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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Criando meninos e meninas: investigação com famílias de um bairro de classe popular

 

Educative practices with boys and girls: Research with popular class families

 

 

Célia Regina Rangel NascimentoI; Zeidi Araujo TrindadeII

IDocente. Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil
IIDocente. Programa da Pós-Graduação em Psicologia Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi conhecer as práticas educativas direcionadas a meninos e meninas na família e reconhecer as representações sociais de gênero que as orientam. Participaram pais, mães e adolescentes de ambos os sexos de 44 famílias de um bairro de classe popular. Os dados foram obtidos através de entrevistas com roteiros semi-estruturados e organizados a partir do método de análise de conteúdo. As diferenças na criação de filhos e filhas apontadas pelos participantes foram agrupadas nas seguintes categorias temáticas: Menino dá mais trabalho, Menina dá mais trabalho, Preocupações diferentes, Maneiras de conversar, Não existe diferença, A casa e a rua. Verificou-se que há diferenças na educação de meninos e meninas para os participantes e que as práticas em relação aos filhos e filhas são orientadas pelas representações sociais de gênero presentes nas famílias, prevalecendo valores tradicionais sobre o que é ser homem e ser mulher.

Palavras-chave: Gênero; práticas educativas; representação social; família.


ABSTRACT

The aim of this study was to explore the educational practices for girls and boys in the family and to recognize the social representation of gender that guides these practices. The study had the participation of mothers, fathers and teenagers of both sexes of 44 families of a low income neighborhood. The data was collected through semi-structured interviews and analyzed using content analysis. Differences in the educational practices with sons and daughters identified by participants were grouped into the following thematic categories: Boys are more difficult, Girls are more difficult, Different concerns, Ways of talking, There is no difference, The house and the street. The participants revealed differences in the education of girls and boys and the results show the prevalence of the traditional social representation of gender that guides the practices with girls and boys in the families.

Keywords: Gender; socialization practices; social representation; family.


 

 

Introdução

Um dos temas investigados nos estudos sobre gênero diz respeito às práticas e valores presentes nos contextos de socialização nos quais as identidades masculina e feminina são formadas. Neste trabalho, será focalizado o ambiente familiar por ser considerado um ambiente privilegiado para se estudar as diferenças de gênero, como bem descrevem Saraceno e Naldini (2003): a família “é o lugar em que o fato de se pertencer a um sexo se torna e é experienciado como colocação social: como gênero” (p.21).

Vale destacar que a referência ao termo família, não implica aqui a consideração de que exista um modelo único ou ideal. Diferentes configurações e significados estão presentes na definição de família em função das experiências e contextos em que pode estar inserida (GOMES; PEREIRA, 2005; SARACENO; NALDINI, 2003).

Essa consideração, no entanto, não diminui o seu papel nos processos de socialização, na medida em que é o espaço onde ocorrem os primeiros relacionamentos interpessoais e as primeiras trocas emocionais. Além de ser o primeiro contexto no qual o indivíduo adquire de forma ativa, valores, crenças e comportamentos que o tornam parte da sociedade e da cultura (GRIGOROWITSCHS, 2008; PRATA; SANTOS, 2007). Entre outras coisas, a socialização introduz e mantém diferentes papéis femininos e masculinos na sociedade.

Por esse motivo estudos têm buscado compreender os vários fatores envolvidos nos processos de socialização que acontecem nesse contexto. O processo educativo na família vem sendo investigado através de diferentes enfoques. Alguns estudos buscam definir e encontrar meios objetivos de avaliar aspectos que fazem parte do processo educacional, como as metas e valores que guiam a educação na família e as estratégias parentais de controle dos filhos (BEM; WAGNER, 2006; SAMPAIO, 2007).

Termos como práticas parentais e estilos parentais estão presentes em grande parte dos estudos sobre o processo educativo familiar e abrangem as estratégias que os pais utilizam na educação de seus filhos, modelos de controle e interação utilizados pelos pais. As pesquisas sobre estilo parental foram baseadas inicialmente na formulação de Baumrind (1966 apud SAMPAIO, 2007) sobre modelos de controle parental. Posteriormente outros autores fizeram reformulações nestes modelos desenvolvendo outras propostas para verificação e mensuração do estilo parental englobando também o clima emocional em que se expressam o comportamento e a atitude dos pais (PICCININI et al., 2007; WEBER et al, 2004).

As práticas parentais também são estudadas tendo como base os conceitos de Hoffman (1975,1994 apud PICCININI et al., 2007) que procurou avaliar os tipos de estratégias educativas utilizadas pelos pais para direcionar o comportamento dos filhos. De acordo com as formulações deste autor, na estratégia indutiva os pais buscam fazer com que a criança compreenda que seus atos têm consequências para outras pessoas, possibilitando que ela compreenda as implicações de suas ações e as orientações dos pais. É uma estratégia que favorece o desenvolvimento de maior autonomia. Na estratégia coercitiva os pais utilizam seu poder sobre a criança através da força e do autoritarismo. Dessa forma, o controle do comportamento da criança se dá através das reações punitivas dos pais. Alguns estudos mostram que o uso dessas estratégias pode estar relacionado a aspectos como a idade da criança, o sexo do genitor e o nível socioeconômico da família (PACHECO, SILVEIRA, SCHINEIDER, 2008; PICCININI et al., 2007).

De acordo com levantamento de Sampaio (2007) ainda há poucos estudos sobre práticas educativas na família a partir de perspectivas que levem em conta o gênero dos filhos. Alguns estudos que consideram a importância do gênero na interação entre pais e filhos têm demonstrado que este aspecto pode interferir nas relações de apego, na forma de comunicação, nas expectativas sociais sobre papéis femininos e masculinos. Sampaio (2007) assinala também algumas contradições nos estudos brasileiros que buscam relacionar gênero com outras variáveis como estilo parental e prática parental, mostrando a necessidade de mais estudos que envolvam a variável gênero.

Baseada em perspectiva social, Szymansky (2004) chama a atenção para a necessidade de se pensar a família como um fenômeno social e histórico, e define práticas educativas como:

(...) ações contínuas e habituais realizadas pela família ao longo das trocas intersubjetivas, com o sentido de possibilitar aos membros mais jovens a construção e apropriação de saberes, práticas e hábitos sociais, trazendo, em seu interior, uma compreensão e uma proposta de ser-no-mundo com o outro (SZYMANSKY, 2004, p.12).

A partir desta definição a autora aborda, em seus estudos sobre práticas educativas, além das estratégias educativas utilizadas pelos pais, a transmissão de sentidos que ocorre na relação familiar e que fazem parte da construção da identidade do indivíduo (SZYMANSKY, 2006; 2004). Essa definição tem correspondência com a proposta desse artigo que pressupõe que no processo de socialização as representações sociais de gênero guiam as práticas educativas direcionadas a meninos e meninas.

Considera-se que as representações sociais são compreensões da realidade compartilhadas por um grupo social que dão suporte para que o indivíduo se organize subjetivamente e se comporte nas relações com os grupos de convivência (JODELET, 2001). Com esse referencial, podemos entender que através das representações sociais compartilhamos também o significado que tem ser mulher e ser homem para os grupos com os quais interagimos, como o grupo familiar.

Segundo Duveen (1994) durante o desenvolvimento da identidade de gênero “A força da categorização nas representações de gênero que circulam em volta da criança é tão forte que ela sempre vai aparecer como uma menina ou como um menino, desenvolvendo identidades sociais específicas” (p. 266).

As expectativas dos pais e familiares são direcionadas à criança que vai nascer a partir do momento em que o sexo é conhecido e orientam desde a organização do espaço físico, às atribuições de características à criança e à gestante em função do sexo do bebê (PICCININI et al., 2004; WITT, 1997). Mais tarde, direcionam a atribuição de papéis e atividades diferentes para os dois sexos, fortalecendo as diferenças entre homens e mulheres construídas socialmente (SANTI, 2000, TRINDADE, 2005).

Estudos como o de Biasoli-Alves (2000), mostram transformações nos processos de socialização da menina no Brasil, assinalando que, entre o final do século XIX e a década de 90 do século XX, houve: a ampliação da escolarização, que antes não era incentivada ou poderia ser interrompida em função do casamento, o questionamento a respeito das qualidades que eram esperadas da mulher, como submissão e delicadeza, o trânsito em espaços antes não permitidos. No entanto, apesar das indiscutíveis mudanças ocorridas nas últimas décadas, os autores que têm estudado a socialização de gênero na família consideram que, em alguns aspectos, permanece a divisão tradicional de papéis entre homens e mulheres (TRINDADE, 2005; RIDENTI, 1998).

Trindade (2005) analisa que representações sociais dos papéis masculinos e femininos conservadoras podem ser identificadas no processo educacional quando se verifica que as meninas são hoje preparadas para ter uma vida profissional ao mesmo tempo em que recaem sobre elas as expectativas de responsabilização pelos trabalhos domésticos e pelas atividades de cuidados. Enquanto os meninos continuam sendo preparados para dominar os espaços públicos sem que tenha havido grandes mudanças no sentido de prepará-los para dividir as tarefas domésticas.

Araújo e Scalon (2005) também enfatizam a assimetria na socialização, argumentando que não foi com a mesma velocidade que se transformaram “os dois eixos divisores da estrutura familiar, o de gênero e o geracional” (p.23). As relações familiares entre as gerações, antes pautadas em relações hierárquicas e de poder deram lugar, por exemplo, à valorização do diálogo entre pais e filhos. No entanto as relações de gênero no seio da família têm se revelado mais conservadoras e resistentes às mudanças, mesmo considerando que hoje as mulheres desempenham mais atividades fora do lar e muitas vezes são as principais provedoras.

Outras pesquisas mostram que os pais ainda tratam de forma diferente meninos e meninas reforçando os valores patriarcais da sociedade. Essas práticas educativas têm favorecido aos homens a busca de autonomia e realização e maior permissividade para comportamentos mais ousados e maior domínio do mundo externo; enquanto para as mulheres as expectativas são de que sejam menos agressivas, que tenham maior dependência, conformismo, submissão e comportamento voltado ao cuidado (CARTER, 2000; PETERS, 1994; SANTI, 2000).

Organizações de saúde e pesquisadores da área têm enfatizado a maior vulnerabilidade a problemas de saúde que pode surgir como resultado da socialização pautada numa formação tradicional no que diz respeito ao gênero (BAKER, 2000; KNAUTH, VÍCTORA e LEAL, 2005; TRINDADE, 2005), o que destaca a importância de se buscar conhecer melhor os fatores envolvidos na manutenção e transformação desses valores e práticas em diferentes contextos.

Pode-se dizer que o estudo intergeracional favorece o reconhecimento da transmissão bem como das possíveis transformações das representações sociais de gênero na família. Como analisam Dias e Lopes (2003) aos estudarem as representações de maternidade entre mães e filhas: “Os processos intergeracionais são centrais nas teorias de desenvolvimento e de mudanças na sociedade” e uma das questões que se destacam nos estudos que envolvem esses processos é a socialização (p.63-64).

A partir dessas considerações, nesse trabalho buscou-se, através de um estudo intergeracional, conhecer que diferenças existem nas práticas educativas direcionadas a meninos e meninas, na família, na percepção de pais, mães e adolescentes de ambos os sexos de famílias de classe popular e reconhecer com base nestas diferenças as representações sociais de gênero que as orientam.

Os dados apresentados neste artigo foram coletados para uma pesquisa mais ampla que fez parte de um trabalho de doutoramento sobre representações sociais de gênero e socialização na família.

 

Método

Foram entrevistadas 44 famílias de um bairro de classe popular de Vitória, no Espírito Santo. O critério utilizado para selecionar as famílias foi que tivessem pelo menos um adolescente do sexo feminino ou masculino morando com a família, e um adulto do sexo feminino e um adulto do sexo masculino que exercessem a função materna e paterna e que fossem referências na socialização do adolescente.

A coleta de dados foi realizada em duas etapas com o apoio da Unidade de Saúde e das agentes comunitárias do bairro, após o consentimento esclarecido assinado pelos participantes. A primeira etapa foi feita através de entrevistas individuais, com roteiro semi-estruturado, com membros das 44 famílias. Além das informações de caracterização dos participantes, o roteiro buscou investigar diferenças nos significados atribuídos a filho homem e filha mulher e nas práticas educativas voltadas para os meninos e as meninas. Na segunda etapa foram entrevistados membros de três famílias que participaram da primeira etapa. O roteiro continha questões abertas que possibilitaram explorar de forma mais detalhada a dinâmica das famílias, complementando informações sobre as relações e práticas familiares obtidas a partir do primeiro roteiro. O critério de escolha das três famílias foi baseado na facilidade de contato e acesso, de acordo com a experiência da primeira entrevista.

Na análise dos dados, as respostas das entrevistas foram organizadas em conjunto para cada grupo de participantes (mães, pais e adolescentes) e analisadas e reorganizadas por categorias temáticas que sintetizassem seu sentido predominante, de acordo com o método de análise do conteúdo sugerido por Bardin (1977). Alguns trechos das entrevistas serão apresentados para ilustrar as categorias e os participantes foram codificados com um número que identifica a família (de 1 a 44) e com as letras M para mãe, P para pai e Fo e Fa para filho e filha, respectivamente. As entrevistas com as três famílias (A, B e C), que compreenderam a segunda etapa de coleta foram reorganizadas considerando-se os seguintes temas presentes nos relatos: expectativas dos pais e mães direcionadas a filhos e filhas, a distribuição de tarefas, a percepção dos filhos e filhas sobre as diferenças de tratamento na família em função do gênero. Os resultados das análises dos três grupos - pais, mães e adolescentes - foram comparados, buscando verificar semelhanças e diferenças nas representações.

 

Resultados

Participaram 118 pessoas na primeira fase de coleta de dados: 19 meninos e 25 meninas com idades entre 12 e 16 anos, 60,4% cursando o ensino fundamental e 29,5% cursando o ensino médio; 42 mães biológicas e 2 avós; com idade entre 27 e 63 anos, a maioria (65,9%) com ensino fundamental incompleto; 23 pais biológicos, 4 padrastos e 2 avôs, com idades entre 30 e 64 anos, e 1 irmão mais velho de 20 anos; a maioria (56,7%) tendo o ensino fundamental incompleto. No decorrer do trabalho serão designados como mãe e pai todos os participantes responsáveis pelos adolescentes.

As famílias eram compostas em média por cinco membros e viviam com renda média de 2,7 salários mínimos. Embora a maioria das famílias fosse composta por pai, mãe e filhos (59,1%), participaram também famílias com configurações que incluíam a coabitação com outros familiares, como avós, tios e netos (18,2%,), e famílias reconstituídas (presença de padrasto) (13,6%). Na composição da maioria das famílias (68,3%) havia filhos de ambos os sexos.

Participaram da segunda fase de coleta de dados três famílias, nas quais mães, pais, um filho e uma filha adolescentes foram entrevistados. A idade das mães variou entre 31 e 40 anos, a dos pais entre 36 e 50 anos e a idade dos adolescentes variou entre 14 e 17 anos. Os pais e mães de duas famílias tinham ensino fundamental incompleto, em uma das famílias os genitores não frequentaram a escola. Três adolescentes estavam frequentando o ensino fundamental e três o ensino médio. Os dados obtidos na segunda fase confirmaram os da primeira fase, não foram incluídos na análise quantitativa, e serão descritos quando possibilitarem maior clareza de sentido.

 

Diferenças na criação de filhos e filhas

A maioria dos participantes considerou que educar meninos é diferente de educar meninas (63% dos pais, 61,4% das mães e 72,7% dos adolescentes). As diferenças presentes na criação de filhos e filhas apontadas pelos participantes foram agrupadas nas seguintes categorias temáticas: 1)Menino dá mais trabalho, 2)Menina dá mais trabalho, 3)Preocupações diferentes, 4)Maneiras de conversar, 5)Não existe diferença, 6)A casa e a rua.

Na categoria Menino dá mais trabalho, foram agrupadas as respostas nas quais os participantes avaliavam que, em função de características próprias e naturais, os filhos dão mais trabalho para os cuidadores e são mais difíceis para controlar (38,6% das mães; 10,0% dos pais; 13,6% dos filhos(as). Os pais mencionaram que as meninas são “mais respeitosas”. As mães disseram que os meninos são mais preguiçosos na escola e menos cuidadosos e que as meninas são mais calmas e carinhosas e, quando querem sair, pedem autorização aos pais. Tanto pais como mães consideraram que as meninas são mais companheiras, mais obedientes e mais fáceis de controlar enquanto os meninos são considerados mais teimosos: Menino é mais largado, não obedece muito os pais, acham que porque são homens podem falar mais alto (17M); Meninas são mais fáceis de cuidar do que meninos, elas respeitam mais (10P).

Essas considerações são reforçadas pela avaliação de um dos pais nas entrevistas de aprofundamento quando este diz que é mais fácil “criar menina”, porque é mais fácil ter autoridade sobre elas: "A menina (...) a gente domina mais (pai- família B)". Adolescentes de ambos os sexos disseram que meninos dão mais trabalho porque querem tudo, são mais bagunceiros, briguentos e menos obedientes, enquanto as meninas são consideradas menos difíceis porque são mais cuidadosas e educadas.

Uma porcentagem menor de mães (22,7%) e apenas um dos pais (3,3%) consideraram que são as meninas quem dão mais trabalho. As mães disseram que as meninas dão trabalho porque são mais levadas, autoritárias, rebeldes e desobedientes, dão mais preocupação na hora de sair porque não têm hora para voltar para casa. Afirmaram que é mais fácil o relacionamento com os meninos porque eles são mais calmos e carinhosos. Um dos pais disse que suas filhas contestam mais os pais que os filhos.

Em outra categoria de respostas os participantes revelaram que é diferente o tipo de preocupação que os genitores têm com filhos e filhas (34,1% das mães; 26,7% dos pais; 18,2% dos filhos(as). As maiores preocupações relacionadas às meninas referem-se às mudanças do corpo, ao despertar da sexualidade e ao risco de gravidez. As mães consideraram que as meninas despertam mais cedo para a sexualidade e que, portanto, é preciso conversar, explicar e ter mais cuidado, porque elas começam a namorar e podem engravidar. Já a sexualidade dos meninos não é problematizada: "Vem a idade que quer namorar. Com homem não se esquenta tanto" (30M).

Os pais relatam preocupação com os “aproveitadores” e com o que podem dizer da menina em função de sua sexualidade: elas podem “se perder e ficar faladas” por isso devem ser mais controladas e protegidas: "Os homens depois de crescidos se viram, não precisa se preocupar muito. Com meninas precisa mais cuidado senão se perdem" (14P).

As entrevistas de aprofundamento reforçam esses resultados. Na família B o pai afirmou que se preocupava com o relacionamento das filhas com meninos, porque achava que os homens de hoje não querem assumir uma família, e que se corre o risco de em vez de ter um, ter dois pra alimentá.

Filhos e filhas nas duas fases de entrevistas também consideraram que a principal preocupação dos familiares com a menina se refere ao despertar da sexualidade. Mencionaram que a menina deve receber mais atenção em função da menstruação, do risco de doenças, de poderem ficar “faladas” e pelo fato delas sofrerem mais as consequências se o sexo resultar em gravidez. Uma das meninas revela a preocupação e o controle dos pais com os relacionamentos e a sexualidade das meninas: meu pai falava bem assim: "Se você tiver namorando eu te mato!" (filha- família B).

Ainda sobre as preocupações diferenciadas associadas ao gênero dos filhos, em relação ao menino a principal apreensão da família é o envolvimento com drogas. Em geral pais, mães, filhos e filhas acreditam que os meninos estão potencialmente mais sujeitos a esse risco. Como afirma uma das adolescentes: "as meninas têm a preocupação que chega da barriga e os meninos as drogas" (10Fa).

Embora a preocupação com o envolvimento com drogas tenha sido mencionada para filhos e filhas, o receio maior dos pais e mães é voltado para o menino. Na família A, o filho confirmou a preocupação da mãe: "Porque como eu sou homem, ela tem medo de eu me envolver com esse negócio de drogas. Eu acho que é mais comigo mesmo".

Para alguns participantes, as diferenças na forma como os pais lidam com os meninos e as meninas da família repercutem também no momento de conversar e na divisão de responsabilidades entre os genitores, orientando as relações entre pais e filhos pela afinidade de gênero (9,1% das mães; 13,3% dos pais; 4,5% dos filhos(as). Os participantes consideram que a mãe tem mais responsabilidade e proximidade com as filhas, e o pai, com os filhos; e que os filhos e as filhas se sentem mais a vontade para conversar se essa divisão for mantida. Por isso, as dúvidas das meninas devem ser esclarecidas pela mãe, enquanto as dúvidas dos meninos ficam a encargo do pai: As meninas se abrem mais com a mãe e o menino com o pai (29Fo).

As características atribuídas aos meninos e às meninas orientam também a forma como os genitores conversam com filhos e filhas em função de a menina ser considerada mais delicada e de o menino ser considerado mais impositivo. Assim, de acordo com os participantes, com o menino é preciso que os genitores sejam mais firmes, e com a menina a conversa da mãe é de “igual para igual” e a do pai é mais branda: Menino pode corrigir mais severo, menina não pode dar uma dura (21P); Na hora de falar com homem você pode ser mais firme, tem que ter mais punho. Com mulher é de igual pra igual (22M).

A categoria Não existe diferença na educação direcionada aos meninos e às meninas apareceu para 36,7% dos pais e 38,6% das mães. Esses pais e mães atribuem as diferenças mais às características pessoais do que ao fato de o filho ser menino ou menina. Consideram que a educação para o certo e o errado é a mesma, portanto a preocupação, o trabalho e o tipo de orientação que se dá são os mesmos. Algumas mães avaliam que as transformações sociais que deram mais liberdade às mulheres também fizeram com que as meninas hoje corram os mesmos riscos que os meninos: Acho que a orientação hoje é igual. Antes a gente se preocupava com meninos com drogas e meninas com prostituição. Hoje elas estão igual aos meninos (32M).

A categoria A casa e a rua esteve presente em algum momento em todas as entrevistas, com dois sentidos de marcada contraposição. A rua como espaço de perigo e violência em oposição à casa como espaço de proteção, e as atividades que ocorrem na rua como próprias dos meninos em oposição às atividades da casa, que são próprias das meninas.

O receio de que os filhos se envolvam com drogas e de que as filhas iniciem sua vida sexual muito cedo está fortemente associado à preocupação com os perigos de ficar na rua, relatada principalmente pelos genitores, mas também mencionada pelos adolescentes. Para mães e pais do bairro onde foi feita a coleta de dados, é importante conseguir manter seus filhos e filhas dentro de casa. O receio dos riscos a que os filhos estão sujeitos na rua e a consideração de que os jovens atualmente são mais “ousados”, desobedientes e avessos aos conselhos dos pais, fazem com que avaliem a criação de filhos hoje como mais difícil do que a criação que eles tiveram.

Os pais também mencionaram o medo que têm de assassinatos e da atuação da polícia: "Não dá pra sair de casa com medo (...) É esse negocio de drogas, rapaz! De matar os outros (...). É, antigamente não tinha esse negócio não!" (pai – família A); "Minha preocupação também é a polícia, chega aí, pega um e carrega" (pai – família B).

Essas ponderações, e o fato de que as meninas são consideradas mais fáceis de controlar impõem diferenças nas práticas que envolvem a permissão e o controle para sair de casa. Entre as diferenças na criação de meninos e meninas, em todos os grupos de participantes, apareceram respostas afirmando que os meninos podem ter mais liberdade para sair de casa e namorar (11,4% das mães; 23,3% dos pais; 29,5% dos filhos(as).

Nas entrevistas de aprofundamento, essa diferença também aparece, principalmente nas falas dos adolescentes. Os meninos, embora sejam mais novos que as irmãs que foram entrevistadas, disseram que, em geral, os filhos homens (e eles) são mais livres para sair, ir às festas e namorar. As meninas confirmaram essa diferença. Nas duas fases de coleta de dados, elas reclamaram do controle diferenciado dos pais: "Meu pai criou os filhos com liberdade e com namorada. Eu não posso!" (18Fa); "Porque aqui meu irmão pode chegar de madrugada porque é hôme agora a gente tem que ter horário pra chegar em casa.... não pode ter certas amizades porque o meu pai, a minha mãe nem tanto, mas o meu pai. Pensa que só porque é mulher tem obrigações" (filha – família B).

Por outro lado, o quadro 1 descreve as atividades domésticas realizadas pelos membros das famílias, mostrando a casa como lugar mais apropriado às meninas, responsáveis pelas tarefas domésticas com maior frequência do que os meninos. A atividade em que os meninos têm uma participação mais próxima à das meninas, em termos de frequência, é a de arrumar as camas.

As participantes adolescentes reclamaram que os pais exigem mais das filhas na realização das tarefas domésticas: "São menos exigentes, tratam os meninos melhor que as meninas"; "as meninas tem que fazer tudo dentro de casa e os meninos não fazem nada" (32Fa).

Quadro 1 – Porcentagem de respostas dadas pelos participantes sobre a distribuição de atividades domésticas realizadas pelos filhos e filhas.

 

Atividades domésticas
realizadas pelos filhos e filhas

Grupo de participantes e % de respostas

 

mães

 

pais

 

Filhos(as)

 

filhas

filhos

 

filhas

filhos

 

filhas

filhos

Atividades

Trabalhar para sustentar a família

2,3

18,2

 

6,7

20,0

 

2,3

20,5

Lavar a louça

50,0

25,0

 

40,0

13,3

 

52,3

27,3

Arrumar as camas

40,9

43,2

 

50,0

36,7

 

59,1

43,2

Fazer a  comida

18,2

9,1

 

23,3

6,7

 

25,0

13,6

Pagar as contas

6,8

15,9

 

3,3

3,3

 

11,4

25,0

Varrer e limpar a casa

34,1

25,0

 

50,0

20,0

 

47,7

29,5

Organizar as comemorações da família

11,4

4,5

 

10,0

10,0

 

13,6

6,8

Fazer compras em feira e supermercado

11,4

6,8

 

6,7

3,3

 

13,6

11,4

Cuidar das crianças pequenas

18,2

4,5

 

16,7

0,0

 

27,3

6,8

Nas três famílias que participaram da entrevista de aprofundamento essa diferença também foi abordada. A divisão de tarefas domésticas é assimétrica, sendo mais direcionadas às mulheres da família. A mãe da família B enfatizou que não é preguiçosa com relação ao trabalho de casa e afirmou que suas filhas ajudam nas tarefas. Na família C a mãe explica que os meninos só ajudam quando querem, e admitiu que é diferente com a única filha. Como as atividades domésticas são consideradas responsabilidade feminina, as filhas são mais cobradas, como expressam suas afirmações: "Eu acabo fazendo mais coisas. Ele não me ajuda em nada!" (Filha - família A); "Aqui só as meninas que tem que fazer as coisas mesmo; a minha irmã que cuida da casa, cuida do almoço" (Filho - família B).

Observa-se também, no Quadro 1, que as atividades consideradas tradicionalmente como atribuições do homem, trabalhar para sustentar a família e pagar as contas, são aquelas nas quais os meninos têm participação maior do que a das meninas. De forma geral, verifica-se que a representação social de gênero tradicional, que pressupõe o homem como provedor e a mulher como cuidadora e dona de casa, orienta a distribuição das tarefas entre meninos e meninas.

 

Discussão

Apesar das mudanças ocorridas nas últimas décadas, impulsionadas pelos movimentos feministas, já consolidadas e bem demonstradas pela literatura (ARÁN, 2003; ARAÚJO, 2005), verifica-se que representações sociais de gênero tradicionais e, como decorrência, os papéis que homens e mulheres devem cumprir na família, coexistem com representações sociais que incorporam elementos gerados pelas mudanças sociais. De forma geral, ainda se espera que o homem seja o provedor da família e que a mulher disponha do seu tempo para os filhos e os cuidados com a casa, e meninas e meninos continuam sendo preparados para cumprir essas funções durante o processo de socialização (SCOTT, 2006; TRINDADE, 2005).

Vale lembrar que a pesquisa foi realizada com moradores de um bairro popular e que diversos estudos têm mostrado que nas classes populares resistem relações de gênero mais conservadoras, com expressiva adoção de modelos tradicionais que marcam o lugar que devem ocupar homens e mulheres (FONSECA, 2000; OSTERNE, 2001; SARTI, 2003).

Osterne (2001), em pesquisa com famílias de classe popular pôde observar que fatores que influenciaram as transformações das relações hierárquicas de gênero, como o aumento da participação da mulher entre a população economicamente ativa brasileira e o aumento de mulheres que assumem o principal papel de provedoras na família, não foram suficientes para diminuir a prevalência da dominação masculina e transformar os domínios casa e rua, considerados respectivamente, como feminino e masculino.

Podemos concluir nesse trabalho que as representações sociais de gênero das famílias que orientam as práticas sobre a criação de filhos e filhas estão ancoradas em concepções essencialistas, naturalizantes e conservadoras ainda presentes na sociedade e que se materializam nas experiências que fazem parte da realidade vivida pelas famílias entrevistadas.

Os resultados deste estudo mostram que, para a maioria dos participantes, as práticas educativas para meninos e meninas são diferentes e as diferenças relatadas por pais, mães e filhos(as) estão claramente orientadas pelas representações de gênero que circulam no seu meio social. As respostas dos adolescentes sugerem que pais, mães, filhos e filhas compartilham da mesma compreensão sobre diferenças na educação de meninos e meninas na família.

A maior parte das respostas indica que prevalece a representação social tradicional do que é ser homem e ser mulher e que estas representações orientam as práticas de socialização e a construção dos papéis de gênero para filhos e filhas. Verifica-se que das meninas se espera um comportamento de maior submissão à autoridade dos genitores e que, portanto, elas sejam mais fáceis de controlar que os meninos, que são considerados mais impositivos e mais livres. Essas diferenças se refletem na forma com que os cuidadores conversam com meninos e meninas, devendo ser mais firmes com eles e podendo ser mais brandos com elas.

Em diferentes culturas é possível observar que as meninas são educadas para obedecer e que dos meninos se espera força e liderança. As brincadeiras e os brinquedos das meninas ainda estão associados às tarefas consideradas das mulheres enquanto meninos ainda são estimulados a praticar esportes e a brincar com carros e armas. Dessa forma, muito cedo as crianças recebem informações carregadas de estereótipos de gênero e aprendem que os interesses e atividades de homens e mulheres devem ser diferentes (MARINOWA, 2003; WITT 1997).

A preocupação que as famílias têm com filhos e com filhas é diferente e também se relaciona às representações sociais de gênero. Com as meninas a preocupação maior é com o despertar da sexualidade, que pode trazer consequências como “má fama” e gravidez precoce. Já em relação aos meninos existe o receio do envolvimento com as drogas e com a violência.

É importante considerar que a preocupação com a gravidez da menina adolescente pelas famílias é reforçada pela realidade vivida pelas mães que participaram da pesquisa. Nas 44 famílias, 41,5% das mães foram mães adolescentes. As três mães entrevistadas na segunda etapa também foram mães adolescentes. Essas mães tiveram seu primeiro filho com idade que variou entre 14 e 19 anos.

A preocupação com a maternidade precoce para a menina e a ausência de menção à preocupação com a paternidade adolescente está relacionada à representação social de paternidade e maternidade, fortemente vinculada às representações tradicionais de gênero. A prevenção da gravidez e a preocupação com o bebê são apontadas como tarefas da menina, portanto elas devem ser protegidas, orientadas e controladas.

A apreensão principalmente com a sexualidade das meninas como um dos aspectos que diferencia a criação de meninos e meninas na família está em acordo com a análise de Macedo e Souza (1996). Avaliando um programa de prevenção, constataram a presença de representações sociais tradicionais sobre o que se espera do homem e da mulher na forma como as famílias lidam com os relacionamentos amorosos e a sexualidade dos filhos e das filhas. Em conversa com pais de adolescentes observou-se que a sexualidade das meninas era romantizada e exigia cuidados enquanto a dos meninos não era tema de reflexão, pois era percebida como uma consequência natural do comportamento de macho.

Essas representações e práticas reproduzem a idéia de que as questões reprodutivas são de responsabilidade exclusiva da mulher (CARVALHO, PIROTTA, SCHOR, 2001; PIROTTA, 2002), contribuindo para a manutenção da culpabilização da mãe adolescente e da invisibilidade do pai adolescente. A literatura mostra que, mesmo com a emergência de uma nova paternidade (BALACHO, 2004), os cuidados com o filho ainda são atribuições principalmente das mulheres. A menina é treinada para exercer esses cuidados com as crianças pequenas da família e com os cuidados com a casa, como demonstra a distribuição de tarefas entre os filhos e as filhas, explicitada na categoria A casa e a rua.

Baker (2000) em revisão bibliográfica sobre a saúde e o desenvolvimento de adolescentes do sexo masculino, alerta que durante a puberdade as meninas em geral, além de serem mais alvo de pesquisas, recebem mais informações sobre as mudanças que ocorrem em seu corpo, sobre o seu potencial reprodutivo e têm mais espaço para falar de suas dúvidas que os meninos. Essa falta de atenção com os meninos não estimula o desenvolvimento da consciência de seu potencial reprodutor e da responsabilidade em relação à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez. Além disso, estudos alertam que o posicionamento diferenciado direcionado aos meninos e às meninas em relação à sexualidade está diretamente relacionado à dificuldade de comunicação e negociação entre os parceiros na iniciação sexual e no uso de métodos preventivos (GRINBERG, 2002 e STERN et al, 2003).

Stern et al (2003), em estudo com adolescentes do sexo masculino no México, observaram que as concepções de masculinidade dos adolescentes estudados eram pautadas em modelos conservadores no qual ser homem é ser o provedor, ser forte, ser sexualmente ativo e afirmar sua heterossexualidade. Esse modelo de homem repercutia no comportamento dos jovens durante sua iniciação sexual, dificultando a comunicação com a parceira e o uso de métodos de prevenção da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis.

Embora os resultados relatados neste artigo apresentem a preocupação que as famílias têm com a sexualidade das meninas, pais e mães ainda têm dificuldade para conversar mais abertamente sobre esse assunto com os filhos e filhas. De acordo com Dias e Gomes (1999), as experiências que os próprios pais tiveram e o tipo de orientação que receberam, muitas vezes repressora, dificulta a comunicação dos genitores com os filhos e filhas em relação à sexualidade. Mesmo quando tentam oferecer um ambiente onde os filhos tenham mais informação e liberdade para conversar, muitas vezes os genitores não têm claro como devem fazer isso e sentem-se constrangidos.

Para os participantes desta pesquisa a categoria A Casa e a Rua foi a mais emblemática, espelhando tanto as representações e práticas associadas ao gênero como as condições reais de existência em um bairro periférico, convivendo com as mais diversas formas de violência, com insegurança e medo tanto dos bandidos como da polícia. A maior liberdade para estar na rua expõe os meninos ao risco da violência e do envolvimento com as drogas, uma realidade que faz parte do cotidiano dos moradores do bairro pesquisado, pois o tráfico já está instalado no local. Mesmo nesse quadro, cumprindo as prescrições das representações de gênero, os meninos podem ser mais livres, sair com amigos, voltar de madrugada, pois devem ter o domínio da rua e saber “se virar”. Já as meninas sofrem muitas restrições para sair de casa e estar na rua, pois, de acordo com os pais, devem ser protegidas do risco de serem agredidas. Essa forma de pensar é coerente com a perspectiva de que os meninos sejam futuramente os “homens da casa”, que exerçam seu papel de autoridade e sejam capazes de enfrentar as adversidades da rua e do trabalho para sustentar e proteger a família. Portanto, devem aprender a enfrentar os desafios da rua e sobreviver ao mundo fora de casa.

Em pesquisa com adolescentes de um bairro de classe popular de Natal, Rio Grande do Norte, Traveso-Yépes e Pinheiro (2005) também verificaram que a restrição à liberdade é um fator presente na adolescência principalmente para as meninas. Assim como verificado neste trabalho, as autoras analisam que essa restrição está associada a um maior controle dos pais por se preocuparem com o início da vida sexual das meninas. Os resultados mostraram ainda que uma porcentagem maior de meninos mencionou a vivência de situações de risco como um dos fatores negativos da adolescência, o que, na análise das autoras está relacionado ao fato de que eles têm mais liberdade para estar na rua do que as meninas, estando mais sujeitos a situações de vulnerabilidade.

De acordo com Baker (2000), dados de diferentes países do ocidente mostram que de fato os meninos ficam mais tempo fora de casa e na rua que as meninas, e que essa liberdade tem vantagens, como a oportunidade de adquirir conhecimentos para a vida social e laboral, e desvantagens que envolvem a exposição a riscos como o consumo de drogas. Uma das justificativas de pais e mães para argumentar que não há diferenças entre a educação de meninos e meninas, foi a preocupação que passaram a ter com uso de drogas também pelas meninas o que, de acordo com eles, em outros tempos sequer se cogitava. Baker (2000) afirma que realmente o consumo de drogas entre as meninas está aumentado, no entanto os índices de uso em vários países, inclusive no Brasil, são maiores entre os meninos, o que justifica a preocupação das famílias entrevistadas.

Informações preliminares da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (2006) sobre os homicídios em 2005 e primeiro trimestre de 2006 também justificam o receio dos pais. Os dados mostram que 41% dos homicídios registrados em Vitória estão relacionados a entorpecentes; 89% das vítimas são do sexo masculino, e 49% são jovens entre 15 e 24 anos. A área onde se situa o bairro estudado foi a quarta com maior índice de homicídios em 2005: foram registrados 25 homicídios, o que corresponde a 18 % do resultado total, e 15% das vítimas faziam parte da população jovem, entre 15 e 24 anos.

A relação entre masculinidade e violência tem sido explicada, em parte, por uma representação social de modelo masculino ainda pautado na expressão do poder do macho, da virilidade, e no enfrentamento através da força e da imposição. Modelo este que tem preocupado as organizações de saúde e os pesquisadores da área, por submeter adultos e jovens a maiores situações de risco para a vida e a saúde (BAKER, 2000; KNAUTH, VÍCTORA, LEAL, 2005; SOUZA, 2005; TRINDADE, 2005).

 

Considerações finais

Verificamos nesse trabalho que as representações sociais de gênero tradicionais ainda têm repercussão na dinâmica familiar e nas práticas educativas de socialização. Considerando que a sociedade tem uma grande expectativa em relação à função protetora e socializadora da família, Szymansky (2004) analisa a necessidade de que se forneça apoio para que a família possa cumprir a função que se espera dela. Para que isso se efetive, a autora mostra que é preciso superar a visão essencialista de família, que não considera o processo histórico e social de constituição das diferentes configurações familiares e permanece com o modelo idealizado da família nuclear. Além disso, é preciso romper com o mito de que a mãe é naturalmente apta para o cuidado e educação dos filhos. Essas concepções dificultam a busca e o oferecimento de ajuda para realização do processo educativo na família.

A análise dos dados das duas gerações mostra pontos de ruptura com modelos conservadores, mas também expressa uma preocupante continuidade nos relatos dos meninos e meninas, compartilhando com os genitores elementos de representação de gênero essencialistas e naturalizantes que podem vir a orientar suas próprias práticas parentais no futuro, mantendo a assimetria nas relações de gênero.

Com essa preocupação, ressalta-se a importância do desenvolvimento de programas que favoreçam a reflexão sobre o impacto das representações sociais de gênero nas práticas, nos relacionamentos e na dinâmica familiar como meio de dar subsídios à família durante o processo educativo de filhos e filhas. Isso implica a necessidade de se conhecer melhor a forma como as famílias atualmente se organizam e se relacionam em função do gênero e preparar profissionais que trabalham com famílias para incluir a perspectiva de gênero em suas ações.

 

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Endereço para correspondência
Célia Regina Rangel Nascimento
E-mail:celiarrn@yahoo.com.br

Zeidi A. Trindade
E-mail:zeidi.trindade@gmail.com

Submetido em: 18/10/2009
Revisto em: 10/03/2010
Aceito em: 30/05/2010

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