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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Subjetividade e Aids: doença e militância na trajetória de mulheres hiv+

 

Subjectivity and Aids: disease and activism in the hiv+ women’s life trajectory

 

 

Flávia Fernandes de Carvalhaes

Docente. Curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Londrina. Londrina. Paraná. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nestes anos de seu reconhecimento, a AIDS tem obrigado a desnaturalizar questões sociais e culturais construídas historicamente e que são parte dos signos, normas e códigos que balizam a estrutura e a organização da sociedade, impondo outros olhares e novas perspectivas para a complexidade de questões relacionadas aos gêneros, aos corpos e à cultura. Considerando essa conjuntura, esta pesquisa foi realizada com quatro mulheres HIV+ ativistas no movimento de AIDS com o objetivo de apreender suas concepções sobre AIDS; os contextos de vulnerabilidade que possibilitaram sua infecção; suas vulnerabilidades à reinfecção; e mudanças e permanências nos campos afetivo-conjugal e da maternidade a partir da experiência da doença e da militância.

Palavras-chave: AIDS, Gênero, Ativismo.


ABSTRACT

In these acknowledgment years, the AIDS has obliged us to denaturalize social cultural questions historically built, and that are part of the signs, rules and codes that mark out the society structure and organization, imposing other views and new perspectives towards the questions complexity related to gender, the bodies and the culture. Taking this conjuncture into consideration, this research was carried out with four HIV+ women activists in the AIDS movement with the objective of apprehending their conceptions about AIDS, the vulnerability contexts that made their infection possible, their vulnerabilities towards the reinfection, and changes and permanency in the affective-conjugal and motherhood fields, from the disease and activism experience.

Keywords: AIDS, Gender, Activism.


 

 

Desde o surgimento, no início da década de 1980, dos primeiros casos reconhecidos como sendo de AIDS, esta tem sido problematizada por pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento devido à complexidade das perspectivas sócio-históricas, políticas, subjetivas e biológicas que a atravessam (JEOLÁS, 2007). A AIDS trouxe o debate sobre questões historicamente veladas como a morte, o uso de drogas, as sexualidades, as relações de gênero, a hierarquia de poder entre homens e mulheres, o desejo sexual de adolescentes, mulheres e idosos e as diversas dimensões do prazer. Com isso, tem ajudado a desnaturalizar questões sociais e culturais construídas historicamente, que são parte dos significados, normas e códigos que balizam a estrutura e a organização da sociedade, impondo outros olhares para a complexidade de questões relacionadas às sexualidades, aos gêneros, ao corpo e à cultura (WEEKS, 2001).

Inicialmente associada aos homossexuais masculinos (DANIEL, PARKER, 1991) e, depois, ao uso de drogas injetáveis e à prostituição — os chamados grupos de risco (nos quais se incluíam, ainda, os hemofílicos) —, a AIDS logo mostrou outras faces. Desde o começo da década 1990, o número de mulheres infectadas pelo vírus HIV no Brasil, como nos demais países em desenvolvimento, aumentou radicalmente, apontando para um processo de feminização da epidemia (BRASIL, 2009b). Em 1986, a razão homem/mulher era de 15:1, já em 2002, os dados epidemiológicos apontam para uma mudança significativa nesse panorama, sendo 1,5:1. De “1980 até junho de 2009, dos 544.823 casos identificados no país, 188.396 referiam-se ao sexo feminino” (BRASIL, 2009a, p.8).

Para se ter uma idéia do cenário internacional de avanço da epidemia entre as mulheres, em todo o mundo, “há 33 milhões de pessoas vivendo com HIV, sendo que 15,5 milhões são de mulheres com 15 anos ou mais, o que representa 50% do total de adultos infectados” (BRASIL, 2009a, p.9) — e, em sua maior parte, elas estão em países subdesenvolvidos. De acordo com as estimativas da UNAIDS (2008 apud BRASIL, 2009b, p. 14) destaca-se que:

•77% (12 milhões) de todas as mulheres HIV positivas vivem na África Subsaariana, o que representa 59% dos adultos vivendo com HIV. A prevalência observada em toda essa área entre mulheres jovens é três vezes maior do que a prevalência entre homens jovens (15 a 24 anos);
• Na Ásia, as mulheres representam 35% (1,7 milhão) dos adultos vivendo com HIV. Os números são mais altos em alguns países da região, tais como Índia (880 mil), Tailândia (250 mil), China (200 mil), Miamar (100 mil) e Vietnã (76 mil);
•No Caribe, 50% (110 mil) dos adultos vivendo com HIV são mulheres, sendo a República Dominicana e o Haiti os países com os maiores percentuais de mulheres infectadas — 51% e 53%, respectivamente;
•Na América Latina, uma crescente proporção de pessoas vivendo com HIV é de mulheres (550 mil);
•No Leste Europeu, observa-se um crescimento no número de mulheres infectadas pelo HIV, sendo a Ucrânia o país caracterizado por uma das epidemias que crescem mais rapidamente (44% dos adultos infectados são mulheres);
•Estima-se que 90% das pessoas vivendo com HIV, em todo o mundo, não sabem que estão infectadas, e menos de 10% das mulheres grávidas fizeram teste de HIV;
•A maioria das 17,6 milhões de mulheres vivendo com HIV/AIDS está em idade reprodutiva;
•A prevalência da infecção pelo HIV em mulheres grávidas é bastante diversa em todo o mundo, variando desde menos 1%, como no Brasil, a mais de 20%, como na África Subsaariana;
•Em todo o mundo, são usualmente as mulheres que cuidam de doentes e crianças. Nos locais que estão entrando em colapso sob o impacto da AIDS, são principalmente as mulheres – incluindo as mais velhas – que assumem, com pouco apoio, essa assistência.

Durante a década de 1980 e em parte da de 1990, o debate sobre o aumento da infecção pelo HIV nas mulheres esteve praticamente excluído das discussões sobre a epidemia, principalmente nas políticas públicas propostas; a “vulnerabilidade das mulheres frente ao HIV/AIDS e o impacto da epidemia nas suas vidas” eram “colocados como uma questão secundária, cercada, quase sempre, pelo silêncio e descaso tradicionalmente associados com a sexualidade e a saúde femininas” (PARKER, GALVÃO, 1996, p.7).

A feminização da AIDS aponta para os contextos de exclusão e estigmatização a que as mulheres estão submetidas devido a “1) violência doméstica e sexual, 2) estigma e violação dos direitos humanos, 3) não reconhecimento das adolescentes e jovens como sujeitos de direitos; 4) racismo e desigualdades étnico-raciais, 5) pobreza e outras desigualdades socioeconômicas 6) uso abusivo de drogas” (BRASIL, 2009b, p. 23), e para o atravessamento das questões socioculturais relacionadas às desigualdades entre os gêneros. Isso evidencia a importância de pensar as vulnerabilidades das mulheres à infecção pelo HIV também a partir de determinantes históricos e culturais.

No contexto da epidemia, o conceito de vulnerabilidade ao HIV vem possibilitando mudanças de pressupostos, nas propostas de intervenção e nas categorias de análise. Inicialmente formulado por Jonathan Mann (MANN, TARANTOLA & NETTER, 1993) como instrumento para ajudar a entender o avanço da epidemia de AIDS no mundo, o conceito de vulnerabilidade permitiu abandonar a lógica dual de culpados ou vítimas quando se fala de pessoas HIV+ e trabalhar com a perspectiva de que são coletivos afetados por uma doença de caráter epidêmico, que exige do Estado e da sociedade entendimentos e propostas de intervenção mais amplas e eficazes (AYRES, 1995). Segundo Ayres (1995), esse conceito revela a complexidade de aspectos científicos e as implicações de caráter sociopolítico que atravessam os debates sobre a epidemia, contribuindo para a superação das concepções tecnocráticas no que se refere a conhecimento e práticas de saúde, e das idéias de grupos de risco e comportamentos de risco (ou situação de risco).

Os grupos de risco foram eleitos, na década de 1980, a partir das idéias promulgadas pelos programas de saúde pública e pela mídia, como os responsáveis pela AIDS. Essa lógica centrada no comportamento individual retardou o seu enfrentamento pelas autoridades de saúde — afinal, era uma doença do outro (a puta, o drogado, o veado) (PARKER, 1994; GALVÃO, 2000). Também contribuiu para torná-la um símbolo do mal; para associar, muitas vezes, as pessoas HIV+ a pecado e promiscuidade; e para estabelecer a relação entre corpo, práticas sexuais e prazer como algo perigoso e que colocaria em risco a saúde — o que, por sua vez, contribuiu para efetivar o disciplinamento dos prazeres, o controle e a regulação sobre o corpo (GALVÃO, 2000).

Badinter (1985), Donzelot (1986), Foucault (1988) e Laqueur (2001) mostram em seus trabalhos, que, ao longo da história, o corpo feminino e masculino têm sido alvo de inscrições discursivas e objeto de disciplinarização e controle, sendo atravessados pela física e pela microfísica dos poderes. E, na construção social dos sexos e gêneros, a mulher, muitas vezes, tem se apresentado de forma invisível — isso porque, por muito tempo, sua sexualidade foi negada, excluída e velada, e associada a imagens de imperfeição, passividade, pecado e à reprodução, enquanto o homem sempre esteve em foco, considerado forte, viril, magnânimo (LAQUEUR, 2001).

Corrêa (1996) afirma que mulheres e homens “são detentores de uma história, ou melhor, de um mosaico ou calidoscópio de histórias protagonizadas por vários ‘masculinos’ e vários ‘femininos’ em culturas diferenciadas e em épocas diferentes” (p.207); e Bozon (2004), que “a maior parte das culturas — mesmo as que não produziram mitos de justificação quanto ao lugar dos homens e das mulheres — traduziu a diferença dos sexos em uma linguagem binária e hierarquizada, na qual apenas um dos termos era valorizado” (p.21). Nessa perspectiva, a partir do século XVII, empreenderam-se discursos, como o religioso e o científico, que estabeleciam uma lógica hierárquica entre os sexos, onde o feminino era “sempre assinalado no lado inferior” (BOZON, 2004, p.21). No século XIX, o discurso científico se apresentou como dispositivo1 de poder e controle sobre o corpo, influenciando modos específicos de pensar a população, as atribuições de funções e os papéis sociais distintos de homens e mulheres (VILLELA, 1999).

Muitos trabalhos ressaltam os processos discriminatórios e de estigmatização suscitados a partir da emergência da AIDS, mas, nesta pesquisa, evidencio as redes de solidariedade e articulação política que a doença propiciou e a construção de “novas formas de viver e [...] de compreender os gêneros e as sexualidades” (LOURO, 2004, p.208). Para pensar essas questões, busquei referências teóricas em autores que refletem sobre questões de gênero e que problematizam as construções sócio-históricas relacionadas à AIDS, o que me permitiu pensar sobre os efeitos da cultura nas produções discursivas e sobre a complexidade de questões e possibilidades que envolvem a história de mulheres HIV+.

Com raízes epistemológicas no movimento feminista, os estudos de gênero refletem sobre as cristalizações históricas de papéis sociais considerados masculinos e femininos, e sobre os discursos, pilares, normas, padrões culturais, valores e representações nos quais muitas das relações entre homens e mulheres estão pautadas (PERES, 2010). Desde a década de 1970, os estudos de gênero vêm se consolidando como um campo interdisciplinar, sendo atravessado por diferentes conceituações e perspectivas.

Nesta análise, portanto, busco referências teóricas em autores que desconstroem a noção de uma “identidade definida, compreendida pela categoria mulheres” (BUTLER, 2003, p.17). Que concebem o corpo enquanto produção discursiva atravessada por relações de poder e “tomam as sexualidades e o gênero como construções sócio-históricas, políticas e culturais, de modo a considerar que corpos, gênero e sexualidades são produzidos através de materializações discursivas disciplinares e reguladoras” (PERES, 2010, p. 207). Portanto, parto do pressuposto de que a materialidade do corpo e os debates ontológicos pautados em visões naturalistas são construções históricas consolidadas por diferentes marcadores, como, por exemplo, questões raciais, religiosas, étnicas, geracionais e de classe (FARIAS , TEDESCHI, 2010, p. 925).

Na análise dos dados coletados, trabalho com a perspectiva de “processos de subjetivação” pautados na teoria foucaultiana, que, como descreve Deleuze (1987), se constituem numa “potência do de-fora” (p.128), produto de relações de poder e de saber, e não numa interioridade. Foucault (1988) problematiza as construções discursivas relacionadas à sexualidade nas sociedades ocidentais nos últimos séculos, empreendidas, entre outras instituições, pela Igreja, e por áreas como a psiquiatria e a sexologia, que determinavam as referências de normalidade e patologia, e a forma como cada um deveria proceder em relação ao próprio corpo e ao prazer. Por isso, ele afirma que há uma “história da sexualidade”, e é também a partir dessa análise histórica que pretendemos articular alguns dos conceitos aqui abordados.

Concordo com a afirmação de Louro (2004), de que “já não se pode mais trabalhar com a idéia de uma identidade una, estável e coerente, que ‘explique’ o sujeito e sua história” (p.205); é necessário refletir sobre as construções da subjetividade como processos complexos e diversificados, em que está em jogo uma “multiplicidade de elementos discursivos” (ROHDEN, 2004, p.191) atravessados por aspectos sócio-históricos e culturais, passados e atuais. Nesse sentido, é imprescindível a análise das relações discursivas e de poder que compõem o mosaico das experiências subjetivas na atualidade, sobre “como as identidades são produzidas e os significados que lhes são socialmente atribuídos” (LOURO, 2004, p.205).

Esta pesquisa foi realizada com quatro mulheres HIV+ ativistas no movimento de AIDS, com o objetivo de apreender suas concepções sobre AIDS, os contextos de vulnerabilidade que possibilitaram sua infecção, suas vulnerabilidades à reinfecção, e mudanças e permanências no campo afetivo-conjugal e da maternidade a partir da experiência da doença e da militância.

Com o intuito de mapear as experiências pessoais dessas mulheres, utilizei o método de histórias de vida (QUEIROZ, 1988), com o propósito de “atingir a coletividade” da qual meu “informante faz parte [...], captar o grupo, a sociedade de que ela [história de vida] é parte, buscar a coletividade a partir do indivíduo” (QUEIROZ, 1988, p.24). Como instrumento de coleta de dados foi utilizado entrevistas semi-estruturadas, que se consolidaram como um espaço de interação e de construção de novos significados para as histórias vivenciadas (ARAÚJO, 1999). Nesse sentido, entendo que o processo de contar histórias passadas possibilitou as mulheres entrevistadas, a re-significação entre o vivido e outras formas possíveis de compreensão de algumas de suas experiências. Em contrapartida, procurei, através dos seus relatos, caminhos possíveis para interpretar a complexidade de questões que envolvem a sua experiência no contexto da epidemia.

Contudo, as histórias dessas mulheres não são exemplos da realidade de todas as mulheres HIV+, pois, além da sorologia positiva, estabeleci como recorte analítico para a escolha das entrevistadas, a vinculação à ONGs e a movimentos de defesa dos direitos humanos das pessoas HIV+. A escolha por entrevistar mulheres ativistas deveu-se, principalmente, à percepção de que a inserção em movimentos reivindicatórios é um dos grandes exemplos do impacto da experiência da doença em suas vidas e, em contrapartida, a vivência do ativismo é decisiva para que algumas re-signifiquem os sentidos da doença.

Esta pesquisa indaga, portanto, como, para algumas mulheres, a experiência do HIV e da militância é oportunidade de re-significar aspectos de sua vida. O que o HIV e o ativismo, enquanto disparadores de transformação, lhes possibilitaram? Como a perspectiva de gênero na experiência da doença pode refletir, entre outros fatores, mudanças subjetivas e articulação política?

 

Análise das histórias de vida de mulheres hiv+: mudanças e permanências

Ao traçar um panorama das construções socioculturais que atravessam os corpos das mulheres, bem como um panorama da AIDS, procurei mapear relações de poder e saber que, historicamente, se organizam em práticas sociais cotidianas e que produzem subjetividades e assujeitamentos. Daqui em diante busco pontuar nos discursos das mulheres entrevistadas, movimentos de resistência e legitimação de normas sociais.

 

Os sentidos da doença através das experiências de militância

A saúde é considerada um dos maiores valores da cultura ocidental. Entre nós, a doença traz indignação, sofrimento, humilhação; o doente torna-se socialmente desvalorizado, causador de problemas para o ambiente doméstico e para a sociedade. A doença põe em questão a fragilidade humana, a finitude do corpo, e é vivenciada, geralmente, como uma negação, ou seja, algo que rompe com o estado e o ritmo normais da vida (JEOLÁS, 1999, p.20).

Quando reflito sobre uma mulher atravessada por uma sorologia positiva ao HIV, penso em uma mulher vivendo as possibilidades da sua própria sexualidade e de sua expressão de gênero; e que, frente à construção social associada à doença, busca formas distintas de lidar com essa condição. Afinal, “a soropositividade e a AIDS”, como aponta Duarte (2003), podem ser consideradas uma “perturbação físico-moral”, pois colocam “em jogo dimensões vivenciais muito críticas, em função de sua associação com a sexualidade, com a moralidade e com a responsabilidade individual sobre a AIDS no Brasil” (p.6).

Entretanto, muitos autores descrevem a vivência de uma doença como algo que traz a possibilidade de as pessoas re-significarem a própria existência. Nietzsche (2000) aponta a doença como oportunidade de pensamento, porque quando ela ocorre há o rompimento de certa regularidade dos fatos e de certezas e deveres antes inquestionáveis. Frente ao horror que causa o acometimento de uma doença, o indivíduo se vê frente à possibilidade de encontrar novos sentidos para a própria vida. Uma doença que, a princípio, carrega o signo da morte, pode torná-lo um espírito livre.

Segundo as histórias das mulheres que entrevistei, a experiência da infecção pelo HIV foi vivida, num primeiro momento, com medo, como algo desterritorializante e como sentença de morte. Contudo, elas relataram que a vivência da doença, as questões que isso lhes suscitou e, principalmente, a inserção e participação nos movimentos de lutas pelos direitos das pessoas HIV+ modificaram uma série de representações próprias sobre o corpo, os desejos e a infecção, além de ter modificado suas expectativas em relação ao futuro.

As histórias mostram que a AIDS e a militância são disparadoras de uma série de mudanças: houve a apropriação de conhecimentos e noções de cidadania, empoderamento, ascensão social, re-significação de parte dos vínculos afetivos e aumento da auto-estima e da solidariedade, bem como consolidação de idéias de superação. A experiência da doença e o contato com o ativismo, portanto, viabilizaram alterações significativas, possibilitando algumas posturas críticas frente à epidemia e às vivências de exclusão social.

As questões que remeteram essas mulheres à inserção no ativismo de ONGs, a partir de uma morte anunciada e dos estigmas e preconceitos que as concepções sobre a epidemia incitam, relacionam-se ao pressuposto de que, nesses espaços, elas acreditavam que encontrariam informações sobre a doença, outras pessoas HIV+ e ajuda para lidar com suas próprias questões.

A evidência da AIDS as desterritorializou de noções e identidades engessadas e conhecidas, de esposa, dona-de-casa, mãe, e isso, aliado à militância, contribuiu significativamente para reconfigurar novas possibilidades de existência. A ocupação de espaços públicos de deliberação e controle, a visibilidade, o pertencimento a um grupo, aliados às conquistas de saberes sobre os próprios direitos, ao acesso a mecanismos de seguridade social e a posições sociais vão sendo elaborados no sentido da construção de exercícios coletivos de reflexão e de cidadania. Estes, por sua vez, geram posturas de enfrentamento de discursos estigmatizantes construídos em torno da AIDS e da figura da mulher.

É importante reorganizar e re-significar a experiência da AIDS a partir, também, de outros elementos, buscando evidenciar na história da construção social da epidemia e na das pessoas HIV+ não só os casos de morte e abandono, mas também as trajetórias de luta e de subversão de normas discriminatórias. É possível estabelecer outras associações em relação à AIDS, e dizer que ela, na nossa cultura, não é só sinônimo de perda, é também referência de organização política, de movimentos reivindicatórios e de resistência, e de criação de novos modos de existência.

Nas análises que seguem procurei evidenciar e problematizar as legitimações e contradições que atravessam as histórias dessas mulheres, os relatos de práticas que contradizem e afirmam normas culturais e as idéias que são paradoxais a fatos de suas vidas, a partir das seguintes categorias: vulnerabilidades à infecção e à reinfecção pelo HIV, mudanças ocorridas no campo afetivo-conjugal e nas concepções sobre a maternidade. A escolha por esses recortes se deu em virtude de estudos teóricos, principalmente, por serem categorias que se destacaram nos relatos.

 

Vulnerabilidades

As vulnerabilidades que atravessam as mulheres ao risco de infecção pelo HIV, bem como as vulnerabilidades das mulheres já infectadas à reinfecção, são questões importantes de serem mapeadas, pois podem contribuir para o desenvolvimento de políticas de prevenção.

No que diz respeito ao avanço da epidemia entre as mulheres, a utilização do conceito de vulnerabilidade aponta para as complexidades sócio-históricas, culturais e biológicas que atravessam o corpo feminino, possibilitando a compreensão da multiplicidade de fatores que ampliam ou não as estratégias de saúde. Essa noção permite expandir os olhares e as abordagens de prevenção com mulheres soronegativas e soropositivas para além de ações e intervenções focadas numa perspectiva individualista.

No geral, as mulheres, por fatores subjetivos, culturais, sociais e biológicos, são mais vulneráveis que os homens a infecções por DSTs (BRASIL, 2009b). Entre as várias explicações possíveis para isso estão: as diferenças orgânicas, as dificuldades de acesso aos meios de prevenção controláveis, os efeitos colaterais do uso de contraceptivos e o aborto ilegal, além da confiança no parceiro, a excitação que traz a idéia do risco, a violência sexual e doméstica de que é vítima, a aceitação social e o ocultamento da infidelidade masculina (GIFFIN, 1995; VILLELA, 1999; BRASIL, 2009b).

Segundo Guimarães (2001), a invisibilidade dos casos de AIDS entre as mulheres, nos anos 1980, contribuiu para o estabelecimento de diagnósticos tardios, e, em muitos casos, só se descobria o vírus quando a mulher já havia desenvolvido uma doença ou estava morta. A dificuldade de identificação dos casos de infecção entre mulheres devia-se, também, ao fato de que “a construção social da AIDS [...] [pautava-se] em condutas e discursos biomédicos com forte viés ‘masculino’ [...] definidores dos testes de medicamentos que excluem a mulher, bem como dos conceitos e das interpretações da doença baseados na sintomatologia do doente homem”. (GUIMARÃES, 2001, p.32)

As primeiras propostas de combate à feminização da AIDS, datadas da década de 1990, priorizaram o desenvolvimento de ações que buscavam ampliar a apreensão, pelas mulheres, dos contextos de vulnerabilidades que as atravessavam, bem como buscavam conter o aumento da transmissão vertical (BRASIL, 2009b). Segundo Villela (2005), “no Brasil, como nos demais países pobres do mundo, a AIDS entre mulheres decorre prioritariamente de relações sexuais desprotegidas com parceiros do sexo masculino, envolvido com a mulher numa relação estável — namoro ou casamento” (p.66).

As mulheres que entrevistei não podem ser diretamente relacionadas aos chamados grupos de risco, pois, no momento da infecção, não eram usuárias de drogas e não se enquadravam nas definições de promiscuidade — eram mulheres que mantinham relações estáveis, monogâmicas, e foram infectadas pelos seus parceiros fixos, assim como grande parte das mulheres HIV+ em todo o mundo.

O imaginário construído em torno da epidemia durante toda a década de 1980 e as associações do vírus a determinados grupos contribuíram para que, mesmo de posse de algumas informações nos anos 1990, elas permanecessem estagnadas no paradigma dos grupos de risco e, conseqüentemente, ficassem vulneráveis à infecção. A idéia dos grupos de riscos não só contribuiu para estabelecer contextos de estigmatização e preconceito em relação às pessoas vivendo com HIV, mas também para que muitas mulheres se tornassem vulneráveis ao vírus.

Guimarães (1996), Knauth (1997) e Heilborn e Gouveia (1999), ao analisar as representações da AIDS na vida de mulheres HIV+ de classes populares, na segunda metade da década de 1990, afirmam que a doença era um elemento estranho e inapreensível para a maioria dessas mulheres (como é para muitas ainda hoje), pois, em “seu universo representacional, este é um assunto que não lhes diz diretamente respeito” (HEILBORN, GOUVEIA, 1999, p.194).

Nos relatos das mulheres entrevistadas, foi possível mapear algumas das vulnerabilidades das mulheres HIV+ à reinfecção. Neles, destacaram-se os aspectos relacionados às vulnerabilidades programáticas, pois há certo descaso, no Brasil, com as pessoas soropositivas no que se refere à organização de políticas de prevenção à reinfecção pelo vírus. Dificilmente as campanhas apontam questões específicas que contribuem para torná-las menos vulneráveis à reinfecção.

Outras questões importantes são as vulnerabilidades individuais que propiciaram a infecção e a possível reinfecção: a fragilidade e/ou a ausência de laços familiares, bem como concepções hierárquicas de gênero, o que contribuiu para que essas mulheres tivessem, e ainda tenham, dificuldade em se perceber em situações de risco e/ou de buscar alternativas frente às próprias situações de violência.

Na análise das vulnerabilidades dessas e de outras mulheres HIV+, é importante também refletir sobre os contextos de preconceito e estigmatização social a que elas estão sujeitas, inclusive por parte de equipes de saúde e assistência social, no momento em que demonstram interesse em engravidar. Provavelmente, essa conjuntura acarreta danos à auto-estima de muitas delas, o que prejudica a adesão à terapia anti-retroviral e, conseqüentemente, ao sistema imunológico; e também a sua inserção em alguns espaços de sociabilidade. Esses, entre outros impactos, contribuem para torná-las vulneráveis à reinfecção.

Outro ponto a ser analisado, é a dificuldade em negociar a camisinha nas relações sexuais entre homens e mulheres, pois, na nossa cultura, muitas vezes, o fato de uma mulher carregar um preservativo mostra que ela está disponível sexualmente, o que faz com que muitas temam propor o seu uso no momento da relação. Além disso, algumas podem ter receio de sofrer violência física ou psicológica. Juntam-se a esses elementos a idéia de que a camisinha coloca em xeque o ideal de amor romântico e a perspectiva de que a mulher que ama deve se entregar incondicionalmente ao parceiro. (BRASIL, 2009b)

Das quatro mulheres entrevistadas, apenas uma afirmou não ter sofrido violência física ou psicológica por parte do companheiro. Ressalta-se, que a violência contra as mulheres deve ser entendida como um problema de saúde pública, “pois isso as torna mais suscetíveis a diferentes agravos e à infecção por doenças sexualmente transmissíveis e pelo HIV/AIDS. (BRASIL, 2009b, p.24).

Outras questões importantes são as conjunturas afetivo-conjugais que muitas mulheres estabelecem com seus parceiros, geralmente pautadas em idéias como as de que quem ama confia e, portanto, não precisa usar camisinha, que homem é só um e que a mulher não deve se separar, pois corre o risco de ficar sozinha.

A difusão das idéias de amor romântico está profundamente envolvida com a transição sócio-econômica ocorrida entre o século XVIII e o início do XIX, com a ascensão do capitalismo. Giddens (1993) aponta que, entre as conseqüências desse período estão: o estabelecimento da idéia de lar como espaço protegido e seguro, as modificações das relações entre pais e filhos, e a construção da idéia de que a mãe seria responsável pelo cuidado dos filhos e do marido (o que restringiu a mulher ao ambiente doméstico e a instaurou como representante da afetividade e do amor). Organizou-se, portanto, o ideal do amor romântico diretamente associado à função da maternidade e à vida conjugal. Esses contextos culturais dificultam a adoção de medidas preventivas pelas mulheres, pois, ao exigir um preservativo, elas estariam rompendo com ideais românticos.

Muitas mulheres ainda estão impregnadas de certa permissividade à condição de masculinidade associada à traição e ao direito ao prazer, e, embora contrarie a confiança estabelecida entre o casal, o fato de o homem buscar uma mulher fora de casa, ou sempre querer transar, é considerado algo natural e esperado. Heilborn e Gouveia (1999) colocam que as mulheres HIV+ que foram contaminadas por seus parceiros “concebem a contaminação sob uma ótica de legitimidade, uma vez que esta ocorre num contexto aceitável, a conjugalidade, o que as distinguem dos demais ‘outros’ doentes” (p.181).

Para compreender a questão da AIDS no contexto das relações afetivo-conjugais e de gênero, a interpretação histórica de fatos individuais e sociais que ocorrem no interior das relações conjugais é imprescindível. Campos (1998) aponta que o entrelaçamento da relação afetivo-sexual com a vivência da AIDS ocasiona crises conjugais e exige novos posicionamentos das mulheres. Assim, estabeleci as relações afetivo-conjugais como uma categoria na análise das entrevistas.

 

As Relações Afetivo-Conjugais

Para as mulheres entrevistadas, a vida afetivo-conjugal teve início entre os treze e os dezesseis anos, e elas logo tiveram filhos. Nas suas histórias, percebe-se que havia certa urgência em casar e estruturar família, e isso por diversos motivos — desorganização familiar e ausência de afeto e cuidado, por exemplo. Segundo Saldanha e Figueiredo (2002), para muitas mulheres, o desejo de sair de casa e constituir uma família estruturada contribui na consolidação de uma postura de passividade diante de qualquer acontecimento que venha perturbar a ordem do lar, doce lar. Assim, as suspeitas levantadas contra o parceiro não são motivo para questionamentos ou confrontos, e a confiança estabelecida vai se basear no investimento imediato.

Abordando a utilização de métodos preventivos em relação ao HIV no contexto das relações afetivo-conjugais, Oltramari (2007) ressalta que “é importante entendermos que as representações sociais da AIDS poderão também estar vinculadas aos significados que instrumentos como o preservativo possuem frente ao comportamento sexual dos grupos” (p.83) — representações que são permeadas por valores morais constituídos socialmente e que fazem com que as pessoas apresentem certas atitudes frente ao uso ou não do preservativo.

Nas classes trabalhadoras ou populares, afirmam Heilborn e Gouveia (1999), as questões relacionadas às práticas sexuais são “responsabilidades” dos homens, e “o constrangimento feminino em relação à negociação do uso do preservativo se exprime por um sentimento de dependência do pólo masculino” (p.192).

Na cultura ocidental, o uso do preservativo contrapõe-se ao ideal de conjugalidade, de fidelidade na relação amorosa, pois “homens e mulheres partilham a idéia de que ‘eu e o outro somos um’” (CARVALHO, 1998 apud OLTRAMARI, 2007, p.84). Muitas vezes, esse uso é entendido como necessário apenas nas relações sexuais com parceiros desvinculados de afetividade, os outros. O ideal de amor, do parceiro único, resulta, principalmente para as mulheres, em uma forma de prevenção e confiança.

A idéia de amor que permeia o contexto das mulheres que entrevistei, numa perspectiva histórica, é relativamente nova e atravessada por características da cultura ocidental (ROUGEMENT, 2003 apud OLTRAMARI, 2007, p.87). Na perspectiva do amor romântico, o ser amado é idolatrado, deve ser amado intencionalmente e incondicionalmente, e as pessoas inseridas numa relação devem buscar ser uma só. Nessa conjuntura, o medo de se infectar pelo HIV no contato sexual com o ser amado e o uso do preservativo soam paradoxais — afinal, para a “existência de uma relação de conjugalidade o amor é estabelecido através da ‘confiança’ entre os parceiros” (OLTRAMARI, 2007, p.103).

A idéia de romance, no sentido que o termo adquiriu no século XIX, segundo Giddens (1993), “tanto expressou quanto contribuiu para as mudanças seculares, afetando a vida social como um todo” (p.51). Para compreender o surgimento da idéia de amor romântico, há que problematizar três questões que foram originárias de um campo propício para a sua gênese: a criação do lar e da família nuclear como referência de proteção; as modificações nas relações de pais e filhos; e a associação do corpo da mulher aos desígnios da maternidade. Nessa conjuntura, coube à mulher a promoção do amor, pois lhe foram atribuídas características de sensibilidade e afetividade. Na modernidade, portanto, a “conjugalidade é [...] o lugar apropriado e necessário para que o amor seja desenvolvido” (OLTRAMARI, 2007, p.107); e os códigos que, a partir do século XVIII, legitimaram os relacionamentos amorosos, e as atribuições históricas de responsabilização da mulher pela instauração e manutenção do amor nas relações afetivo-conjugais contribuíram para aumentar as vulnerabilidades de muitas mulheres ao HIV, bem como para colocá-las em condições sociais de risco.

Para complexificar a análise do campo das relações afetivo-conjugais no mundo atual, Grossi (1998), ao refletir sobre a violência contra as mulheres, descreve o quanto as idealizações do amor estão atreladas à idéia de sofrimento, e afirma que, nesse entrelaçamento, muitas mulheres, mesmo respaldadas por outras pessoas, não conseguem se separar de seus agressores. A posição de subordinação das mulheres tem suas raízes no início da Idade Moderna, quando lhes foi restringida a convivência em espaços públicos de deliberação e na produção do conhecimento, sendo confinadas à convivência no espaço doméstico, aos cuidados dos filhos e à família. Confinamento que “permitiu e legitimou a violência masculina no âmbito da conjugalidade” (GROSSI, 1998, p.298).

Contudo, a partir da infecção pelo HIV e, principalmente, da inserção na militância, as mulheres relataram mudanças nas associações entre feminilidade, passividade e fragilidade. Ao exercer outros papéis que, historicamente, não foram (ou são) permitidos a muitas mulheres, elas romperam com certos comportamentos institucionalizados, consolidando movimentos de resistência a algumas normas sociais. A experiência da doença e a militância possibilitaram, para essas mulheres, a re-significação de parte de seus vínculos afetivo-conjugais e a flexibilização de condutas e papéis sociais. Contudo, apesar dessas mudanças, ainda estão presentes referências às normas de passividade. As quatro nunca sentiram raiva ou mágoa do companheiro por tê-las infectado, ou seja, elas têm internalizada a permissividade às relações extraconjugais masculinas.

A feminização da epidemia de AIDS permite problematizar o panorama de desigualdades que ainda se apresenta para muitas mulheres, ao mesmo tempo em que possibilita articulação política e rompimento com algumas normas sociais. Os relatos, portanto, mostram os impactos que a experiência da doença teve em algumas das associações relacionadas diretamente à mulher, como mãe, esposa, passividade e cuidado, desnaturalizando muitas delas.

Mas os relatos trazem outras contradições, e, para refletir sobre elas, escolhemos analisar a categoria maternidade, pelo fato de que as quatro mulheres enfocaram, diversas vezes, as questões relacionadas aos cuidados com os filhos (com falas contraditórias, inclusive), e porque, historicamente, essa é uma questão que atravessa diretamente o corpo da mulher e o seu reconhecimento social.

 

Maternidade

Entre os vários discursos que, na atualidade, contribuem para a manutenção da associação entre mulher e maternidade, escolhi, primeiramente, elencar os programas de saúde da mulher por que, em geral, são restritos às dimensões da saúde reprodutiva da mulher e à relação materno-infantil.

Quando as políticas públicas se dispõem a considerar a saúde da mulher, a tendência central é a de vincular estritamente o bem-estar da mulher ao da criança e ao da família, e até à saúde da sociedade como um todo (LENT, 1998). Nesse sentido, os programas de saúde da mulher são entendidos, em sua maioria, como de saúde reprodutiva da mulher, sendo descartados outras dimensões da sexualidade e outros aspectos — como a violência doméstica e as dificuldades de inserção no mercado de trabalho — como fatores que interferem no quadro geral da saúde de muitas delas.

Segundo Pereira (2000), a medicina como a conhecemos hoje, teve seu alvorecer no final do século XVIII, quando começaram a ser reelaboradas as noções de disciplina e higiene, que foram de fundamental importância para o processo de medicalização da sociedade acontecido a partir daí — processo só visualizado claramente nos séculos seguintes. Antes de 1900, a sexualidade da mulher era um conceito entendido como pejorativo e negativo, que incluía a idéia de “fragilidade do seu corpo e da precariedade da sua saúde” (PEREIRA, 2000, p.128). Essa concepção era reforçada pelos discursos e práticas médicos, que instauraram a medicalização e a disciplina sobre os corpos. Com o surgimento e a ascensão do capitalismo, a mulher se tornou um dos focos de um sistema político que necessitava, com urgência, aumentar a população, e, assim, ela foi submetida a práticas de normatização e vigilância (MOREIRA e NARDI, 2009). Ela foi também reintroduzida no discurso filosófico e científico, principalmente por suas funções reprodutivas. Nesse processo, a medicina teve papel fundamental, através dos imperativos da maternidade e da amamentação (BADINTER, 1985).

Os relatos das mulheres entrevistadas mostram que a questão da maternidade é extremamente importante em suas vidas, e que elas organizam a relação com os filhos como se estes fossem sua “propriedade”. Knauth (1997) afirma que o desejo de ter um filho não pode ser dissociado da sua função social. Os filhos, em nossa cultura, representam a idéia de laço familiar, dão sentido ao casamento e ainda garantem o lugar de muitas mulheres na esfera social, como sérias e respeitáveis. Ainda segundo Knauth (1999), é principalmente através da “maternidade que as mulheres infectadas pelo vírus da AIDS conseguem assegurar, não apenas o status de mãe, mas, sobretudo, sua identidade social ameaçada pela doença” (p.130). Por esse motivo, a autora considera que, para muitas mulheres, o diagnóstico positivo não implica o fim da vida reprodutiva.

É muito comum que as mulheres descubram seus diagnósticos positivos durante uma gestação ou alguns meses depois do nascimento do filho, pois é nesse período que elas estão mais sujeitas à intervenção e ao controle dos médicos. Conforme Knauth (1997), depois do parto, muitas mulheres HIV+ passam bastante tempo preocupadas com a saúde do filho e, depois da constatação de que este não está infectado pelo HIV, elas começam a se preocupar com as restrições que a doença lhe impõe e como ele viverá quando elas morrerem.

No entanto, os relatos das mulheres que entrevistamos mostram algumas contradições. Ao mesmo tempo em que elas relataram relações de extrema ligação com os filhos, que se sentiam ainda muito responsáveis pela sua criação, e o medo de que a AIDS prejudicasse as funções da maternidade, também contaram que a experiência da infecção pelo HIV e a participação no ativismo lhes permitiu entender de outra forma os “desígnios” da maternidade. Além de se desancorar de algumas identidades socialmente cristalizadas, re-significando, assim, algumas idéias do que seria a experiência de ter um filho.

 

Considerações finais

Na trajetória da presente pesquisa, pude perceber que a história da AIDS é imbricada a aspectos morais e sociais, entre outros, os quais, ainda hoje, impõem uma série de restrições e dificuldades às pessoas HIV+. Em contrapartida, ressalta-se, na sua história, a importância do discurso militante na construção de experiências singulares e coletivas, que são fundamentais para a reconfiguração de trajetórias individuais e disparadoras de rupturas na cultura ocidental. Nesse sentido, analiso uma série de mudanças e permanências que aparecem nos discursos de mulheres de classes populares HIV+ ativistas, e o quanto a experiência da doença e da militância é importante na história de algumas delas, na ativação de processos reflexivos e na positivação de formas criativas de lidar com a vida. São nítidos, em suas histórias de vida, as mudanças individuais e processos de re-significação, que articulam a apreensão de uma reflexão coletiva, como alterações nas percepções de si, em algumas atribuições de gênero e referências aos direitos humanos e sexuais das pessoas HIV+.

Contudo, as contradições que aparecem nos relatos dessas mulheres, apontam para a permanência de processos de normatização que estão em trânsito na contemporaneidade. Valores como a família e o reconhecimento próprio através da maternidade e de relações de conjugalidade não foram completamente subvertidos pelas particularidades da relação doença/política.

Nas concepções sobre as relações afetivo-conjugais, os relatos evidenciam referências do universo cultural do mundo ocidental, que se apresentam de forma mais rígida nas classes populares brasileiras . Aspectos atribuídos aos homens, como a possibilidade de traição, desejo sexual exacerbado, dificuldade no uso da camisinha e a violência são compreendidos como masculinidades naturais e quase inquestionáveis, e a experiência da militância não tem sido potente o suficiente para desconstruir parte dessas perspectivas essencialistas.

Os relatos mostram a construção de subjetividades relacionadas à centralidade da maternidade enquanto norma. Por vezes, o discurso e a prática dessas mulheres evidenciam rupturas que as reposicionam na afirmação da maternidade como aspecto essencial de sua existência Contudo, por diversas vezes, os relatos afirmam o sentido e a manutenção da própria vida relacionados ao cuidado com os filhos. A família também se revelou como lócus privilegiado e idealizado, o que evidencia a interpenetração de lógicas culturais e ideários políticos das sociedades modernas.

As suas expectativas para o futuro também são associadas ao âmbito da conjugalidade e da maternidade. A busca por um grande amor e o desejo de cuidar dos filhos, ou mesmo a intenção de ser exemplo para os mesmos depois da própria morte, permearam de forma privilegiada os seus discursos, organizando parte do seu movimento.

Em contrapartida, há exemplos de escolhas pelo próprio prazer sexual, enfrentamento verbal de agressões e, inclusive, uma delas instaurou um processo judicial contra o parceiro; comportamentos que contradizem atribuições de gênero historicamente associadas às mulheres, e que, acredito, são articulações possíveis através das experiências pessoais em movimentos coletivos.

É importante refletir criticamente sobre os modelos teóricos e práticos de prevenção à AIDS veiculados pelas ONGs e por políticas públicas no Brasil, pois, embora haja uma heterogeneidade desses discursos e práticas no país, ainda existem ações pautadas em modelos hegemônicos, que, muitas vezes, não levam em conta os processos complexos e contínuos de transformação de contextos políticos, econômicos e culturais. Em muitas ações circulam textos normatizadores de condutas e falas ameaçadoras, como a apresentação de álbuns seriados do Ministério da Saúde, com fotos de genitais destroçados por doenças venéreas, ou a prevenção dirigida especificamente a grupos de meninas ou de meninos. É necessário refletir cuidadosamente sobre atribuições de gênero que cristalizam possibilidades de ação e escolha de homens e mulheres, sobre o quanto muitos dos discursos preventivos contribuem para a legitimação desses papéis e para o aumento das vulnerabilidades à infecção e à reinfecção pelo HIV que atravessam os corpos na contemporaneidade.

 

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Endereço para correspondência
Flávia Fernandes de Carvalhaes
E-mail:carvalhaes1@yahoo.com.br

Recebido em: 29/04/2010
Revisto em: 14/07/2010
Aceito em: 21/07/2010

 

 

1 Para Deleuze (2001, p.1), dispositivo é “um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras”.

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