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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Lei Seca no Mar: desafios preventivos na Marinha do Brasil

 

The Dry Law on Board: Preventive challenges in Brazilian Navy

 

 

Elizabeth Espindola HalpernI; Ligia Maria Costa LeiteII

IDoutoranda -Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente -Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O consumo de álcool no cotidiano da Marinha do Brasil (MB) deixa o trabalhador e a organização vulneráveis aos seus efeitos perniciosos. O objetivo central deste estudo é o de investigar os padrões de consumo de álcool dos pacientes do Centro de Dependência Química (CEDEQ), examinando o seu envolvimento com o álcool no espaço laboral. O objetivo específico examina como a MB lida com o consumo de etílicos no ambiente laboral. Por meio da pesquisa qualitativa, foi feito um levantamento exploratório de dados contidos nos arquivos do CEDEQ para conhecer o seu funcionamento e o perfil dos pacientes; adicionalmente, foi feita uma pesquisa explanatória, de cunho etnográfico, por meio da observação participante em dois grupos terapêuticos, por dois anos. O processo de coleta e de interpretação dos dados foi feito de forma interativa e não sequencial, de modo retrospectivo e circular, incluindo a análise das categorias e a análise da trajetória. Os resultados indicaram que a escassez e a subnotificação de registros impedem que medidas de proteção mais amplas e profundas sejam adotadas, reforçando a posição ambivalente da instituição que parece, ao mesmo tempo, estimular e proibir o consumo de álcool a bordo.

Palavras-chave: Alcoolismo; Militares; Local de Trabalho.


ABSTRACT

Alcohol consumption in Brazilian Navy daily life leaves the worker and the organization vulnerable to its harmful effects. The main purpose of this study is to investigate the patterns of alcohol use by patients of the Center for Chemical Dependency (CEDEQ), examining their involvement with alcohol in the workplace. The specific objective is to inspect how Brazilian Navy deals with the consumption of alcohol in the workplace. Through qualitative research, an exploratory research was performed concerning archives data of CEDEQ in order to be acquainted with its functioning, as well as the patients' profile. In addition, an explanatory research was made, using the ethnographic method, through participant observation in two therapeutic groups, during two years. The process of collecting and interpreting data was undertaken interactively rather than sequentially, in a retrospective and circular way, including the analysis of categories and the trajectory analysis. The results indicated that the lack of records and underreporting of information prevent the adoption of wider and deeper protective measures, reinforcing the ambivalent position of this institution that seems to both encourages and prohibits alcohol consumption on board.

Keywords: Alcoholism; Military Personnel; Workplace.


 

 

Introdução

Este artigo inaugura o estudo sobre o consumo de álcool e do alcoolismo do contingente da Marinha do Brasil (MB), no espaço laboral, buscando conhecer como esta organização vem enfrentando a questão. Sua relevância relaciona-se com o fato de este ser um tema de saúde pública de grande importância, sobretudo pelos prejuízos inequívocos que gera ao servidor e à instituição.

Debruçar-se sobre este assunto se faz necessário tendo em vista que organizações como a MB devem se alinhar às diretrizes estabelecidas pelo Decreto Presidencial n. 6.117 (BRASIL, 2007). Este trata da Política Nacional sobre o Álcool, destacando-se como de interesse particular a diretriz de número 18, que se refere às iniciativas de prevenção ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas no ambiente de trabalho. A organização naval também deve se afinar com o que se encontra disposto pelo International Labour Office (ILO, 1999) a respeito das atribuições dos empregadores perante a questão do uso de álcool e drogas no trabalho. Segundo o ILO, cabe aos empregadores providenciar e manter um ambiente de trabalho seguro e saudável, ao restringir ou proibir a posse, o consumo e a venda de álcool no trabalho.

O consumo de bebidas no trabalho é um tema que merece uma atenção inadiável tendo em vista as repercussões perniciosas e fatais existentes, ainda que muitas permaneçam silenciosas. Pesquisas e levantamentos, nacionais e internacionais, que trazem à luz uma maior compreensão da magnitude da questão serão apresentados a seguir.

A Portaria Interministerial, que recomenda que as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (CIPAs) debatam o problema do alcoolismo no ambiente de trabalho, foi fruto da 5ª Semana Antidrogas promovida pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). Constatou-se que o álcool é um dos responsáveis pelos mais de 339 mil acidentes de trabalho que ocorreram no Brasil em 2002. Nesta ocasião, o diretor do Departamento de Saúde e Segurança do Ministério do Trabalho destacou que o consumo de álcool no Brasil é responsável por 50% das faltas ao trabalho, 95% das dependências químicas, 90% das urgências psiquiátricas e 50% das mortes no trânsito (OBID, 2003).

Quanto aos gastos públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) despendeu R$ 36.887.442,95 com o tratamento dos dependentes de álcool e outras drogas em unidades extra-hospitalares, entre 2002 e junho de 2006 (BRASIL, 2007).

Adicionalmente, um estudo feito pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em 1993, indicou que 10 a 15% dos trabalhadores brasileiros apresentam dependência ou problemas de abuso do álcool. Nele, constatou-se que o uso de álcool é responsável por três vezes mais licenças médicas do que as concedidas para outras doenças, por cinco vezes mais chances de acidentes de trabalho e por 50% do total de absenteísmo e licenças médicas (BRASIL, 2004).

Em âmbito internacional, alguns dados relevantes assinalados no Workplace Prevention Programes(UNODC,s/d) apontam que: 40% dos acidentes no trabalho estão relacionados ao consumo de etílicos; o consumo de substâncias psicoativas aumenta em duas a três vezes o absenteísmo; e 20 a 25% dos acidentes no trabalho envolvem trabalhadores intoxicados que ferem a si próprios ou a colegas, sendo que 15 a 30% deles são fatais.

O National Survey on Drug Use and Health (U.S. DEPARTMENT OF HEALTH & HUMAN SERVICES, 2008) revelou que as taxas de consumo corrente1 de álcool foram de 63% para os adultos que se encontravam empregados com idades acima de 18 anos em 2008, valor superior ao dos adultos desempregados (55,5%). O consumo pesado2 dos desempregados foi de 12,8%, superior à taxa dos trabalhadores em tempo integral (8,8%). Não houve diferença significativa nas taxas de consumo do beber episódico3 entre os adultos empregados em tempo integral (30,3%) e os adultos desempregados (33,4%). A maior parte dos usuários que bebem esporadicamente e dos que fazem uso abusivo estava empregada em 2008. Dentre os 55,9 milhões dos binge drinkers adultos, 44,6 milhões (79,7%) estavam empregados, tanto em tempo integral quanto em tempo parcial. Dos 16,8 milhões de bebedores pesados, 13,1 milhões (78%) estavam empregados. Não houve mudanças significativas nas taxas de beber episódico e do beber pesado entre 2007 e 2008 para os empregados em tempo integral e os desempregados. Contudo, o número de bebedores esporádicos e de consumidores pesados aumentou: de 2,3 milhões para 3 milhões para o uso esporádico, e de 851.000 para 1,2 milhões para o consumo pesado.

Ainda a respeito do uso de álcool no ambiente laboral, Frone (2006) assinala que 15% da força de trabalho norte-americana é afetada pelo uso de álcool no trabalho, o que corresponde a 19,2 milhões de trabalhadores, sendo que: 2,3 milhões bebem antes do trabalho; 8,9 milhões bebem durante a jornada de trabalho; e 2,1 milhões trabalham sob a influência de álcool. No que tange aos custos materiais envolvidos relacionados ao uso de álcool, Zaloshnja et al. (2007) verificaram que os prejuízos anuais para os empregadores excedem em US$ 28,6 bilhões: US$ 13,2 bilhões corresponderam aos prejuízos causados pelo envolvimento com o álcool no trabalho e US$ 9,2 bilhões foram gastos com acidentes de carro em que pelo menos um motorista se encontrava alcoolizado.

A partir da constatação da magnitude do problema do consumo de etílicos no espaço de trabalho, considerou-se importante dar início a uma avaliação sobre a extensão do uso de álcool entre os trabalhadores da MB, ainda mais se levando em conta a sua missão de preparar e empregar o poder naval para a defesa da pátria. Para tal, este artigo se debruça sobre os pacientes militares da MB que participam do tratamento da dependência química no CEDEQ.

A inauguração do CEDEQ em 1997, um ambulatório encarregado do atendimento aos usuários de drogas, representa uma iniciativa pioneira da MB no âmbito das Forças Armadas brasileiras, um marco que refletiu o início oficial das ações voltadas para a dependência química no contingente naval. Localizado no Hospital Central da Marinha, conduzido por equipe multiprofissional com formação em Psicologia, Psiquiatria e Serviço Social, o CEDEQ acompanha membros da tripulação naval, por meio de terapia de grupo, individual e de acompanhamento medicamentoso.

O tratamento em grupo terapia progride ao longo de cinco etapas: Grupo Motivacional, Fases I, II e III e Grupo de Consolidação, cada qual com duração mínima de cerca de quatro meses, por um período mínimo de um ano e meio (a duração do tratamento depende da evolução individual, relacionada com o alcance da abstinência e mudanças na forma de agir e pensar). Cada etapa possui um número mínimo de sessões e de atividades a serem realizadas. Por exemplo, o Grupo Motivacional, a primeira etapa do programa, visa estimular o paciente a aderir ao tratamento, encorajando-o a se engajar nesta trajetória, a lutar pela sua abstinência e pela recuperação. No tratamento como um todo, busca-se uma transformação de mentalidade e de atitudes em relação à sua própria vida. Além das sessões de terapia grupal que ocorrem em duas sessões semanais com duas horas de duração, o programa de tratamento também inclui a leitura de textos, palestras, apresentação de filmes, tendo por base técnicas comportamentais e os Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos. A última fase, o Grupo de Consolidação, busca consolidar a abstinência dos pacientes, bem como aprofundar outros temas de suas vidas, visando o seu fortalecimento pessoal. Tendo em vista a dinâmica do tratamento, a composição dos dois grupos observados alterou-se ao longo do período de estudo, ainda mais pelos grupos serem abertos. Em geral, os grupos tinham cerca de dez integrantes, com idades entre 21 e 62 anos, todos Praças: de Marinheiros a Suboficiais.

Apesar de o CEDEQ estar aberto a todo o pessoal militar da MB, a partir da idade de 18 anos, a totalidade (100%) dos pacientes que o frequenta faz parte do grupo das Praças, ou seja, de uma maioria numérica da organização naval que é a base da pirâmide da cadeia de comando, cujo grau de instrução para ingresso é o ensino fundamental ou médio, dependendo da exigência do concurso. Suas atribuições relacionam-se à execução das tarefas necessárias à manutenção e operação dos equipamentos e à conservação de compartimentos de suas unidades militares, sendo distribuídas de acordo com as habilitações correspondentes às suas graduações e especialidades. Os Oficiais, por sua vez, raramente frequentam o CEDEQ, optando por consultas individuais e medicamentosas, geralmente na psiquiatria.

Cabe ainda ressaltar que este estudo se fez em um ambulatório que se encontra dentro de uma unidade militar da MB, isto é, representa a Marinha como uma extensão de seu espaço laboral, percepção provavelmente distinta da que se teria em um hospital civil. No CEDEQ, os pacientes compartilham uma mesma realidade e estão submetidos aos mesmos códigos, normas, estrutura e linguagem, onde todos são colegas de farda. Inclusive, a maior parte dos profissionais do CEDEQ é de Oficiais.

 

Método

A coleta dos dados baseou-se em dois eixos. O primeiro é a pesquisa exploratória (YIN, 2005) para conhecer os registros do consumo de álcool, obtidos nos arquivos administrativos do CEDEQ, e para conhecer o perfil demográfico dos pacientes registrado nos seus prontuários, que geralmente indicam sexo, faixa etária, graduação militar, naturalidade e unidade militar onde serve no momento do tratamento. O segundo é a pesquisa explanatória, por meio da observação participante (MALINOWSKI, 1984; MINAYO, 2006; MINAYO et al., 2007; YIN, 2005), pautada no método qualitativo etnográfico, junto aos pacientes do CEDEQ, em dois grupos terapêuticos: Grupo Motivacional (iniciantes) e Grupo de Consolidação (fase de pós-tratamento). Deste modo, buscou-se compreender a complexidade da construção do fenômeno do alcoolismo na esfera institucional, no seio de um contexto de tratamento ambulatorial em uma unidade militar naval. O emprego deste método neste estudo pretende auxiliar a decifrar significados para possíveis desvios que venham a ocorrer na instituição naval e viabilizar uma aprendizagem reflexiva tendo como princípio a perspectiva interacionista (WHYTE, 2005), ou seja, levando-se em conta a compreensão de que os indivíduos são produto da interação social (MEAD, 1982; BLUMER, 1986). Para tal, as observações nos grupos terapêuticos do CEDEQ foram realizadas ao longo do período de dois anos.

Cabe esclarecer que, em geral, existem cinquenta pacientes em terapia grupal por ano. Entre eles, a maior parte permanece por mais de um ano no Programa de Tratamento, sendo que cerca de 20% desistem e 8% recebem alta. Durante a pesquisa, cada grupo foi composto por cerca de dez integrantes, porém, por ser um grupo aberto, no período em que ocorreu a observação, os membros não se mantiveram os mesmos, seja por desistência, por contingências profissionais, por progredirem, ou regredirem para outras fases do tratamento e por alta ou por falecimento. Totalizando cerca de trinta pacientes ao longo de todo o processo. Os dados e impressões foram registrados em um diário de campo, após as sessões, para sistematização posterior. O público alvo constituiu-se da classe das Praças, correspondendo à totalidade dos pacientes do CEDEQ: Soldados, Marinheiros, Cabos, Sargentos e Suboficiais, na faixa etária de 21 a 62 anos.

Já o processo de coleta e de interpretação dos dados foi feito de forma interativa e não sequencial (TESCH, 1990), geralmente de modo retrospectivo, circular (WHITLEY; CRAWFORD, 2005), acompanhando a evolução do raciocínio de uma das pesquisadoras, que também é uma das terapeutas dos grupos (cada grupo é acompanhado por duas terapeutas, em um trabalho de co-terapia), bem como militar e chefe do CEDEQ. O seu posicionamento na instituição permitiu mapear um mundo: "cada pessoa está 'posicionada' em virtude de um padrão singular formado pela reunião, nessa pessoa, de partes de diversas correntes culturais, bem como em função de suas experiências particulares" (BARTH, 2000, p. 137). Por pertencer a esse contexto e realizar estas observações durante um período longo (HUGHES, 1960), foi possível desenvolver um conhecimento profundo, ainda que seja sempre limitado e parcial, ao divisar um determinado ângulo de análise que se descortina pelo ponto de vista do observador e do observado. Trata-se sempre de verdade parcial que se extrai em meio a um emaranhado de discursos múltiplos, de mundos distintos e simultâneos, atravessados por correntes (streams) de tradições culturais. "A construção cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica "(BARTH, 2000).

A importância do método etnográfico como ferramenta se justifica por permitir decifrar e compreender a verdade pela perspectiva dos pacientes do CEDEQ (SPRADLEY, 1979), incluindo questões como opressão, conflito, luta e poder. O emprego da etnografia crítica (SCHWANDT, 1997), por sua vez, permite a inspeção de organizações como a Marinha, examinando os seus contextos histórico, social, cultural e político (FOSSEY et al., 2002). Inferências e reflexões obtidas pela observação direta foram feitas com o registro permanente em um diário de campo, após as sessões terapêuticas, tanto de suas trajetórias pessoais, quanto sobre suas experiências e vivências na instituição naval.

 

Resultados

Embora a MB tenha avançado significativamente na seara das ações em torno do consumo de álcool e outras drogas, propondo ações preventivas e de reabilitação, muito pouco foi investigado quanto às suas causas e conseqüências, ainda inexistindo levantamentos e pesquisas para se avaliar a sua dimensão, sem que os custos sejam considerados, humanos e materiais. Na verdade, os efeitos perniciosos do uso de álcool no ambiente laboral ao trabalhador e à organização são pouco discutidos no âmbito militar.

Um estudo conduzido por Silva e Santana (2004) permite um vislumbre de que o uso nocivo do álcool e o alcoolismo podem permanecer silenciosos ao longo da carreira militar à administração naval. Nele, foram analisadas certidões de óbito entre 1991 e 1995, requeridas para concessão de pensões a dependentes. Como resultado constatou-se entre as maiores razões de mortalidade proporcional, as doenças do fígado, seguidas pela pancreatite e pela hemorragia digestiva, relacionadas com o consumo de álcool.

De fato, por meio do levantamento exploratório de dados contidos nos arquivos do CEDEQ para conhecer o seu funcionamento e o perfil dos pacientes, constatou-se que o álcool é a substância predominante na experiência desses pacientes, sendo consumido individualmente ou com outras substâncias em cerca de 90% dos casos. Os valores a seguir referem-se aos percentuais dos pacientes relativos às drogas consumidas: 53% (álcool), 27% (álcool + cocaína), 6% (álcool + cocaína + maconha), e 4% (álcool + maconha). Adicionalmente, os registros apontaram para a existência dos seguintes dados: no ano de 2006, tendo por base um número de pacientes de n = 42, 62% encontravam-se na faixa etária de 30 a 45 anos de idade; 14,2% tinham menos de 30 anos; e, 23,8%, tinham mais de 45 anos. Ou seja, a grande maioria era de pacientes mais velhos, sugerindo que o sujeito procura o CEDEQ quando se encontra em um estágio mais avançado de consumo do álcool. Verificou-se também que a predominância da faixa etária mais acometida acima dos 30 anos teve uma correspondência com a graduação mais comprometida pelo uso do álcool entre esses militares: a maioria deles era de Cabos, Sargentos e Suboficiais, aproximadamente 92,5%, enquanto os Soldados e Marinheiros correspondiam a 7,5%.

Note-se que, embora a graduação de Cabo não seja alta, em virtude dos prejuízos à carreira sofridos, tais como punições, muitos não conseguem ser promovidos, estagnando como Cabo, embora tenham tempo de serviço suficiente para auferir-lhes graduações mais altas. Muitos desses Cabos têm mais de 20 anos de serviço na MB. Na verdade, aproximadamente 61,9% deles relacionaram as punições recebidas em decorrência de contravenções disciplinares ao uso de substâncias psicoativas. Por conseguinte, é provável que a abordagem do consumo de etílicos seja feita tardiamente, desconsiderando-se os aspectos ambientais e laborais que dão contorno à doença. Isto pode ser demonstrado conforme o seguinte relato de um paciente do CEDEQ:

O que eles querem é produtividade... Quando o indivíduo vem pro CEDEQ e deixa de vir pra bordo, a faxina [tarefa] se acumula, especialmente pra especialidade da Praça que trabalha com produtividade. Eles baixam o conceito do indivíduo, baixaram o meu, não só porque o meu serviço é na base da produtividade, não! Tem gente que tá passando por isso, o pessoal que trabalha na Secretaria, baixaram o conceito também só porque vieram pro CEDEQ. E lá nem tem produtividade, eles têm intervalos, dá pra tomar um cafezinho com calma. Eles querem o sujeito lá dentro, mesmo sem ter o que fazer. Eles se ressentem quando o indivíduo assume que vai se tratar. Imagina se o CEDEQ não fizesse parte da Marinha?

Com efeito, a partir dos elementos examinados neste estudo, parece não existir uma percepção clara das repercussões negativas sobre o consumo de álcool durante a jornada de trabalho, tanto para o sujeito, quanto para a instituição.

É difícil pro taifeiro [especialidade encarregada da preparação e distribuição dos alimentos] largar da bebida. Tenho que servir bebida no rancho [local de refeições], no Gabinete do Diretor... É muita "latinha", bebida "quente" [destilada], tudo do bom e do melhor! Já pedi pra mudar de função, pra me afastar, mas os "superiores" [hierárquicos] não entendem, dizem que não têm outro pra botar no meu lugar. Falam que eu é que não sei beber. (Paciente do CEDEQ).

Observa-se a presença de idéias preconceituosas e equivocadas, geralmente negando a ocorrência de aspectos laborativos relacionados ao consumo nocivo de álcool, o que compromete a consecução de registros destes eventos. Outro paciente adiciona: "Alguns Oficiais aceitam que é doença porque a OMS [Organização Mundial da Saúde] e o Comando da Marinha aceitam, mas eles têm um rancor, acham que é chute [golpe, armação], a gente vai se sentindo menosprezado.

Outro paciente demonstra uma percepção mais aguda sobre a questão: "Eu me sinto desrespeitado. No navio, o Encarregado acha que a gente tem que ir dando um jeito. Acho que isso é falta de informação ou preconceito. Acho que todo mundo tinha que aprender sobre essa doença pra poder ajudar e não prejudicar.

A observação participante também identificou fatores que parecem agir como facilitadores para o beber.  Predominantemente em grupo, como um código implícito de inclusão e de aceitação entre os companheiros de trabalho. "Agora, tá todo mundo 'pegando no meu pé' [implicando], só porque vim pro CEDEQ. Os piores são os próprios Praças, piores que os Oficiais! Eles é que tinham que apoiar a gente, mas são falsos.

Segundo os relatos dos pacientes, costumes navais encontram-se intimamente relacionados com esta prática. Nos navios, quando a tripulação chega a um porto após longos dias de isolamento, de desgaste físico e emocional, tendo realizado atividades estressantes, organiza-se em grupos para beber e participar de farras. "No navio, é direto, não tem hora pra baixar terra [sair do trabalho e ir para a rua]. Se o Comandante decide que o navio vai sair, não importa se ele acabou de atracar. Quando eu saio do navio, já tava 'predestinado', eu já tava 'carimbado', já tava decidido a beber e farrear!"

Já nas Organizações Militares de terra, esses eventos podem ser cotidianos, e, ao longo do dia, planos são elaborados em torno deles, geralmente ocorrendo após o expediente. É comum a distribuição de caipirinha às sextas-feiras, durante o almoço, sobretudo se o cardápio for dobradinha ou feijoada; nessas ocasiões, espera-se que o militar beba como sinal de virilidade e de sociabilidade. Outro paciente ressalta a este respeito: "Eu vou com os campanhas [colegas de trabalho] pra 'Broadway' [local onde existem casas de espetáculos de segunda categoria, na Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro], muita loucura, só farra e bebida! A bebida deixa a gente mais 'solto' e esquece até dos problemas de bordo".

Bachman et al. (1999) alertam que, embora ainda existam muitos estereótipos a respeito do uso de substâncias psicoativas na vida do militar norte-americano nos últimos séculos, desde a época em que o rum era essencial para o moral dos soldados, com a criação da política de tolerância zero, uma faceta drasticamente distinta emergiu no âmbito das Forças Armadas norte-americanas em prol de estilos de vida mais saudáveis, dando ênfase à redução do abuso de álcool, sobretudo ao se considerar que a vida militar exige um alto grau de comprometimento e de envolvimento. Portanto, a redução do beber pesado, segundo estes autores, seria um desafio a ser superado, sobretudo em função dos mitos de que o soldado deve ser forte e que deve saber beber, quando, na verdade, ele estaria desenvolvendo a tolerância para o beber.

Um aspecto a ser salientado neste âmbito se refere à pesquisa no meio militar desenvolvida por Ames e Grube (1999), concluindo que existem relações significativas entre a disponibilidade do álcool e o beber no trabalho, destacando que a percepção do consumo de etílicos entre amigos e parceiros de trabalho acentua o desenvolvimento do ato de beber.

Na MB, a visão continuada do beber entre colegas, inclusive durante o expediente, é um fator a ser destacado. Segundo os relatos dos pacientes, é permitido ao Sargento beber durante o expediente, em função de sua antiguidade, porém, o Cabo e o Marinheiro não têm essa prerrogativa, podendo ser punidos. "Foi na Marinha que eu aprendi a beber. Sexta-feira 'rola' uma caipirinha com dobradinha. Sempre tem um evento, uns aniversariantes do mês... [evento comemorativo]. A gente 'dá duro', mas depois eles [os superiores hierárquicos] patrocinam aquele churrasco com bebida à vontade!.

Apesar de não existirem dados estatísticos apontando para a extensão do problema das drogas na MB e, em particular, do alcoolismo, os relatos dos pacientes permitem perceber que a instituição naval cultiva uma mentalidade que é simpática e favorável ao consumo do álcool, sendo a substância psicoativa mais presente no cotidiano naval: "Às vezes o Comandante libera um 'incentivo' pra fazer as faxinas [tarefas], uma 'branquinha' [cachaça]; ele faz vista grossa, pra sair o serviço. No início dá empolgação, depois, moleza".

Adicionalmente, constatou-se que não existe uma conduta uniforme e coerente dentro da organização diante do consumidor, seja ele leve, moderado ou dependente do álcool. Muito pelo contrário, parece existir uma variedade de respostas, com o emprego de procedimentos aleatórios: ora aplicando-se a lei, ora incentivando o consumo, ora encaminhando para tratamento, ora desligando-o do serviço ativo, acentuando-se as diferenças de tratamento e de abordagem entre os grupos das Praças e dos Oficiais.

Pros Oficiais, não pega nada [não tem problema], eles bebem lá no canto deles, são discretos. Eles é que são espertos! Nós, quando bebemos, dá logo na vista. Às vezes eles fingem que não percebem e deixam pra lá, contanto que o serviço saia direito. Tem vezes que eles mesmos incentivam a bebida, tem churrasco, liberam nas faxinas [tarefas]. Dependendo do Comando, resolvem prender. Hoje em dia, eles preferem encaminhar pro CEDEQ, pra não dá problema na justiça.(Paciente do CEDEQ.

Há que se destacar que as Praças fazem parte de um grupo menos prestigiado da MB, representando quase 100% da clientela do CEDEQ. Uma hipótese para a quase inexistência de Oficiais em tratamento, daqueles que são hierarquicamente superiores, poderia ser o medo de serem rotulados como dependentes químicos, prejudicando a imagem profissional e pessoal, enfim, suas carreiras. Esses Oficiais raramente procuram tratamento e, quando o fazem, buscam consultas individuais, preferencialmente com a psiquiatria, visando à terapêutica medicamentosa. Este quadro é sugestivo de que, embora os programas de dependência química nas empresas sejam, em geral, oferecidos a todos os empregados, eles não alcançam os extratos mais elevados da hierarquia, somente os menos qualificados e mais sujeitos às sanções disciplinares das empresas (KOTSHESSA, 1994 apud VAISSMAN, 2004).

O próprio CEDEQ é pouco conhecido no âmbito naval, apesar do extenso número de palestras proferidas em diversas unidades militares. De fato, as ações voltadas ao consumidor de etílicos na MB têm sido tímidas diante da relevância da questão. Apesar de a MB possuir um efetivo de 82.750 indivíduos (WIKIPEDIA, s/d), o número de militares em tratamento no CEDEQ, ao longo dos seus onze anos de funcionamento, nunca foi superior a cinqüenta pacientes/ano, tendo se mantido nesta faixa nos últimos cinco anos, valor que corresponde a menos de 0,1% do efetivo naval. A preferência pelo consumo do álcool entre os pacientes do CEDEQ evidencia-se por ser a substância psicoativa consumida por cerca de 90% dos casos atendidos. Segundo os pacientes, esse gosto é compartilhado pela maior parte do contingente naval, fazendo-se presente, tanto na execução das fainas (atividades navais), quanto nas solenidades. 

A análise dos dados encontrados nos mapas estatísticos do CEDEQ permite destacar que o número anual de atendimentos não tem aumentado, mas sofrido uma redução significativa, sobretudo ao se comparar o total de consultas/paciente/semestre ocorrido em 2007, correspondendo a 2.774 atendimentos, com o mesmo período em 2008, que foi de 1.983. Uma justificativa plausível relaciona-se com o temor de prejudicar a carreira, a partir do momento em que sua condição se torna pública. No decorrer da observação participante, pode-se constatar que muitos informam que passam a receber avaliações profissionais mais baixas, avaliações que contemplam atributos morais e profissionais, assim que iniciam o tratamento.

Foi só entrar no CEDEQ que meu Encarregado baixou meu conceito [avaliação semestral]. Não compensa vir pra cá, é só prejuízo! Tô cheio de dívidas, é POUPEX, banco, caveira [sujeito que faz empréstimos extra oficialmente, geralmente com juros mensais que chegam a 50%], já não tenho margem [consignável, para conseguir mais empréstimos bancários]. Com esse conceito, não vai ter jeito de eu ser promovido. Minha carreira acabou, não tem mais nada pra mim! (Paciente do CEDEQ).

 

Discussão

Embora no âmbito das Forças Armadas brasileiras a MB seja pioneira nas ações de tratamento e de prevenção às drogas, ainda há muitos avanços a serem feitos. Um deles diz respeito a uma mentalidade que naturaliza e apóia o consumo de etílicos no ambiente de trabalho naval, amparada por mitos e distorções perceptivas. Outro fator se refere à introdução desse hábito aos recém-ingressos, como condição de aceitação e de integração grupal, compartilhado e reproduzido pela tripulação naval no cotidiano laboral.

Embora tais práticas favoreçam a coesão grupal, amenizando o isolamento social e familiar imposto pelas condições de trabalho, estresse, entre outros, cabe considerar os efeitos negativos de bebidas a bordo em termos de riscos materiais e humanos. "A alcoolização aparece ligada ao processo de industrialização de forma contraditória, já que o mesmo processo que a gera vai precisar combatê-la. O álcool é justamente utilizado pelos trabalhadores como meio social para fazer frente às normas laborais" (VAISSMAN, 2004, p. 34).

Contudo, este ainda é um tema tabu, prevalecendo a noção de que o marinheiro e o álcool são uma combinação necessária, sendo o beber um tema sacrossanto e intocável. Na verdade, a mentalidade reinante encontra-se em descompasso com a diretriz de número 18 da Política Nacional sobre o Álcool, com o que é preconizado no International Labour Organization(ILO)e com os resultados de pesquisas nacionais e internacionais, que apontam para os seus efeitos dramáticos. Até o presente, predomina a percepção de que o alcoolismo é um problema restrito ao mau bebedor: ao ser afastado do epicentro da administração naval, sobretudo das funções operativas, o problema é superado.

Em alinhamento com a Política Nacional sobre o Álcool, inspirada na Lei nº 11.705 (BRASIL, 2008), em especial no artigo 165, que considera como infração gravíssima a direção sob a influência de álcool, a MB deveria implantar uma sistemática similar às embarcações e outras atividades que envolvessem riscos materiais e humanos acentuados. Assim sendo, a ideia de uma Lei Seca nas vias públicas poderia ser assimilada como uma Lei Seca no Mar. Uma iniciativa neste sentido foi feita recentemente, embora de modo isolado, conforme noticiado no jornal O Dia (REIS, 2008), a propósito da intenção da MB de comprar duzentos etilômetros para fazer esse tipo de fiscalização. De acordo com esta reportagem, foram registrados, em 2007, 117 acidentes com embarcações de esporte e recreio no litoral, rios e lagos brasileiros, sendo a embriaguez uma de suas principais causas. Esses dados convidam a uma reflexão sobre a necessidade de implantar medidas similares nas vias marítimas e na própria vida militar.

Deve-se priorizar o levantamento da situação do consumo de álcool no trabalho, sobretudo considerando-se a existência de uma demanda oculta, sinalizada pelo número reduzido de sujeitos que buscam o CEDEQ. É possível que o cenário seja mais alarmante do que é concebido pelas autoridades navais, talvez pelas peculiaridades da vida militar que fazem com que problemas no trabalho decorrentes do álcool sejam tratados de forma disciplinar. Por meio dos relatos dos pacientes, infere-se que deva existir um número considerável de militares que faz uso abusivo de álcool, durante a jornada de trabalho, inclusive com o conhecimento e consentimento de superiores. A implantação de uma política que ofereça suporte e proteção ao contingente naval e, consequentemente, à própria instituição requer, minimamente, a realização de registros e observações cuidadosos e sistematizados sobre o que se passa com a tripulação nas esferas administrativas, operativas, periciais e hospitalares. Também é fundamental que a instituição reconheça sua posição ambivalente diante do ato de consumir bebidas a bordo. Buscando uma coerência entre o que se encontra preconizado no Regulamento Disciplinar para a Marinha (BRASIL, 1983), que considera como contravenção disciplinar apresentar-se em Organização Militar em estado de embriaguez ou embriagar-se, e com a perpetuação das tradições navais que estimulam o consumo de etílicos. Cabe considerar quais delas deverão ser incentivadas por fortalecerem o espírito de corpo sem comprometer a própria instituição e seus integrantes.

Ames et al. (2000) alertam para o fato de que as políticas relacionadas ao álcool e a extensão em que elas realmente são aplicadas predizem as normas de consumo e a sua disponibilidade no trabalho; estas normas, por sua vez, predizem a relação do beber no trabalho. Cada ambiente organizacional pode, de acordo com suas características, estabelecer normas mais permissivas com relação ao beber, antes ou durante a mudança de turnos e intervalos de trabalho, incentivando e criando condições facilitadoras da ingestão de etílicos.

Tendo em vista as resistências que as instituições militares impõem diante da possibilidade de serem pesquisadas, anteriormente reconhecidas por outros autores (COELHO, 1976; CASTRO, 2004), este estudo se ateve, nesta oportunidade, à investigação de um campo e de uma população que se encontrava acessível em razão da posição social (posição institucional) que uma das autoras ocupa: de psicóloga e de militar, chefe do CEDEQ. Isso possibilitou inaugurar uma investigação sobre um assunto delicado, constatando-se que o consumo de bebidas na MB é, de fato, um tema complexo.

Um exame futuro da população naval hígida permitirá a discussão dos aspectos que envolvem o beber leve e moderado no espaço laboral, bem como de outras dimensões do consumo de etílicos a bordo. Cabe ainda ressaltar que, segundo estudos epidemiológicos realizados pela OMS em vários países, chegou-se a um consenso de que na maioria das sociedades o mais elevado nível de consumo de álcool ocorre na faixa de 20-50 anos e entre pessoas empregadas, aspecto compatível com a população que se trata no CEDEQ. Adicionalmente, os programas de prevenção de abuso de álcool no ambiente de trabalho devem ser dirigidos à população sadia, ou seja, àqueles que não são configurados como bebedores pesados, tendo em vista que os incidentes laborais (acidentes, disputas, ausência do trabalho) relacionados ao álcool ocorrem entre os consumidores leves e moderados, em cerca de 70 a 80% dos casos (FAUSKE, 1997 apud VAISSMAN, 2004). 

Por conseguinte, é capital que a MB assuma integralmente a sua responsabilidade, não só de capitanear ações de forma integrada e ampliada, mas de reconhecer sua participação na construção desse transtorno, justificada pelas famigeradas tradições etílicas. Não basta proporcionar um conjunto de medidas preventivas e curativas se essa organização não perceber como ela mesma retroalimenta esta ciranda mórbida. Na verdade, essas tradições simpáticas ao consumo de etílicos têm prejudicado a efetiva proteção e recuperação de muitos militares, dificultando a criação de estratégias preventivas mais frontais, atingindo, sobretudo, as Praças que têm se mostrado vulneráveis por se encontrarem na base da pirâmide hierárquica da organização naval, com menos recursos para se proteger. Na verdade, o enfrentamento deste problema ainda é difícil em virtude da mentalidade e dos trâmites administrativo-militares. 

Por isso, acredita-se que seja fundamental estabelecer uma nova ética que enfatize os estilos de vida do trabalhador, dentro e fora do trabalho. Pesquisas conduzidas entre as Praças e os Oficiais da Marinha norte-americana já estabeleceram a relação do trabalho com a cultura e com o comportamento do beber, examinando a influência do ambiente de trabalho militar, em particular nas manobras e nos licenciamentos que se seguem, no beber pesado e no beber episódico pesado AMES et al., 2007). Constatou-se que fatores ocupacionais se encontravam relacionados às crenças nas normas favoráveis ao beber pesado durante o período de licenciamento, ou seja, após as manobras. Verificou-se também a existência de um contexto cultural para o comportamento relacionado ao beber que se encontrava ligado com a ambivalência das políticas do álcool, com a busca de descontração em razão do estresse laboral e com a permanência de antigas tradições. Por conseguinte, concluiu-se que as medidas preventivas na vida militar impõem mudanças nas políticas e no ambiente militar, o que, de fato, produziu uma série de ações preventivas nesta organização militar norte-americana, aspecto que poderá servir de modelo para as Forças Armadas brasileiras. Cabe à MB, portanto, contemplar uma reforma do ambiente corporativo, na jurisdição da corporação sobre a saúde e o comportamento do trabalhador, tendo em vista que o alcoolismo é um acontecimento construído socialmente e não de responsabilidade de um sujeito singular, como se quer fazer crer (CONRAD;WALSH, 1992).

 

Conclusão

A ideia de uma Lei Seca no Mar representa um compromisso institucional de proteção ao trabalhador, abrindo mão de sua posição ambivalente de apoio e de rechaço ao consumo do álcool, que ainda predomina de acordo com as circunstâncias e interesses reinantes. Sobretudo, este mote visa despertar uma consciência mais clara de que a preservação da higidez de seu contingente é tarefa que lhe compete, desde o início da carreira, tanto de Praças quanto de Oficiais, de modo a assegurar a consecução de sua missão constitucional de defesa da pátria.

Por conseguinte, não basta a criação de um ambulatório voltado para um efetivo de cerca de 82.750 homens, frequentado por pouco mais de cinquenta Praças por ano. É fundamental a criação de uma política mais ampla que reconheça o papel da organização naval nesse contexto, inclusive de retroalimentação desta ciranda mórbida, amparada por uma tradição etílica que alimenta o espírito de corpo, laços grupais que fortalecem práticas de se relacionar e de beber coletivos.

Em suma, entende-se que seja fundamental o emprego da lógica ampliada do conceito de redução de danos como referencial para as ações política educativas, terapêuticas e preventivas relativas ao uso de álcool. A fim de estimular a constituição de um conjunto estratégico de medidas de saúde pública voltadas para minimizar os riscos à saúde e à vida, decorrentes do consumo de álcool.

 

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Endereço para correspondência
Elizabeth Espindola Halpern
E-mail:espindolahalpern@yahoo.com.br

Ligia Maria Costa Leite
E-mail:ligialeite@invenciveis.com

Recebido em: 24/11/2009
Revisto em: 23/04/2010
Aceito em: 04/06/2010

 

 

1 Consumo corrente (current use) é a ingestão de pelo menos uma dose nos últimos trinta dias.
2 Consumo pesado (heavy use) é a ingestão de cinco ou mais doses na mesma ocasião em cinco ou mais dias nos últimos trinta dias.
3 Beber episódico (binge use) é o consumo de cinco ou mais doses na mesma ocasião em pelo menos um dia nos últimos trinta dias.

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