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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.3 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Eficácia adaptativa de mulheres com história de abortamento, pacientes de um Ambulatório de Reprodução

 

Adaptive efficacy of women with history of induced and spontaneous abortion in a Human Reproduction Ambulatory

 

 

Maria Geralda Viana Heleno

Docente. Universidade Metodista de São Paulo. São Paulo. São Paulo. Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo principal desta pesquisa foi investigar a eficácia adaptativa de mulheres que haviam vivenciado abortamento provocado e/ou espontâneo e frequentavam um Ambulatório de Reprodução Humana. O instrumento utilizado foi a entrevista clínica preventiva e a EDAO. Participaram do estudo dez mulheres pacientes de um ambulatório especializado em Reprodução Assistida. Os resultados deste trabalho revelaram que o abortamento teve repercussão importante no mundo interno e externo dessas mulheres. Os abortamentos provocados e espontâneos são relatados com intensa angústia, tristeza e culpa. A experiência do tratamento para engravidar, somada à experiência anterior de abortamento, intensificaram as angústias dessas mulheres. Quanto à eficácia adaptativa, duas pacientes apresentaram o diagnóstico operacionalizado de Adaptação Ineficaz Leve com bom prognóstico; quatro, com diagnóstico de Adaptação Ineficaz Moderada com prognóstico regular; e quatro apresentaram Adaptação Ineficaz Severa e o prognóstico foi reservado. Recomenda-se, em todos os casos, o encaminhamento para avaliação psicológica.

Palavras-chave: abortamento; adaptação; infertilidade.


ABSTRACT

The main objective of this research is to investigate the adaptive efficiency of women who experienced induced and spontaneous abortion and attended a Human Reproduction Ambulatory. The instrument used in this study is the clinical preventive interview - EDAO. Ten (10) women who were currently attending the Assisted Human Reproduction Ambulatory participated in the study. The results showed that the abortion has important repercussion in both internal and external world of the participating women. Both induced and spontaneous abortions were related to intense anguish, sadness and guilt. The experience with the pregnancy attempt treatment added to the prior miscarriage experience have intensified the suffering of these women. As for the adaptive efficacy, two patients were diagnosed with Mild Inefficient Adaptation operationalized with a good prognosis and four diagnosed with Moderate Inefficient Adaptation prognosis regular and four showed Severe Inefficient Adaptation and the prognosis was guarded. It is recommended, in all cases, referral for psychological evaluation. It is recommended, in all cases, referral for psychological evaluation.

Keywords: abortion; adaptation; infertility.


 

 

Introdução

O interesse em realizar esta pesquisa surgiu da experiência dos atendimentos psicológicos realizados com pacientes inférteis num ambulatório de Reprodução Humana. O objetivo desta pesquisa foi investigar a eficácia adaptativa de mulheres que vivenciaram abortamento e frequentam um ambulatório de Reprodução Humana, além de identificar as repercussões psicológicas associadas a esses abortamentos. Observou-se que as mulheres que procuravam o atendimento médico com o objetivo de solucionar o problema de dificuldade para engravidar apresentavam uma característica comum: o desejo e a frustração em relação à maternidade. Outro dado associado era que algumas haviam vivenciado situações anteriores de abortamento. Esse fato parecia ter grande importância durante o tratamento. Nos atendimentos foi possível identificar intensa angústia em relação aos abortamentos, tenham sido eles espontâneos ou provocados. Além disso, o fato de elas realizarem tratamento para engravidar, que é bastante invasivo, parecia intensificar tais angústias. Assim, entende-se que a infertilidade, aliada ao histórico de abortamentos anteriores e à necessidade de tratamento, são importantes temas para a saúde reprodutiva da mulher.

 

Infertilidade

A infertilidade é definida como a falta de concepção depois de, pelo menos, um ano de tentativas, apesar da prática de coitos regulares sem anticoncepção. A infertilidade afeta mais de 80 milhões de pessoas no mundo. Um entre dez casais experimenta infertilidade primária ou secundária. Entre 8% e 12% dos casais apresentam dificuldades para conceber em algum momento de suas vidas, fato que gera sofrimento social e psicológico. Em relação às técnicas de Reprodução Assistida a taxa de sucesso por tentativa gira em torno de 25%. Isso significa que a probabilidade de insucesso é de 75%, o que gera grande expectativa e frustração nos casais. Os pacientes que procuram os Centros de Reprodução Humana buscando uma solução para sua problemática deparam-se com novos problemas, como fracassos relacionados às falhas nas tentativas e custos financeiros altos (OMS, 2002). O diagnóstico de infertilidade, por representar uma interrupção no projeto de vida do casal, pode gerar dificuldades de relacionamento social, familiar e conjugal, nem sempre facilmente superadas. Os sentimentos mais comuns são: ansiedade, angústia, culpa, inveja, humilhação, depressão, perda da autoestima, impotência, entre outros (AVELAR et al., 2000; DOMINGUEZ, 2002; MOREIRA; MAIA; TOMAZ, 2002; PALACIOS; JADRESIC, 2000).

A respeito desses sentimentos, no contexto da psicanálise alguns autores trazem contribuições importantes. Pines (1990) considera que o fracasso por não conseguir engravidar traz sentimentos de culpa e vergonha. Vergonha por não conseguir conceber como os outros e culpa por não dar netos aos seus pais nem continuar a geração de sua família e a relação de consanguinidade. Tanto para o homem como para a mulher a capacidade de reproduzir faz parte da sua self-image. Para Langer (1996), uma mulher deseja um filho para comprovar sua própria fertilidade. Ter um filho pode significar recuperar sua própria mãe e identificar-se com ela e também realizar um desejo infantil de presentear seu pai com uma criança. Ribeiro (2004) aponta que a infertilidade representa uma ferida narcísica. O desejo de ter um filho está ligado ao desejo narcísico de imortalidade do eu. Transmitir a herança genética é uma possibilidade de aproximação da imortalidade. Os pacientes inférteis concentram seus investimentos pessoais no tratamento médico, esquecendo-se de todas as suas atividades, como se houvesse uma paralisação. Eles esperam um desfecho da infertilidade para continuar a vida. O desejo de um filho no casal infértil é intensificado pela própria experiência da infertilidade, que se agrava em alguns casos por estar associada a um histórico de abortamento anterior.

 

Abortamento

De acordo com a OMS (2002), abortamento espontâneo significa a perda espontânea de uma gravidez clínica antes de completadas 20 semanas de gestação ou se a idade gestacional for desconhecida, concepto com 500g ou menos. Cerca de 20% a 25% das mulheres que tentam engravidar experimentam, no mínimo, um abortamento espontâneo em sua vida reprodutiva. Em relação ao aborto provocado, sabe-se que a prática é considerada questão de saúde pública, principalmente, em países nos quais sua prática é ilegal, caso do Brasil. Esse fato leva algumas mulheres a adotarem procedimentos inadequados que podem gerar sequelas ou até a morte. Os estudos realizados com mulheres que provocaram aborto mostram que elas sentem culpa, arrependimento, remorso e, algumas, alívio (PERDROSA; GRACIA, 2000; PINHEIRO, 1997; ZUCKER, 1999). Os estudos realizados com mulheres que sofreram abortamento mostram que essa experiência é vivenciada com muita tristeza, dor e solidão (FREDA; DEVINE; SEMELSBERGER, 2003; BOEMER; MARIUTTI, 2003).

A literatura psicanalítica traz contribuições relevantes sobre o aborto provocado e espontâneo. Aray (1973) considera o luto do aborto provocado como patológico e afirma que as defesas maníacas surgidas o mascaram, muitas vezes, a ponto de ele ser negado. A culpa favorece o aparecimento dessas defesas. Lartigue e Vives (1994) apontam também a importância em compreender a repercussão causada pelo abortamento. Uma resposta comum é um intenso e compulsivo desejo para ter outro bebê. Pines (1990) mostra que a análise de mulheres que vivenciaram abortamento espontâneo frequentemente revela, também, tristeza, culpa e um luto não elaborado muitos anos após o evento. Para Dolto (2000) a decisão em abortar é muito significativa na vida de uma mulher. Em termos gerais, é possível afirmar que os episódios de abortamento provocado ou espontâneo e a infertilidade geram transformações na vida da mulher, acarretando alterações na qualidade de sua adaptação.

 

Adaptação

A adequação da adaptação é um conceito que avalia os modos ou a qualidade da adaptação, definida por Simon (1989, p.14) como: “conjunto de respostas de um organismo vivo, em vários momentos, a situações que a cada momento o modificam permitindo a manutenção de sua organização (por mínima que seja) compatível com a vida”. A análise do conjunto de respostas, que permite a avaliação da adequação da adaptação, torna possível avaliar o passado, presente e prognóstico. A configuração adaptativa do sujeito constitui-se de fatores internos e externos, positivos e negativos. A partir da identificação da interação desses fatores pode-se obter a classificação diagnóstica do indivíduo. Quando há a prevalência de elementos positivos temos tendência a uma adaptação eficaz. Se forem negativos, a adaptação é ineficaz. No caso de haver um equilíbrio entre fatores positivos e negativos, a adaptação tenderá a ser moderada. Simon (1989) concebe os grupos adaptativos e sua descrição clínica: Gr1 – Adaptação Eficaz – personalidade “normal”, raros traços e sintomas neuróticos ou caracterológicos; Gr2 – Ineficaz Leve – sintomas neuróticos brandos, ligeiros traços caracterológicos, algumas inibições; Gr3 – Ineficaz Moderada – alguns sintomas neuróticos, inibição moderada, alguns traços caracterológicos; Gr4 – Ineficaz Severa – sintomas neuróticos mais limitadores, inibições restritivas, rigidez de traços caracterológicos; e Gr5 – Ineficaz Grave – neuroses incapacitantes, borderlines, psicóticos não agudos, extrema rigidez caracterológica.

A noção de adaptação não é estática, e a eficácia adaptativa no decurso do tempo é sempre dinâmica. A estabilidade adaptativa pode se conservar sem alterações drásticas conforme a interação dos fatores. Ou, num dado momento, por diminuição ou acréscimo significativo no universo pessoal, o indivíduo sofre a ação de fatores geradores de crise. Após o período crítico, o indivíduo pode continuar com a antiga configuração adaptativa ou adquirir uma nova configuração. A EDAO – Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada é um instrumento que permite a avaliação da configuração adaptativa ou funcionamento global do sujeito ao considerar a qualidade das respostas em quatro setores: afetivo-relacional (A-R) compreende o conjunto de sentimentos, atitudes e ações do sujeito em relação a si mesmo e ao outro; produtividade (Pr) refere-se aos sentimentos, atitudes e ações do indivíduo relacionado ao trabalho ou atividade equivalente; sociocultural (S-C) compreende o conjunto de sentimentos, atitudes e ações do indivíduo relativos à organização social e recursos comunitários; e orgânico (Or) refere-se ao conjunto de sentimentos, atitudes e ações em relação ao próprio corpo.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa na modalidade de estudo de caso e classificada como exploratória e descritiva. Segundo Gil (1996) a pesquisa exploratória é aquela que se aproxima do problema com a proposta de clarificá-lo ou construir hipóteses e permite observar vários aspectos do fato estudado. Ela é descritiva na medida em que tem por finalidade descrever características de mulheres com dificuldades para engravidar.

Ambiente: A pesquisa foi realizada em um ambulatório de Reprodução Humana. As entrevistas foram realizadas na sala destinada aos atendimentos psicológicos.
Participantes: Participaram do estudo dez mulheres que vivenciaram abortamento espontâneo e/ou induzido e que faziam parte de um Programa de Reprodução Assistida. A seleção das participantes deu-se pelo critério de julgamento ou intencional. Segundo Rea & Parker (2000) trata-se de um modelo em que o pesquisador usa seu critério profissional em vez do acaso na seleção dos entrevistados. No estudo em questão, o critério utilizado foi o de que as participantes tivessem sofrido abortamento espontâneo ou provocado e que aguardassem por um procedimento de fertilização.

No ambulatório havia, em média, 150 atendimentos mensais, sendo, aproximadamente, 10% com histórico de abortamento, equivalente a 15 pacientes. Os dados foram coletados no primeiro semestre de 2006 durante o mês de março e optou-se por escolher as mulheres que haviam sido atendidas no mês de fevereiro pelo fato de elas ainda estarem aguardando por um procedimento de fertilização. As participantes foram selecionadas por meio dos prontuários médicos segundo o critério de histórico de abortamento provocado ou espontâneo, totalizando no mês de fevereiro 13 mulheres. Todas foram convidadas para participar da pesquisa, mas três delas recusaram.

 

Instrumento e Procedimento

O instrumento utilizado foi a Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada (EDAO), criada por Simon (1989) e que serve de base para a avaliação da eficácia adaptativa do sujeito investigado. A sua aplicação se dá pela técnica de entrevista clínica preventiva não diretiva de base psicanalítica. Essa técnica de caráter preventivo se caracteriza pelo fato de o entrevistado ser procurado pelo entrevistador, que tomará o cuidado de lidar com a angústia persecutória do paciente, nos casos em que ela ocorrer. O manejo dessa angústia é fundamental para diminuir a ansiedade do entrevistado (Simon, 1989). A EDAO apresenta um esquema referencial para o psicólogo conduzir as entrevistas. O instrumento avalia a eficácia adaptativa do entrevistado, através da investigação do funcionamento dos quatro setores do indivíduo, que são: afetivo-relacional, produtividade, orgânico e sociocultural.

Por meio dos prontuários médicos foram selecionadas mulheres com história de abortamento provocado e/ou espontâneo. A pesquisadora ligou para as pacientes. Para as que aceitaram participar foi agendada uma entrevista clínica preventiva, que teve uma hora de duração, e, conforme a necessidade, foi realizada mais de uma entrevista. Isso ocorreu em função de algumas pacientes apresentarem a necessidade de contar sua história, geralmente da infertilidade, em detalhes e com intensa emoção. Assim, não era possível em apenas uma entrevista coletar os dados necessários para a avaliação da eficácia adaptativa. O conteúdo das entrevistas compreendia os quatro setores de funcionamento do indivíduo: afetivo-relacional (A-R); produtividade (Pr); sociocultural (S-C) e orgânico (Or). A partir do material coletado nas entrevistas obteve-se o diagnóstico adaptativo operacionalizado e foi possível identificar alguns fatores que influenciavam a qualidade da adaptação.

Este estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição. O termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue às pacientes que concordaram em participar da pesquisa. Elas foram esclarecidas sobre o sigilo, sendo-lhes garantido o direito de desistir, a qualquer momento, de sua participação no estudo.

 

Resultados e Discussão

QUADRO I – Distribuição da amostra por nome, idade, número de filhos, número de abortamentos espontâneos e número de abortamentos provocados

Nome

Idade

Número de Filhos

Número de Abortamentos Espontâneos

Número de Abortamentos Provocados

Paciente 01

41

0

1

3

Paciente 02

32

0

0

1

Paciente 03

29

1

0

2

Paciente 04

40

1

0

1

Paciente 05

45

3

0

2

Paciente 06

38

0

1

0

Paciente 07

44

0

1

0

Paciente 08

30

2

1

1

Paciente 09

40

0

0

2

Paciente 10

33

0

0

3

A média de idade das pacientes foi 37,2 anos. Das dez pacientes que participaram da pesquisa, quatro tinham filhos (pacientes: 3, 4, 5 e 8). Em relação aos abortamentos, quatro sofreram abortamento espontâneo (pacientes: 1, 6, 7 e 8) e oito provocaram o abortamento (pacientes: 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9 e 10). Das quatro mulheres que sofreram aborto espontâneo, duas também haviam provocado o abortamento (pacientes: 1 e 8). Das que tiveram abortamento espontâneo, apenas uma tinha filhos (paciente 8). Das oito que provocaram o abortamento, quatro tinham filhos (pacientes: 3, 4, 5 e 8). Por último, a paciente 8 tinha dois filhos e tivera um aborto espontâneo e um provocado.

QUADRO II – Diagnóstico adaptativo das mulheres com história de abortamento

Nome

Diagnóstico Adaptativo

Grupo

Paciente 1

Adaptação Ineficaz Severa

4

Paciente 2

Adaptação Ineficaz Severa

4

Paciente 3

Adaptação Ineficaz Leve

2

Paciente 4

Adaptação Ineficaz Moderada

3

Paciente 5

Adaptação Ineficaz Severa

4

Paciente 6

Adaptação Ineficaz Leve

2

Paciente 7

Adaptação Ineficaz Moderada

3

Paciente 8

Adaptação Ineficaz Moderada

3

Paciente 9

Adaptação Ineficaz Severa

4

Paciente 10

Adaptação Ineficaz Moderada

3

O material coletado por meio da entrevista clínica preventiva e avaliado pela EDAO mostrou que duas pacientes apresentavam o diagnóstico operacionalizado de Adaptação Ineficaz Leve (sintomas neuróticos brandos, ligeiros traços caracterológicos, algumas inibições), quatro de Adaptação Ineficaz Moderada (alguns sintomas neuróticos, inibição moderada, alguns trações caracterológicos) e quatro com Adaptação Ineficaz Severa (sintomas neuróticos mais limitadores, inibições restritivas, rigidez de traços caracterológicos).

As quatro pacientes que apresentaram Adaptação Ineficaz Severa (Gr4) têm o prognóstico reservado. Isso significa que apresentam conflitos internos e externos e poucos recursos para solucioná-los. A rigidez de traços caracterológicos dificulta a melhora da eficácia adaptativa. Outras quatro pacientes foram classificadas com a Adaptação Ineficaz Moderada (Gr3), com prognóstico regular. Apresentam conflitos, mas possuem relação com o ambiente de relativa independência. As duas pacientes que apresentaram Adaptação Ineficaz Leve têm bom prognóstico, poucos conflitos e recursos para solucioná-los. Essas pacientes apresentam possibilidades para melhorar a qualidade da adaptação.

 

Relação de Fatores presentes na análise da Entrevista Clínica e sua frequência

Culpa em relação aos abortamentos

Nas entrevistas realizadas com as pacientes foi possível observar culpa em relação aos abortamentos espontâneos e/ou provocados. Das dez pacientes que participaram da pesquisa, nove relataram sentir culpa quando pensam sobre o abortamento. As pacientes que provocaram aborto sentem culpa por terem tomado essa decisão e pensam sobre a idade que o filho teria se estivesse vivo. Conseguem imaginar que, hoje, jamais teriam tomado essa decisão, até porque gostariam muito de engravidar. As quatro pacientes que provocaram aborto mantêm segredo em relação ao acontecimento. Das quatro pacientes, duas conseguiram contar para o parceiro e sentiram-se aliviadas após terem revelado esse segredo. As pacientes que sofreram abortamento espontâneo imaginam que fizeram algo, mesmo que inconscientemente, para contribuir com isso e associam a perda a um tipo de castigo.

Dificuldade no relacionamento sexual

Oito pacientes durante a entrevista relataram apresentar dificuldades no relacionamento sexual. Essas dificuldades estão relacionadas com a falta de desejo sexual da mulher e, em um caso, do homem. Três pacientes apresentavam conflitos nas questões sexuais desde o início do casamento. Observou-se em cinco casos que os problemas sexuais foram influenciados pelo tratamento para engravidar.

Medo de sofrer novos abortamentos

Nos relatos das pacientes foi possível identificar o medo de sofrer novos abortamentos espontâneos. Das oito pacientes que sofreram abortamentos espontâneos antes do tratamento, seis relataram medo de esse fato se repetir. É importante destacar que, no caso das duas pacientes que não demonstraram medo, o abortamento espontâneo não teve um significado importante em suas vidas.

Inveja de outras mulheres grávidas

Das dez mulheres entrevistadas, sete relatam inveja de outras mulheres grávidas. A maioria parece envergonhada por sentir inveja. Isso parece se intensificar quando a mulher que está grávida tem um vínculo de amizade ou familiar com a paciente. A maioria apontou a dificuldade de conviver com o fato de outras mulheres engravidarem e elas não.

Abortamento: um momento muito difícil

Oito pacientes descrevem o abortamento como um dos momentos mais difíceis de suas vidas. Relatam a experiência como muito dolorosa, triste e inesquecível.

Hospitalização: lembranças difíceis e falta de apoio médico

As lembranças da internação e da falta do apoio médico foram fatores externos negativos encontrados em muitas entrevistas. Quatros pacientes têm lembranças difíceis desse acontecimento e sentem que a equipe médica não estava preparada para atendê-las naquele momento. Em geral, o abortamento foi vivenciado como uma experiência que envolve muita dor, tristeza e culpa. Alguns estudos realizados com mulheres que vivenciaram abortamentos também mostram tais resultados (PINHEIRO, 1997; ZUKER, 1999; PEDROSA; GARCIA, 2000; BENUTE, 2002; BOEMER; MARIUTTI, 2003; BROEN et al., 2004). Entre as dez mulheres que participaram do estudo, oito consideram o abortamento, tanto o provocado quanto o espontâneo, como um dos momentos mais difíceis de suas vidas. A dificuldade para engravidar, nesse grupo, apareceu como uma experiência que envolve sentimentos de tristeza, inveja, frustração, cobrança, perda da autoestima, inferioridade e outros sentimentos ruins. Os estudos realizados com pacientes inférteis também apontam esses resultados (AVELAR et al., 2000; DOMINGUEZ, 2002; MOREIRA et al., 2002; PALACIOS; JADRESIC, 2000).

A forma com que cada paciente conseguiu lidar com a experiência dos abortamentos e também como lida com o tratamento para engravidar, atualmente, está diretamente ligada a seu mundo interno (fatores constitucionais) e externo (ambiente). O abortamento pode ser considerado um fator interno negativo que influenciou as soluções encontradas por cada paciente. As pacientes que sofreram abortamento espontâneo relataram que, após essa vivência, se sentiram muito deprimidas. É importante considerar que as mulheres que provocaram aborto o fizeram há muitos anos. Elas não se sentiam deprimidas atualmente com esse fato, mas sentiam-se culpadas e perseguidas. A angústia em relação ao tratamento para engravidar ganhava vulto quando pensavam no aborto que haviam provocado. O abortamento provocado teve a representação de um objeto perseguidor no mundo interno. O medo de sofrer novos abortamentos pode ser considerado um objeto perseguidor que interfere no tratamento e as persegue durante as tentativas para engravidar.

As quatro pacientes classificadas com Adaptação Ineficaz Severa traziam um mundo repleto de objetos aterrorizantes. Lidavam com o tratamento para engravidar de forma terrorífica e sentiam-se deprimidas. No caso delas, foi possível perceber como solucionavam as situações. A dificuldade para engravidar reativava os sentimentos de inferioridade ligados aos objetos ruins internalizados. O mundo interno das pacientes classificadas com Adaptação Ineficaz Leve era muito diferente, comparado às pacientes classificadas no Grupo 4 (Adaptação Ineficaz Severa). Nas entrevistas das pacientes com adaptação Ineficaz Leve foi possível identificar a prevalência de objetos externos e internos positivos, que influenciavam a forma com que solucionavam as situações-problema.

A intervenção psicológica foi de extrema importância para tais pacientes. Importante ressaltar que ela se deu durante as entrevistas preventivas. Essas pacientes apresentavam condições psíquicas favoráveis para ter insight e compreender seus sentimentos envolvidos com o tratamento. Elas tinham indicação de um bom prognóstico. Desse modo, entendemos que a configuração adaptativa foi de extrema importância para lidar com as angústias relacionadas com o abortamento e o tratamento. A dificuldade para engravidar e a busca de um tratamento foram sentidas pelas mulheres desta pesquisa como fatores internos e externos negativos. Essa situação iniciada no setor Orgânico encontra ressonância no setor Afetivo Relacional e se propaga pelos setores Produtividade e Sociocultural.

 

Considerações finais

A impossibilidade de engravidar ativa sentimentos depressivos, como baixa autoestima, inferioridade e tristeza. O tratamento para engravidar, por sua vez, é invasivo e com poucas chances de sucesso, fato que mobiliza sentimentos persecutórios como medo e culpa. Quando a mulher procura um Centro Especializado em Reprodução Assistida, com histórico de abortamento, deve-se considerar que ela ingressa nesse tratamento sob a ação de mais um fator negativo. No caso do abortamento espontâneo, predomina o medo de essa situação se repetir. Se o aborto foi provocado, predominam sentimentos de culpa persecutória. A experiência do tratamento para engravidar, somada à vivência anterior de abortamento, intensificaram as angústias depressivas e persecutórias. Tanto o abortamento como a infertilidade, nesse grupo de mulheres, tiveram importante repercussão na eficácia adaptativa. Este estudo trouxe alguns dados relevantes sobre a vivência emocional de mulheres que buscam tratamento para engravidar e já sofreram abortamento espontâneo ou provocado. Elas se sentem culpadas, independentemente do tipo de aborto sofrido, e temem por novas perdas. Observou-se a presença de conflitos na área da sexualidade, principalmente a falta de desejo sexual. É interessante notar o desejo de engravidar associado à falta de desejo sexual. A frustração por não engravidar, no caso dessas mulheres, intensificou os sentimentos de inveja relativos à gravidez de outras mulheres. Elas relataram, também, as dificuldades e o desamparo sofridos no momento da internação por ocasião do abortamento. A equipe de saúde especializada em Reprodução Humana precisa compreender a importância de reconhecer os fenômenos psíquicos que envolvem o tratamento. Por meio desta investigação, ressaltamos a importância de estudos aprofundados sobre o tema.

 

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Endereço para correspondência

Maria Geralda Viana Heleno
E-mail:geraldaviana@superig.com.br

 

 

Recebido em: 12/11/2009
Aprovado em: 26/08/2010
Revisado em: 22/08/2010

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