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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre o conceito de estabilização nas psicoses1

 

Considerations about the concept of stabilization in psychoses

 

Consideraciones sobre el concepto de estabilización en las psicosis

 

 

Regina Santos JacintoI; Ana Maria Medeiros da CostaII

IDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. reginasj@yahoo.com.br
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. ammcosta@terra.com.br

 

 


RESUMO

Discute-se o conceito de estabilização nas psicoses, a partir da teoria psicanalítica de orientação lacaniana. Procura-se, a partir de determinados textos lacanianos e algumas releituras, cernir a especificidade deste conceito em psicanálise, em suas possibilidades e limites. Para tanto, parte-se do estudo da estabilização referida à construção de uma realidade estabilizada, através da análise do esquema da estabilização schreberiana, e introduz-se um modo de pensar o trabalho de estabilização para além da dimensão significante. Finaliza-se com a apresentação do que Maleval nomeia como lógica quaternária do delírio, que estaria em jogo no esforço delirante de poder veicular uma estabilização.

Palavras-chave: Psicose; Psicanálise; Estabilização.


ABSTRACT

This article discusses the concept of stabilization in psychoses, using the lacanian psychoanalytic theory. It seeks, using certain lacanian texts and some other readings, to reach the core of this concept's specificity in psychoanalysis, its possibilities and limits. Thus, it begins with the study of stabilization refered to the construction of a stabilized reality, through analysis of Schreber stabilization scheme, and introduces a way of thinking the work of stabilization beyond the significant dimension. Ends with the presentation of what Maleval names as the quaternary logic of delusion, which would be at stake in the delusional effort to convey stabilization.

Keywords: Psychosis; Psychoanalysis; Stabilization.


RESUMEN

Se discute el concepto de estabilización en las psicosis a partir de la teoría psicoanalítica de orientación lacaniana. Se busca a partir de determinados textos lacanianos y algunas relecturas, filtrar la especificidad de este concepto en psicoanálisis, en sus posibilidades y límites. Por lo tanto, se parte del estudio de la estabilización referida a la construcción de una realidad estabilizada a través del análisis del esquema de la estabilización schreberiana y se introduce un modo de pensar el trabajo de estabilización más allá de la dimensión significante. Se finaliza con la presentación de lo que Maleval nombra como lógica cuaternaria del delirio, que estaría en juego en el esfuerzo delirante de poder vehicular una estabilización.

Keywords: Psicosis; Psicoanálisis; Estabilización.


 

 

Ao longo do ensino lacaniano e em releituras deste ensino, encontramos diversas terminologias para tratar das estratégias de estabilização nas psicoses. Como exemplo dessa multiplicidade, podemos citar os termos solução, suplência, amarração e sinthoma. Para além da multiplicidade terminológica, encontramos ainda diferentes formulações para a questão da estabilização.

Interessamo-nos, neste trabalho, em cernir o uso e o contexto em que o termo estabilização comparece em um momento específico do ensino lacaniano, particularmente no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58/1998b). Pensamos que tal recorte nos possibilita interrogar o uso desta terminologia, no sentido de especificar em que medida ela nos é útil para pensarmos a clínica das psicoses.

Guerra (2007), em sua tese de doutorado, faz um mapeamento cuidadoso da utilização do termo estabilização ao longo dos textos e seminários de Lacan, e nos propõe a seguinte sistematização de seu uso:

 

 

Na linha adotada pela autora, estabilização (= solução) é um termo mais geral que abriga em seu teto diferentes modalizações, como a estabilização pela via das identificações imaginárias, a estabilização pelo trabalho de construção simbólica ou ainda a passagem ao ato. Nesta perspectiva, existem estabilizações mais ou menos precárias.

O termo suplência, por sua vez, comparece de diversas maneiras no ensino lacaniano: “poderia implicar em promover um elemento no lugar de outro, como na operação metafórica ou, por outro lado, em um acréscimo, em um suplemento. Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir, fazer as vezes de, preencher a falta de.” (Guerra, 2007, p. 112-113). A autora aproxima a noção de suplência à de amarração, como um modo de amarrar registros real, simbólico e imaginário.

Já o termo sinthoma seria um tipo específico de suplência, ou seja, a suplência em um ponto específico, que ataria os três registros através de um quarto elemento, suplenciando seu desarranjo.

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58/1998b), Lacan utiliza textualmente o termo estabilização a propósito da construção delirante de Schreber, ao desenvolver o esquema I, que é o esquema da estabilização schreberiana. Antes de analisá-lo, vejamos brevemente o esquema R, na medida em que o esquema I se produz a partir de uma torção do esquema R.

Nesse mesmo texto, Lacan (1957-58/1998b) apresenta o esquema R como o que matiza o campo da realidade na neurose. Convém destacar que o R deste esquema diz respeito à realidade, e não ao real, na medida em que o real está velado sob o campo da realidade. Temos, no esquema, a seguinte composição: um ternário imaginário composto por f - o falo imaginário, i - a imagem especular (semelhante) e m - o eu (moi) e um ternário simbólico formado pelos pontos M - Outro primordial materno, P - Nome-do-Pai e I - Ideal do eu. Entre estes dois triângulos, encontramos um quadrilátero formado pelos vértices MimI, que Lacan situa como sendo o campo da realidade. No ano de 1966, uma importante nota de rodapé é acrescida ao texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58/1998b, p. 559-560), onde Lacan afirma que o campo da realidade só se mantém pela extração do objeto a. Perdido o objeto a, o neurótico procurará reencontrá-lo pelo viés da fantasia. A extração do objeto a é efeito da operação da castração. Na ausência de tal extração, o campo da realidade não se estabiliza.

Ainda na referida nota de rodapé, Lacan esclarece que a faixa MimI é uma banda de Moebius, de modo que “o esquema R é num plano projetivo” (Lacan, 1957-58/1998b, p. 560). A faixa terá uma estrutura möbiana desde que juntemos m e M e i a I. Esta faixa, ao mesmo tempo, separa e une os dois triângulos.

 

 

Topologicamente, o esquema I, conforme observamos, produz-se a partir de uma torção do esquema R. Nele, Lacan procura matizar graficamente a estabilização schereberiana. Embora a utilização deste esquema não deva ser transposta para toda e qualquer solução psicótica, na medida em que Lacan o utiliza para falar da estabilização veiculada pelo delírio de Schreber, ele nos permite pensar num sentido muito particular do termo estabilização. A estabilização, no esquema I, é concebida como efeito da construção de uma realidade estabilizada. Trata-se de um recurso bastante sofisticado. Vejamos o esquema:

 

 

Diante de Po e ?o, ou seja, diante da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica, abre-se um buraco tanto no triângulo imaginário (imf), quanto no triângulo simbólico (MIP). Os buracos abertos na ausência dos recursos simbólicos do Nome-do-Pai e do significante fálico acarretam uma deformação nas linhas imaginária (m-i) e simbólica (M-I), encurvando-as e abrindo-as infinitamente no horizonte. Com a metáfora delirante “Mulher de Deus”, inscreve-se um significante Ideal no lugar do Nome-do-Pai, produzindo-se um substituto para o lugar da Lei (“Ordem do Mundo”, em Schreber).

Este significante, uma vez demarcado, ordena a bateria de significantes, permitindo um certo contorno para Po e ?o. Trata-se de um contorno bastante peculiar, na medida em que, diante da ausência de ponto de basta, m-i e M-I são reenviadas para o infinito, mantendo as assíntotas. O Ideal insere-se nesse movimento assintótico, sendo lançado para o infinito. Desse modo, o momento onde a posição do eu e do objeto coincidem é lançado para o infinito (encontro no infinito), impedindo uma colisão mortífera.

Percebemos, pela observação da topologia do esquema I, como, pela via da metáfora delirante, opera-se um distanciamento entre m (eu do sujeito) e M (lugar do Outro primordial), sendo as assíntotas um recurso para separar o eu da posição de objeto do gozo do Outro.

No esquema I, o campo da realidade não se fecha, é aberto, esvaindo-se para o infinito, daí Lacan situar o esquema I como um plano hiperbólico. Não há, neste esquema, a banda de Moebius, que vimos estar presente no esquema R. No entanto, há o estabelecimento de uma certa proporção entre quatro termos, - i, m, M, I - e esta proporção organiza o campo da realidade, ainda que sem a extração de um objeto de gozo que enquadraria a realidade.

Localizamos, no delírio de Daniel Paul Schreber, uma certa mudança de posição que lhe é essencial. Ao longo dos anos, seu delírio se desloca de um arranjo onde sua transformação em mulher, exigida pelo médico Flechsig, seria uma catástrofe, a um tipo de acabamento onde essa idéia se reconcilia com a “Ordem das Coisas”. Era Deus quem exigia dele a feminilidade, de modo que sua entrega à voluptuosidade é então assemelhada ao estado de beatitude, como solução do conflito.

De um Schreber puro objeto de um Deus que se retira do mundo e o deixa entregue - “(...) existe uma falha na Ordem das Coisas” (Schreber, 1903 apud Freud, 1911/1987, p. 35) – tem-se um Schreber que virá, como “Mulher de Deus”, e não uma mulher qualquer, a ser veículo de uma nova raça de homens.

A metáfora delirante “Mulher de Deus” lhe permite uma estabilização, e um certo distanciamento entre as posições de sujeito e objeto. Não se trata mais do Luder2 ouvido alucinatoriamente, mas da construção de uma metáfora delirante que serve de suplência para o Nome-do-Pai foracluído (Lacan, 1957-58/1998b). Destacamos que o termo suplência é utilizado no texto de 1957-58 no sentido de suprir a foraclusão do Nome-do-Pai. Posteriormente, em o Sinthoma (1975-76/2007), o termo será retomado por Lacan no sentido de um suplemento, de um algo a mais, uma invenção do sujeito.

A metáfora delirante, em sua função de ponto de basta, produz efeitos de circunscrição do gozo por meio de sua localização no lugar do Outro. Em Schreber, essa localização do gozo vai se dar através da prática transexualista que decorre da metáfora delirante, onde o presidente se coloca, frente ao espelho, seminu, orna-se com colares e fitas colorida e sente seus seios crescerem ou diminuírem conforme Deus se aproxima ou se afasta.

Por esta prática, Schreber goza narcisicamente de sua imagem de mulher diante do Outro que é Deus. A beatitude torna-se um dever, consonante com a “Ordem das Coisas”. É Deus quem exige de Schreber a beatitude, ao que ele consente, de modo tal que uma certa parcela de gozo lhe é cabida, através da prática transexual:

(...) Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições de existência das almas, de acordo com a Ordem do Mundo, que foi criada; se, ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a título de pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto (...) (Schreber, 1903/1995, p. 219)

Esse gozo transexualista, ou gozo narcísico da imagem, é situado por Lacan no esquema I, no nível da imagem especular (i), sendo que, em m, (moi), temos o futuro da criatura, a transformação em mulher, que ocorrerá em um futuro assintótico. Ambos, prática transexualista e transformação em mulher, permitem um certo enquadramento de ?o. Do lado simbólico, fazendo contorno a NPo, por sua vez, encontramos, em I, lugar do Ideal do eu, a “Ordem do Mundo”, e em M o lugar do Criador. Esta é a montagem que permite a Schreber o restabelecimento da realidade.

Quinet (2003) ressalta ainda, como correlata à estabilização de Schreber, uma modificação do estatuto do Outro a partir da metáfora delirante “Mulher de Deus”. Inicialmente, encontramos no delírio de Schreber um Outro fragmentado, disperso em várias figuras, como o Deus duplicado em Orzmud e Arihman. Já a partir da estabilização, esse Outro se torna unitário, sendo personificado na figura de Deus, um Deus que é também sujeito à “Ordem do Mundo”, da qual Schreber é o garante, o esteio.

Segundo Colette Soler (2007), embora o termo estabilização se preste a algumas imprecisões, como a de, por exemplo, confundir-se a estabilização com um mero apaziguamento ou remissão sintomática, sem um correlativo trabalho do sujeito, é possível sustentar seu uso, dando-lhe um sentido preciso dentro da psicanálise. Nesta perspectiva, a autora afirma que, através das noções de metáfora e de suplência, que são específicas do vocabulário lacaniano, podemos circunscrever aquilo de que se trata em uma estabilização.

A autora ressalta que, na Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58/1998b), texto contemporâneo à Instância da letra no inconsciente (1957/1998a), a metáfora é entendida como um princípio de estabilização, permitindo “fixar, ‘reter’ a significação” (Soler, 2007, p. 196).

A partir desta idéia da metáfora como princípio de estabilização, Soler (2007) identifica a metáfora delirante como uma metáfora de suplência ou metáfora de compensação, correlativa à idéia de que a foraclusão do Nome-do-Pai pode ser compensada por outros substitutos que exerçam a função de estabilizadores para um sujeito, sendo a metáfora delirante um deles.

A partir dos anos 60, as formulações de Lacan sobre as psicoses passam a contar com as elaborações acerca do objeto a, introduzidas em o Seminário, livro 10: a Angústia (1962-63/2005). Isto nos faculta um outro modo de abordar a questão da estabilização nas psicoses, situando-a pelo viés da localização do gozo.

Na Apresentação das Memórias de um doente dos nervos (1966/2003), Lacan introduz o que denomina “o sujeito do gozo”, situando a paranóia como o que “identifica o gozo no lugar do Outro”, estando o sujeito no lugar de objeto do gozo do Outro. Este Outro, não sendo barrado pelo significante da castração, inclui o gozo, na medida em que não há a extração do objeto a, condensador de gozo. Nessa mesma linha, em Alocução sobre as psicoses da criança (1967/1998d), Lacan afirma que toda formulação humana tem como essência refrear o gozo.

Esta abordagem nos permite pensar, no trabalho de estabilização, em um outro aspecto além da dimensão significante. Esse aspecto é corolário da idéia de que a regulação do gozo pela linguagem deixa sempre um resto, sendo o objeto a o índice desse elemento heterogêneo, apontando para uma falta estrutural no campo do Outro. Essa inconsistência do Outro passa a ser entendida como uma falta constitutiva da ordem simbólica enquanto tal, que se coloca para todo falante.

Maleval (2002) aponta que, no ensino de Lacan, no começo dos anos 60, o Nome-do-Pai começará a ser entendido como o que organiza a incompletude do Outro. Por não dispor da resposta fálica, ao psicótico é insuportável a proximidade com essa hiância no campo do Outro, de modo que ele se vê obrigado a realizar um trabalho para obturá-lo. O trabalho do delírio se situa aí como uma tentativa tanto de mobilizar novas significações para a construção de uma nova realidade, como um esforço de localização do gozo.

Acreditamos, com Soler (2007), que a abordagem da psicose por meio de uma outra localização do gozo, embora mais ampla, não implica em uma superação da abordagem pelo significante. Desde a Questão preliminar, ressalta a autora, já estava colocada, com a metáfora paterna, a incidência do Nome-do-Pai no sentido de uma regulação do gozo. Vale lembrar que, em Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo (1960/1998c), Lacan diz que a linguagem promove uma barreira ao gozo e que o significante Nome-do-Pai tem a função de regular o gozo que incide sobre o sujeito.

Entendemos, portanto, que a foraclusão do Nome-do-Pai tem incidências sobre a regulação do gozo, de modo que encontramos, na psicose, uma presença do gozo de forma excessiva, sem mediação. A construção delirante é uma tentativa (dentre outras) de circunscrever o gozo, uma forma de tratamento significante do gozo, diferente da regulação edípica.

Nessa mesma linha de argumentação, Alvarenga (2000, p. 18), em uma discussão sobre o que caracteriza uma estabilização, sugere como hipótese-eixo a de que “a estabilização é uma operação que circunscreve, localiza, deposita, separa ou apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por mais precário que seja”.

Gostaríamos de enfatizar que reconhecemos, para além da construção delirante, serem inúmeras as saídas possíveis encontradas pelos psicóticos em suas tentativas de estabilização. Colette Soler (2007), por exemplo, distingue, com base em Lacan, algumas saídas possíveis na psicose para além do trabalho do delírio: o ato, a obra, a identificação imaginária e a sublimação criadora. Por uma questão de delimitação, não vamos entrar nessas diversas saídas, mas é importante lembrar que um mesmo sujeito pode fazer uso de mais de uma via em seu trabalho de estabilização. O delírio é uma via, dentre outras, de localização, de regulação do gozo na psicose. Trata-se de um trabalho onde o paranóico procura articular o gozo e o Outro. Nem todos os psicóticos farão uso deste recurso, e mesmo os que o fazem, não necessariamente encontrarão êxito por esta via.

Sabemos que nem todo delírio chega a se organizar em torno de uma metáfora delirante, mas podemos dizer, com Lacan, que o delírio é mais bem sucedido quanto mais ele se organiza, quanto mais adquire uma forma sistematizada: “Em relação à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não o organiza.” (Lacan, 1955-56/1988, p. 257).

Este ponto de acabamento que é a metáfora delirante, mesmo nos casos em que é alcançado, não assevera, contudo, uma estabilização definitiva, não sujeita a impasses, a momentos de desestabilização. Soler (2007, p. 205) se refere à metáfora delirante como uma pseudometáfora, “tão pseudo quanto instável”. É o que também nos ensina Schreber, com sua recaída após anos de trabalho do delírio.

Que seja instável, no entanto, não implica em dizer que não permita uma localização de gozo, uma resposta à invasão do real. Nessa linha de trabalho, Maleval (2002) sustenta a existência de uma lógica quaternária que regeria o trabalho do delírio no sentido de uma estabilização, de uma solução cada vez mais acabada.

Para esse autor, tal lógica já havia sido entrevista por alguns clássicos da psiquiatria, que apontam para um período de perplexidade inicial, seguido de um tempo intermediário de elaboração inquieta, até uma sutura megalomaníaca. Clérambault aponta a existência de um período inicial “anidéico”, seguido da construção de uma “superestrutura delirante”, embora este não tenha chegado a descrever um período megalomaníaco final.

Lacan, por sua vez, prossegue Maleval (2002), embora não se ocupe da elaboração de uma sucessão ordenada do delírio em fases, esboça esta lógica quaternária em seu estudo do caso Schreber, partindo da posição do presidente com relação a sua emasculação. Acompanhemos o que Maleval indica como uma evolução específica do delírio, uma lógica evolutiva generalizável, correlativa a uma modificação na relação do sujeito com o gozo:

1. Deslocalização do gozo e perplexidade angustiante (P0): Momento do desencadeamento psicótico, revelando a carência do significante paterno e produzindo como conseqüências a ruptura da cadeia significante e a deslocalização do gozo. A “Ordem do Mundo” se altera, gerando angústia e perplexidade. Este período de inquietude é fortemente correlacionado a transtornos hipocondríacos, entendidos como um efeito dessa deslocalização do gozo sob o corpo do psicótico, que coincide ainda com uma angústia extrema. Em Schreber, este período pode ser localizado no ano de 1893, quando de seu “esgotamento nervoso”, com inúmeras queixas hipocondríacas, às quais se segue um verdadeiro crepúsculo do mundo.

2. Tentativa de significação do gozo do Outro (P1): Trata-se da mobilização do aparato significante pelo psicótico, com vistas a reparar a foraclusão do Nome-do-Pai, e deste modo dar uma explicação para os fenômenos que lhe ocorrem. Neste período, são comuns as tentativas de desenvolver elaborações que confirmem esta explicação inicial. Em Schreber, esta primeira tentativa de significantização do gozo deslocalizado é correlacionada a uma perseguição a cargo do professor Flechsig. Esta primeira resposta não fora suficiente para reduzir a angústia de Schreber, na medida em que o deixava exposto à figura de um perseguidor implacável. Nos poucos casos em que se chega a um “compromisso razoável”, este só é possível ao término das tentativas de significantização presentes nesse segundo período.

3. Identificação do gozo do Outro (P2): Nesta fase, o gozo do Outro é identificado em um significante, que se converte num certo organizador do que está ocorrendo. Em Schreber, este significante organizador é o “Mulher de Deus”. A partir daí, Schreber “aceita” sua feminilização e adota, ao final de 1895, o culto à feminilidade. Mesmo aqui, no entanto, subsiste para Schreber a idéia de que estava sendo vítima de perseguição, que ele atribui em particular às almas malignas de Flechsig e Von W., perseguidores agora identificados. Neste período, o delírio se organiza em torno de uma significação fixa, onde o psicótico adquire certezas irremovíveis. Nem todos os psicóticos, muito poucos, acentua Maleval (2002), alcançam P2.

4. Consentimento ao gozo do Outro (P3): Neste ponto de acabamento, impõe-se um sentimento de comunhão com o gozo do Outro, um consentimento com este gozo. O psicótico consente com o gozo do Outro porque acredita que, por essa via, tem acesso a algo de muito especial. A megalomania aqui adquire a sua maior exuberância. O psicótico, muitas vezes, se converte ele mesmo em Deus ou em um de seus eleitos, ou ainda em um grande personagem. Neste momento, Schreber já não se sente mais perseguido, e a alma Flechsig perde seus poderes maléficos, embora um “miserável resto” da alma Flechsig subsista. A feminilização de Schreber se converte em motivo de redenção para a humanidade, quando de sua fecundação por raios divinos com vistas a gerar uma nova raça de homens. Através dessa construção, Schreber pode consentir com a fantasia inicial, a de que será belo ser uma mulher copulando. Data deste período a redação de suas memórias, escritas entre 1900 e 1902. Maleval (2002) correlaciona este momento da evolução do delírio à “parafrenia sistemática” de Kraepelin. Trata-se de uma elaboração complexa, e ainda pouco estudada pelos clássicos, talvez por ser a forma mais rara entre os delírios crônicos. Sua elaboração exige um longo trabalho do psicótico.

Em P2 e P3, o delírio, uma vez sistematizado, consegue criar um certo contorno para o gozo, como observamos no esquema I. Alguns fenômenos observados em P0 e P1 chegam inclusive a desaparecer.

Convém precisar que Maleval (1998; 2002) propõe esta lógica a partir de uma certa economia do gozo, confrontada com o problema de sua deslocalização e tentativas de localização. No entanto, o autor ressalva que a sintomatologia de cada um destes períodos é extremamente variada, e esta sucessão muitas vezes não é tão regular quanto à apresentada, de modo que se observa mais habitualmente a ausência de certas fases, ou a imbricação entre períodos contíguos, ou ainda a coexistência de elementos pertencentes a diversos períodos.

Embora Maleval (1998; 2002) não o diga textualmente, entendemos, a partir da análise desta proposta de uma lógica quaternária, que a metáfora delirante encontra em P3 suas condições de possibilidade, pois há, em P3, a localização do gozo a partir do destaque de um significante Ideal que organiza a cadeia e o consentimento com o gozo do Outro, com conseqüentes efeitos pacificadores sobre o gozo invasivo.

Acreditamos que, mesmo tendo em mente essa lógica, não devemos alçá-la à condição de ideal a ser necessariamente alcançado pelo tratamento. Muitos psicóticos nem sequer conseguem chegar a P1, enquanto outros não saem dessa tentativa desordenada de significantização, sendo raros os psicóticos que alcançam a pacificação descrita em P3. É preciso que estejamos atentos às possibilidades de localização de gozo próprias a cada sujeito.

Além disso, mesmo nos delírios que alcançam P3, as organizações estão sujeitas a desestabilizações, de modo que este ponto de acabamento não é necessariamente uma solução definitiva. E mais: mesmo nas organizações delirantes mais estáveis, há sempre um resto inassimilável que subsiste para além do trabalho de elaboração delirante, como um “un eco de la violencia ejercida por las iniciativas del Otro” (Maleval, 2002, p. 283). Algo do real persiste às tentativas de regulação do gozo pela linguagem, apontando, conforme já mencionamos, para uma falta estrutural no Outro, constituinte da ordem simbólica enquanto tal.

O risco da assimilação mortífera com a posição de objeto do gozo do Outro está sempre presente na psicose, como vimos desde Freud (1911/1987), quando este ressalva que o delírio mantém a posição narcisista do eu, embora, paradoxalmente, constitua uma tentativa de produzir um descolamento entre o eu e o objeto através da construção de uma proporção.

Trata-se de uma ressalva importante quando nos questionamos sobre as possibilidades e limites do trabalho de estabilização veiculado pelo delírio. Em muitos casos, como já pontuamos, as tentativas de localização de gozo vão se dar por vias que podem inclusive prescindir totalmente do delírio, ou ainda por vias que passam pelo delírio, mas não se restringem a ele.

 

Referências

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Submetido em: 13/02/2011
Revisto em: 09/05/2011
Aceito em: 19/05/2011

 

 

1 Artigo produzido a partir de pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, orientada pela professora Ana Maria Medeiros da Costa e financiada pelo CNPq.
2 Traduzido por carcaça, rameira, safada, segundo Munõz (2005).

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