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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

RELATOS DE PESQUISA

 

A violência conjugal na perspectiva de homens denunciados por suas parceiras

 

Marital violence according to men who were denounced by their female partners

 

Mirian Béccheri CortezI; Lídio de SouzaII

IDoutoranda - Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Espírito Santo.Brasil
IIDocente - Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo investigou concepções sobre relacionamento conjugal/afetivo, episódios de violência e papéis conjugais masculinos e femininos de 4 homens denunciados por agressões físicas contra suas parceiras. Os dados foram coletados através de entrevistas e analisados através do software Alceste e de Análise de Conteúdo. Verificou-se a prevalência de concepções tradicionais de gênero e a minimização das conseqüências físicas e emocionais da violência para as esposas, para eles próprios e para seus relacionamentos. Discutem-se as dificuldades dos participantes em lidar com comportamentos que consideram inadequados a uma boa mulher e a utilização da violência para controlar a parceira, preservando a masculinidade tradicional.

Palavras-chave: Violência contra mulheres, Violência conjugal, Gênero, Autores de violência, Masculinidades.


ABSTRACT

This study investigated the conceptions about marital/affective relationships, violence episodes and masculine and feminine roles of 4 men who had been denounced for beating their female partners. Data were collected via interviews and analyzed via software Alceste and Bardin Analysis of Contend. Data demonstrated predominance of traditional gender concepts and minimization of physical and emotional consequences of violence to wives, themselves and to their relationships. We discuss the participants difficults on dealing with their partners behaviors, which they believe are inappropriate for a good woman.Violence is used to control their partners and also to preserve traditional masculinity.

Keywords: Violence against women, Marital violence, Gender, Batterers, Masculinities.


 

 

Introdução

A investigação da violência conjugal contra mulheres, fenômeno que transpõe barreiras étnicas e econômicas, é um trabalho complexo: o acesso aos homens e às mulheres envolvidos exige paciência e cuidados éticos devido às situações adversas pelas quais passaram ou ainda passam. Apesar da existência de inúmeras pesquisas sobre o tema, verificam-se ainda muitas lacunas, algumas delas relacionadas à questão do parceiro-agressor. O enfoque das pesquisas brasileiras sobre violência (familiar, doméstica e/ou conjugal) recai, ainda hoje, sobre mulheres e crianças vitimadas, o que tem gerado diversas contribuições relevantes (AUDI;CORRÊA, LATORRE, SANTIAGO, 2008; SANTOS, FERRIANI, 2007; WILLIAMS, PINHEIROS, 2006).

Por outro lado, as investigações sobre os homens autores de agressão conjugal ainda são escassas, apesar do espaço que vêm conquistando, principalmente após a promulgação da Lei n° 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Segundo Diniz (2006), esse assunto vem crescendo como tema de intervenção e de investigação. Em seu estudo, a autora ressalta a relevância de algumas experiências no Brasil (pesquisas e intervenções reflexivas), e identifica umúnicoestudo que menciona a necessidade de intervenções com os homens (dissertação de mestrado de MARINHEIRO, 2003, apud DINIZ, 2006). Na revisão da literatura identificamos dois estudos que relatam intervenções com homens autores de violência (PADOVANI, WILLIAMS, 2002 e CORTEZ, PADOVANI, WILLIAMS, 2005) e também outras pesquisas que reafirmam a importância de se estudar e propor intervenções para esse público (ALVIM, SOUZA, 2005; COUTO, SCHRAIBER, D'OLIVEIRA, KISS, 2007; GIFFIN, 2005; GOMES, FREIRE, 2005; GOMES, FREIRE, 2008).

A dificuldade de contato com homens denunciados ou condenados por agressão contra a parceira é um complicador para a realização de pesquisas com tal população. Alguns se recusam por não se considerarem agressores, outros por não se sentirem seguros com a situação de entrevista, outros ainda porque não querem falar sobre o assunto. Uma dificuldade adicional é o estabelecimento de uma boa relação entrevistador-entrevistado, visto que a agressão masculina contra mulheres é socialmente condenada, ao mesmo tempo em que ser violento permanece como característica valorizada para o gênero masculino. É nesse contato com homens que agridem/agrediram suas parceiras que se tem a oportunidade de responder a questões recorrentes: "porque agride?", "o que ele acha disso?", "como percebe a ação violenta?", "o que sente por sua parceira?".

Considerando gênero como uma categoria de análise, verificamos que sua compreensão polarizada (GIFFIN, 1994) determina práticas que delegam poder ao homem, ao identificá-lo com características valorizadas positivamente pela sociedade. Ao mesmo tempo, a ação das mulheres é limitada a atividades e espaços socialmente pouco valorizados (ARAÚJO, 2005; BOURDIEU, 2003; GIFFIN, 1994 e TORRÃO FILHO, 2005). Apesar das transformações de identificadas na conquista de espaços considerados masculinos pelas mulheres, essa perspectiva dicotômica de gênero continua organizando os relacionamentos afetivos e conjugais.

Ao considerar que as definições e prescrições de masculino e feminino são desenvolvidas simultaneamente e de modo a estabelecerem pólos opostos para os dois gêneros (forte/fraco; ativo/passivo), é possível relacionar o empoderamento das mulheres à crise da masculinidade descrita por Nolasco (1997). Se o homem de verdade é aquele que possui a maior quantidade de características relacionadas a uma masculinidade hegemônica (CONNELL, 1995; CONNELL, MESSERSCHMIDT, 2005), de que modo esse homem pode reagir se considerar que seu espaço e seus direitos estão sendo ameaçados pelas mulheres? Em uma pesquisa com 22 agressores conjugais Wood (2004) encontrou evidências de que a ocorrência de violência contra a parceira é um meio de controlá-la, de modo que o agressor mantenha sua masculinidade intacta. Entre os dados descritos pela autora, identificamos quatro categorias de justificativas para as agressões: a) ela me desrespeitou como homem, b) ela me provocou, c) o homem tem o direito de controlar sua mulher, e d) a mulher aceita a situação de violência. Como ressaltou Wood (2004), todos os entrevistados apresentaram uma visão patriarcal de masculinidade, na qual os homens devem estar no comando dos relacionamentos e, se necessário, podem utilizar violência para controlar e educar a parceira, mostrando a ela seu devido lugar e a posição de cada um no relacionamento.

Segundo Saffioti (2002, p. 198), a violência contra mulheres ocorre porque a "ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais do ditame do patriarca". Apesar disso, e considerando ainda a força de concepções tradicionais de gênero, temos publicações que indicam que casais envolvidos em relacionamentos violentos procuram manter as expectativas (externas e deles próprios) relacionadas à constituição e manutenção do lar e às funções que acreditam que devem ser cumpridas pela mulher, como mãe e esposa e pelo homem, como pai e marido. Miller (2002, p. 251) descreveu que "a expectativa geral é de que as mulheres apóiem a 'reputação' da família, com suas atitudes sociais tradicionais, e mantenham os 'problemas familiares' dentro do próprio lar". Diversos autores (ANDERSON, UMBERSON, 2001; GILBERT, 2002; GREIG, KIMMEL, LANG, 2000 e JENKINS, AUBÉ, 2002) informam que o comportamento de agredir as parceiras decorre das concepções tradicionais de gênero, e ressaltam a importância de se investigar como homens e mulheres significam a violência para se compreender os comportamentos violentos nas relações conjugais. Embora se reconheça a existência da violência praticada pela mulher contra seu parceiro, ocorrência já investigada e descrita por alguns autores (ALVIM, SOUZA, 2005; CASIMIRO, 2002), a violência feminina, segundo Casimiro (2002) é diferente da do homem e se manifesta muitas vezes sutilmente, na forma de chantagens, ameaças e silêncios. A violência física também é praticada por mulheres e causa grande sofrimento aos parceiros. Ainda assim, dado o contexto histórico de opressão da mulher e sua desvantagem física em relação ao homem, entende-se que o grupo feminino é o mais vitimado pela violência conjugal (SAFFIOTI, 1999).

Compreendendo a violência como conversão da diferença numa relação de desigualdade, que objetiva a dominação, a exploração e a opressão do outro por meio de sua coisificação (CHAUÍ, 1999; SAFFIOTI, 1999), apresentamos parte dos dados obtidos em uma pesquisa desenvolvida com casais envolvidos em violência conjugal. O estudo, de caráter exploratório, analisou as concepções e práticas de gênero de homens envolvidos em relacionamentos violentos, visando compreender como ambas podem ser relacionadas à produção de conflitos que resultam em violência física, psicológica ou sexual do marido contra sua parceira.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa quatro homens com histórico de violência conjugal em seus relacionamentos atuais e que foram denunciados na Delegacia de Defesa da Mulher (Deam) por agredirem fisicamente suas parceiras. Na Tabela 1 constam os principais dados pessoais dos entrevistados (nomes fictícios).

Tabela 1.Informações sobre os participantes.

Participante Idade Tempo de relacionamento Idade dos filhos Escolaridade Profissão Início das agressões
Arnaldo 43 13 anos e 6 meses 14;11;9;5 Ensino médio completo Comerciante Há 4 anos
Fábio 33 15 anos 15;7;10 Fundamental incompleto Chapeiro Não relatou
Carlos 38 25 anos 15;20 Fundamental incompleto Pintor Não relatou
Mauro 39 3 anos 6;12 Ensino médio completo Policial Há 3 anos

 

A renda dos participantes variou de R$ 800,00 a R$2.000,00, na época das entrevistas, e apenas um deles relatou estar desempregado e trabalhando no mercado informal, o que lhe rendia em torno de R$300,00 mensais. Apenas Mauro, único divorciado, relatou ter se envolvido anteriormente em um relacionamento violento.

 

Instrumento e Coleta dos dados

O convite para participar da pesquisa foi realizado após Audiências de Conciliação nos Juizados Especiais Criminais (Jecrins)1 e no início das sessões de grupo com casais, desenvolvidas por um Núcleo de Atendimento que oferecia atendimento a casais em situação de violência que eram encaminhados por juízes. Os interessados foram contatados posteriormente, por telefone, para agendamento da entrevista.

As entrevistas seguiram um roteiro que coletou dados pessoais e sócio-demográficos de cada participante (idade, escolaridade, profissão, salário) e informações sobre o relacionamento do casal (duração, início das agressões). Posteriormente, investigaram-se as concepções acerca dos papéis de gênero no ambiente familiar e conjugal, descrições de episódios de agressão física e as percepções dos entrevistados sobre si mesmos, suas parceiras e seus relacionamentos. As entrevistas tiveram início após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Informado (TCI), e foram gravadas com a anuência dos participantes nos locais de preferência dos mesmos.

A coleta de dados foi realizada individualmente por dois alunos-estagiários de graduação em Psicologia, ambos do sexo masculino e devidamente orientados para as entrevistas.

 

Tratamento dos dados

Os dados obtidos foram transcritos e submetidos aos seguintes procedimentos:
1. Alceste (Analyse Lexicale par Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte): Esse software tem como função apreender informações essenciais contidas em um conjunto de textos, como entrevistas, artigos ou ensaios literários. As unidades básicas de análise com que trabalha são: a) Unidades de Contexto Inicial (UCI): determinadas pelo pesquisador e pela natureza de sua pesquisa, essas unidades são divisões primárias do grupo de textos analisados. Cada uma das quatro entrevistas foi considerada uma UCI; b) Unidades de Contexto Elementares (UCE): frases dimensionadas pelo programa de acordo com o tamanho do corpus, de sua pontuação e da ordem de aparição no texto (OLIVEIRA, GOMES, MARQUES, 2005); c) Classe/contexto lexical: corresponde a um tema extraído da análise do corpus. O tema é identificado pela análise de UCEs e vocabulários específicos da classe.

Essas classes são construídas pelo programa por meio da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) que considera o vocabulário específico das classes (freqüência, porcentagem e força de relação de cada palavra com o contexto em que foi inserida), apresentando-o em um dendrograma, que indica o número de classes, suas estruturas e a relação entre elas (proximidade ou oposição).

2. Análise de conteúdo: Utilizada para complementar as temáticas propostas pelo Alceste, a Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977/2002) é um recurso metodológico que “articula a superfície descrita e analisada com os fatores que determinam suas características: variáveis psicossociais, contexto cultural, contexto e processo de produção da mensagem” (MINAYO, 1993, p. 203). Utilizou-se a técnica da análise categorial, que busca identificar e analisar os núcleos de sentido, ou temas, que compõem o texto. Estes são entendidos como unidades de significação encontradas no texto analisado durante as leituras guiadas por uma teoria específica (BARDIN, 1977/2002).

 

Resultados

Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e Análise de conteúdo

A análise do software subdividiu as quatro UCIs do corpus em 308 UCEs, das quais 268 foram efetivamente analisadas e agrupadas em contextos lexicais/classes. O aproveitamento de 87,01% das UCEs indica boa consistência e adequação do material submetido. Foram destacadas quatro classes distribuídas em dois eixos principais: o primeiro, composto pela classe 1, com 49,25% das UCEs, e o segundo eixo contendo as classes 2, 3 e 4. As classes 2 e 3 foram subagrupadas, constituindo um eixo secundário.

Apresentamos a seguir o dendrograma gerado pelo Alceste (Figura 1) já com classes, eixos e índices de proximidade (r). Para fins ilustrativos, algumas das palavras com maior qui-quadrado (x2) foram inseridas em cada classe2.

Figura 1: Dendrograma do conteúdo das entrevistas

É importante salientar que o índice de proximidade indica a relação entre as classes - quanto mais próximo de 1 (um), maior a afinidade entre as classes semânticas. Verificamos, então, que a Classe 1 (Dinâmica da violência) praticamente não tem relação com as demais classes (que se referem a questões afetivas e familiares). A seguir apresentamos a análise de cada classe.

EIXO 1/Classe 1: DINÂMICA DA VIOLÊNCIA
Nesta classe o tema predominante foi a caracterização dos desentendimentos conjugais (discussões com ou sem agressões físicas). Além das palavras com maior x2, já especificadas no dendrograma, podemos destacar algumas das palavras exclusivas dessa classe (100% de freqüência), para melhor caracterizá-la: cheguei, irrit+, mand+, puxei, quebr+, tapa.

Os elementos descritivos dos episódios de violência remetem a atividades realizadas pelos entrevistados naquele dia (serviço, consumo de bebida), aos comportamentos das esposas que irritam os maridos (gritar, fazer cobranças), à briga (agressões psicológicas e físicas) e às conseqüências dos conflitos (denúncia, saída da esposa de casa, separação por curto período de tempo).

Identificamos nas descrições das agressões a tentativa de eliminar o que avaliam como desajustes das esposas, que se expõem de modo inapropriado ou, ainda, como um meio de “colocar a mulher em seu devido lugar” - o espaço doméstico, restrito de contatos e submetido ao controle do marido: “... qualquer coisinha (...) ela gritava e eu ficava nervoso também, mandava ela calar a boca.” (Mauro); “...saber que ela trabalha, que ela chega tarde em casa, que ela está na casa de amiga (...) não é digno de uma mulher casada.” (Arnaldo); “direito eu tenho [de interferir], eu não gosto conforme uma roupa que ela veste...” (Fábio).

Os entrevistados revelaram que as agressões físicas ocorrem no interior da própria residência ou então em um ambiente doméstico simbólico, no qual o prolongamento do contexto doméstico facilita o poder de ação do marido sobre a esposa (casa de vizinhos, bar do sogro). Nesse sentido, Arnaldo relembra um ditado popular muito repetido “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Ao repeti-lo, Arnaldo, ao mesmo tempo em que reforça sua posição de chefe da casa, de certo modo se protege das condenações de outros ao reafirmar a privacidade do casal, mesmo em casos em que a violência é de conhecimento público.

As descrições das brigas e das agressões mostram o contexto doméstico e também algumas das agressões cometidas3: Aí eu fui, #cheguei, já #cheguei #acordando ela, #gritando e tal, e #falando, que se ela tinha tanto interesse em #sair de casa era pra ela #pegar as coisas ela e #sair naquela #hora ali. (UCE – Alceste); “(...) na festa de aniversário. (...) Puxei pelo cabelo até o meio da rua. Tava [dançando] com um cara, (...) eu não gostei, puxei, arrastei, separei, tirei ela...” (Fábio)

Descrito na literatura da área como um fator facilitador de situações de violência (MINAYO, DESLANDES, 1998), o consumo de bebida alcoólica está presente em todos os relatos e aparece bastante relacionado aos episódios de agressões físicas. Em alguns casos o consumo é utilizado como justificativa para o comportamento agressivo e para reduzir a responsabilidade do marido: “na maioria das vezes rolava bebida, na maioria das vezes. Normalmente quando eu não bebo, eu não, dificilmente eu tenho uma postura agressiva.” (Arnaldo). Apesar de todos os maridos relacionarem o uso do álcool à ocorrência de episódios de agressão, nem todas as agressões contra as esposas ocorreram em situações de embriaguez do parceiro. Mauro, por exemplo, afirmou que apenas no último episódio de violência estava alcoolizado. Já Carlos revelou que sua esposa, Carina, tomava a iniciativa das discussões quando ele chegava em casa, alcoolizado: “(...) tomo algumas e chego, não que ela não goste que eu tô alcoolizado, é o bafo. ‘Nossa Senhora, vai tomar um banho, vai dormir no banheiro!’. Ela fica puta.”

Entre as conseqüências das brigas com agressões físicas, são citadas algumas reações das esposas durante os episódios (agressões verbais e, por um entrevistado, também físicas) ou após os episódios (denúncia das agressões físicas à polícia, sentimentos das esposas e dos próprios maridos, saída da esposa de casa, ferimentos causados). Outra reação descrita foi a saída das esposas de casa, por um período curto de tempo: “(...) empurrei e ela caiu no chão e, saiu de casa. (...) ela se porta de maneira muito fria logo após.” (Arnaldo); #ia para casa, #alugava uma casa e tal, #saía e #ia pra casa da vó dela, eu #pegava minhas coisas e #ia pra casa de mamãe. Aí #passava uma semana, #duas semanas e tal e nós #voltávamos pra casa (UCE – Alceste).

Os sentimentos dos entrevistados e os de suas parceiras após as brigas com agressões físicas são descritos em termos de arrependimento pelo ocorrido e raiva, respectivamente: “(...) é arrependido, né. Não precisava disso.” (Fábio); “Ela sempre sentiu ódio, raiva (...) nunca demonstrou medo” (Mauro).

De acordo com os participantes, as agressões físicas presentes nas brigas envolveram empurrões, tapas, chutes e puxões. A descrição das brigas e do arrependimento pelas agressões é seguida por referências que procuram reduzir o impacto das brigas do casal. Em geral os entrevistados comparam as agressões leves, que assumem ter cometido contra suas parceiras, com aquelas que consideram realmente severas (muito freqüentes e/ou que marcam o corpo da mulher): “[agressão] não é assim constantemente. (...) aconteceu durante esses três anos e pouco umas três ou quatro vezes (...) mas [não] de deixar olho-roxo, ou assim, o corpo com hematomas...” (Mauro); “Empurrão já teve, uns cascudinhos já teve. (...) graças a Deus que é leve. Essa coisa da ignorância, a violência, Deus me livre.” (Carlos). Apenas Mauro relatou ter notado um ferimento em sua esposa, decorrente de uma das brigas que tiveram: “dei um chute na perna dela, segundo ela ficou, ficou vermelho. Foi só isso”.

As brigas e agressões são avaliadas como acontecimentos ocasionais, com pouco impacto na relação do casal: “é briga de casal, discute e depois resolve tudo na cama” (Carlos). Assim, os participantes entendem que após um curto período de tempo, “as coisas voltam ao normal”, “numa boa”, “sem briga, sem nada” (Arnaldo, Carlos e Mauro, respectivamente).

EIXO 2: Classes 2, 3 e 4 – O segundo eixo, identificado pelo programa Alceste, encontra-se em oposição ao primeiro (r = 0,02) e é composto pelo eixo secundário DINÂMICA AFETIVA (que agrupa as classes 2 e 3), e pela classe quatro, denominada Dinâmica Familiar.

Eixo secundário: DINÂMICA AFETIVA
Nesse eixo, estão as classes 2 e 3 cujos temas centrais são: relacionamento afetivo do casal, considerações acerca do relacionamento e identificação de aspectos importantes e prejudiciais para uma relação. Além disso, é exposta pelos entrevistados a procura por mudanças que resultem em melhorias na qualidade da relação conjugal e familiar.

Classe 2: RELACIONAMENTO AFETIVO
Nessa classe estão contidas as características desejadas, como também aquelas indesejadas em um bom relacionamento. Além das palavras com maior qui-quadrado (x2), já destacadas no dendrograma (Figura 1), outras palavras representativas da classe, com freqüência superior a 65% são: apesar, convívio, correta, dialog+, negativo+, particip+, prejudic+, sexo.

São predominantes os elementos que descrevem características que os homens consideram importantes nos cônjuges e no relacionamento para se ter e se manter uma boa relação conjugal. Tais características se relacionam tanto às qualidades necessárias, quanto à negação de possíveis defeitos (“é importante que não tenha/seja”).

A boa esposa e o bom marido são representados como pessoas honestas e moralmente corretas e que demonstram seu respeito pelo cônjuge: não mentem, nem traem ou enganam seus parceiros. O relacionamento do casal, desse modo, depende da confiança que os parceiros depositam um no outro: eu falo #pra você, eu #acho que o #respeito é primordial. Um bom #marido seria #uma #pessoa que #respeita, que não #trai, que não #mente #pra #esposa (UCE – Alceste).

Além desses aspectos, o relacionamento entre marido e esposa se baseia no companheirismo, caracterizado pela presença e apoio do parceiro nos “bons e maus momentos”. O diálogo é considerado o meio de aproximação uma vez que permite a troca de experiências, o compartilhamento de problemas e a busca de soluções. Afeto e respeito também aparecem como necessários para um bom relacionamento conjugal.

A relação do casal é concebida, então, como um meio de compartilhar experiências, angústias e afeição. Verifica-se nos relatos que os maridos valorizam a disposição da esposa em dar a eles carinho e fazer companhia. No relato de Mauro: “Uma relação assim, de carinho, de conversa e tal. (...) a esposa tem que saber compreender o marido, (...) ser carinhosa, amiga”.

Arnaldo destaca a satisfação sexual do casal como um elemento essencial para a manutenção do relacionamento. Segundo o participante, a mulher se envolve em casos extraconjugais por estar sexualmente insatisfeita: “(...) Então eu procuro satisfazê-la sexualmente, não só a mim como a ela. (...) Porque a partir do momento que ela está traindo o marido, ele não está satisfazendo ela sexualmente”. Destacamos, ainda, que a traição da esposa indica também a possibilidade de abandono do marido e da família, uma vez que, diferentemente do parceiro, “que é mais carne” (Arnaldo) e capaz de se envolver sexualmente e não emocionalmente, o envolvimento da esposa com um amante significa que está afetivamente interessada nele. Neste estudo, independentemente de a traição ter sido consumada ou ser apenas uma suspeita, o ciúme atua como fator que aumenta a possibilidade de violência na relação, assim como identificaram Couto et al. (2007), segundo os quais a traição, relacionada aos episódios de ciúme, aparece como relevante no que se refere à incidência e tolerância da violência contra mulheres.

Apesar das dificuldades que surgem nos relacionamentos (desordem financeira, desentendimentos pessoais, problemas de saúde), os entrevistados avaliam de modo positivo suas relações afetivas. Como resume Carlos: “quem gosta enfrenta barreiras”. Tais barreiras, e a maneira como os maridos as enfrentam, estão analisadas na Classe 3, apresentada a seguir.

Classe 3: AVALIAÇÃO E MUDANÇA
A terceira classe compõe, juntamente com a classe anterior, o eixo DINÂMICA AFETIVA, e representa uma visão crítica dos entrevistados sobre seus relacionamentos (problemas que identificam e meios pelos quais procuram resolvê-los). Essa classe é constituída por uma porcentagem reduzida das UCEs analisadas (9,7%) e corresponde principalmente ao conteúdo da entrevista de um dos participantes: Arnaldo. O fato de esse participante ter ficado separado de sua esposa, por um período de seis meses, e possuir um discurso bastante característico e repetitivo acerca das avaliações que realizou sobre seu relacionamento parecem ter propiciado a delimitação dessa classe pelo software Alceste. Apesar de prevalecerem os relatos de Arnaldo, há conteúdos relevantes explicitados pelos outros participantes nessa classe.

Compõe esta classe as descrições do empenho dos entrevistados em eliminar e/ou resolver as dificuldades que eles identificam no relacionamento com a família. Por essa razão, defeitos e comportamentos das esposas e dos próprios entrevistados que, segundo eles, incomodam e/ou atrapalham a relação são identificados como motivos de desentendimentos conjugais. Há também elementos que indicam algumas estratégias utilizadas pelos entrevistados para superar essas dificuldades. Fábio, por exemplo, afirma ter reduzido o consumo de bebida alcoólica após perceber prejuízos nas suas relações: “Eu tava prejudicando eu e meus filhos também, e ela”.

Além do consumo de bebidas, o ciúme, principalmente dos próprios maridos, foi identificado como um defeito que desencadeia brigas: “Ela sentia ciúme de mim e eu dela, entendeu? (...) uns momentos a gente estava bem, em outros a gente brigava por pouca coisa.” (Mauro).

Uma família instável financeira e afetivamente, segundo os entrevistados, parece indicar a dificuldade ou incapacidade do homem em criar e manter uma família, o que contraria preceitos tradicionais que exigem do homem a responsabilização pela manutenção da estrutura familiar. Assim, os participantes descrevem as dificuldades familiares e enfatizam o interesse em procurar melhoras nessas relações: se não tiver jeito de não ter [prover a família], eu corro atrás #nessa #parte aí eu sou, eu #quero enquanto eu não consigo. Eu, quando não consigo realizar #coisas que eu #tenho #certeza que é pra minha família, eu fico desintento, eu fico agoniado. (UCE – Alceste); “... estou tentando ser um bom marido. Não tenho tido relacionamento extraconjugal mais, não tenho chegado tarde em casa. (...) procuro não chegar embriagado”. (Arnaldo); “(...). [preciso] dar mais presença, né, ficar mais em casa. (...) Depois eu estou num barzinho bebendo e os filhos lá... passear com eles era melhor” (Fábio).

Esse discurso, que mostra a preocupação dos participantes em se inserir na família por meio de cuidados e envolvimento afetivo, parece resultar tanto das demandas específicas das esposas quanto de reivindicações sociais relativamente novas, que requisitam um “novo homem” – não só provedor, mas também pai/ marido afetuoso e participativo.

Algumas passagens indicam o uso de estratégias que visam evitar conflitos e desentendimentos (sair da situação, identificação de fatores estressores, considerações sobre término de relacionamento): A #partir do momento em que eu me #sentir #incomodado, eu agora vou sair de casa, ou vou me separar. Não #quero mais nenhum #tipo de #discussão, de briga, principalmente por causa das crianças. (UCE – Alceste); “... nesses dias eu não bebo, eu não fumo no banheiro, porque (...) se o pau quebrar, quebra feio. (...) Hoje a gente já acostumou, quando está desse jeito eu ‘vazo’ fora.” (Carlos, sobre tensão pré-menstrual da esposa).

Além das descrições que indicam a procura por adaptações que eliminem/reduzam os atritos conjugais, verifica-se nessa classe a reprodução das cobranças sociais sobre o homem-pai e marido que deve ser capaz não apenas de constituir uma família como também de mantê-la estável financeira e emocionalmente. Assim, identificar problemas e controlar situações passíveis de gerar confrontos físicos e/ou verbais são, para esses homens, obrigações a serem cumpridas para que se mantenham como chefes de família. A responsabilidade por algumas das dificuldades conjugais é assumida por eles: “Eu acho, eu mesmo é que estou errado.” (Fábio). Os participantes também assumem parte da responsabilidade sobre as agressões e brigas com a esposa, ainda que minimizada pelo consumo de bebida alcoólica, pelo ciúme descontrolado e pela culpabilização da esposa.

É importante ressaltar que Arnaldo, Fábio e Carlos, os três entrevistados que se destacam nessa classe, participavam das reuniões de grupo do Núcleo de Atendimento, juntamente com suas esposas, o que pode ter possibilitado a reestruturação do conteúdo de suas falas por meio de avaliações de seus comportamentos com relação à parceira e à família. Em sua entrevista, Arnaldo declarou estar seguro de suas decisões sobre seu relacionamento e que se sente beneficiado pela ajuda que está recebendo das pessoas do Núcleo: “eu acho que a justiça está é fazendo um benefício, pra mim e pra ela. O fato de ela ser obrigada a vir, isso é muito importante, não adianta o homem vir sozinho”.

Classe 4: DINÂMICA FAMILIAR.
A quarta classe representa 22,39% das UCEs analisadas pelo Alceste, compondo com as classes 2 e 3 o segundo eixo temático identificado pelo software. Aqui se encontra o conteúdo referente às funções domésticas do homem, principalmente como pai, e da mulher, como mãe e à organização do casal para o cuidado com os filhos, o que implica na atenção para a manutenção do lar e de sua harmonia. Assim, o provimento da casa é responsabilidade do marido enquanto os cuidados com a mesma (manter a casa limpa e arrumada) são deveres da esposa: É mais ou menos isso #os #direitos dela, que ela tem sobre isso, é eu #proporcionar isso a ela, pra ela #proporcionar aquilo pra #família. Porque na verdade ela é a dona do #lar, ela é a dona #da #família (UCE – Alceste).

A divisão das tarefas se estabelece em uma dimensão de trocas em que, tendo o marido cumprido suas funções de provedor, a mulher pode e deve, então, cumprir o seu papel de dona de casa. Interessante notar que a UCE destacada acima indica a importância dos cuidados femininos com o lar, e, ao mesmo tempo, restringe o espaço de autonomia da mulher a esse ambiente ao transformá-la em dona da família. Já o homem tem seu contato familiar reduzido para que possa cumprir seus deveres de chefe da família. As UCEs subseqüentes ilustram como os entrevistados compreendem as atividades maternas, sendo ressaltadas as dimensões relativas aos cuidados com os filhos (alimentação, higiene, diálogo e educação) e com a casa (limpeza, organização): porque é um #dever que ela tem de #cuidar #da #casa, de #manter a #casa #limpa, de #manter #as coisas #arrumadas, #as #crianças. (...) dar uma boa #educação para #os #filhos. (UCE – Alceste); “[direitos] como pai ou marido é eu chegar e minha casa estar limpa, (...) toda arrumada. Aí, se não estiver, aí está caracterizado que ela não é uma boa esposa” (Arnaldo).

A mulher é mãe, esposa e dona de casa. É ela quem deve “manter a casa em ordem” para o marido que chega do trabalho e para os filhos, que precisam de um bom ambiente para se desenvolver. Ao discorrer sobre o primeiro trabalho de sua esposa, Fábio reconhece o benefício do salário da esposa para o provimento da casa, mas não deixa de indicar um aspecto negativo para os filhos: a ausência da mãe: “ela trabalha, né e ajuda na assistência também. (...) a mãe quando fica fora os filhos fica sentido”.

No relato de Arnaldo notamos o descontentamento com o emprego da esposa: “está tumultuando tudo dentro de casa (...), as crianças estão sozinhas, não tem quem faz comida. Então, essas coisas tudo é um direito (..) de pai e marido, de ela estar cuidando dos filhos”.

Os relatos de Arnaldo explicitam sua posição de provedor e chefe da família que, segundo ele, possui o direito de exigir que a esposa se responsabilize pelas tarefas domésticas. Este conteúdo está presente nas entrevistas de todos os participantes, tanto quando eles se referem às funções de marido como às de pai. As funções de pai implicam em ser provedor, ser responsável pelo suporte afetivo dos filhos e também por sua educação: (...) eu acredito que um bom #pai (...) tem que #manter o #lar, #manter #os #filhos, e, de todos #os aspectos, aspectos culturais, #dar acesso a eles a esporte, #educação, cultura (UCE – Alceste).

Carlos descreveu o bom marido da seguinte forma: “é ter um bom emprego, não deixar a mulher trabalhar fora, entendeu, cuidar da nossa família (...)”. Salientamos que “não deixar a mulher trabalhar fora”, está fortemente relacionado à auto-suficiência financeira da família proporcionada pelo bom emprego do marido.

Diferentemente de Fábio, que descreve o emprego de Fabiana como uma “ajuda na assistência” da casa, as falas de Carlos ilustram a dinâmica de um casal em que o salário da esposa não é um complemento, mas o principal rendimento da família. O entrevistado fala sobre seu desconforto com uma situação que acredita não ser a ideal: “a minha obrigação eu sei que é manter a casa, é cuidar da minha família. Mas aqui eu e ela somos braço e unha, quando eu tenho, eu tenho, quando eu não tenho, ela tem”. Embora as esposas de todos os entrevistados trabalhassem, Carlos foi o único a ressaltar a importância da renda proporcionada pelo trabalho de sua parceira.

Sobre o exercício da paternidade, os entrevistados afirmaram que cumpriram parte de suas obrigações por terem sido bons provedores, mas reconheceram que ainda há pontos em que poderiam melhorar, principalmente no que diz respeito ao afeto e à atenção despendidos aos filhos: #Pai, é bom mesmo, não sou um #ótimo. Se tivesse mais freqüência de sair mais com meus #filhos. #Falta é #dar #carinho pra eles. Graças a Deus, eu comecei a trabalhar cedo. Lutando, comprei uma #casinha. (UCE - Alceste).

Nenhum dos entrevistados se qualificou como um bom marido e todos informaram fazer esforços para se tornar um, embora ainda enfrentem dificuldades para isso. O cumprimento das tarefas de manutenção da casa e cuidados com a família foram os principais aspectos indicados pelos participantes em suas auto-avaliações. Além disso, foram também ressaltados aspectos afetivos (como contato e diálogo com a família): “acho que um marido médio. Assim, eu sempre arquei com as responsabilidades de casa. (...) às vezes, as brigas ocorrem, né, não tem como” (Mauro); “eu mudando, eu vou ser um ótimo marido. (...) eu tenho meus defeitos. (...), eu não tenho tanta presença na família” (Fábio); “eu fui um mau marido. Estou tentando ser um bom marido, mas (...) depende dela também.” (Arnaldo).

Os entrevistados avaliaram positivamente suas parceiras, baseando-se principalmente no desempenho das esposas nas tarefas domésticas e no envolvimento que têm com os filhos: “... não tem melhor. Ela acorda cedo, o café tá pronto, se eu tenho que sair cedo ela faz a marmitinha pra mim, (...), cuida, não agüenta ver nada sujo (...) se todas fossem assim, ai de mim se não fosse ela.” (Carlos); “ela é boa mãe, porque ela fica falando umas coisas para os filhos. Ela apóia muito” (Fábio); “Eu considero ela uma excelente mãe.” (Arnaldo).

 

Discussão

A análise dos dados revelou que nos relatos dos entrevistados predominam as concepções tradicionais de gênero culturalmente fixadas, base para a definição das funções domésticas que permitem aos entrevistados organizarem suas expectativas de relacionamentos amorosos e familiares. De um lado, temos o homem, macho, viril, provedor e cuidador da família e de sua moral; do outro, temos a mulher idealizada pelos homens: dedicada ao lar, ao marido e aos filhos, carinhosa, sentimental, submissa. A dicotomia identificada também aparece em diversos estudos, como os realizados por Giffin (1994) e Couto et al. (2007). Essa configuração das funções domésticas parece não comportar exceções, as quais, quando surgem, são interpretadas como disfunções a serem consertadas pelo homem da casa.

Analisando os motivos apresentados pelos homens para as discussões e brigas, verificamos que atitudes como gritar com o marido, cobrar mudança de comportamento, embelezar-se e trabalhar fora de casa contrariam suas concepções sobre boa esposa e mãe, cujas atividades seriam restritas ao cuidado familiar e doméstico. Ainda, devemos atentar para o fato de que se tais atitudes são compreendidas como fora dos padrões de feminilidade, elas também tendem a representar uma ameaça ao masculino, uma vez que a definição de masculino e feminino se dá dialeticamente (GIFFIN, 2002 e 2005; DESOUZA, BALDWIN, DA ROSA, 2000). Se tanto os homens como as mulheres são (ou podem ser) provedores e públicos, as questões para os homens tradicionais são: como se relacionar com essa mulher que foge aos padrões? Ou ainda, como colocar essa mulher novamente em seu lugar, tentando preservar assim, o espaço masculino?

Os dados aqui analisados revelam que a violência tem sido utilizada como meio de controlar as mulheres, visando a manutenção da masculinidade hegemônica - posta em perigo - e a conseqüente preservação dos espaços tradicionais do homem e da mulher, tal como já foi discutido por Kimmel (2002), Connell e Messerschimidt (2005) e Wood (2004). O uso da força parece ser a primeira, quando não a única, resposta encontrada por alguns homens para lidar com mudanças para as quais não foram preparados.

No conteúdo analisado identificamos os principais temas encontrados por Wood (2004) em seu estudo com agressores conjugais. Nas entrevistas que realizou a autora identificou três categorias principais: a) Justificativas – controle da esposa, desrespeito pelo parceiro e provocação pela esposa e aceitação da agressão por parte da companheira; b) Dissociação – minimização das agressões e negação do perfil de agressor abusivo; e c) Remorso – arrependimento pela agressão à esposa. Categorias que, de acordo com Cavanagh, Dobash, Dobash e Lewis (2001), aparecem também nos trabalhos de Goffman (1971 apud Cavanagh et al., 2001): negação, culpabilização, minimização e diminuição da responsabilidade.

Cortez e Souza (2008) afirmaram que a violência é utilizada como meio de reafirmar a masculinidade do parceiro perante sua companheira por meio de seu assujeitamento físico, moral e/ou sexual. Desse modo, devemos considerar que, pelo menos em parte, isto se deve à fraca inserção dos homens nas discussões acerca das mudanças nas estruturas de gênero e suas repercussões nos papéis masculino/feminino e nos relacionamentos afetivos. Assim, verifica-se que as mudanças produzidas pelas mulheres afetam diretamente os homens, os quais, a nosso ver, ainda estão numa posição marginal nas discussões sobre gênero.

Com base nas informações obtidas no presente estudo e também na revisão da literatura, acreditamos ser necessária a discussão e implementação de estratégias que promovam a igualdade de gênero, pensando, de fato, em homens, mulheres e nas diversas possibilidades contidas no masculino e no feminino. As políticas públicas atuais que trabalham em prol da ampliação da autonomia e cuidado com as mulheres falham ao ignorar a dinâmica complementar de criação e recriação dos papéis de gênero e as reais possibilidades de adaptação masculina frente a esse processo de transformação. Um bom exemplo disso é o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM – (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2005). As ações propostas pelo plano são, evidentemente, merecedoras de reconhecimento visto que pretendem a inclusão social das mulheres. Porém, verifica-se que, ao mesmo tempo em que defende a igualdade entre os gêneros, o PNPM desconsidera que tais transformações implicam também em mudanças no cotidiano masculino e, portanto, que é necessário incluir os homens nesses processos. Evidência de que os homens estão fora do PNPM é o fato de o texto fazer apenas sete referências ao homem, ao passo que menções à mulher (mulher, mulheres, feminino(a), brasileiras) ocorrem mais de setenta vezes. Além disso, as referências ao homem aparecem, como descreveu Lyra (1998) sobre a posição masculina nas discussões iniciais do feminismo, como contraponto4.

Assim como Gomes e Freire (2008), entendemos ser relevante a implementação de políticas públicas que acolham homens e mulheres em propostas interventivas que trabalhem questões como a construção das identidades de gênero masculinas e femininas. Devemos considerar que apesar da permanência de diversos padrões tradicionais de gênero, as mudanças observadas no comportamento feminino resultam de debates e ações que ocorrem no Brasil há mais de 30 anos, o que permitiu o amadurecimento dessas questões entre as mulheres. Por outro lado, as discussões sobre o homem sensível e re-inserido no ambiente familiar são bem mais recentes, que caracteriza o que Giffin (2002) sugere como um atraso do tempo de gênero masculino quando comparado ao feminino.

Acreditamos que o acesso ao discurso masculino acerca da violência conjugal nos permitiu compreender com maior clareza parte do processo de construção das relações violentas entre casais, bem como o modo como esses autores de violência avaliam e descrevem os episódios em que participaram. Por outro lado, não há possibilidade de se considerar esta questão encerrada: a complexidade do fenômeno da violência conjugal é descrita por diversos autores e não poderia deixar de ser mencionada em nosso trabalho que, além das respostas originadas, trouxe-nos novas reflexões sobre a temática.

Alguns autores, entre eles Vicente e Souza (2006), consideram que as prescrições patriarcais de masculino podem aprisionar os homens, no sentido de exigir deles uma posição constante de autoridade e superioridade. Nesse sentido, compreendemos que os homens devem ser inseridos nas discussões sobre as transformações das relações de gênero para que se sintam beneficiados, e não ameaçados, pelas transformações em curso e consigam valorizar as novas experiências de intimidade que essas alterações permitem. Como por exemplo, a inserção afetiva na família, a libertação dos estereótipos machistas e o maior contato com emoções (ARAÚJO, 2005; LEÓN, 2001; NOLASCO, 1997). Além disso, parece relevante incluir nos debates sobre violência conjugal e relacionamento amoroso questões acerca da masculinidade e feminilidade como construções que, por serem plurais, podem e devem ser re-elaboradas favorecendo a equidade de gênero.

 

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Endereço para correspondência
Mirian Béccheri Cortez
E-mail:mibecz@yahoo.com.br

Lídio de Souza
E-mail:lidio.souza@uol.com.br

Recebido em: 14/06/2009
Aprovado em: 11/07/2010
Revisado em: 21/07/2010

 

 

1 Vale ressaltar que a coleta dos dados ocorreu no 1º semestre de 2006, período anterior à promulgação da Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006.
2 Observa-se na Figura 1 a presença de radicais acrescidos do símbolo (+), o que significa que variações de uma mesma palavra foram identificadas e analisadas. No relatório gerado, há uma seção que especifica as palavras a que cada raiz identificada se refere e, entre parênteses, a freqüência na classe. Exemplos: fal+: falou(34), fala(29), falava(26), falado(14).
3 Optamos por manter o símbolo (#) utilizado pelo software para identificar, nas UCEs, as palavras mais fortemente relacionadas a cada classe.
4 Entre os contextos em que o homem é citado no PNPM apresentamos os seguintes: na página 5, "articulação de políticas que promovam a igualdade entre homens e mulheres"; "o equilíbrio de poder entre homens e mulheres" (p. 10); e "para fazer acontecer a igualdade entre mulheres e homens" (p. 21).

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