol foram traduzidas pelos autores.
3 As atividades comunitárias dizem respeito a “um sistema complexo de interações instrumentais e comunicativas” (GÓIS, 2005, p. 87) e têm um caráter coletivo e de ação prática dentro da comunidade, voltadas para a transformação objetiva da realidade. Compreendem o enlace de aspectos físicos e histórico-culturais e atendem, simultaneamente, a demandas coletivas e individuais.
4 Barros (2006) aponta que a psicologia comunitária prefere substituir os termos intervenção comunitária e intervenção psicossocial por “facilitação comunitária” e “facilitação sociopsicológica”, respectivamente, na medida em que aqueles termos seriam carregados de uma conotação autoritária na qual “somente o interventor é sujeito, ao passo que as pessoas e/ou o lócus sobre os quais se dá a intervenção permanecem na condição passiva” (BARROS, 2006, p. 16). Porém, o termo intervenção neste trabalho deve ser entendido a partir da ideia de que ele “carrega em sua etimologia não só o sentido de uma intromissão violenta, como se naturalizou compreendê-la, mas no resgate de um Interventio que contempla a ideia de um ‘vir entre’, ‘interpor-se’” (PAULON, 2005, p. 21).
5 Todos os nomes dos participantes da pesquisa indicados neste texto são fictícios.

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