SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.63 número2Comportamento agressivo em shows musicais: analisando notícias de jornal impresso índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

"Consumo, logo existo": os sentidos do consumo na economia solidária1

 

"I consume, therefore I am": meanings of consumption in the economy of solidaritya

 

"Consumo, luego existo": los sentidos del consumo en la economía solidaria

 

 

Ana Paula GrandoI; Márcia Pit Dal MagroII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Chapecó. Santa Catarina. Brasil. anagrando@unochapeco.edu.br
IIDocente. Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Chapecó. Santa Catarina. Brasil. mapit@unochapeco.edu.br

 

 


RESUMO

O consumo, na sociedade atual, tem a função de movimentar a economia reafirmando o capitalismo enquanto modelo econômico, o que torna esse tema uma questão importante e contraditória para os empreendimentos de economia solidária. Esta pesquisa teve por objetivo compreender os sentidos atribuídos ao consumo pelos sujeitos inseridos em empreendimentos solidários urbanos de crédito, tendo em vista sua inserção no sistema tradicional de economia capitalista. Foi observado o grande desafio posto à ECOSOL de recriar, junto aos sujeitos que participam deste movimento, zonas de sentidos voltadas à solidariedade, tanto na dimensão do consumo como em outras dimensões da vida, já que grande parte das experiências vivenciadas nessa área ainda são muito limitadas na articulação entre trabalho, produção, comercialização e consumo. Mas evidencia-se o consumo como um campo que possibilita criar rupturas e resistência ao sistema econômico, mesmo para sujeitos não engajados no movimento da ECOSOL.

Palavras-chave: Psicologia histórico-cultural; Economia solidária; Sentidos do consumo.


ABSTRACT

The consumption in the current society has the function of moving the economy, reaffirming capitalism as an economy model. This results in an important and contradictory question to the solidarity economy developments. This research had the purpose of understanding what are the meanings assigned to the consumption form for the people that participate in the urban economy solidarity developments of credit, in regards to their insertion in the traditional capitalist economy. It was observed that the big challenge posed to the solidary economy of recreating, together with the people inserted in this movement, meaning zones turned to solidarity, both in dimension of consumption and other life dimensions, was that the majority that lived experiences in this area are still limited on the articulation between work, production, sales and consumption. On the other hand, it is evident that the consumption is like a space that allows the creation of little ruptures and resistances to the economic system, even for people not so engaged with the economy solidarity movement.

Keywords: Historic cultural psychology; Solidary economy; Meaning of consumption.


RESUMEN

El consumo, en la sociedad actual, tiene la función de mover la economía reafirmando el modelo económico del capitalismo. En este contexto, el tema del consumo se convierte en una cuestión importante y contradictoria en la economía solidaria. Así, esta investigación tuvo como objetivo comprender los sentidos atribuidos al consumo por personas que participan en empresas urbanas de crédito vinculadas a la economía solidaria. Hemos observado el gran desafío de la economía solidaria para crear en los participantes de este movimiento, sentidos relacionados al consumo solidario, ya que la mayoría de las experiencias en este ámbito son todavía muy limitadas en la articulación entre el trabajo, la producción, la comercialización y el consumo. Pero es evidente que el consumo en la ECOSOL también permite crear rupturas y resistencias al sistema económico, incluso para los sujetos no inseridos este movimiento.

Keywords: Psicología histórico-cultural; Economía solidaria; El sentido del consumo.


 

 

O consumo é uma das questões centrais para a estruturação e consolidação da Economia Solidária (ECOSOL), apresentando-se também como um de seus maiores desafios na atualidade. Assim, o fortalecimento dessa forma de economia passa, necessariamente, pela discussão que o consumo assume na sociedade contemporânea e as possibilidades de criação de formas de consumo mais solidárias.

As primeiras iniciativas voltadas à construção de sistemas alternativos de produção dentro do capitalismo ocorreram na forma de cooperativas de consumo, através da organização de trabalhadores para comprar insumos (alimentos, vestuários etc.), tendo em vista as dificuldades econômicas oriundas das péssimas condições de trabalho da Europa do século XIX. O objetivo máximo do cooperativismo de consumo era a organização dos trabalhadores para aquisição de mercadorias aliada à qualidade dos produtos, democracia nos processos de decisão e no desenvolvimento das atividades das cooperativas (Singer, 2002).

Com a expansão do mercado capitalista da época, a construção de novas necessidades de consumo e a criação de produtos para atender as mesmas, a produção em grande escala fazia com que os preços dos produtos das grandes indústrias fossem menores do que os preços praticados pelas cooperativas, inviabilizando o funcionamento das mesmas. Nesta perspectiva, o cooperativismo iniciou movimentos dentro da lógica de mercado capitalista e entrou na concorrência de mercado. Segundo Singer (2002), a descaracterização dos princípios cooperativistas e os altos valores cobrados aos cooperados, bem como os baixos valores das sobras divididas entre os mesmos, foram o pontapé inicial para a morte das primeiras cooperativas de consumo.

Os desafios que se colocavam às primeiras cooperativas são semelhantes aos que estas enfrentam na atualidade. Muitos desses empreendimentos encontram dificuldades para se inserir no mercado capitalista operando em uma lógica solidária, pois os princípios das duas formas econômicas são muito distintos. Assim, surge o primeiro desafio dos empreendimentos econômicos solidários: como operar uma lógica solidária dentro do sistema capitalista?

É importante destacar também que atualmente não existe um marco legal que esclareça quais são os princípios que norteiam a Economia Solidária. A Lei Orgânica da Economia Solidária encontra-se em processo de construção como Projeto de Lei, sem aprovação em nenhuma instância (Gonçalves, 2005). Os princípios norteadores desta forma de economia são construídos, então, pelos sujeitos inseridos em empreendimentos solidários com base nas ações cotidianas dos mesmos, através de discussões teóricas ou ainda por leis regionais e diretrizes de políticas públicas (municipais, federais e estaduais).

Enquanto ação governamental a Economia Solidária é entendida como Política Pública para ações de geração de emprego e renda e concentra-se no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). No entanto, no âmbito rural, a Economia Solidária é voltada à constituição de Cooperativas de Crédito e à organização da produção agrícola de pequena escala, como a agricultura familiar, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Isso deixa clara a diferença dessas políticas no que se refere aos espaços rurais e urbanos, delimitando ações diferenciadas e desconectadas para esses. Desvela ainda uma dicotomização na esfera legal entre o Cooperativismo e a Economia Solidária, que afasta essas duas perspectivas, sendo que na prática são profundamente imbricadas.

O cooperativismo em qualquer natureza (de crédito, consumo, produção e comercialização) é uma forma de organização no âmbito da Economia Solidária. A diferença fundamental entre eles é que o cooperativismo é regulamentado pela Lei 5.764 de 1971 e por resoluções específicas da natureza da cooperativa. Já a Economia Solidária é entendida como um movimento e não possui marco jurídico, regulatório ou legal.

As ações no âmbito das Políticas Públicas estão pautadas em diversos programas e são promovidas pelo Governo Federal, sendo que este atua em duas perspectivas principais: no contexto urbano existe o Programa “Economia Solidária em Desenvolvimento”, cuja constituição deu-se pelo fato de surgirem demandas em relação às novas configurações do “mundo do trabalho”, principalmente pela necessidade de fomento a formas alternativas de trabalho. A Economia Solidária foi uma estratégia elencada para organizar trabalhadores excluídos do mercado de trabalho formal, a partir de uma proposta de fim do desemprego. Nesse sentido, o Programa acima citado atua em três diferentes esferas: capacitação de formadores na área da Economia Solidária; consolidação de estratégias de desenvolvimento local sustentável, mapeamento dos empreendimentos solidários para base de dados e construção de redes (MTE, 2009).

A Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), sediada no TEM, foi construída após a eleição presidencial de 2003 através de reivindicações de vários órgãos representativos da ECOSOL, a fim de consolidar a mesma como prática governamental de combate à exclusão social e geração de emprego e renda. “O surgimento da SENAES representou uma ampliação significativa do âmbito de responsabilidades do MTE, que passa a incluir o cooperativismo e associativismo urbano, já que pelo rural continua responsável o Ministério da Agricultura” (Singer, 2003, s/p).

Atualmente um dos grandes desafios para a consolidação dos empreendimentos solidários é a viabilização do consumo de produtos oriundos dessa modalidade de empreendimentos, o que se dá por diferentes fatores, tais como: os preços que, em comparação com os produtos produzidos em grande escala, são elevados, o que desmotiva o consumidor na hora de adquirir os produtos; a escassez de espaços de comercialização; a pouca variedade de produtos; e, principalmente, os sentidos e significados atribuídos ao consumo pela sociedade atual, em que esse se torna fonte de status, de reconhecimento e de inserção social.

Partindo da compreensão de que mesmo os sujeitos inseridos em empreendimentos solidários têm dificuldades para criar outras lógicas de consumo e para reconhecer as formas de consumo solidário já existentes, o objetivo dessa pesquisa foi: compreender quais são os sentidos atribuídos ao consumo pelos sujeitos inseridos em empreendimentos solidários no oeste de Santa Catarina. Já os objetivos específicos elencados foram: identificar práticas de consumo solidário; problematizar a relação entre os sentidos do consumo capitalista e os sentidos do consumo solidário, bem como compreender os fatores que levam o sujeito a fazer parte do empreendimento no qual está inserido.

Importante destacar que a região em que se localizam essas cooperativas foi e é palco de muitas lutas sociais, que originaram organizações como MST (Movimento dos Sem Terra), MMC (Movimento das Mulheres Camponesas) e MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens). Nesse sentido, o movimento da Economia Solidária no oeste catarinense é também fruto dessas lutas e composto por lideranças que vem desse processo, como o caso dos sujeitos entrevistados.

 

Procedimentos metodológicos

Essa pesquisa caracteriza-se enquanto um estudo qualitativo, definição esta que remete a uma opção teórico epistemológica, no sentido de assumir o caráter histórico-cultural do objeto de conhecimento. “A epistemologia qualitativa é um esforço na busca de formas diferentes de produção de conhecimento em psicologia que permitam a criação teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que representa a subjetividade humana” (González-Rey, 2002, p. 30). Ainda para González-Rey (2005), a pesquisa qualitativa marca um momento de produção teórica, possibilitado pelas zonas de inteligibilidade geradas pela atividade pensante e construtiva do pesquisador.

Como procedimentos de pesquisa foram utilizados a observação participante, registrada em diário de campo, e a entrevista semi-estruturada. A observação participante foi realizada durante todo o trabalho de campo em função da proximidade da pesquisadora com o contexto estudado, o que permitiu acompanhar reuniões, assembléias e o cotidiano de trabalho de empreendimentos solidários de crédito. Já as entrevistas semi-estruturadas foram feitas com seis sujeitos vinculados a empreendimentos de economia solidária, cinco deles associados a cooperativas de crédito e um associado a uma cooperativa de consumo. Os critérios de escolha dos entrevistados, além do acesso e disponibilidade dos mesmos foram que eles estivessem no empreendimento há mais de um ano, ter acessado algum produto das cooperativas e já ter participado de algum cargo de gestão nos empreendimentos. Esses critérios objetivavam entrevistar nesta pesquisa sujeitos que tivessem uma inserção significativa nessa modalidade de empreendimento. Os tópicos que nortearam as entrevistas versaram sobre os modos de significar o consumo e de praticá-lo, a relação estabelecida com o empreendimento, as possibilidades e limites no acesso aos produtos da economia solidária

Já a análise das informações foi feita com base na análise de conteúdo. Esta é descrita por González-Rey (2002) como uma técnica que “se apoia na codificação da informação em categorias para dar sentido ao material estudado” (p. 143). Essas categorias de análise são orientadas à produção de indicadores acerca das informações levantadas caracterizando-se como um processo construtivo interpretativo. “Essa forma de análise de conteúdo é aberta, processual e construtiva e não pretende reduzir o conteúdo a categorias concretas restritivas.” (González-Rey, 2002, p. 146). A partir da análise realizada foram construídas duas categorias gerais, sendo elas os sentidos do consumo e os sentidos da Economia Solidária, as quais nortearão as discussões do presente artigo. Nesse sentido, os resultados e discussão serão apresentados de forma integrada.

Ressaltamos que esta pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e que, de acordo com exigência deste, todos os participantes da mesma assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Os sentidos do consumo

O Consumo se constrói como parte integrante da manutenção da vida. Para Bottomore (2001), o conceito de consumo abrange desde as necessidades fisiológicas/biológicas até as necessidades sócio-culturais, as quais se modificam nas diferentes sociedades ao longo da história. Essas dimensões que o consumo assume constroem o que chamamos de “sistema das necessidades humanas” (Bottomore, 2001, p.76).

O consumo configura-se, assim, como um ato de subsistência; entretanto, suas formas adquirem uma dimensão sócio-cultural que está sempre se construindo a partir das lógicas e parâmetros impostas por cada sociedade e suas estruturas econômicas. Encontramos em Marx a definição de consumo enquanto “maneira pela qual os humanos se mantêm e se reproduzem como indivíduos sociais” (Bottomore, 2001, p.76). O acesso ao consumo na sociedade contemporânea é garantido pelo trabalho, ou seja, no capitalismo o trabalho assume um novo significado e sua função principal passa a ser viabilizar o consumo, o qual é central nesse sistema, na medida em que lhe dá sustentação. Isso leva a um processo de ressignificação do consumo que toma a forma de consumismo, pois no modelo econômico vigente precisa-se produzir um aumento constante das “necessidades” humanas.

Como já apontava Marx (2004), o consumo torna-se o motor da sociedade capitalista, transformando as necessidades de subsistência em atos de consumo, numa lógica de auto-manutenção. Nesta perspectiva, o consumo torna o homem escravo do trabalho e do dinheiro para se inserir na “sociedade de consumo”, em que ele se reconhece nos produtos oferecidos e é reconhecido pelos produtos que consome. Duarte (2004) chama a isso fetiche da mercadoria, pois os produtos parecem ter vida própria adquirindo uma dimensão simbólica fundamental ao produzirem nos consumidores a sensação de satisfação, reconhecimento e poder.

Para os sujeitos participantes da pesquisa o consumo adquire duas dimensões principais. A primeira versa sobre as necessidades de subsistência, de manutenção da vida, que se relacionam com as necessidades básicas como alimentação, moradia, vestuário, como pode ser observado na fala do cooperado Luis2: “Consumo é a gente ter as necessidades básicas suprimidas (...), é a gente poder comer, vestir, morar, de uma forma digna como ser humano”.

A segunda dimensão que o consumo apresenta para os sujeitos entrevistados é este enquanto forma de atender as necessidades que extrapolam as necessidades básicas e modificam as mesmas, envolvendo o consumo de produtos específicos, o que remete à dimensão cultural do consumo, identificado como consumismo. Isso se expressa na fala de José, que diz: “Pra mim consumo é tudo que a nós imaginarmos, que nós consumimos, (...) é desde linha de beleza, limpeza, casa, terreno, tudo isso é consumo. Precisamos ter esse tipo de coisa pra gente viver, pra vida em si, precisamos dessas coisas”. Esta fala expressa a ampliação do sentido de necessidade para o sujeito contemporâneo.

Esse sentido de necessidade é problematizado por alguns cooperados como se observa na fala de Fernanda “(...) o mercado capitalista impõe o tempo inteiro pra você estar consumindo e cria necessidades que se a gente for avaliar isso, nem tem necessidade. Então às vezes você se dá conta e você está nessa lógica”.

Ainda em Marx (2004), o sentido do consumo na sociedade capitalista é de afirmar os excessos, o consumismo:

O excesso e a não moderação tornam-se a sua verdadeira medida. É o que se manifesta no plano subjetivo, em parte porque a expansão dos produtos e das necessidades se transforma em subserviência engenhosa e sempre baseada nos apetites inumanos, corrompidos, antinaturais e fantasiosos (MARX, 2004, p. 149).

Para isso, os produtores se usam de estratégias de mercado e marketing a fim de aumentar os desejos de consumo, bem como baratear os custos de produção, muitas vezes comprometendo a qualidade do produto para poder fazer vendas em massa e lucrar mais.

Nesta lógica, o marketing entra como uma estratégia de mercado de suma importância para o capitalismo, pois, segundo Duarte (2004), a sociedade contemporânea ainda atua no sentido de criar necessidades, sentimento de pertença, reconhecimento e exclusão de quem não opera nessa lógica capitalista de “ter para ser”. Isso é apontado por João quando diz que

É o modismo que faz com que você consuma determinados produtos que você não gosta, não faz teu tipo, não é do teu perfil, não é da tua característica, mas está na moda! E estando na moda se eu não consumir eu sou feio, eu sou frágil, eu estou fora do padrão que a sociedade exige (Cooperado João).

Esse reconhecimento produzido pelo consumo é o efeito psicológico que se engendra nos sujeitos, trazendo uma necessidade de adquirir produtos que saciem suas necessidades e tornar mais confortável aos consumidores viver nessa lógica. Isso é reconhecido pelo cooperado Luiz quando diz: “A propaganda cria o fetiche da mercadoria, as pessoas acham que aquela mercadoria vai trazer toda satisfação, toda a alegria, toda a felicidade, e quando as pessoas percebem, passam a comprar coisas desnecessárias”.

Marx (2004) afirma ainda que a noção de propriedade privada “tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando temos, quando existe para nós como capital ou quando nós diretamente o possuímos” (Marx, 2004, p.142). Para o autor, a noção de propriedade privada anula o homem como sujeito e o submete à necessidade de ter para se sentir incluído na sociedade, limitando a vida do homem à necessidade de ter.

Observamos que todos os sujeitos entrevistados problematizam o modo como ocorre o consumo atualmente e a importância que ele adquire na vida das pessoas, percebendo a lógica do sistema capitalista de criar necessidades fictícias de consumo e os efeitos subjetivos e sociais do consumismo gerado pelo sistema. No entanto, esses sujeitos têm dificuldade de perceber como muitos empreendimentos solidários acabam seguindo a mesma lógica do consumo capitalista, na medida em que se utilizam estratégias semelhantes a esse para estimular o consumo de seus produtos. Isso acontece, por exemplo, com as cooperativas de crédito da qual os sujeitos participavam, quando essas oferecerem crédito aos seus cooperados, o qual a observação participante demonstrou ser utilizado muito mais para consumir na lógica capitalista e não na lógica solidária.

As transformações recentes nos modos de consumir e nos produtos consumidos foi outro aspecto muito ressaltado pelos sujeitos da pesquisa, em que estes destacam o êxodo rural ocorrido na região nas últimas décadas, fruto do processo de modernização agrícola. A maioria dos entrevistados são oriundos de famílias que habitavam o meio rural, que produziam em um sistema de agricultura familiar e que migraram para as cidades em busca de melhores condições de vida. Isso acarretou, segundo os entrevistados, drásticas mudanças no seu modo de vida, de trabalho e nas práticas de consumo, como fica evidenciado na fala abaixo:

Sou de uma região do interior onde existia muita cooperação espontânea, (...) que o caboclo chama de puxirão. Já tem essa cultura impregnada nas famílias. A partir do momento que houve a urbanização se distanciou um pouco, fatiou. E o urbano é muito individual. E as propriedades são meio próximas uma das outras, os trabalhos são semelhantes, então já há uma facilidade de uma cultura vindo desde o início da colonização de aproximidade. Então é muito distante, é muito diferente a realidade do rural. Há muito mais debate entre as famílias rurais sobre a cooperação do que no urbano. No urbano é muito menos (Cooperado João).

Segundo os entrevistados, a produção era mais artesanal, pois as pessoas confeccionavam suas roupas, móveis, brinquedos e alimentos, utilizando o máximo possível da matéria prima disponível nas propriedades, os produtos eram mais saudáveis, na medida em que não eram industrializados nem continham tantos agrotóxicos e o trabalho era realizado pela família no espaço doméstico. Assim, a vinda para a cidade ocasionou mudanças drásticas no modo de consumir, pois não tinham formas de continuar com a produção de subsistência como pode ser observado na fala a seguir:

Eu acho que hoje é desproporcional, assim, em relação àquilo que a gente tinha, se comprava o básico e o resto se produzia. E hoje é uma coisa muito descartável, tanto de objetos, brincadeiras, roupas, umas coisas absurdas de consumo, é tudo muito descartável (Cooperada Fernanda).

As relações de trabalho eram outras, os instrumentos eram outros. Referem-se à “vida no interior” com certo saudosismo, afirmando que “aqueles eram bons tempos” e que a vida de consumo hoje é “um horror”, é tudo muito descartável, industrializado. Apontam para o fato de que hoje as pessoas não têm mais tempo para produzir o que consomem, comprando pronto e com preços mais acessíveis. Nesse sentido, diz Isadora:

Quando eu morava no interior a gente consumia só produtos da agricultura, sem venenos, a gente comia coisas mais saudáveis, hoje você consome produtos industrializados, que você nem sabe o mau que vai fazer. Antes a gente tinha produtos da terra, hoje não, tudo você compra do mercado (Cooperada Isadora).

Bauman (2008) descreve esse fenômeno como uma mudança da sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores, no sentido da produção hoje ser em grande escala e voltada para a ampliação de produtos para consumo, sendo que na sociedade de produtores a produção era basicamente voltada à subsistência. Na sociedade atual a necessidade de consumir não se constitui como um fato da vida, mas como principal atividade da vida.

 

Consumo e a construção de redes

Para Mance (1999), todos os trabalhadores que atuam em “células produtivas” atuam também em “células de consumo”3. Para esse autor, a rede de consumo solidário possui alguns produtos que dão conta de suprir algumas necessidades de consumo, porém, a produção ainda é incipiente para a manutenção da vida cotidiana. Os cooperados de modo geral reconhecem essa limitação, como aponta José: “Eu diria que na Economia Solidária a gente tem muito poucos produtos pra oferecer pra quem quer fazer parte desse novo tipo de fazer economia”.

Comparando com a rede de produtos do capitalismo, ainda há muito que produzir e organizar para suprir as necessidades básicas de consumo. As redes, para o autor acima referido, podem se organizar com o objetivo de baratear os custos na aquisição de mercadorias, o que denomina “compras comunitárias”. Fica claro, então, que para produzir estratégias de consumo solidário é necessária uma estruturação de redes que impliquem produção, distribuição e consumo. Nesse sentido, uma das entrevistadas diz:

Pra consumir os produtos solidários a gente precisa ter uma certa organização. Não posso sair às oito horas da noite querendo buscar um produto solidário que eu vou ter dificuldade de encontrá-lo. A comercialização é uma das grandes dificuldades da Economia Solidária. Não tem um ponto fixo que tu possas ir lá todos os dias da semana e comprar os produtos que são produzidos pela Economia Solidária (Cooperada Isadora).

Desta forma, observamos que a comercialização dos produtos da economia solidária ainda encontra muita dificuldade em diversos aspectos. Entre esses se podem destacar aspectos como a informalidade e fragilidade econômica dos empreendimentos solidários, a pouca diversificação de produtos, a pequena produtividade, a restrição de espaços de comercialização, que geralmente se restringem aos próprios espaços de produção e as experiências muito individualizadas dos empreendimentos, o que dificulta a estruturação das redes.

Em contrapartida, o sistema capitalista tem redes instauradas de produção, distribuição e consumo, com dispositivos persuasivos e abrangentes, como a mídia. Supermercados e shoppings, por exemplo, permitem o acesso a muitos produtos em um mesmo local, muitas vezes com valores mais acessíveis e com grande mídia para divulgação dos seus produtos, o que motiva o consumidor a buscar esses espaços para consumir.

Existem dificuldades de organização regional para produção e comercialização dos produtos que repensem toda a cadeia de produção, envolvendo desde o fornecimento de matéria prima até o consumo de forma solidária, ou seja, respeitando princípios como a produção sustentável, a distribuição de renda e a não exploração de força de trabalho. Os entrevistados apontam para o fato de que as experiências de economia solidária ficam limitadas a setores específicos; por exemplo, a confecção de produtos é solidária, mas a venda não, ou a matéria-prima não, como fica evidenciado na fala abaixo:

No nosso produto, a única diferença é que a gente tenta praticar um preço justo. Mas agora, a gente usa a matéria prima do tradicional, a gente usa o convencional, a gente não usa produtos de produtores solidários. Agora a gente compra aquilo que tem produtos químicos, que as empresas tingem e onde vai os resíduos? A gente não sabe. Provavelmente são empresas que poluem o meio ambiente, então assim, é complicado, porque a gente não tem toda uma cadeia produtiva que a gente possa estabelecer todo o processo. (...) alguém dizia esses dias que se eu olhar e buscar a história de cada produto e deixar de consumir aquilo que eu sei que ta causando contaminação do solo, ao ambiente, eu deixo de consumir (Cooperada Mara).

Os entrevistados apontam para a necessidade de a Economia Solidária pensar na logística da comercialização de seus produtos. Para os mesmos, uma das primeiras formas de consolidar o consumo solidário é organizar a oferta desses produtos, oferecendo facilidades para acessá-los, como construir locais fixos de comercialização. Isso aponta para a ideia de que a estruturação da economia solidária passa necessariamente pela viabilização do acesso às mercadorias produzidas solidariamente.

Outro aspecto importante é que mesmo os produtores solidários não se reconhecem como consumidores solidários, pois, ao serem questionados se tinham acesso aos produtos oriundos da Economia Solidária, todos os cooperados responderam que não, ou que muito pouco, geralmente associando o consumo solidário a produtos alimentícios e sem processo de industrialização. Isso revela que o consumo para esses sujeitos ainda está atrelado a produtos específicos e que não se reconhece o consumo solidário de serviços, por exemplo, os oferecidos pela cooperativa de crédito os quais todos tinham acesso.

As questões trazidas nos indicam que a instauração de novas práticas sociais não é algo tranqüilo ou simples, pois, segundo González-Rey (2004), os sujeitos tendem à reprodução das práticas culturais que se inscrevem nas subjetividades, o que torna a mudança nos atos de consumo, por exemplo, uma questão desafiadora e processual. Nesse sentido, aponta uma das entrevistadas que mesmo as pessoas que estão inseridas no movimento da ECOSOL tem dificuldade de atuar nessa lógica, pois “(...) são pessoas excluídas da sociedade, muitas vezes analfabetas, excluídas da escola, de tudo, né! (...) Aí pra você mudar essa cultura não é simples, é uma prática educativa, é processo de formação longo, e que você não pode desistir você tem que ter amor a camisa” (Cooperada Isadora). Assim, o modelo capitalista está instituído nas relações e nas formas de significar o mundo, que precisam ser confrontadas e modificadas para a implementação de práticas como o consumo solidário.

 

As ações públicas e o Marco jurídico da Economia e Consumo Solidário

A falta de uma legislação federal específica que oriente as ações de Economia Solidária faz com que a apropriação desses princípios ocorra de forma diferenciada nos estados e municípios em que há empreendimentos dessa natureza. Para os entrevistados, isso é uma grande dificuldade, principalmente pelos altos tributos que são pagos, desconsiderando-se o caráter social desses empreendimentos que correspondem a formas de organização de pequeno porte. Os cooperados afirmam que a diferença entre os empreendimentos de Economia Solidária e os outros são as questões ideológicas e a forma jurídica do Cooperativismo. Como afirma a cooperada Mara: “O que a gente tem de marco jurídico é aquilo que serve pra todo mundo (...), eu não acho que a Economia Solidária é uma coisa de pobre, mas infelizmente são os pobres que se organizam a partir da exclusão desse mercado de trabalho. Então a ECOSOL não pode ser regulamentada pela mesma lei que regulamenta as grandes empresas, o capital desse país, pois ela representa as pessoas desprovidas, desapropriadas desse capital”.

Outra grande dificuldade vivenciada pelos cooperados é a falta de uma legislação que esclareça seu vínculo com o empreendimento, pois ela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) ou há patrões ou há empregados. Assim, os sujeitos inseridos nesses empreendimentos “(...) uma vida inteira trabalharam numa relação de capital-trabalho, então, ele quer mesmo estar dentro da cooperativa, mas muitas vezes ele quer no fim do mês ter o seu salário, então as pessoas têm dificuldade de entender” (Cooperada Isadora). Assim, como as organizações cooperativas não se enquadram nas categorias tradicionais de relações trabalhistas, elas vivenciam conflitos entre seus membros e se tornam alvo das fiscalizações que envolvem o trabalho.

Na compreensão dos entrevistados, a caminhada para a consolidação da Economia Solidária é árdua apesar dos incentivos recebidos e dos movimentos que foram se construindo nos últimos cinco anos. Isso se deve à relação contraditória que há entre as ações governamentais que atuam no sentido de gerar emprego e renda e não romper com a lógica capitalista que reconhece na Economia Solidária uma alternativa assistencialista e não uma forma econômica.

Para os entrevistados, ela não é uma política pública, mas na esfera governamental está configurada como tal, pois geralmente é realizada por pessoas de baixa renda que se organizam para buscar estratégias de inclusão na sociedade capitalista. Nesta perspectiva, a inclusão social necessita de renda e a Economia Solidária é uma ferramenta para essa inclusão.

Seja em âmbito rural ou urbano, fica claro que a Economia Solidária é muito mais uma estratégia de geração de emprego e renda, e não uma estrutura econômica. As ações governamentais vêm no sentido de criar estratégias pontuais, não visando uma transformação econômica. Pelo contrário, por vezes as iniciativas dos empreendimentos solidários atuam em favor do capitalismo, já que pessoas que antes não tinham renda passam a ter e, consequentemente, acessam produtos oriundos do capitalismo, incentivando, através da aquisição da mercadoria, que se produzam mais mercadorias. Hoje a Economia Solidária ainda é uma política pública dentro do sistema capitalista a fim de amenizar as dificuldades dos trabalhadores rurais e urbanos, sem a pretensão de modificar o sistema econômico vigente.

Já no Estado de Santa Catarina não existem políticas de Economia Solidária implementadas ou em fase de implementação. Considerando a realidade local, as ações através da Secretaria Nacional da Economia Solidária são consideradas pelos entrevistados um importante avanço, mesmo que esta se limite a ações pontuais e objetivas que envolvem prioritariamente o repasse de recursos públicos através de projetos financiados para os empreendimentos.

Acho que outra potencialidade é o incentivo que o Governo Federal está dando. As portas estão abertas, principalmente do Governo Federal, excluindo o município completamente, porque não tem nada aqui voltado à Economia Solidária nem no Governo Estadual, este nem sabe o que é (Cooperada Isadora).

Os dois principais órgãos que desembolsam esses recursos são o MTE e o MDA, porém, algumas ações começam a ser desenvolvidas de forma integrada por outros Ministérios. Para os entrevistados, isso é muito importante, pois a Economia Solidária traz uma nova perspectiva de saúde, educação, lazer, trazendo novas práticas para o cotidiano dos sujeitos que nela trabalham.

A diferença entre os espaços urbanos e rurais nas ações e políticas voltadas à Economia Solidária também é percebida pelos sujeitos entrevistados, no que concerne a sua evolução, como aponta Isadora: “Quando fala em Economia Solidária, o rural está 10, 20 anos, pelo menos, na nossa frente. Nós temos que lutar, temos que pelear muito ainda, pra conseguir chegar onde eles estão hoje. Então eu acho que o urbano tem um campo muito grande para trabalhar ainda.” (Cooperada Isadora).

Assim, os cooperados afirmam que, em se tratando de organização de produção e comercialização, o espaço rural está à frente do urbano. Isso se deve a vários aspectos, como o fato de as políticas públicas de Economia Solidária em âmbito rural terem se intensificado como estratégia de combate ao êxodo rural. Além disso, existe uma organização rural oriunda das lutas dos movimentos sociais no combate ao êxodo rural e pela melhoria das condições de vida no campo, bem como a diferença cultural entre os espaços urbanos e rurais. “O rural de certa forma avançou mais porque a história de luta no campo ela é mais antiga, então, na cidade, o pessoal ficou mais resistente e hoje eles estão revendo as coisas e a gente começa a ver alguns sinais, começa a ver uma pré-disposição maior pra autogestão” (Cooperado Luis).

Para os entrevistados, a organização do campo e a proximidade entre as famílias auxiliam no processo de organização para empreendimentos solidários. Como eles dependem mais uns dos outros no cotidiano, potencializam-se as formas de articulação e trocas. Já o individualismo no espaço urbano dificulta a implementação de ações voltadas à economia solidária.

 

O Consumo Solidário: potencialidades, desafios e práticas

O Consumo Solidário, segundo Mance (1999), é uma forma de organização por parte dos consumidores cuja principal motivação é o bem-estar coletivo. Para o autor, essa compreensão se constroi quando os sujeitos percebem que a produção tem por objetivo final o consumo e que esse ato tem impacto sobre a sociedade, ou seja, “o consumo é a última etapa de um processo produtivo e as escolhas do consumo (...) podem influenciar na geração ou na manutenção de postos produtivos em uma dada sociedade” (Mance, 1999, p.29). Então, se o sujeito adquire um produto oriundo do trabalho escravo, de certa forma ele está financiando que esse trabalhador continue desenvolvendo esse trabalho escravo e, da mesma forma, se ele adquire um produto oriundo da economia solidária, ele está fortalecendo essa forma de organização.

O Consumo Solidário tem como preocupação central a compreensão dos impactos do processo produtivo para a sociedade, como é expressa na fala da cooperada Mara, quando diz: “pra mim o consumo solidário é você buscar consumir aquilo que não está poluindo o meio ambiente, que está cuidando de todas as partes”. O autor acima afirma, ainda, que grande parte da produção e consumo solidário é criada como estratégias de minimizar a pobreza, através de grupos que se juntam para produzir objetos de consumo necessários para a manutenção da vida cotidiana. Logo, o consumo solidário é, em parte, a reflexão sobre os atos de consumo individual na sociedade, como afirma Fernanda:

(...) então essa coisa assim, de policiamento das escolhas, que passa por um processo de consciência, por exemplo, eu não vou tomar coca-cola, vou ajudar agricultor e tomar um suco de laranja que é natural. Eu acho que passa por essa questão da consciência, e se somar as outras pessoas (Cooperada Fernanda).

Para os entrevistados, o consumo solidário é também uma questão de cuidar o que se está consumindo, o que esse produto está resultando para a sociedade. A problematização do que está se consumindo, da origem do produto, da rede de relações de trabalho que está em torno da confecção do produto também são ressaltadas pelos sujeitos. Mas aparece também a preocupação do consumo regionalizado, do incentivo à sustentabilidade regional, como observamos na fala a seguir:

Consumo solidário é você consumir produtos que são produzidos pelos empreendimentos de Economia Solidária, que tem outra lógica de organização, quer dizer, ao invés de eu comprar um pé de alface que vem de fora, eu vou consumir um produto daqui, pela organização da Agricultura familiar, que não tem exploração da mão de obra (Cooperada Isadora).

Para Singer (2002), a história das primeiras cooperativas de consumo surge como forma de baratear o custo dos produtos, o que hoje é construído como redes, em que os varejistas adquirem produtos em rede para competir com os grandes supermercados na questão do preço. Os entrevistados afirmam que a lógica de mercado impõe que a distância entre o produto e o consumidor deve ser a maior possível, a fim de agregar valor ao produto e propor a industrialização dos mesmos. Já na lógica do consumo solidário, para os cooperados, a idéia é que se encurte a distância entre o consumidor e o produto.

A organização de compra em grande escala é uma das formas de organização de cooperativas de consumo solidário, tendo outros pontos importantes ressaltados para que sua construção seja pautada nos princípios solidários, como os seguintes: comprar, de preferência, de outros empreendimentos solidários, assegurar a procedência e a qualidade do produto, propor o preço justo, incentivar produtos que não degradem o meio ambiente, entre outros.

Para os entrevistados a facilidade de acesso aos produtos também é importante, pois é preciso pensar estratégias para que as pessoas prefiram comprar o produto solidário, a fim de construir uma nova cultura de consumo, como fala o cooperado a seguir:

É possível a gente ter no consumo solidário, maneiras de poupar. Arranjar fórmulas de juntos comprar determinadas coisas, pra baratear o custo, buscar alternativa juntos. Porque a venda em pequena escala aumenta o valor e a venda em grande escala diminui o valor. Então é possível se juntar sim pra ter consumo solidário, com as duas pontas ganhando: o vendedor ganhando, porque vende mais, e o consumidor ganhando, porque compra mais barato (Cooperado João).

Para Singer (2002), os problemas que as cooperativas encontram para comercializar os seus produtos são oriundos dos atravessamentos da lógica de mercado, pois a concorrência com o mercado capitalista é muito desleal em fatores como o preço e facilidade de acesso.

Os produtos oriundos da lógica de exploração do mercado capitalista são muito mais baratos, o que motiva os consumidores a adquiri-los. Quando a cooperativa, com o objetivo de entrar nesta lógica de mercado, passa a adquirir esses produtos, ela se descaracteriza; portanto, perde a noção de solidariedade e passa a operar no consumo capitalista, mas de forma organizada pelos trabalhadores.

Os entrevistados também falam da necessidade de questionar os atos de consumo, de problematizar as necessidades antes de adquirir produtos, pensando se ele é útil, se realmente o consumidor necessita do produto para manutenção da vida ou se está adquirindo apenas por compulsão produtos que fazem mal à saúde ou rapidamente são transformados em lixo.

Para Mance (1999), a lógica do consumo solidário é de romper, também, com o consumo para o capitalismo. A produção e o consumo devem estar aliados à noção de qualidade de vida comunitária, num sentido mais amplo, voltados à manutenção da vida e às necessidades que dela são oriundas.

Para os entrevistados, existe, além do processo de mudanças de hábitos, ética e qualidade do produto, entre outros, a necessidade do preço do produto solidário ser compatível com o valor de produção do mesmo.

Uma cooperada disse: “pobre come com veneno porque não tem acesso àquilo que não tem veneno”. Então o que a gente está produzindo solidariamente? Eu sempre digo que é a questão da ética, a questão do respeito. Pra quem eu to produzindo? Quem eu quero que consuma isso aqui? Como é que a gente é solidário se a gente pratica um preço que não é justo? (Cooperada Mara).

Neste aspecto, eles afirmam que existe uma grande contradição, que é cobrar mais pelos produtos produzidos solidariamente, e isso se dá por diversos fatores. Alguns produtos realmente têm o custo de produção elevado em comparação aos produtos produzidos em grandes escala. Porém, os entrevistados afirmam que alguns empreendimentos solidários cobram preços absurdos pelo seu produto, utilizando o fato de ser agroecológico, por exemplo, com o objetivo de aumentar o lucro, tornando o produto pouco acessível. Outros ainda, apesar do baixo custo de produção, vendem seus produtos pelo preço de mercado, sem procurar beneficiar o consumidor.

 

Considerações finais

Diversas experimentações na área da Economia Solidária propõem relações de trabalho e práticas humanizadas, partindo do pressuposto de que todas as pessoas inseridas nos empreendimentos solidários têm como desejo superar a lógica capitalista. Porém, a Economia Solidária assume, atualmente, uma caracterização de política pública para amenizar a pobreza e a desigualdade social. Mas ela se propõe a ser mais que uma política pública, uma teoria ou um preceito; ela se propõe a ser uma estrutura econômica que prevê a superação de modos de produção capitalista, distribuição de renda, relações de trabalho democráticas, ajuda mútua e superação da competição.

Com a presente pesquisa ficou evidente a dificuldade de buscar novas práticas voltadas a relações de trabalho e consumo, principalmente pelo fato de que a Economia Solidária se estrutura em um contexto capitalista e seus empreendimentos têm que sobreviver na lógica deste. O consumo, nessa proposta de economia, embora adquira uma forma mais solidária, ainda não consegue suprir as necessidades da sociedade, o que dificulta a consolidação das práticas desse modelo. Os produtos feitos de forma solidária de maior acesso são alimentos, o que se expressa na forma como os entrevistados significam o consumo, já que não reconhecem em outros produtos o consumo solidário. Todos os entrevistados fazem parte de algum empreendimento solidário, mas não se reconhecem como consumidores solidários e, embora tenham uma compreensão ampla do significado do consumo, ainda o reduzem, em seu cotidiano, a objetos muito restritos de consumo.

No sentido apontado acima, o crédito solidário, sendo um produto oriundo da Economia Solidária, deveria ser um reforçador de práticas solidárias. Porém, ficou claro que muitos cooperados buscam o crédito para pagar dívidas de SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) e SERASA, entre outros, exatamente pelo fato de estarem expostos a uma estrutura capitalista que cria desejos e necessidades. Usam, então, dos benefícios e vantagens do empreendimento solidário para adquirir produtos contrários à ideologia da Economia Solidária. Neste caso, a lógica é muito contraditória, pois a Economia Solidária, de certa forma, oferecendo crédito, ajuda a financiar o próprio capitalismo.

Ao passo que a Economia Solidária luta para consolidar redes de produção e consumo, o capitalismo e suas estratégias de marketing criam novas necessidades e, por sua vez, mercadorias que atendam as mesmas. Utilizam-se da comunicação em massa para construir o fetiche da mercadoria, associando conforto, poder e beleza a produtos e marcas. Os entrevistados afirmam que para combater isso são necessários um movimento de resistência e uma rede bem estruturada que envolva produção, distribuição e consumo.

Foi possível perceber, com essa pesquisa, que os sujeitos inseridos em empreendimentos solidários não resistem somente a uma estrutura econômica, não estão reinventando somente uma nova forma de fazer economia. Eles desejam uma nova visão de mundo e uma nova forma de estar no mundo, que rompa com a lógica de competição e estratégias para deformação das necessidades humanas.

Para os sujeitos entrevistados, o consumo adquire duas principais formas: a de suprir necessidades básicas, manutenção da vida; e a função do consumo na sociedade capitalista com a construção de necessidades e de objetos supérfluos. A grande questão é: que necessidades são essas? Fica muito claro que, para esses sujeitos, é muito difícil discernir entre as necessidades construídas pelo capitalismo e as necessidades básicas de manutenção da vida. Até que ponto as necessidades que consideramos básicas são necessárias à manutenção da vida ou são necessidades criadas para manter um sistema e seus modos de significar o mundo e os sujeitos? Essa questão está muito atrelada às funções do consumo em nossas vidas, o papel que ele representa na contemporaneidade.

O consumo na contemporaneidade expressa relações de poder e dominação. Estamos tão expostos a essa lógica e esmagados pelo nosso cotidiano que a reflexão sobre os atos de consumo não ocorre. Não sabemos o que os produtos que consumimos contêm ou mesmo o que geram para nós e para nosso meio ambiente. Não reconhecemos as artimanhas armadas por trás do consumo. Não reconhecemos, tampouco, a origem do produto que consumimos, de onde ele vem, por quantas etapas de produção passou, qual foi o processo de construção dele.

A que resistir então? Contra o que essas estratégias estão sendo construídas? Fica claro que essa luta é contra ninguém e contra todos. É irônico, mas a luta, parece, é contra nós mesmos. Precisamos resistir a nós mesmos. O consumo solidário não é somente a reinvenção de uma nova forma de consumo, é a reinvenção de novos sujeitos. A questão é: estamos dispostos a isso? Estamos dispostos a abrir mão do conforto e da facilidade para sermos agentes desse processo, e não expectadores passivos?

A Economia Solidária representa uma significativa melhora de vida para as pessoas que a utilizam, mas fica evidente que ainda não há uma estratégia consolidada de utilizar como uma vertente econômica, mas sim como instrumento de amenização das dificuldades sociais e da pobreza oriundas de um sistema capitalista que transforma desempregados em consumidores.

Ao final, a pergunta que fica é: como fazer economia solidária estando inserido em um contexto capitalista? Podemos refletir que não são necessárias modificações extremas, a priori. O fato de termos nas mãos nosso poder de compra e decisão e de escolhermos ou priorizarmos produtos fabricados de forma solidária é um grande passo, pois incentivando essas experiências e problematizando nossas escolhas podemos instigar o apoio aos modelos alternativos de produção.

 

Referências

Bauman, Z. (2008) Vida para consumo. A Transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Bottomore, T. (2001). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Duarte, N. (2004). Crítica ao fetichismo da individualidade. São Paulo, SP: Autores Associados, 2004.         [ Links ]

Gonçalves, W. A. (2005). O marco jurídico da auto-gestão e economia solidária. (relatório final do convênio MTE/ IPEA/ ANPEC – 01/2003). Brasília: MTE, IPEA, ANPEC.         [ Links ]

González-Rey, F. L. (2002). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thomson.         [ Links ]

González-Rey, F. L. (2004). O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do sujeito. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

González-Rey, F. L. (2005). Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.         [ Links ]

Mance, E. A. (1999). A revolução das redes: a colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Marx, K. (2004). Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Martin Claret.         [ Links ]

Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria Nacional de Economia Solidária. Programa economia solidária em desenvolvimento. Disponível em: www.mte.gov.br. Acesso em: 12 jun. 2009.         [ Links ]

Singer, P. (2002). Introdução a economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.         [ Links ]

Singer, P. (2003). Economia solidária. In A.D. Cattani (Org.), A outra economia. Porto Alegre: Veraz.         [ Links ]

 

 

Submetido em: 30/08/2010
Revisto em: 03/01/2011
Aceito em: 04/01/2011

 

 

1 Texto referido à pesquisa financiada pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNOCHAPECÓ com recursos da bolsa do ATCC.
2 Nome fictício.
3 Para Mance (2009), a unidade básica das redes de colaboração solidárias são as células que necessitam estar interligadas por movimentos de consumo e produção. Assim, toda a célula produtiva da rede é também uma célula de consumo, o qual ocorre tanto para atender as atividades produtivas quanto as pessoas que nela trabalham. Assim, para expandir-se e fortalecer-se a rede deve diversificar suas células a fim de realimentar a si mesma satisfazendo suas necessidades e gerando um novo ciclo de demandas.

Creative Commons License