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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.3 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Equilibração e tomada de consciência: análise do jogo Cara a Cara

 

Equilibration and grasp of consciousness: an analysis of the game “Guess Who?”

 

 

Claudimara Chisté SantosI; Antonio Carlos OrtegaII; Sávio Silveira de QueirozIII

I Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Espírito Santo. (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil
II Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Espírito Santo. (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil
III Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Espírito Santo. (UFES). Vitória. Espírito Santo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é demonstrar teoricamente a viabilidade da utilização do jogo Cara a Cara para o estudo dos seguintes processos de desenvolvimento: equilibração e tomada de consciência, próprios do referencial piagetiano. O processo de construção do conhecimento passa, inclusive, pela interação sujeito/objeto e observáveis/coordenações, que são pares dialéticos envolvidos na adaptação do sujeito ao meio. Ao ter suas estruturas cognitivas desequilibradas, o sujeito precisa tentar compreender suas estratégias e as características do objeto. Fazendo isso, caminha para tomadas de consciências mais centrais, até o ponto em que consegue resolver a questão e, por algum tempo, manter suas estruturas equilibradas. O jogo Cara a Cara, conforme demonstrado ao longo desta discussão, se apresenta como um instrumento adequado para o entendimento de processos de construção do conhecimento, na medida em que permite a observação e o relato verbal acerca do que o sujeito compreende de si e do jogo.

Palavras-chave: equilibração; tomada de consciência, jogo.


ABSTRACT

The goal of this study is to demonstrate theoretically the utilization viability of the game “Guess Who?” for the study of the following development processes: equilibration and grasp of consciousness, particular of the piagetian referential. The knowledge construction process passes, besides, by the interaction subject/object and observable/coordinations, which are dialectic pairs involved in the subject adaptation to the environment. By having unbalanced cognitive structures, the subject must try to comprehend his/her strategies and the characteristics of the object. By doing so, he walks to more central grasps of consciousness to the point in which he/she can solve the issue and for some time, maintain their structure balanced. The game “Guess Who?”, as demonstrated throughout this discussion is presented as an appropriate tool for understanding processes of knowledge construction, in that it enables the observation and verbal report about what the subject understands of himself/herself and the game.

Keywords: equilibration; grasp of consciousness; Game.


 

 

Introdução

A utilização de jogos de regras tem sido uma alternativa metodológica para estudos em várias áreas do conhecimento e, mesmo dentro da Psicologia, em várias linhas teóricas. Se o foco for a pesquisa com referencial piagetiano no Brasil, é certo que há uma crescente utilização desse instrumento para tais fins (SANTOS, 2006). Segundo essa autora, é possível observar que as décadas de 80 e 90 do século passado somam 15 trabalhos, enquanto apenas no período de 2000 a 2006 foram encontradas 30 produções. Esses resultados indicam uma tendência de aumento e valorização do jogo de regras como instrumento e objeto de pesquisa.

Em revisão realizada por Ribeiro e Rossetti (2009), que objetivavam identificar a produção brasileira de trabalhos com jogos de regra a partir do referencial piagetiano, observa-se que 91,8% das pesquisas se referiram a estudos empíricos, com ênfase nos aspectos do funcionamento cognitivo.

O jogo de regras, além de um recurso lúdico com possibilidade criativa, precisa ser estudado epistemologicamente, quando se trata de objetivos além do lazer. Sistematizações teóricas são necessárias para tornar consistente o uso desses instrumentos.

O jogo Cara a Cara pode ser útil em pesquisas que pretendem descrever os processos de equilibração das estruturas cognitivas de um jogador. A partir da análise de jogadas efetuadas na versão comercial desse jogo, a que utiliza faces de humanos, discutiremos a teoria da equilibração e o processo de tomada de consciência com base no referencial piagetiano, o que constitui o objetivo deste estudo.

 

Jogo Cara a Cara

Na revisão da literatura, foram encontradas várias versões do jogo. Uma delas é a versão clássica, denominada Jogo das Boas Perguntas, utilizado por Piaget (1996), que consiste em apresentar vinte imagens de animais, de quatro categorias diferentes (mamíferos, pássaros, artrópodes e moluscos), dispostas em quatro colunas sem nenhuma ordem. Ambos, experimentador e sujeito, ficam com as mesmas imagens, e cabe à criança fazer perguntas (no máximo quatro ou seis) para tentar descobrir o animal. A limitação do número de perguntas é para que o sujeito, de fato, busque escolher as melhores perguntas, e não apenas enumerar os animais.

Segundo Santos (2006), outras variações do jogo que mantêm o mesmo sistema lógico são encontradas nos seguintes estudos: Rossetti (1996), com uma versão chamada Arca de Noé; Magalhães (1999), com o Cara a Cara; Ribeiro (2005), com o Jogo das Boas Perguntas; Dell’Aglli e Brenelli (2007), com a versão Descubra o Animal.

O jogo Cara a Cara a ser utilizado no presente estudo é uma versão comercial atualizada da Grow com rostos de personagens de várias idades e com características físicas diferenciadas, que podem ter classificações as mais variadas (com ou sem óculos, com ou sem cabelo, homem ou mulher, com ou sem chapéu, velho ou novo), mas que obedecem à mesma lógica do jogo utilizado por Piaget. Há no jogo dois tabuleiros com 24 dispositivos que contêm uma carta cada um. O jogador deve fazer ao adversário perguntas a que este só poderá responder ser “sim” ou “não”. À medida que o jogador faz boas perguntas, ele consegue abaixar um número maior de cartas. Pode ser jogado de duas formas: com um tabuleiro apenas, e o adversário fica com a carta respondendo às perguntas; essa é a forma mais simples. Também pode ser jogado com dois tabuleiros, e os jogadores ao mesmo tempo abaixam suas cartas, fazem boas perguntas e também respondem às perguntas do adversário. Essa versão exige mais atenção dos jogadores.

Os estudos encontrados que utilizaram o Cara a Cara ou versões similares tiveram como participantes crianças. Foram realizadas investigações com doze crianças e adolescentes entre 10 e 15 anos (ROSSETTI, 1996), 24 crianças entre 8 e 13 anos (MAGALHÃES, 1999), seis crianças entre 8 e 12 anos (RIBEIRO, 2005), 40 crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos (DELL’AGLI; BRENELLI, 2007).

Os objetivos das pesquisas encontradas foram variados: (1) verificar a eficácia da técnica da inversão de papéis (ROSSETTI, 1996); (2) conhecer como as crianças interagem com o jogo Cara a Cara (MAGALHÃES, 1999); (3) analisar o funcionamento cognitivo de crianças com queixas de aprendizagem (RIBEIRO, 2005); (4) investigar a possibilidade de o jogo ser introduzido no diagnóstico psicopedagógico, mais especificamente ao avaliar a construção da ideia de classificação (DELL´AGLI; BRENELLI, 2007). É importante observar que somente no último trabalho o próprio jogo, considerado como instrumento, foi objeto de estudo. Nos demais estudos os jogos foram utilizados como instrumento de pesquisa para coletar dados.

Os aspectos teóricos privilegiados em cada um desses estudos foram por sua vez: (1) as formas elementares da dialética e a relação entre o possível e o necessário (ROSSETTI, 1996); (2) as formas elementares da dialética, a relação entre o possível e o necessário e a lógica das significações (MAGALHÃES, 1999); (3) todos os aspectos citados nos itens 1 e 2, além da gênese das estruturas lógicas elementares (RIBEIRO, 2005); (4) a noção de classificação através das formas elementares da dialética (DELL´AGLI; BRENELLI, 2007).

Nosso estudo pretende analisar aspectos teóricos e metodológicos da teoria da equilibração, em relação às possibilidades que o jogo Cara a Cara fornece para intervenção e avaliação.

 

A Teoria da Equilibração

Antes de analisar o jogo Cara a Cara por meio da teoria da equilibração, é preciso delimitá-la. Por ocasião da comemoração dos 80 anos de Piaget, foi lançado um livro que buscava retomar de maneira criativa o que consideravam o problema central da obra de Piaget – como se desenvolve o pensamento científico (INHELDER; GARCIA; VONÈCHE, 1976/1978). Tal debate se desenvolveu acerca do que consideraram “[...] a obra central entre todas as obras de Piaget” (p. 7), ou seja, a equilibração das estruturas cognitivas.

Para Piaget, é preciso buscar entender o desenvolvimento na ação própria do sujeito e sua interação com o objeto, sendo os processos de assimilação e acomodação conceitos fundamentais dessa interação, entendida por meio da teoria da equilibração.

A assimilação é “[...] a incorporação de um elemento exterior (objeto, acontecimento, etc.) em um esquema sensório-motor ou conceitual do sujeito” (PIAGET, 1975/1976, p. 13). Esse esquema não chega a ser traduzido em novidade para o sujeito. Ele poderia, teoricamente, observar o mundo à sua volta apenas assimilando, sem modificar em nada sua forma de pensar o ambiente que o rodeia. Já no processo de acomodação, encontra-se “[...] a necessidade em que se acha a assimilação de levar em conta as particularidades próprias dos elementos a assimilar” (PIAGET, 1975/1976, p. 14). A acomodação dos esquemas das ações do sujeito, de acordo com a necessidade imposta pelo objeto (meio), permite a transformação dos esquemas do sujeito, ou seja, promove-lhe desenvolvimento. A importância de se estudar a teoria da equilibração se deve ao fato de que, segundo ele, “o desequilíbrio é uma das fontes de progresso no desenvolvimento” (PIAGET, 1975/1976, p. 19). O desequilíbrio não acontece o tempo todo, há momentos de equilibração. Entretanto, na maioria das vezes, a necessidade de se adaptar ao mundo, ou até mesmo de transformá-lo, faz com que a estrutura fique em desequilíbrio, e velhos esquemas precisem ser transformados. Piaget (1975/1976, p. 12) descreve assim o processo de equilibração:

(A x A’) ? B; (B x B’) ? C; . . . (Z x Z’) ? A, etc.
Em que:
A = esquemas do sujeito
A’ = elementos do meio (objetos externos)

Depois de cada seta tem-se o resultado temporário da ação (que pode ser uma assimilação ou acomodação). A expressão etc. refere-se ao fato de que o processo é contínuo e que acontece por toda a vida, mesmo depois que o sujeito já chegou ao estádio formal, visto que ele pode fazer regulações de natureza qualitativamente melhor. Assim, um indivíduo continua aprendendo, mesmo que já tenha chegado ao operatório formal, uma vez que o processo de conhecimento é infinito no tocante aos aspectos funcionais. Ao ser estimulado a realizar tarefas diferentes do cotidiano, ele pode continuar se desenvolvendo.

A equilibração e as re-equilibrações dos esquemas de ação do sujeito são realizadas através de correções chamadas regulações, que ocorrem ao longo de toda a vida. A regulação acontece quando, na relação entre o sujeito e o objeto, o sujeito é modificado, corrigido ou reforçado. Elas são reações a perturbações, ou seja, aos obstáculos, para que a assimilação aconteça. É preciso deixar claro que nem toda perturbação acarreta uma regulação, mas toda regulação é causada por uma perturbação. A equilibração é, portanto, o produto da regulação.

Essas regulações acarretam escolhas mais ou menos intencionais e, de certa forma, participam na determinação da tomada de consciência. A tomada de consciência “[...] consiste em elaborar, não a consciência considerada como um todo, mas seus diferentes níveis enquanto sistemas mais ou menos integrados” (PIAGET, 1974/1977, p. 9). Tanto o conceito de equilibração quanto o de tomada de consciência implicam também uma dimensão funcional das condutas, por necessitarem de descrição dos mecanismos de regulação, coordenação e antecipação das ações.

De acordo com a teoria da equilibração, nos estádios iniciais do desenvolvimento, os desequilíbrios são muito mais frequentes por causa das estratégias utilizadas, e não por causa do conteúdo das soluções a encontrar, que se tornam mais complexas com o passar dos anos.

Macedo (2009) aponta que observáveis e coordenações são duas palavras-chave no processo de equilibração, e observáveis “[...] são o que a experiência permite notar por uma leitura imediata dos fatos dados” (PIAGET, 1974/1977, p. 62). Os observáveis não são a coisa em si, mas o que o sujeito acredita estar observando. Por isso observação é diferente de observáveis. Por exemplo: ao ser questionado sobre o motivo de ter ganho uma partida, um jogador pode responder que o adversário errou, que deu sorte, ou que usou uma estratégia que não tem relação com o sistema lógico do jogo. Esses são seus observáveis, ou seja, o que ele conseguiu entender da situação colocada.

Macedo (2009) analisa o conceito de equilibração no ambiente do jogo de regras buscando entender as ações de um aluno, professor ou profissional no ato de jogar. O objeto (A’, citado no exemplo anterior) refere-se ao jogo, às regras e aos objetivos, e esse objeto é ativado funcionalmente pelas ações do jogador (A). Segundo o autor, para Piaget, a equilibração é a questão central do processo de desenvolvimento e envolve dois desafios:

“[...] um é analisar, com a profundidade requerida, modos de interação entre sujeito e objeto do conhecimento. O outro é demonstrar como, a partir dessas formas de interação, resultam transformações que cedo ou tarde modificarão as estruturas (do sujeito e do objeto) que possibilitaram tais interações” (Macedo, 2009).

Para Macedo (2009a), as interações referem-se justamente às conservações e transformações que acontecem no sujeito (A), decorrentes das trocas com elementos do exterior e interior. Apoiado na obra de Piaget, ele coloca três modelos de interação:

(1) Modelo Inicial, em que descreve as possibilidades de interação sujeito-objeto no estádio sensório-motor. Nessa interação inicial, os observáveis (OS) referem-se tanto à herança biológica do sujeito, aos esquemas inatos, quanto à herança cultural, advinda do convívio social. Macedo (2009) propõe que esse modelo inicial seja utilizado para analisar um jogador que está ainda aprendendo o jogo, e os esquemas inatos, nesse modelo, seriam substituídos pelo conhecimento prévio das regras e objetivo do jogo. Os aspectos afetivos também estão presentes nesse momento, na “dor” ou “prazer” de vencer os obstáculos colocados pelo aprendizado do jogo e pela possibilidade de vencê-lo. Os elementos para a interação (jogador-jogo) já estão presentes, uma vez que já é possível encontrar “[...] uma forma (estruturas cognitivas e energia, ou aspectos afetivos que mobilizam e sustentam o jogar) e os conteúdos (o que sentimos, fazemos, observamos, experimentamos) gerados pela própria experiência” (MACEDO, 2009, p. 45).

(2) Modelo IIA, a partir do qual são analisadas as interações entre os observáveis do
sujeito e os observáveis do objeto, ou seja, além da função OS, é incluída a função SO, relativa às interações entre as coordenações do sujeito e do objeto, como se observa a seguir, na Figura 1:

 

Segundo Macedo (2009), os observáveis são fundamentais na teoria de equilibração, uma vez que

“[...] conhecer é aprender a observar o que ocorre no plano da experiência (...) observar, nesse sentido, é mais do que um registro perceptivo (apenas ver, escutar, tocar, cheirar, saborear), pois depende (favorecendo ou prejudicando) também do que o sujeito compreende ou pensa sobre isso. Esses observáveis em crianças pequenas, por exemplo, correspondem àquilo que expressam como afetos (dor, alegria, gosto) ou sentimentos (sucesso ou fracasso) e as ações que desencadeiam. A novidade da proposta de Piaget é valorizar o fator cognitivo como parte integrante e não redutível aos aspectos perceptivos ou afetivos” (p. 47).

O autor coloca que cabe ao pesquisador, inclusive, criar métodos de investigação que melhorem cada vez mais seus próprios observáveis. Assim, é necessário que o profissional que trabalha com jogos os conheça e os pratique, o que também é influenciado pelos interesses do próprio experimentador.

(3) Modelo Geral, que é referente à interação entre sujeito e objeto, esse, claro, mais evoluído que os dois anteriores.

Ao analisar a relação entre o jogo de regras e a teoria da equilibração, Macedo (2009) deixa claro que os observáveis do nível seguinte resultam de observáveis e coordenações do nível anterior.

Como se pode observar, a teoria da equilibração permite diversos recortes, com aplicabilidades próprias. Na presente discussão serão retomados dois conceitos que são fundamentais para entender a equilibração: os observáveis e as coordenações. Assim, observáveis são o que [...] o sujeito crê notar e não apenas aquilo que pode ser notado (PIAGET, 1974/1977, p. 62). Um observável no jogo Cara a Cara, por exemplo, pode dizer respeito ao fato de haver muitos rostos diferentes no jogo, ou de vários desses rostos terem óculos, enquanto outros não os têm. Não podemos chamar comentários desse tipo de “observação”, porque não se trata de simples descrição perceptiva. Alguns esquemas de assimilação tiveram que ser acionados para que o jogador conseguisse chegar a essas conclusões. Por exemplo, ele precisou ter aprendido anteriormente a quantificar, a classificar e a comparar. Sem isso, seriam apenas vários “rostos”, sem nenhum atributo. E como esse jogador conseguiu adquirir tais esquemas de assimilação?

Em algum momento anterior de seu desenvolvimento, ele se viu diante de situações para ele inusitadas, desequilibrou-se e precisou adaptar-se ao meio, construindo esses esquemas por meio de coordenações. Falaremos mais adiante sobre as coordenações, mas, por enquanto, é preciso deixar claro que “[...] o observável de um objeto depende de suas coordenações” (MACEDO, 2009, p. 48). O observável de um jogador acerca dos objetivos, do material e das jogadas do adversário depende de coordenações anteriores, que capacitam esse jogador para uma interpretação do que a percepção permite que seja captado. Da mesma forma que não se pode conceber o desenvolvimento sem interação sujeito-objeto, não se pode conceber equilibração sem interação observáveis-coordenação.

Imagine a seguinte situação-problema exposta na Figura 2 (os nomes dos personagens são as cartas levantadas no tabuleiro):

 

Nessa situação, o que seriam observáveis e coordenações possíveis de serem realizadas? O termo “possível” aqui expresso tem a intenção de deixar claro que esses exemplos são fictícios e que podem variar de sujeito para sujeito.

Os observáveis poderiam ser as características de cada um dos rostos, uma vez que vários esquemas de assimilação são necessários para tal atividade: é preciso identificar características individuais, classificando-as de acordo com algum critério (cor de cabelo, olhos ou pele; presença de objetos, como óculos, chapéu e brincos). Sem esses esquemas de assimilação, ou melhor, sem esses observáveis, não é possível fazer inferências em relação ao jogo. Inferências são suposições, que podem ser explícitas ou implícitas, que o sujeito considera ou utiliza como se lhe fossem impostas. São suposições, que podem estar corretas ou incorretas1. No exemplo colocado, o jogador deve abaixar todos os rostos que não têm chapéu, mas ele só chega a essa conclusão se construir observáveis e coordenações suficientes.

Os observáveis, assim, permitem que o jogador faça inferências e formule boas perguntas na tentativa de abaixar o maior número de cartas de seu tabuleiro. Essas inferências já são da ordem das coordenações, visto que é preciso coordenar vários esquemas de assimilação e escolher inteligentemente uma boa ou a melhor pergunta. O que seria escolher de forma inteligente uma boa ou a melhor pergunta? É pautar-se em inferências não enganosas e não se basear em observação errônea. Por exemplo, quando o sujeito não se lembra de todas as perguntas feitas anteriormente, ou se distrai e não percebe características em comum entre os rostos estampados nas cartas, ele tem maior probabilidade de errar.

Os observáveis parecem ser a base necessária para a construção de coordenações inovadoras que, por sua vez, permitirão a construção de novas estruturas e o desenvolvimento do sujeito. Não podemos esquecer, entretanto, que, para que os observáveis aconteçam, coordenações anteriores são necessárias, o que coloca novamente na teoria piagetiana o desenvolvimento como um processo dialético entre sujeito e objeto.

O modelo IIA de interação utilizado por Piaget (1974/1977) pode auxiliar a demonstrar como a equilibração pode atuar nos esquemas que permitem a interação jogador-Cara a Cara. Para essa discussão teórica foi feita uma adaptação, como apresentado na Figura 3:

 

Como se pode observar, o modelo impõe inter-relação de todas as partes (jogador/jogo; observáveis/coordenações). Retomando essa interação sujeito/objeto, Macedo (2009) pontua que a primeira menção de Piaget à questão da equilibração ocorreu quando trabalhou o conceito de Tomada de Consciência, que, como outros tantos aspectos abordados por ele, ressalta o papel da interação sujeito/objeto no desenvolvimento humano. A seguir caracterizaremos o processo de tomada de consciência, a partir de situações concretas no jogo Cara a Cara.

 

O Processo de Tomada de Consciência

Tanto o conceito de equilibração quanto o de tomada de consciência implicam também uma dimensão funcional das condutas, por necessitarem de descrição dos mecanismos de regulação, coordenação e antecipação das ações.

Por que é importante conhecer a conceituação que o indivíduo tem sobre sua ação? Porque essa pode ser uma boa oportunidade para intervir em situações de aprendizagem e/ou disfunções. É valorizar o erro e o acerto em seu processo, e não apenas como resultado de uma ação. De acordo com Macedo (1999, p. 164), “[...] a tomada de consciência é sempre de uma ação, e isso é o que importa frisar”. Estudar o processo de tomada de consciência pode fornecer indícios para compreender os processos inferenciais presentes na relação sujeito/objeto que, muitas vezes, não são conscientes. A partir do momento em que o sujeito entende como obteve êxito ou o que o levou ao fracasso, ele pode fazer novas regulações (PIAGET, 1975/1976) e modificar sua relação com o objeto. O conceito de regulação precisa ser retomado para completar a compreensão do processo de tomada de consciência.

Imagine-se um indivíduo, em qualquer faixa etária, diante do jogo Cara a Cara. Ele pode ou não obter êxito. Independentemente do resultado, a inter-relação dele com o objeto poderá provocar desequilíbrio em suas estruturas mentais, que são compostas por esquemas. Esse jogo tem uma particularidade: por mais distraído que seja o sujeito ou por menos esquemas que ele tenha construído em relação ao que é necessário para jogar bem, ao final ele sempre compara a carta que sobrou no tabuleiro com a que está na mão do adversário. Assim, por menor que seja a compreensão do jogo, não há como disfarçar situações de êxito ou fracasso. A possibilidade do desequilíbrio fica sempre colocada, bem como a capacidade de o sujeito explicar o resultado, demonstrando a presença ou não de regulações.

Segundo Moro (2005), a tomada de consciência de esquemas pode transformá-los em um conceito. Retomando-se o exemplo do Cara a Cara, conceituar a ação poderia ser representado pelo fato de se conseguir entender quais perguntas são melhores, em quais situações, ou perceber quais perguntas poderiam ser feitas e não o foram, em caso de fracasso.

O processo de tomada de consciência, para Hernández (1998), torna possível a elaboração de níveis cada vez mais complexos de regulações e conceituação sobre a ação. Tomar consciência não significa apenas perceber um conhecimento que já estava pronto, mas perceber o que ainda não estava considerado. O processo de tomada de consciência, por si só, é responsável pela evolução do pensamento. Ele se constitui numa conduta capaz de gerar novas equilibrações.

A tomada de consciência pode acontecer sobre êxitos precoces, ou seja, é aquela situação em que o sujeito consegue atingir seu objetivo, mas não sabe explicar, necessariamente, o motivo ou os meios empregados. Com o desenvolvimento, ele começa a tomar consciência dos motivos de seu sucesso ou fracasso.

Há também a tomada de consciência sobre o êxito tardio, ou seja, aquela em que, por meio de várias tentativas e regulações, o sujeito consegue alcançar êxito, explicando os meios utilizados. Atividades complexas, como acertar a carta do Cara a Cara ou vencer uma partida de um jogo de regras com um ou mais adversários, exigem várias ações coordenadas, quer dizer, é na relação entre o fazer e o compreender que se caracteriza o processo da tomada de consciência. Segundo Piaget (1974/1978),

“Fazer é compreender em ação uma dada situação em um grau suficiente para atingir os fins propostos, e compreender é conseguir dominar, em pensamento, as mesmas situações até poder resolver os problemas por elas levantados, em relação ao porquê e ao como das ligações constatadas e, por outro lado, utilizadas na ação” (p.176).

No êxito tardio, é possível conceituar sobre as ações, antecipando seu resultado. Dessa forma, a tomada de consciência pode ser um instrumento de análise importante para alcançar o processo de construção do conhecimento, justamente por marcar a relação entre o fazer e o compreender.

Não se pode deixar de considerar uma das principais características da tomada de consciência proposta por Piaget, que se refere ao processo de conceituação consciente, a qual passa da periferia para o centro (tanto do objeto quanto do sujeito). Para ele,

“[...] a tomada de consciência parte, em cada caso, dos resultados exteriores da ação para, somente em seguida, engajar-se na análise dos meios empregados e, por fim, na direção das coordenações gerais (reciprocidade, transitividade, etc.), isto é, dos mecanismos centrais, mas, antes de tudo, inconscientes da ação” (PIAGET, 1977, p.173).

O conhecimento não é estático, mas construído numa relação dialética entre o sujeito e o objeto, e esse é também o movimento da tomada de consciência. Quanto mais consciência o sujeito tem de suas ações, dos meios que emprega para alcançar seus objetivos, mais ele caminha em relação ao conhecimento do próprio objeto e de si mesmo. Piaget (1974/1977, p.199) descreve o movimento de tomada de consciência da periferia para o centro como apresentado na Figura 4:

 

O conhecimento, explica Piaget (1974/1977, p. 198), “[...] procede a partir não do sujeito, nem do objeto, mas da interação entre os dois”. O ponto periférico, como se pode observar, está distante tanto do objeto quanto do sujeito. À medida que o conhecimento vai tendendo à centralidade, ele se aproxima tanto do sujeito quanto do objeto, e vai se tornando mais consciente. Quanto mais compreende sobre o objeto, tanto mais compreende o próprio sujeito sobre sua forma de agir/pensar. Quando está diante da resolução de um problema, por exemplo, o sujeito pode fracassar ou ter êxito. Se fracassar e já tiver esquemas para reconhecer que não teve êxito, tende a buscar respostas sobre seu fracasso, analisando tanto as características do objeto quanto os meios usados para resolver o problema.

O caminho percorrido da periferia para o centro faz parte do processo de conhecimento, e “[...] não ocorre por passagens bruscas da inconsciência à consciência, mas sim por diferentes graus de integração” (FIOROT, 2006, p. 34). Apesar de se apoiar numa terminologia freudiana, Piaget (1974/1977) refere-se, exclusivamente, ao inconsciente cognitivo, ou seja, ao desconhecimento do sujeito das razões de seu êxito ou fracasso. Tomar consciência é, portanto, aprofundar-se cada vez mais no conhecimento, concomitantemente de si e do objeto. A tomada de consciência ocorre, na interação com o objeto, quando o sujeito busca se utilizar de observáveis e coordenações para compreender melhor sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca, com o objetivo de adaptar-se.

A tomada de consciência, como se pode observar, é um instrumento de análise que permite acesso às transformações dialéticas que ocorrem simultaneamente entre o sujeito e o objeto. A análise permite identificar, em última instância, a relação entre o que o sujeito realiza (sucessos alcançados) e sua compreensão sobre o processo.

Na interação com o objeto, o sujeito caminha em direção a um desenvolvimento mais evoluído e a níveis cada vez mais complexos de conhecimento sobre si e sobre o outro, modificando também a qualidade de seus processos de equilibração. A Figura 5 procura exemplificar essa relação, sobrepondo as figuras anteriores (3 e 4), que demonstram a relação entre o processo de equilibração e o de tomada de consciência:

 

Retomando a situação-problema colocada, é possível aplicar a dinâmica da Figura 5 em uma situação prática: ao perceber o fracasso, comparando a carta que restou em seu tabuleiro com a carta na mão do adversário, o jogador pode ter tomadas de consciência (TC) de níveis variados. Ele pode dizer que o jogo “está com algum defeito”, demonstrando uma TC periférica, uma vez que essa conclusão, além de errônea, não contribui em nada para o seu desenvolvimento. Houve um desequilíbrio, mas, sem uma TC com tendência à centralidade, não há desenvolvimento.

Outro jogador, ao deparar com o mesmo resultado, pode começar a questionar suas ações: “Onde será que eu errei?” “Será que foi na hora de abaixar as cartas? Acho que estou errando na hora de abaixar as cartas...”. O desequilíbrio, nesse caso, gerou uma TC com tendência à centralidade, que exigiu novas regulações. O jogador pode, nessa fase, desistir do jogo e não mais avançar o conhecimento. Assim, ele conhecerá menos do jogo, mas também conhecerá menos de si mesmo. O conhecimento exige um percurso que rume à centralidade, tanto do objeto quanto do sujeito.

Caso esse jogador decida insistir no aprendizado do jogo, ele pode lidar com esse desequilíbrio de maneira mais eficaz, procurando entender os motivos de seus erros. A TC, nesse caso, deverá ser ainda mais central, porque ele pode perceber quais estratégias precisa implementar ou corrigir, alterando sua forma de raciocínio. Ele pode fazer isso silenciosamente, ou em interação com um colega ou um profissional que intervenha no seu aprendizado, lançando dicas ou proporcionando atividades extras ao jogo, de forma a possibilitar a construção de esquemas de assimilação necessários para jogar bem.

Pode-se perceber que o processo de construção do conhecimento passa, inclusive, pela interação sujeito/objeto e observáveis/coordenações, que são pares dialéticos envolvidos na adaptação do sujeito ao meio. Quando seus esquemas estão desequilibrados, o sujeito precisa tentar compreender suas estratégias e as características do objeto. Fazendo isso, caminha para tomadas de consciência mais centrais, até o ponto em que consegue resolver a questão, e por algum tempo seus esquemas permanecerão equilibrados.

 

Considerações Finais

Essa articulação teórica dos processos de equilibração e dos de tomada de consciência, ambos analisados em situações do jogo Cara a Cara, teve como objetivo demonstrar que um jogo de regras, além de lúdico, se presta a ser um instrumento tanto para pesquisas quanto para intervenções na área da psicologia do desenvolvimento.

Esses processos não precisam ser estudados apenas em relação aos participantes de pesquisa, ou aos alunos e pessoas atendidas em clínicas; os pesquisadores/profissionais envolvidos nesse trabalho também precisam estar cientes das necessidades de desenvolvimento próprio. Os observáveis do pesquisador/profissional influenciarão as conclusões de suas pesquisas/intervenções. Os relatórios de pesquisa e as estratégias de intervenção dependerão das coordenações, do que esse profissional será capaz de compreender ou articular. Quem utiliza jogos em práticas clínicas ou pedagógicas (o que inclui a pesquisa científica, evidentemente) precisa conhecer o sistema lógico do instrumento; deve apreender a lógica interna do participante, a partir desse mesmo sistema lógico agora conhecido; e reconhecer, enfim, que também se desenvolverá nesse processo.

O jogo Cara a Cara, conforme demonstrado ao longo desta discussão, se apresenta como um instrumento adequado para o entendimento de processos de construção do conhecimento, na medida em que permite a observação e o relato verbal acerca do que o sujeito compreende de si e do jogo. Como se vê na Figura 5, quanto mais interação houver entre o jogo e o jogador, ou seja, quanto mais prática for possibilitada, mais o jogador caminhará em direção a uma tomada de consciência mais centralizada. Ele não passa apenas a conhecer melhor o jogo: começa a conhecer melhor a si mesmo, e, nessa interação, se desenvolve cognitiva e afetivamente.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Claudimara Chisté Santos
E-mail:claudimarachiste@uol.com.br

Antonio Carlos Ortega
E-mail:acortega@terra.com.br

Sávio Silveira de Queiroz
E-mail:savioqueiroz@terra.com.br

 

 

Recebido em: 26/07/2010
Aprovado em: 09/12/2010
Revisado em: 03/12/2010

 

 

1Dados referentes à aula proferida pela Profa. Roseli Brenelli, na Unicamp, em 2008.

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