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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.1 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Variações sobre ver e não ver: dois relatos de casos

 

Variations on seeing and not seeing: two case reports

 

Variaciones en ver y no ver: reporte de dos casos

 

 

Marcia Oliveira MoraesI; Luara Fernandes França LimaII; Carolina Cardoso MansoioIII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. mmoraes@vm.uff.br
IIResidente. Programa de Saúde da Família (PSF)/Fiocruz. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. luafflima@gmail.com
IIIMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. carolinacardosomanso@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O artigo apresenta dois relatos de caso sobre deficiência visual. De um lado, analisamos a concepção de deficiência que marca a modernidade ocidental: aquela que afirma a deficiência como desvio. De outro lado, apontamos que na experiência das pessoas cegas são afirmadas outras formas de existir sem visão, longe daquelas de déficit que marcam o pensamento ocidental. A análise institucional é a ferramenta teórica que nos permite analisar as noções em tela. Nos casos relatados são apontados os momentos de crise que colocam em xeque a instituição da deficiência visual como incapacidade e que produzem novos modos de experimentar a ausência de um sentido. A concepção de “subjetividade deficiente” é colocada em análise. Concluímos indicando modos de lidar com a inclusão que apontam para a problematização da noção moderna de deficiência e que sublinham as possibilidades de uma intervenção em psicologia capaz de potencializar a produção de novas formas de viver sem ver.

Palavras-chave: Deficiência visual; Análise Institucional; Inclusão.


ABSTRACT

This paper presents two cases report referring to the subject of visual disability. On one hand, we discuss the western modernity conception of disability, that conceives it as a tragedy, as a difference in relation to a norm. On the other hand, we underline that considering the experience of blind people it is possible to affirm that there are other ways to live without vision, and this is far from the conception of disability as a deficit. Institutional Analysis is the theoretical basis that we adopt in order to discuss these concepts. In the cases reported we pointed to the crisis events which allows us to question the conception of visual disability as a deficit and which enact new ways to experience the lack of one sense. We conclude indicating that to deal with inclusion it is necessary to question the western conception of disability. We also pointed to the possibilities of a psychological intervention which is able to bring into being new ways to live without seeing.

Keywords: Visual disability; Institutional Analysis; Inclusion.


RESUMEN

El artículo presenta dos informes de casos de discapacidad visual. Por un lado, hemos analizado el concepto de discapacidad que marca la modernidad occidental: lo que dice la discapacidad como una desviación. Por otro lado, hemos señalado que en la experiencia de las personas ciegas se mantienen otras formas de existir sin visión, lejos de los de déficit que marcan el pensamiento occidental. El análisis institucional es la herramienta teórico que nos permite analizar los conceptos en discussion. En los casos reportados se señalan los momentos de crisis que puso en jaque a la institución de discapacidade visual tal como la incapacidad y que producem nuevas formas de vivir a la falta de un sentido. El concepto de "subjetividad deficiente" se encuentra en análisis. Finalizamos señalando las vías para tratar la inclusión que apuntan a la problematisation de las nociones modernas de la discapacidad y que ponen de relieve las posibilidades de intervención en psicología capaces de potenciar la producción de nuevas formas de vida sin ver.

Palabras clave: Discapacidad visual; Análisis Institucional; Inclusión.


 

 

Introdução

Este trabalho foi elaborado na interseção de duas experiências no campo da psicologia; uma, fruto de um trabalho de pesquisa-intervenção e outra, de um atendimento em psicologia clínica. A pesquisa é parte do Projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver que tem por objetivo o estudo da percepção e de questões acerca da cidadania entre pessoas com deficiência visual. O trabalho de campo é realizado através de Oficinas de Experimentação Corporal voltadas para pessoas que perderam a visão, ou estão em vias de perdê-la, e que são atendidas em uma instituição pública, referência nacional no campo da deficiência visual, situada no Rio de Janeiro. Já o atendimento clínico mencionado foi realizado no Serviço de Psicologia de uma instituição de ensino superior pública, também localizada no Rio de Janeiro. Tal atendimento baseou-se na proposta da clínica transdisciplinar (Passos e Barros, 2000) e foi realizado durante 23 meses.

O estudo do tema da cegueira tem-nos levado a compreender que a relação entre a ausência do sentido da visão e a denominação daqueles que a possuem como deficientes não é natural, e sim fruto de uma produção histórica engendrada por discursos e práticas que foram sendo construídos e dirigidos às pessoas cegas (Martins, 2006). No contemporâneo, a concepção da deficiência como um desvio ou uma anormalidade se atualiza, configurando-a como uma grande barreira na vida daqueles que se tornam cegos e de seus familiares. O território construído em torno da cegueira foi sendo produzido segundo um plano micropolítico de forças que se engendram, construindo, desse modo, a ideia de que a cegueira é por si só incapacitante e anunciadora de um destino trágico. Se mencionamos o termo micropolítica é para seguir a pista aberta por Guattari e Rolink (2005), quando afirmam que micropolítica refere-se ao cruzamento entre os diferentes modos de apreensão de uma problemática. Segundo os autores esses modos não são apenas dois: “sempre haverá uma multiplicidade, pois não existe uma subjetividade de um lado e, do outro, a realidade social material” (p. 155). No campo micropolítico observam-se conexões entre as linhas de força (molar e molecular) que se dão no socius, nas relações, no cotidiano.

Este tipo de entendimento acerca da deficiência visual, produzido através de uma articulação entre discursos e práticas, faz com que se atualize uma forma de relação com a cegueira que se torna hegemônica e que, segundo Martins (2006), enfatiza a magnitude da limitação que decorre da cegueira, obliterando, muitas vezes, os diferentes modos de existir sem ver encenados nas práticas cotidianas das pessoas com deficiência visual.

Neste trabalho refletimos sobre a íntima relação entre a institucionalização da cegueira como um déficit e a exclusão social enfrentada pelas pessoas com deficiência visual. Diante disso, temos por objetivo refletir sobre o papel da psicologia na construção de mecanismos de resistência que possam atuar na desestabilização desses lugares instituídos da cegueira.

 

Modernidade e cegueira: a instituição da deficiência

Segundo Foucault (2001) a modernidade possui como marca fundamental a emergência de formas singulares de exercício do poder. Conforme salienta o filósofo, esse exercício atua principalmente no corpo, colocando-o no lugar de objeto.

Foucault (2001) identifica duas formas distintas de configuração do poder a partir da modernidade. A primeira tem início no século XVII e diz respeito às estratégias, disciplinas e concepções que consagram o corpo como máquina, visando, desse modo, a sua utilidade e aproveitamento econômico. O autor identifica essa forma de exercício do poder como disciplinar.

A outra forma de configuração do poder é denominada por Foucault como biopoder e, segundo o autor, pode ser identificada a partir do século XVIII. Tal poder incide sobre a vida em toda sua extensão, um biopoder, sustentado por uma biopolítica (Foucault, 1984), sistema que busca saber e controlar os processos próprios da vida, como os nascimentos, óbitos, a velhice, entre outros. Essa nova tecnologia de poder vai fazer emergir novos campos e objetos de saber, principalmente a estatística, que visa estudar a proporção de óbitos e nascimentos, a fecundidade de uma população, a incidência de doenças, a existência de anomalias diversas. “Na verdade, a fulcral importância que Foucault confere ao corpo e ao conhecimento médico, não é senão manifestação da centralidade que o filósofo atribui às formas de poder e enquadramentos de normalidade que acompanham o estabelecimento dos saberes da biomedicina [...]” (Martins, 2006, p. 80).

Conforme nos mostra Foucault, a biomedicina se afirma como uma armadura cientifica sólida, criando padrões para identificar o que é saúde e o que é doença. Segundo o paradigma biomédico, o corpo é considerado uma máquina que pode ser analisada em termos de suas peças e a doença é entendida como um mau funcionamento dessas peças. Nesse contexto, o corpo passa a ser objeto das ciências naturais e é analisado prioritariamente em seu enquadramento biológico. Trata-se, portanto, de um corpo-objeto cujos saberes são definidos por algo que lhe é exterior: as verdades biomédicas. Esse corpo torna-se lugar privilegiado de procedimentos de controle, manipulação e normatização.

Foucault (2001) identifica a partir do século XVIII o desenvolvimento de um processo geral de normalização social, política e técnica, que se manifesta nos domínios da educação, da produção industrial e, como dito, também no da medicina. A partir de um modelo médico, surgido na modernidade, inicia-se um processo de crescente objetificação do corpo. Ocorre, assim, a definição de uma norma, de um tipo de corpo normal, que se opõe a qualquer corpo que possua alguma diferença, constituindo-se dessa forma a instituição deficiência. A cegueira, que já fora entendida como manifestação sobrenatural ou sinal da presença divina, passa a ser concebida como ausência do sentido da visão, que representa uma disfunção do corpo, um desvio em relação à norma, um déficit, uma deficiência.

Os valores fundados pela modernidade produzem a noção de desvio, segundo a qual é desviante tudo aquilo que foge ao padrão normal. Por essa via, a medicina passa a perseguir a supressão dos desvios do corpo pelas práticas de normalização. A noção de deficiência é construída, nesse contexto, como uma das formas de desvio que se afasta da norma.

A cegueira se atualiza, portanto, no contemporâneo, em meio às estratégias do biopoder, de controle da vida. Ainda que o corpo seja alvo do biopoder, é a vida o maior alvo dessa tecnologia. Segundo Pelbart, o poder, no contexto contemporâneo, penetrou em todas as esferas da existência e os mecanismos pelos quais ele se exerce são anônimos, esparramados, flexíveis, rizomáticos. “O poder já não se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo” (Pelbart, 2007, p. 20). Segundo esse autor, Foucault esclarece que o biopoder não visa barrar a vida e sim encarregar-se dela, intensificá-la e otimizá-la.

O biopoder passa a dirigir a vida ditando normas para o viver, agindo focado na produção de subjetividades voltadas aos padrões estabelecidos como os normais para a vida. Pelbart (2007) nos apresenta que, no contexto do biopoder, o corpo docilizado pelas instituições das sociedades disciplinares hoje é alvo de adequação às normas de controle da vida, ou seja, é um corpo que precisa se adequar às normas de saúde, longevidade, equilíbrio, assim como às normas da cultura.

Segundo Guattari & Rolnik (2005), a subjetividade vai se constituindo a partir de um processo de subjetivação, de produção subjetiva. Nesse processo ocorre o engendramento de forças das mais diversas naturezas, que vão produzir formas de estar no mundo, formas de relação com o trabalho, tipos de família e de relação com a ordem social ou com o que é diferente de nós, por exemplo. Isso não vai acontecendo apenas através das grandes estruturas de produção das relações sociais, mas no que essas estruturas se conectam com as relações cotidianas. Como apontam Guattari e Rolnik,

O CMI [Capitalismo Mundial Integrado] afirma-se em modalidades que variam de acordo com o país ou com a camada social, através de uma dupla opressão. Primeiro, pela repressão direta no plano econômico e social – o controle da produção de bens e das relações sociais através de meios de coerção material externa e sugestão de conteúdos de significação. A segunda opressão, de igual ou maior intensidade que a primeira, consiste em o CMI instalar-se na própria produção de subjetividade: uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo (Guattari e Rolnik, 2005, p. 47 e 48).

Nesse contexto, a deficiência visual marca profundamente a constituição subjetiva das pessoas cegas e com baixa visão, bem como a de suas famílias, fazendo com que ela se configure como uma tragédia, muitas vezes produzindo a despotencialização da vida dessas pessoas. Diante dessa configuração levantamos as seguintes questões: como produzir resistência a essas formas hegemônicas e paralisantes de entendimento da cegueira? De que maneira é possível desnaturalizar o lugar instituído que a deficiência visual tem ocupado no contemporâneo?

A partir da perspectiva da Análise Institucional, entendemos que nossa existência é atravessada por instituições, formando uma rede. No enfoque de Lourau, segundo Altoé, “as instituições formam a trama social que une e atravessa os indivíduos, os quais, por meio de sua práxis, mantêm ditas instituições e criam outras novas (instituintes)” (Altoé, 2004, p.68).

É importante esclarecer que instituição não se confunde com estabelecimento, mas se define por uma dinâmica sócio-histórica de produção e reprodução das relações sociais, a exemplo do casamento, da família ou da deficiência. Tal dinâmica é uma política que se dá nas práticas cotidianas e possui uma dimensão de instituído e uma instituinte. Por instituído, entende-se “a ordem estabelecida, os valores, modos de representação e de organização considerados normais” (Lourau, 1974, p. 47), fazendo parte da estrutura simbólica do grupo e dos indivíduos; por instituinte, entende-se “a contestação e a capacidade de inovação” (Lourau, 1974, p. 47), as forças de produção das formas instituídas. De acordo com Lourau (1974) é a política que tece as relações sociais, as mais banais, insignificantes, públicas ou privadas, de dia e de noite. Quando surge uma crise, estão reunidas as condições para uma análise institucional. Entendemos a crise como um tensionamento entre a dupla face instituinte/instituído da instituição, considerando que um trabalho analítico transcorre no sentido de potencializar a dinâmica instituinte.

Análise Institucional se faz numa organização, mas também na clínica psicoterápica ou numa pesquisa-intervenção. O método analítico, segundo Altoé, “baseia-se essencialmente, na hipótese de que é possível explicar e compreender uma realidade complexa decompondo-a em elementos simples” (Altoé, 2004, p. 67), acompanhando esses elementos em ação.

A fim de promover o diálogo entre a produção teórica e como a produção da deficiência incide na vida de pessoas cegas e com baixa visão, apresentamos a seguir dois relatos de caso, um deles, como dissemos, fruto de um trabalho de pesquisa-intervenção, e o outro, fruto de um trabalho de atendimento em psicologia clínica. Os dados apresentados foram colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas e de registros anotados em diários de campo durante a realização das Oficinas de Experimentação Corporal. Trata-se de um trabalho realizado em consonância com a ética da pesquisa com seres humanos. Algumas informações acerca de cada caso aqui apresentado foram alteradas de modo a manter o sigilo. Observe-se que os nomes utilizados na apresentação dos casos são fictícios.

 

Juliano e Teresinha: variações nos modos de existir sem ver

Juliano: ressignificações da deficiência para além do déficit

Juliano começou a participar das Oficinas de Experimentação Corporal. A Oficina é um espaço de trabalho corporal, pautado em experimentações lúdicas e sensibilizações do corpo. Trata-se de uma ação de pesquisa cuja inspiração é a da pesquisa intervenção, uma vez que naquele espaço a instituição da cegueira é problematizada. Desse modo, ainda que não seja proposta como uma ação clínica, a Oficina possui um viés terapêutico na medida em que ali colocamos em questão a conexão deficiência-incapacidade, tão enraizada na sociedade em que vivemos (Martins, 2006). E dessa maneira abre-se espaço para outras experiências da cegueira, para a criação de outros modos de ser na presença de uma deficiência. As 20 pessoas que participam da Oficina possuem cegueira adquirida e estão inscritas em atividades de reabilitação da instituição especializada que envolvem aulas de Orientação e Mobilidade, de Braille, entre outras.

Juliano é um dos membros desse grupo, tem pouco mais de 20 anos e foi ficando cego progressivamente desde o final de sua infância; na adolescência a cegueira foi diagnosticada como definitiva. Segundo sua mãe, “a cegueira foi uma grande tragédia. Enquanto Juliano possuía baixa visão, eu ainda conseguia aceitar, mas quando a cegueira total veio, foi o fim, foi inaceitável” (Maria, mãe de Juliano, em entrevista). O acontecimento da cegueira provocou grandes mudanças na vida de Juliano. Ele parou de estudar e sua vida passou a ser preenchida com visitas a médicos especialistas na esperança de que pudessem ajudá-lo a recuperar a visão. Tanto para Juliano quanto para sua mãe frequentar uma instituição especializada em deficiência visual era vergonhoso; era, na verdade, encarnar a deficiência visual, torná-la visível aos olhos de todas as pessoas. Nesse ponto, parece-nos que para Juliano “o vergonhoso” na deficiência visual estava, de algum modo, atrelado à concepção de deficiência como tragédia, como déficit (Martins, 2006), que se fazia presente em como ele e sua mãe vivenciavam a cegueira que o acometeu.

Conforme relato de sua mãe, a maior dificuldade dela, naquele momento, era acreditar que a cegueira de seu filho fosse definitiva. Juliano, então, passava a maior parte do tempo em casa na companhia de sua mãe e de sua irmã mais velha, cega desde a infância. Sua mãe relata que a associação entre cegueira e fracasso era para ela tão forte que tudo o que ela vivia em relação aos seus filhos era uma grande tragédia. Por conta da deficiência visual, a irmã mais velha de Juliano nunca estudou e passava boa parte do tempo em casa, sem sair para lugar algum. Juliano relata que percebeu que, com o advento da sua cegueira, sua vida parecia tomar o mesmo rumo que a vida de sua irmã. Ele comenta que sentia enorme solidão, já que seus únicos vínculos afetivos e sociais eram com a sua família. Após algum tempo vivendo nessa solidão, Juliano decide buscar uma instituição especializada em deficiência visual, a fim de ampliar seu leque de relações sociais e de aprender novas formas de viver sem ver.

Ao iniciar o trabalho na Oficina de Experimentação Corporal, Juliano mostrava-se bastante dependente de sua mãe, sendo por ela acompanhado em todas as suas atividades e sendo ela também a responsável por realizar muitas de suas tarefas de casa. Depois que passou a frequentar a instituição especializada, Juliano retomou os estudos, buscando um curso supletivo voltado para pessoas com deficiência visual. Além disso, inicia o aprendizado do Braille e começa a participar das Oficinas de Experimentação Corporal. Pouco tempo depois de iniciar tais atividades é detectada a existência de uma deficiência auditiva, que seria progressiva, caso não fosse tratada.

Em uma das Oficinas de Experimentação Corporal, Juliano, sem poder ouvir com clareza o que se passava a sua volta, diz: “Estou muito angustiado, não vou dar conta, já não consigo fazer as coisas sendo cego, imagina sendo surdo também!” (Juliano, registro do diário de campo). Essa fala foi acompanhada de uma enorme ansiedade e de grande tristeza, fazendo-nos acessar a intensidade da situação limite que Juliano vivenciava. Diante de tanta impossibilidade, parecia não restar nada. Nós, como coordenadores da Oficina, permanecemos a seu lado, acompanhando-o nesse processo de constatação e de corporificação de seu sofrimento.

Em outro momento pudemos conversar com Juliano sobre aquela experiência vivida por ele durante a Oficina e percebemos que falar sobre esse assunto ainda era uma novidade para ele. Falar do acontecimento da deficiência auditiva que se somava à deficiência visual trazia angústia, mas também a possibilidade de elaboração da situação que ele vivia. Juliano não sabia falar muito sobre a surdez, parecia nunca haver conversado abertamente sobre esse assunto. Além disso, não sabia da possibilidade do uso de um aparelho auditivo. Segundo nos informou a mãe de Juliano, o aparelho auditivo estava sendo comprado e logo estaria disponível para Juliano. A mãe nos falou também sobre o desânimo de Juliano em relação a sua vida e que achava que ele deveria “levantar a cabeça e seguir em frente” (registro do diário de campo). Parecia que a mãe não permitia que a tristeza de Juliano pudesse ser expressa.

Nos dias que se seguiram a esse acontecimento, fomos percebendo uma crescente mudança nas atitudes de Juliano. Segundo relato de sua mãe, Juliano passou a adotar atitudes diferentes diante de algumas situações a partir da aquisição do aparelho auditivo, o que também observamos. Podemos destacar a reivindicação por parte de Juliano de maior autonomia em relação a seus pais. Certo dia, ele convoca uma reunião com eles no intuito de afirmar a possibilidade de andar sozinho, devido à sua idade, mas principalmente porque agora tinha o aparelho auditivo para o auxiliar. A partir desse momento, Juliano começou a fazer planos sobre o seu futuro, sobre a sua vida. Planejava começar a trabalhar e divagava sobre qual faculdade gostaria de fazer.

O aparecimento da deficiência auditiva foi, para Juliano, o irrompimento de uma crise. A surdez somada à cegueira se configurava para ele como uma limitação total, porém, diante das mudanças provocadas pelo uso de um aparelho auditivo, operou-se uma ressignificação de sua vida. A possibilidade de ouvir parecia fazê-lo perceber a importância desse canal sensorial na comunicação e na circulação no mundo. A deficiência auditiva foi um evento que atravessou a existência de Juliano, produzindo uma desconstrução de seus territórios já estabelecidos. O acontecimento da surdez possibilitou ao jovem desestabilizar a instituição deficiência visual, recolocando o lugar da cegueira em sua vida. Longe de experimentá-la como fracasso, Juliano passou a construir outros modos de viver sem ver, reconquistando sua autonomia, redesenhando seus sonhos para o futuro e ampliando o seu leque de relações sociais e afetivas. Teresinha: ver não é apenas abrir os olhos

Teresinha buscou um serviço público de atendimento clínico em psicologia quando tinha mais de 40 anos. Possuía uma grave deficiência visual desde a infância. Quando criança enxergava pouco, mas, em decorrência da miopia, do astigmatismo e principalmente da catarata, foi perdendo a visão ao longo dos anos. Foi sempre muito tutelada pela família e especialmente pela mãe, sua principal cuidadora. A baixa visão foi para ela um grande impedimento em diversos aspectos de sua vida. Como ela mesma diz: “fui criada para ter medo, medo da rua, medo da faca, medo do fogo”. Teresinha permanecia em casa a maioria do tempo, saindo apenas acompanhada de alguém da família. Desde a adolescência Teresinha tinha desmaios e, segundo seu relato, sofria de “pânico”, o que justificava a administração de remédios psiquiátricos, situação que culmina com duas internações em um hospital psiquiátrico.

Há poucos anos, sua mãe sofreu um acidente, ficando impossibilitada de andar. Não poderia mais ajudar Teresinha a andar na rua e a fazer as tarefas de casa. Após tantos anos vivendo totalmente dependente de sua mãe, Teresinha se vê diante de uma nova realidade. Entre muitas possibilidades, sente-se convocada e, mais que isso, obrigada a cuidar de sua mãe e de si mesma. Houve uma “inversão de papéis”, como ela mesma dizia, o que foi bastante difícil. Eram estas as suas expressões: “Como assim, cuidar?”; “O que eu posso fazer?”; “Não posso fazer nada!?” (Registros dos diários dos atendimentos clínicos). Nessa ocasião Teresinha procura uma associação de cegos, onde aprendeu a usar a bengala para andar sozinha na rua, além de ter passado a ter contato com outras pessoas com deficiência visual. E segue a terapia, que fazia desde um pouco antes do acidente de sua mãe. Nesse momento de crise, Teresinha começa a questionar a imobilidade de sua vida. Ouvíamos a narrativa de Teresinha, acompanhávamos o relato de seu sofrimento de deficiente. Segue-se uma fase em que fica muito desorganizada e confusa, desencadeando outra crise e sua segunda internação psiquiátrica. Íamos às cegas, tateantes, delimitando problemas.

Teresinha diz que as palavras que a definem são “medo” e “insegurança”, e atribui isso à forma com que foi educada pela família. Hoje Teresinha acredita que toda a proteção que sua família lhe dava era uma forma de cuidado, mas também era a afirmação de sua incapacidade. Fala que todos em sua família sempre a trataram como incapaz e sente que incorporou isso em sua vida cotidiana. Ela se diz muito acomodada e fala da dificuldade de fazer tantas coisas: coisas cotidianas, por exemplo arrumar a casa, ir ao banco ou cuidar de sua mãe. Sente-se culpada por sua pretensa incapacidade e por vezes considera a si mesma como um fardo, procurando mostrar à sua família que pode fazer coisas. Ela deseja que não a desvalorizem tanto, mesmo que não haja muita expectativa em relação a ela.

Antes do acidente de sua mãe aquela parecia ser a única possibilidade para sua vida; a baixa visão e a posterior cegueira traçavam para Teresinha um destino inquestionável. Do nosso ponto de vista, quando sua “revolta” por tal imobilidade era manifestada nas crises de agressividade e agitação, nos desmaios e no pânico, ocorriam as internações e a medicalização, o que apenas provocava uma retração desses sintomas, sem que Teresinha, de fato, refletisse sobre eles. Começa a fazer terapia em busca de uma reflexão sobre o que acontecia em sua vida.

Com a doença de sua mãe, abre-se espaço para que Teresinha pense em sua própria vida e aparece a impotência que se impunha sobre ela. Outras coisas começam a aparecer também, como o questionamento a respeito do que fora sua vida até então e a possibilidade de operar a vista para voltar a ver. Ela mesma vai procurar um médico para fazer isso. A baixa visão, no caso de Teresinha, a faz se sentir no “meio do caminho”. Não é cega, mas a pouca visão que possui não é suficiente para que ela veja as pessoas e as coisas na rua, por exemplo. E isso a faz acreditar que a solução é voltar a ver. A busca por esse objetivo a faz se movimentar e experimentar outras possibilidades para si.

Teresinha se submeteu a duas cirurgias nos dois olhos. As semanas anteriores às cirurgias foram de muito medo, pois não sabia se tudo ia dar certo, se ela ia ver melhor. Depois do tempo de repouso, nas duas vezes, Teresinha chega alegre falando que tem boas novidades, está enxergando melhor. Está muito feliz de poder ver as cores e o rosto das pessoas. Porém, algumas sessões depois, Teresinha comenta que a melhora da visão não a está ajudando muito, pois ela não acredita no que vê, precisa chegar perto e tocar as coisas para percebê-las. Diz que tem tropeçado mais do que quando não enxergava. Ela começa a perceber quanto seu corpo está organizado como o de uma pessoa que não enxerga, que sua audição e seu olfato respondem muito mais rapidamente do que sua visão. Ver não é apenas abrir os olhos, mas sim uma organização corporal própria e também uma construção que se dá no campo do social.

Nesse ponto, o caso de Teresinha se aproxima daquele de Virgil, apresentado por Sacks (1995). Cego desde a mais tenra infância, aos cinquenta anos Virgil faz uma cirurgia nos olhos e recupera a visão. No entanto, o processo de voltar a ver não depende apenas de recuperar a capacidade fisiológica de ver. Nas palavras de Sacks, “sua visão podia ter sido restaurada em grande parte, mas era óbvio que o uso dos olhos, o olhar, estava longe de ser natural para ele; continuava com muitos hábitos e comportamentos de um cego” (Sacks, 1995, p. 132). A passagem de um modo de vida sem a visão, para outro, com a visão, implica para Sacks (1995) uma reorganização sensorial, um longo processo de reaprendizagem que envolve a passagem de um estilo de vida construído na apreensão do mundo pela sucessão, como é o modo peculiar de funcionamento do tato, para outro, centrado na apreensão da simultaneidade, como é o caso da visão. Esse processo pode ser tão intenso que, como sublinha Sacks, “é preciso morrer como um cego para renascer como uma pessoa que vê” (Sacks, 1995, p. 154).

A cirurgia que Teresinha fez nos olhos foi fundamental não para que ela voltasse a ver, mas, antes, para que ela pudesse se dar conta de que era possível perceber sem ver, era possível fazer uso dos demais sentidos para apreender o mundo a sua volta. Nesse ponto, parece-nos que Teresinha começa a inventar outro modo de existir com deficiência visual.

Após tantos anos de uma existência deficiente, Teresinha já não se via capaz de trabalhar, a não ser vendendo produtos de beleza, o que não gerava renda suficiente para seu sustento. A partir do momento em que afirma a “deficiência” como potência, ela passa a querer ter “os benefícios de deficiente”, como não pagar o ônibus, não entrar em fila e pleitear uma aposentadoria, o que acabou por conseguir. Temerosa de não conseguir esse último benefício, Teresinha, ao encontrar-se com o perito responsável por analisar o seu caso, relata para ele um quadro muito pior do que ela de fato vivia, já que, afinal de contas, ela não se definia mais como “deficiente”. Identificaríamos aí ganhos secundários do sintoma? Teresinha estaria extraindo uma mais-valia da sua condição visual? Não escutávamos uma resignação na fala de Teresinha; havia, sim, uma pulsação no que nos dizia, indicando que Teresinha era impulsionada para experimentações novas. Teresinha ressignificava sua condição de baixa visão, seus direitos constitucionais e suas potências perceptivas: a audição, o olfato, o tato.

 

Conclusão: Desestabilização de instituições e abertura de novas possibilidades existenciais

Diante dos relatos nos perguntamos: Será que é a cegueira por si só que impede Juliano e Teresinha de realizarem seus afazeres cotidianos, que os torna deficientes? O que faz de Juliano e Teresinha deficientes? Será que toda pessoa que tem deficiência visual se subjetiva como deficiente?

A partir dos casos narrados, podemos verificar como a construção social do papel ocupado pela visão, e consequentemente por sua falta, vem contribuindo para a produção de subjetividades deficientes. Nos dois relatos podemos verificar quanto o acontecimento da cegueira foi determinante para que os personagens desses relatos fossem se constituindo como pessoas impotentes e incapacitadas.

Tanto a cegueira de Juliano quanto a de Teresinha se institucionalizaram como uma verdadeira tragédia em suas vidas e nas de suas famílias, provocando uma certa paralisação delas em torno desse acontecimento. Juliano, além de parar de estudar, tinha uma rede de relações sociais restrita que girava em torno de sua família e dos especialistas que visitava. Teresinha manteve-se tutelada por muitos anos, acreditando ser essa a única forma de viver, já que era incapaz devido à falta da visão.

Identificamos alguns acontecimentos que produziram modificações importantes tanto na vida de Juliano como na de Teresinha, fazendo com que a instituição deficiência visual fosse questionada. A análise institucional considera que as instituições não são constituídas apenas dos objetos e das regras visíveis, mas possuem também uma dimensão inconsciente, o inconsciente institucional, que se manifesta através de um não dito, e que é ao que a análise pretende dar expressão. Essa dimensão é ativada pelos analisadores que aparecem principalmente nos momentos de crise e trazem em si uma força transformadora.

No relato de Juliano, dois acontecimentos foram importantes e tiveram o papel de analisadores. O primeiro foi a observação da vida de sua irmã, que o fez questionar a conexão entre cegueira, impossibilidade e isolamento já instituída em seu contexto familiar. O segundo analisador foi a crise de angústia vivida por ele na Oficina de Experimentação Corporal. Esse acontecimento provoca a desestabilização da relação entre surdo-cegueira e morte. A partir do evento ocorrido na Oficina dispara-se um movimento de intervenção realizado pela equipe da Oficina e abertura de possibilidades, como, por exemplo, a aquisição do aparelho auditivo, entre outras.

Esses acontecimentos, chamados pelos teóricos da análise institucional de analisadores, provocaram desestabilizações em como Juliano havia se constituído a partir do entendimento da cegueira como tragédia, incapacidade, imobilidade. O questionamento, por parte de Juliano, dessa cegueira institucionalizada se somou a um movimento instituinte provocando a ressignificação de sua cegueira e, consequentemente, de sua vida. Novas possibilidades para seu modo de estar no mundo se abrem e com elas a paralisia dá lugar ao movimento e a cegueira-tragédia passa a ser concebida dentro de uma abertura de possibilidade que convida Juliano a novas experimentações de si.

No caso de Teresinha, identificamos três importantes analisadores, que nos ajudam a pensar os pontos de inflexão do que se passa no caso. O primeiro deles é o acidente de sua mãe, que põe em análise a relação entre cegueira e incapacidade e entre cegueira e tutela. O segundo analisador é a vidência. A experiência de vidência de Teresinha, após as cirurgias, a faz pôr em análise a relação direta que fazia entre perceber e ver: é possível perceber sem ver, além da ligação entre a vidência e capacidade. O terceiro analisador é o benefício, que põe em análise a relação entre deficiência e dependência. Teresinha ganha uma pensão do governo para se tornar independente.

O trabalho clínico com Teresinha foi não só o de acolher aquela demanda de tratamento que se expressava inicialmente na forma de um sofrimento incapacitante, a subjetividade deficiente, mas também, e sobretudo, o de identificar e afirmar os analisadores como pontos de bifurcação que desviavam o curso daquela existência, o curso do tratamento. Afirmar os analisadores em ambos os casos foi uma forma de se conectar a essas forças instituintes que a crise da subjetividade deficiente fazia emergir. O entendimento da deficiência como fruto de uma construção social se configura como uma resistência ao modo contemporâneo de relação com a deficiência que estabelece verdades irrevogáveis a um corpo-objeto.

Concebemos o corpo não mais como somente fisiológico e mecânico, cujos saberes são dados pela biomedicina, mas como um corpo vivido que é fruto da experiência. Esse corpo não está dado, ele se constrói e reconstrói a partir de seus encontros com o mundo. Podemos encontrar vários estudos que afirmam o corpo como lugar de variação diante da experiência de encontro com o mundo. Nesses estudos, a diferença é colocada como potente, e não como um desvio inferiorizante (Serres, 2001; Serres, 2004; Moraes, 2008; Mol, 2002; Deleuze & Guattari, 1996; Resende, 2008).

Deleuze e Guattari, em seus trabalhos sobre a filosofia da diferença, se apropriam do conceito de corpo sem órgãos de Artaud e com isso dão visibilidade à ideia de que existe um corpo que é da experiência e que se opõe ao corpo organismo como “organização orgânica de órgãos” (Deleuze & Guattari, 1996, p.21). Comentando a noção de corpo sem órgãos, Resende afirma que “o corpo sem órgãos é o corpo da experiência, com suas próprias forças. É o corpo livre da interpretação e do juízo que nos impedem novos modos de vida e organizam os corpos [...] Sem o aprisionamento em um corpo organicamente organizado, podemos nos abrir ao fluxo, ao devir, à intensidade, à experimentação de nós mesmos [...]” (Resende, 2008, p. 68). Assim, na perspectiva de Deleuze e Guattari (1996), o corpo é afirmado como possibilidade de variação. Esses autores sublinham também a potencialidade da diferença como possibilidade de criação de novos modos de vida e de reorganização e recriação de corpos.

Outro teórico que se alinha aos estudos de Deleuze e Guattari quanto à potencialidade da diferença é Canguilhem. O autor afirma a vida como possibilidade de diferir e que, diante das variações do mundo, o ser vivente vai criando normas para estar nesse mundo. A patologia, segundo Canguilhem (2002), não reside na diferença e, sim, na incapacidade de criação de novas normas de existir. Canguilhem entende que a criação de normas é intrínseca a cada ser vivente e que, por isso, não existe um estado normal que abarque todas as possibilidades de vida. “[...] A norma de vida de um organismo é fornecida pelo próprio organismo, e está contida na sua existência” (Canguilhem, 2002, p. 232).

Tanto Teresinha como Juliano, a partir dos acontecimentos que chamamos de analisadores, são convidados a experimentar a singularidade de seus corpos, no caso a cegueira, como uma possibilidade existencial. Esses convites, que desestabilizaram seus modos instituídos de vida, proporcionaram uma abertura à experimentação de outras possibilidades de si longe da deficiência.

Questionamos esse corpo como lugar de produção de verdades normalizantes, assumindo a diferença em sua dimensão de potência, criação, e não de incapacidade. Afirmamos a possibilidade de lidar/intervir no campo da deficiência em um distanciamento da noção de déficit tornando potentes outros modos de existir sem a visão. Desse modo podemos pensar em uma intervenção em psicologia atrelada não à normatização, mas a invenção de outras formas de experiência. Considerando a intensidade com que a hegemonia da normalidade incide sobre as pessoas com deficiência, acreditamos que a efetiva inclusão dessas pessoas deve estar atrelada à desnaturalização da conexão construída historicamente entre cegueira e incapacidade, entre deficiência e desvio.

Martins (2006) utiliza o conceito de encontros mistos para propor que a desnaturalização da concepção hegemônica da cegueira no ocidente é possível quando esta se confronta com o que ele chama de perspectivas informadas na carne, ou seja, com as narrativas pessoais daqueles que não possuem o sentido da visão e que vivenciam corporalmente a experiência da cegueira (Martins, 2006, p. 158).

Segundo Martins (2006) os “encontros mistos” não são simplesmente encontros entre pessoas cegas e pessoas que veem, mas se referem ao encontro entre a cegueira e o mundo. O autor propõe que esses encontros podem provocar a desestabilização das concepções hegemônicas de cegueira, pois colocam em cena diversas formas de lidar com ela, desde aquelas que marcam a cegueira como tragédia, que aparecem em falas como “coitadinho do ceguinho”, até aquelas outras que lidam com a cegueira como um dom superior, a imagem típica do cego Tirésias, o cego que vê mais. Na confrontação com as experiências singulares de quem vive sem a visão percebe-se que a cegueira não é definida apenas por sua face triste, assustadora, limitante, mas comporta também a produção de outros modos de estar no mundo. Esses encontros não são a garantia dessa desestabilização, já que podem também atualizar tais concepções hegemônicas, mas é apenas através deles que se podem produzir outras concepções de cegueira, longe daquelas que são hegemônicas. Neste trabalho apostamos que a promoção da inclusão está intimamente ligada à desestabilização da forma hegemônica de conceber a cegueira. Entendemos que tal desestabilização se faz como por contágio, por meio da desconstrução cotidiana da relação entre cegueira e deficiência, seja no trabalho de psicoterapia, no de oficinas, seja em outros espaços cotidianos, como em um restaurante ou num ônibus.

 

Agradecimentos

Agradecemos ao professor Eduardo Passos, da Universidade Federal Fluminense, pelas preciosas observações e discussões a respeito de um dos casos apresentados neste texto. Agradecemos também à equipe do Projeto de Pesquisa Perceber sem Ver, da qual fazemos parte.

 

Referências

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Canguilhem, G. (2002) O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1996) Como Criar para si um Corpo sem Órgãos. In G. Deleuze & F. Guattari Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia (v.3). Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links ]

Foucault, M. (1984) História da Sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

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Submetido em: 29/10/2010
Revisto em: 12/02/2011
Aceito em: 23/04/2011

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