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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Brinquedoteca na escola: tempos/espaços e sentidos do brincar

 

Toylibrary in school: time/space and senses to play

 

Ludoteca en la escuela: tiempo/espacio y sentidos del jugar

 

 

Marina Corbetta BenedetI; Andréa Vieira ZanellaII

IDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil. marinabenedet@hotmail.com
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Santa Catarina. Brasil. avzanella@gmail.com

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo analisar como crianças, mães e professoras significavam o brincar em uma escola que tem uma brinquedoteca. Essas análises possibilitaram refletir sobre a importância do brincar para os processos de desenvolvimento e aprendizagem. As informações foram coletadas por meio de entrevistas e analisadas com base nas contribuições sobre discurso do Círculo de Bakhtin. Constatou-se que o brincar é visto por uma lógica dicotômica, não sendo entendido em relação ao aprender. A brinquedoteca, por sua vez, apresenta-se como lugar de contradição à medida que é um lugar para o brincar em uma instituição para o aprender. Como conclusões, destaca-se que a brinquedoteca, ao mesmo tempo em que é apontada como um lugar de institucionalização do brincar, também se apresenta como possibilidade de estetização do aprender.

Palavras-chave: Brincadeira; Brinquedoteca; Tempo/espaço do brincar; Escola.


ABSTRACT

This study aimed to examine how children, mothers and teachers gave meaning to the act of playing in a school that has a toy library. This itself allowed analysis reflect on the importance of space and time of play for the processes of learning and development. Information was collected through interviews and analyzed based on the input speech on Bakhtin Circle. It was found that the act of playing is seen by a dualistic logic, not being understood in relation to learning. The toy library, in its turn, presents itself as a place of contradiction as it is a time/space to play in an institution for learning. In conclusion, it is emphasized that the toy library, while it is pointed out as a place of institutionalization of the act of playing, is also considered the possibility of aesthetic learning.

Keywords: Play; Toy library; Time/space of play; School.


RESUMEN

La propuesta de este estudio fue analizar cómo los niños, madres y maestros significaban lo juego en una escuela que cuenta con una ludoteca. Estas analices permitieron reflejar sobre la importancia del juego para los procesos de aprendizaje y desarrollo. La información fue recogida mediante entrevistas y analizada sobre la base de las contribuciones del Círculo de Bakhtin sobre el discurso. Se encontró que el juego es visto por una lógica dualista, no se entiende en relación con el aprendizaje. La ludoteca, a su vez, se presenta como un lugar de la contradicción, ya que es un espacio para jugar en una institución para el aprendizaje. En conclusión, podemos señalar que la ludoteca al mismo tiempo es visto como un lugar de la institucionalización de lo jugar, también se presenta como una posibilidad estética de aprendizaje.

Keywords: Jugar; Ludoteca; Tiempo/espacio de jugar; Escuela.


 

 

Brinquedoteca na escola: sobre os tempos/espaços e os sentidos para o brincar

“[...] aquilo que não pode faltar durante a infância: que todas as crianças possam ouvir histórias, andar na chuva e brincar de adivinhação” (Santa Catarina, 2005, p.55)

Uma breve pesquisa nos Bancos de Dados é suficiente para constatar que há significativa produção sobre o brincar, em sua amplitude de possibilidades. Estudos como os de Pereira (2004), Zanella e Andrada (2002), Conti e Sperb (2001) e Rocha (1997) têm mostrado o quanto o brincar é essencial para promover o desenvolvimento da capacidade simbólica das crianças, possibilitando-lhes a compreensão das regras sociais e o desenvolvimento de processos psicológicos superiores. Na atualidade, a despeito desses estudos, vem ocorrendo um processo de redução do tempo e espaços para a brincadeira no cotidiano das crianças. De acordo com Marcelino (1997), essa restrição reduz a cultura infantil quase que praticamente ao consumo de bens culturais, produzidos não por ela, mas para ela, segundo os critérios dos adultos.

A violência e a mercantilização do tempo nas cidades faz com que, na grande maioria das vezes, a escola seja um dos únicos locais a oferecer à criança espaço para brincar. Entretanto, o caminho pelo qual o brincar consegue se inserir na escola de Ensino Fundamental, muitas vezes, é por meio do adjetivo educativo. Fato constatado por Marcelino (1997), que afirma: “raramente a atividade lúdica é considerada pela Escola, e quando isso ocorre, as propostas são tão carregadas pelo adjetivo ‘educativo’, que perdem as possibilidades de realização do brinquedo, da alegria, da espontaneidade, da festa” (p.85).

Uma das possibilidades para a inclusão do brincar nas atividades cotidianas no Ensino Fundamental tem sido a criação de brinquedotecas nas escolas, a fim de estabelecer uma forma diversificada de compreensão do desenvolvimento e aprendizagem da criança em idade escolar. Consoante com essa perspectiva, uma escola no estado de Santa Catarina organizou uma brinquedoteca, inaugurada em 2003, para proporcionar um espaço de aprendizagem e desenvolvimento diferenciado aos alunos. As crianças que frequentavam essa escola tinham a possibilidade de utilizar a brinquedoteca em horário de aula, acompanhadas por seu (sua) professor (a) e/ou por bolsistas, todos mediadores da atividade lúdica, sendo essa ação contemplada no currículo escolar.

No ano de 2005, entretanto, uma discussão a respeito da carga horária instituída para ministrar as disciplinas curriculares levou ao questionamento da inclusão da brinquedoteca na grade curricular. Em consequência, a brinquedoteca passou a não ser mais contemplada pelas turmas no horário de aula, mas houve a possibilidade de ser utilizada no contra turno. Tendo em vista essa mudança, este trabalho buscou investigar quais os sentidos atribuídos à brinquedoteca pelas professoras, pais/responsáveis e crianças das Séries Iniciais dessa escola. Partindo dessa pergunta de pesquisa, analisaram-se como esses sujeitos significavam o brincar na escola, as dissonâncias e consonâncias entre os discursos. Isso possibilitou refletir sobre a importância da brinquedoteca para o processo de desenvolvimento e aprendizagem, bem como sobre a necessidade desse espaço no contexto escolar. Ademais, foi possível discutir as implicações das mudanças efetuadas, ou seja, a possibilidade de utilização da brinquedoteca nos turnos ou contra turnos.

 

O caminho metodológico...

Partindo da perspectiva histórico-cultural, compreende-se que o estudo das atividades caracteristicamente humanas deva ter como base uma visão histórica, ou seja, deva estudar o fenômeno em movimento e compreender que a pesquisa se constitui “como criação de territórios de conhecimentos-subjetividades que põem em movimento, no mesmo ato, conhecimento, intervenção e autoria” (Maraschin, 2004, p.99). A pesquisa, nessa perspectiva, sempre é uma intervenção na realidade, através da qual pesquisador e sujeitos da pesquisa constroem conjuntamente sentidos e transformam-se neste processo. Considera-se importante ressaltar que, entendido como momento de construção de sentidos e de constituição mútua entre pesquisador e sujeitos da pesquisa, o diálogo é imprescindível, pois permite apreender que os sujeitos produzem sentidos e ressignificam seu cotidiano durante a pesquisa, de modo que os fenômenos humanos devem ser estudados em seu dialogismo, ou seja, a partir de interrogações e trocas.

Para a realização desta pesquisa, foram eleitos os alunos de uma escola da Rede Pública de Educação, regularmente matriculados na quarta série do Ensino Fundamental do ano letivo de 2006, e seus respectivos pais/responsáveis e professores. A escolha por ouvir esses sujeitos deu-se pelo fato de os mesmos terem frequentado a brinquedoteca da referida escola durante todo o período das Séries Iniciais. Para corresponder aos objetivos desta pesquisa, buscou-se manter uma equidade entre os participantes de cada uma das três quartas séries da escola, respeitando os critérios de repetição e incompletude de informação.

Após uma seleção prévia de vinte e uma crianças, perguntou-se às crianças sobre seu interesse em participar da pesquisa, após breve apresentação dos objetivos da mesma. Das crianças questionadas, dez informaram que gostariam de participar da pesquisa, sendo encaminhado um bilhete de apresentação da pesquisa para seus pais/responsáveis. Dos bilhetes encaminhados, somente sete retornaram. Posteriormente, entrou-se em contato, via telefone, com os pais/responsáveis dessas sete crianças, marcando horário para conversarmos – a fim de esclarecer os objetivos da pesquisa, pedir autorização para participação da criança e também realizar entrevistas com os pais/responsáveis. Entretanto, muitas mães não compareceram aos encontros marcados, de modo que, respeitando o tempo para a coleta das informações, foram realizadas entrevistas com apenas três mães e três crianças. Concomitante a isto, os (as) professores (as) das três quartas séries foram consultados (as) sobre sua disponibilidade para participarem da pesquisa, para os (as) quais também os objetivos do trabalho foram apresentados, e todos aquiesceram.

Para a coleta das informações, considerando-se a natureza do problema a ser investigado, optou-se pela entrevista, como meio de acesso aos sentidos da brinquedoteca e do brincar na escola para os sujeitos pesquisados. Desse modo, as entrevistas foram realizadas com base em um roteiro, mas sempre permitindo a abertura para o diálogo, para o encontro, para a construção de uma relação dialógica. Partindo de Bakhtin (1977/2004), as entrevistas se constituem como diálogos, vistos como uma arena onde há abertura para a produção de sentidos, sendo que esses, por sua vez, não são unívocos, trazem não só a voz de seu autor, mas várias outras (discursos), constitutivas dos sujeitos. Buscando justamente a compreensão dos sentidos produzidos pelos sujeitos da pesquisa, o tratamento das informações foi realizado pela Análise de Discurso, a partir das proposições do Círculo de Bakhtin. Para Bakhtin (1977/2004), todo discurso reflete e refrata uma realidade, sendo indispensável compreender os modos pelos quais essa realidade é refletida e refratada na singularidade dos discursos dos sujeitos.

De acordo com Amorim (2003), “[...] todo discurso produz-se como ato num contexto singular e irrepetível. Podemos dizer que a teoria de Bakhtin conceitua o discurso enquanto acontecimento em que a diferença entre valores desempenha papel fundamental na produção de sentidos” (p.18), sendo tais sentidos sempre polifônicos, ou seja, o que o sujeito enuncia enquanto seu é marcado pelos enunciados do momento histórico em que vive e pela realidade na qual está inserido. Além disso, Bakhtin (1977/2004) também ressalta que “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata” (p.112), de modo que não se pode esquecer o lugar ocupado pelos participantes, durante as entrevistas, e o modo como esses lugares marcam diretamente os discursos construídos. Desse modo, buscou-se entender e identificar quais são essas outras vozes contidas nos discursos dos sujeitos da pesquisa; bem como os entrelaçamentos entre os discursos de mães, professoras e crianças e suas relações com a cultura escolar e social.

Igualmente necessário é ponderar que todo discurso deve ser analisado levando em conta a relação na qual se insere. Isso implica considerar: quem fala, para quem fala, de onde fala, por que fala, como fala. Essas são questões essenciais à análise do discurso, tendo em vista o que Bakhtin (1977/2004) propõe: “a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta” (p.125), pois ela envolve para além das palavras o campo extralinguístico do não dito, dos silêncios que falam (Bakhtin, 1976).

Ao longo da leitura e releitura das entrevistas, foi-se constituindo o processo de análise e emergiram as seguintes unidades de análise: brincar/aprender; tempos/espaços do brincar na escola; brinquedoteca como institucionalização do brincar; brinquedoteca como espaço/tempo do criar. Essas unidades não são consideradas estanques nem separadas, sendo apresentadas ao longo deste artigo. Cabe salientar que neste artigo não serão apresentadas todas as unidades de análise, mas sim as discussões gerais trabalhadas na pesquisa realizada sobre a temática.

 

Brincar e aprender: relações (im)possíveis

A partir do referencial teórico-metodológico supracitado, apresenta-se a primeira unidade de análise construída com a leitura, releitura e diálogo com os discursos produzidos nas/pelas entrevistas: as relações dicotômicas entre o brincar e o aprender. Assim, o brincar foi-nos apresentado por duas crianças como contraposto ao aprender, sem que pudessem estar relacionados. Flávio1 (criança) e Joana (criança) afirmaram:

Pesquisadora – Quando tu brincas, como é que tu te sentes assim?
Flávio – Bem... alegre... feliz...
Pesquisadora – É importante brincar?
Flávio – Não sei... também brincar até um limite, não brincar tanto.
Pesquisadora – Ah... como assim, me explica como é que é brincar até um limite, como que você vê?
Flávio – Não fica brincando o dia todo, não... não... fazer algumas coisas diferente, não fica brincando o dia todo. Estuda... [...] Tem que estudar é... ler.

Pesquisadora – E... na tua opinião, tu acha que as crianças brincam demais na escola ou elas deveriam brincar mais na escola?
Joana – Deveriam brincar menos né.
Pesquisadora – Brincar menos?
Joana – Na hora da sala né.

Essas falas remetem ao entendimento de que o brincar é uma atividade contraposta a outras, socialmente valorizadas, como: estudar/ler. Nesse discurso, ecoam várias vozes, nas quais estudar/ler/aprender são atividades sérias, aparentemente opostas ao brincar/divertir-se. Para um adulto, deparar-se com vozes infantis atravessadas pelo discurso dos adultos chama a atenção: crianças que consideram o brincar uma atividade a ser limitada, pois têm de estudar/ler ou, ainda, assinalam que a sala de aula não é lugar para brincar.

Ouvindo as crianças, questionamos se, de fato, elas sentem que devem ter limites. Será que acreditam não aprender ao brincar? Muito provavelmente elas, de fato, entendem o brincar como algo à parte da escola, ratificando os discursos historicamente produzidos a respeito da função da instituição escolar na sociedade. Consideramos que os discursos de Flávio e Joana refratam e refletem a realidade apontada por Sanchez-Vazquez (1999) ao considerar as relações prático-produtivas e/ou prático-utilitárias. De acordo com esse autor, tais relações constituem modos de os sujeitos atuarem em um mundo onde a prioridade se dá na intervenção à natureza, transformando-a em objetos a serem utilizados e consumidos.

Pensando que a contemporaneidade se fundamenta nos princípios do capitalismo, o dito popular “tempo é dinheiro” seria a melhor tradução da episteme dessa lógica social. Portanto, acreditamos que Flávio e Joana apontam para: existem coisas mais importantes/valorizadas, a serem, feitas do que brincar. Desse modo, o brincar só cabe na escola quando estiver direcionado à produção de algo, ou seja, somente quando vinculado ao pedagógico ou educativo, ou mesmo, quando direcionado pelo professor. Essa é a ideia que Karol (professora) traz sobre o brincar e a sala de aula.

Karol – [...] eu penso assim, que uma das, é muito fácil você é... se você não faz um brincar... um brincar, digamos, uma coisa consciente, uma coisa planejada com as crianças, com os teus alunos, ele cai fácil na indisciplina, entende como é que é?
Pesquisadora – Você tá falando especificamente do trabalho em sala de aula?
Karol – Exatamente, especificamente o trabalho em sala de aula. Você tem que tentar instigar o brinquedo e a instigação pra que ele produza alguma coisa, entende como é que é? Pra que haja um crescimento é... senão fica... fica uma coisa vazia, fica uma coisa sem resultado, entende.

É interessante perceber que a fala da professora Karol ilustra de maneira explícita como o brincar deve ser produtivo, construindo a ideia de um brincar compatível com o aprender. No entanto, aquele só tem valor quando direcionado pelo professor e, ainda, gerar um produto antes planejado. Considerando que Karol é professora de Flávio, também se pode perceber como suas falas se intercruzam, quando Karol afirma ter o brincar de produzir algo ou quando Flávio aponta não dever apenas brincar, pois isso tem um limite; deve-se estudar, ler. Esse intercruzamento dos discursos de Karol e Flávio nos remete à contribuição de Pinto (2003), que pondera que as crianças, quando interrogadas sobre a possibilidade ou não de brincar em sala de aula,

[...] parecem indicar uma certa internalização de crenças e preconceitos, certamente transmitidos pelos adultos [...]. Exemplo: que a sala de aula não é lugar para brincar; quem brinca não aprende etc. Mesmo afirmando muitas vezes que gostariam de brincar também na sala de aula e que muitas vezes sentem vontade de sair dela para brincar, estas crianças acham ‘natural’ que na sala de aula o brincar seja proibido! (Pinto, 2003, p.140).

Dessa forma, crianças, pais e professores são coautores dessa (re)produção da cultura escolar, que acaba cindindo não só a relação entre aprender e brincar, trabalho e lazer, como divide o próprio sujeito criança, de acordo com os espaços autorizados, ou não, para o brincar. Essa ideia é de tal maneira posta, que Amanda (professora) e Solange (mãe) indicam a cisão entre aprender e brincar, tomando corpo na separação entre criança e aluno.

Amanda – Então... eu penso assim, que a escola, ela acaba tendo... não digo uma falha, mas uma questão muito importante a ser questionada é que quando a criança chega na escola ela deixa de ser criança, parece que ela deixa de ser criança e passa a ser um aluno. Nós professores temos essa tendência de olhá-los como alunos esquecendo que são crianças.
Pesquisadora – Você vê, então, uma dicotomia entre criança e aluno?
Solange – Acho, é acho.
Pesquisadora – Em que sentido, você poderia me dizer assim? Quando você faz essa diferença, quando você estabelece essa diferença?
Solange – Pensando no brincar, aquilo que eu já tinha te falado né, o brincar ele... a criança gosta de brincar, o aluno não deve brincar na sala de aula.

Tal divisão do sujeito criança entre aluno e criança pode ser entendida se lembrarmos que o sujeito se constitui na atividade, à medida que constrói a atividade. Diferentes lugares são ocupados em diferentes atividades realizadas, de tal maneira que, ao ser reconhecido, o sujeito se reconhece; apropriando-se de seu fazer e do seu lugar no mundo. Na escola, lugar de aprender, a criança é aluno, faz-se aluno e se reconhece como aluno, à medida que assim é reconhecido. Isso significa dizer que a atividade fundante desse sujeito aluno é o processo de ensinar-aprender.

Nuernberg (2002), ao investigar os lugares sociais produzidos/ocupados dentro da escola, afirma que “[...] ficou claro que professora e alunos não negociavam apenas saberes, mas também os sentidos dos lugares simbólicos que ocupavam naquelas relações: o lugar social de professora e o de aluno” (p.230). Nessa negociação é evidente que, conforme o autor, os próprios lugares sociais estão “[...] em constante movimento de significação, o que lhes proporciona o status de processos (re)produzidos entre e pelos sujeitos” (p.235). Tendo em vista os diferentes lugares sociais ocupados/produzidos pelos discursos, as dicotomias brincar/aprender, trabalho/lazer, criança/aluno são também cristalizadas com a asserção de os conhecimentos trazidos pelos professores serem os ditos científicos, em oposição aos demais, socialmente produzidos (no campo da arte, da religião, da filosofia ou do senso comum). Conforme Nuernberg (2002), ao ocupar diferentes lugares sociais, mutuamente construídos e significados, efetua-se um contrato, onde: o professor sabe, a autoridade é constituída de saber, formando uma hierarquia. Nessa perspectiva, ao definir o lugar daquele sujeito criança como aluno, a professora define o seu lugar, a sua função e igualmente seu espaço e o que ali lhe cabe.

Ampliar as condições do aluno-criança é ampliar as suas funções para além do lugar confortável de professora, como aquela que repassa informações. Essa ampliação de funções está para além do campo dominado e para o qual ela não foi formada. Desse modo, a produção da diferença entre brincar/criança e aprender/aluno torna-se necessária para manter a disciplina, o controle e os lugares sociais definidos – como o da instituição formadora (a escola), uma vez que o brincar exige uma outra relação entre professor e aluno (qual seja, de educador e educando). Essa relação diferenciada implica um professor que também brincará e interações não mais partidas em hierarquias de saber-poder. Na perspectiva da racionalidade moderna, que dicotomiza a produção do conhecimento e a criatividade (como se produzir conhecimento não implicasse um processo criativo), a própria sala de aula, como espaço de construção do conhecimento, está atrelada à (re)produção. Na fala de Suélen (mãe), o brincar não cabe à sala de aula, já que o saber ali produzido/veiculado/apreendido é científico:

Suélen – Aqui [sala de aula] eu tenho que entrar e me concentrar né. É... matérias né, que são... mais científicas né.

Pesquisadora – [...] você acha que as crianças brincam demais ou elas precisam brincar mais na escola?
Flávio (criança) – Na escola, eu acho que tá bom assim, brincar. Que a gente tem educação física também, aula de artes.
Pesquisadora – Ah, nessas aulas também dá pra brincar então? De artes e de educação física?
Flávio – (faz que sim com a cabeça).

Pesquisadora – Na escola, tem lugar pra brincar?
Esmeralda (mãe) – Na escola tem... tem as quadras, lá que eles jogam futebol, tem a aula de educação física. A própria brinquedoteca, então... eles tem sempre educação física durante a semana, tem as aulas mais descontraídas né.

É possível perceber a contraposição, feita por tais sujeitos, entre as disciplinas de sala de aula (consideradas científicas) e aquelas onde é possível brincar, movimentar-se, criar e recriar (Educação Física e Artes). Isso aponta para a cisão entre diferentes campos de saber: algumas disciplinas escolares acabam sendo reduzidas ao mero divertimento, como se não houvesse saberes/conhecimentos científicos nas Artes e na Educação Física. A descaracterização do conhecimento nestas disciplinas remonta a discussão que Da Ros (2007) apresenta, ao indicar o lugar que a ciência ocupa na atualidade. Há uma descaracterização do conhecimento produzido pelas Artes e Educação Física, já que se constitui em uma forma distinta de conhecer a realidade daquela proposta pela ciência moderna.

Souza (1999), sobre a divisão das disciplinas na escola, pondera que

[...] além das pautas de aprendizagem do significado escolar e cultural do tempo fixado nos horários pela distinção entre tempo de trabalho e descanso, tempo ocupado e tempo livre, tempo de aprender e tempo de brincar, tempo de atividade e tempo de ócio, tempo de silêncio e tempo de falar, os horários consubstanciavam ainda a fragmentação do saber, indicando o quanto aprender de cada matéria e a hierarquia de valores que cada uma possuía pelo tempo a ela destinado (Souza, 1999, p.139).

Desse modo, podemos ver nos currículos atuais o lugar ocupado por cada disciplina, lembrando que Língua Portuguesa e Matemática são as que, constantemente, obtêm maior carga-horária, seguidas das disciplinas de Estudos Sociais (História e Geografia) e Ciências. A seu turno, uma menor carga-horária é dispensada ao Ensino Religioso, Artes e Educação Física.

Cabe retomar as proposições de Gaya (2006), pois as disciplinas de Educação Física e Artes são as que fragmentam, de alguma maneira, a lógica cartesiana da cultura escolar; remetendo a uma criança que possui um corpo significado, que sente e que pensa. É importante refletir também sobre as considerações de Maheirie et al. (2006), ao afirmarem que “uma escola com práticas e relações ‘quadradas’ está diretamente relacionada à constituição de sujeitos ‘quadrados’, que não conseguem vislumbrar possibilidades de criação da existência, presos à repetição e a não reflexão da realidade” (p.248). Essas reflexões apontam o quanto a cultura escolar (re)produz os valores sociais postos, parecendo serem tais significados da escola e da sociedade naturais, a-históricos.

Freire (1996) lembra que “a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética” (p.32). Vigotski (2001), por sua vez, afirma que a estética, nos espaços de educação sistematizada, deve possibilitar aos sujeitos a “elaboração criadora da realidade, dos objetos e seus próprios movimentos, que aclara e promove as vivências cotidianas ao nível de vivências criadoras” (p.352). Isso implica dizer que, ao considerar a produção do conhecimento distinta/separada dos processos de criação, retira-se do sujeito a possibilidade de re-significar a realidade e produzir novos sentidos necessários à reinvenção da própria existência singular e coletiva.

Karol (professora), que afirmou ser o brincar na sala de aula possível apenas quando direcionado pelo professor, justamente descaracteriza a possibilidade de (re)criação dessa atividade, entendida em sua dimensão estética. E ela o faz quando considera o espaço de sala de aula como lugar da razão, da disciplina e da seriedade. Além disso, a professora atrela exclusivamente o brincar, nesse espaço, à aprendizagem de conteúdos escolares.

Pesquisadora – Você falou de um brincar planejado. Como você vê essa questão? Como seria esse brincar planejado, com um objetivo? Qual seria esse objetivo?
Karol (professora) – É, eu vejo da seguinte forma: a partir do momento que você tá trabalhando numa sala de aula, você planeja as tuas aulas né. Então, por exemplo, eu sei que nas quintas-feiras eu tenho as cinco aulas, então, por exemplo assim, vamos considerar que se eu trabalhar só na questão da explicação e de atividade relacionada a ele... talvez naquelas cinco aulas isso não seja tão interessante e eles possam não absorver o conteúdo do jeito que eu quero. Nada me impede que nessas cinco aulas e dentro daquilo que eu tô programando de conteúdo, eu não faça uma brincadeira.
Pesquisadora – Com o objetivo último de absorver um conteúdo também?
Karol – Exatamente, atingir o conteúdo também né. Eu acho que isso aí é muito importante. Você pode fazer, você pode trabalhar, você pode brincar com um jogo, você pode fazer um teatrinho, você pode fazer “n” coisas e atingir esse objetivo.

A própria palavra utilizada pela professora para definir o aprender (qual seja, absorver) é bastante expressiva e evidencia toda uma compreensão acerca da relação ensino-aprendizagem, tangenciando a questão da brincadeira: “talvez naquelas cinco aulas isso não seja tão interessante e eles possam não absorver o conteúdo do jeito que eu quero”. Absorver provoca um deslize de sentidos, que denota um aluno-esponja; que não cria e sim recebe; suga e, portanto, não deve e nem precisa brincar. Absorver é colocar de fora para dentro, movimento sem transformação da matéria-conteúdo: apenas uma mudança de localização. O “do jeito que eu quero”, por sua vez, reafirma o lugar de reprodução, pelo aluno, do que é planejado pela professora: um saber-poder.

No entanto, tais discursos sobre o brincar educativo, com o objetivo final de aprendizagem de conteúdos específicos, também trazem consigo oposição ao trabalho, já que estão relacionados a uma possibilidade de descontração, recreação. Esse sentido, atribuído ao brincar na sala de aula, apresenta-se igualmente na fala de Esmeralda (mãe), ao dizer que, “[...] às vezes, com a brincadeira tu aprende, se a professora explicasse seriamente tu não aprenderia”. Isso ressoa também em outras falas, como as da professora Karol. Aquelas carregam, numa complexa relação dialógica, tanto o discurso do brincar/trabalho – que possibilita a apreensão de conceitos científicos, e é, portanto, sério, disciplinado e racional –, quanto o brincar/recreação – relacionado a uma forma de descontração, uma atividade prazerosa, ou uma maneira de descansar do trabalho. Gaya (2006) pontua bem a divisão do tempo na escola, de maneira a dar vazão ao excesso de energia, de descansar trabalhando. Numa lógica capitalística, descansa-se do trabalho trabalhando com prazer. Sendo assim, não se pode “perder” tempo algum. O aluno pode até brincar, pois isso se constitui em moeda de troca na hora da produção. Brinca-se para aprender.

 

A brinquedoteca como institucionalização do brincar

“As crianças devem brincar onde se pode brincar” (Tonucci, 2005, p.42)

Há na escola tempos e espaços onde se pode brincar, sendo as possibilidades de criação de outros tempos/espaços para o brincar, em alguns momentos, vista como indisciplina e, em outros, como possibilidade de criação/linguagem da criança. Apresenta-se aqui a segunda unidade de análise: tempos/espaços do brincar na escola. Sendo a brinquedoteca o espaço/tempo instituído como outro para brincar – tendo sido marcada, desde sua fundação, pelo paradoxo de um lugar para o brincar em um espaço onde o brincar, por vezes, não é valorizado –, interrogo quais as relações entre os sentidos atribuídos à brinquedoteca e aqueles atribuídos ao brincar na escola?

Pesquisadora – Na escola, tem lugar pra brincar?
Esmeralda (mãe) – Na escola tem... tem as quadras lá que eles jogam futebol, tem a aula de educação física. A própria brinquedoteca.

Amanda (professora) – Hoje na escola eu percebo que o tempo não é muito voltado pro brincar não.
Pesquisadora – Não?!
Amanda – Eu percebo. Os tempos são esses do recreio, do brincar e o espaço da brinquedoteca, mas hoje com uma interrogação muito grande [...].

Conforme apontado nas falas, a brinquedoteca, primeiramente, apresenta-se como um espaço instituído para o brincar, assim como: o recreio, a entrada e saída de aula e as aulas de Educação Física e Artes. Sendo assim, cabe problematizar como o brincar se insere na brinquedoteca, pois a instituição de tempos/espaços para o brincar respondem à lógica da nossa sociedade. E, nesse contexto, as relações prático-produtivas e prático-utilitárias são privilegiadas. Assim, o brincar, se não participa do ciclo produtivo (educativo/pedagógico), adquire o caráter de mal necessário (lazer/recreação) à reposição de energias para as atividades realmente importantes. Pode-se perceber isso na fala de Solange (mãe).

Pesquisadora – É... como um espaço de brincar [brinquedoteca] já que não tem outros lugares pra brincar?
Solange (mãe) – É... mas não só de brincar né, é... não sei assim as potencialidades que poderia ter uma brinquedoteca dentro do processo de ensino e aprendizagem, criando desafios, criando jogos novos, e... coisas que mobilizem a criança a ponto de ela pensar que vai pra uma determinada aula de uma matéria qualquer, vai pra explorar determinados brinquedos, vai pra explorar determinadas leituras.

O brincar na brinquedoteca apresenta-se com o objetivo de complementar/auxiliar o processo de ensinar e aprender conteúdos presentes na grade curricular. Desse modo, sendo o professor quem detém o poder de decisão no contexto escolar (na medida em que se supõe a ele um saber não possuído pela criança), é ele quem deve direcionar e condicionar o brincar na brinquedoteca. Isso também porque essa é inserida na escola, com uma perspectiva de produção de materiais/conteúdos curriculares. Esse discurso também é proferido por Esmeralda (mãe):

Pesquisadora – Como é que você vê a brinquedoteca dentro da escola?
Esmeralda (mãe) – sei lá... eu acho que ele aprende algo lá que não... que é divertido.
Pesquisadora – Você pensa que é necessário?
Esmeralda – Ah, eu acho necessário, porque lá na pracinha, vai todo mundo lá... e na brinquedoteca, pelo que eu entendendo que ele [Flávio] comenta, é aquela turma que vai ser... que vão prestar atenção, que vão passar algo pra eles.

É possível perceber o quanto a lógica apontada por Lafargue (1977), de que o trabalho (ensino) é a base da nossa sociedade, está presente no discurso de Esmeralda (mãe). Esta, por mais que desconheça os objetivos da brinquedoteca no espaço escolar, sugere que os presumidos (Bakhtin, 1977/2004) tenham a ver com um brincar como para aprender algo; lugar/tempo onde alguma aprendizagem de conteúdo é produzida. Vejamos o que Sabrina apresenta em seu discurso.

Sabrina (criança) – Tava esperando pra responder isso. Na brinquedoteca assim, quando a mãe pergunta o que a gente fez na brinquedoteca, “-Ah, brinquei”, não tem mais o que dizer. Devia ter outras atividades lá, né, pra gente dizer que fez.
Pesquisadora – Você acha que os pais não deveriam perguntar o que fez?
Sabrina – Não, eu acho que tinha que ter outras atividades assim, não só brincar.
Pesquisadora – É isso que deveria ser diferente?
Sabrina – É, porque a gente vai dizê pra mãe e pro pai que brinca, mas não do que brinca né, vai dizer tudo o que a gente brinca, então devia ter outras atividades, pesquisa assim né.
Pesquisadora – E você acha que a gente aprende na brinquedoteca?
Sabrina – Acho que não, porque é só brincar né, não tem outras atividades assim pra aprender.

Sabrina (criança) também aponta a contradição entre brincar e aprender: na brinquedoteca não se aprende “porque é só brincar né”; não tem pesquisa e outras atividades de aprender, como complementa na fala: “a biblioteca a gente estuda, na brinquedoteca a gente brinca. Aqui na biblioteca tem que fazer silêncio, na brinquedoteca não, a gente corre, brinca” (Sabrina – criança). Além disso, a menina revela um constrangimento quando afirma não ter o que contar aos pais sobre o que faz na brinquedoteca, como se realmente esse fosse uma perda de tempo. Isso ocorre porque criança tem como obrigação relatar aos pais o que faz na escola e, então, preocupa-se em dizer que brincou (entendendo isso como não-fazer).

Sempre necessitamos do reconhecimento de um outro, sendo o brincar apenas reconhecido como importante, no contexto escolar, se assim o for por muitos outros. Conforme Vigotski (1929/2000), “através dos outros constituímo-nos” (p.24), de maneira que precisamos sempre do reconhecimento de um outro para constituirmo-nos como sujeitos. Bakhtin (1979/2003) também fala da necessidade estética que temos do outro que nos dá um acabamento, ou seja, uma estética da alteridade. Essa compreensão aponta a necessidade que sentimos desse outro e de seu reconhecimento; necessidade que Sabrina justamente revela ao não saber o que falar aos pais sobre um reconhecido não-fazer (o brincar), em um espaço de fazer (aprender). Os discursos a seguir contribuem para essa discussão.

Suélen (mãe) – Separei bem a sala de aula da brinquedoteca. [...]. Aqui [sala de aula] eu tenho que entrar e me concentrar né. É... matérias né, que são... mais cientificas. E lá [brinquedoteca] não! Lá eu posso criar, lá eu posso... né.

Karol (professora) – [A brinquedoteca] vai ser um espaço onde eu [criança] vou ter mais liberdade de criar? Vai! Isso eu tenho que deixar esclarecido pra criança. Isso tem que deixar esclarecido pra criança né. E esse espaço é um espaço realmente mais destinado pra que a criança crie.

Pesquisadora – E o que você mais gosta da brinquedoteca?
Sabrina (criança) – Gosto da fantasia, das roupas, assim como eu gosto de criar muito, eu gosto da fantasia, dá pra criar.

É possível perceber, na fala de Suélen (mãe), que o espaço da brinquedoteca contrapõe-se ao da sala de aula, por sua possibilidade de criação. Na brinquedoteca, por não haver as amarras características das salas de aula, em sua lógica conteudista, existe a liberdade para (re)criar, ressignificar, produzir sentidos outros para o vivido/experienciado. Axt e Elias (2004) argumentam que

a aprendizagem escolar, concebida como transmissão de informações/conhecimentos, é marcada por pontos de partida e pontos de chegada previamente definidos. Movimento supostamente homogêneo, funcionando como elemento disciplinador, a partir de uma idealidade totalizante que deve responder a uma certa ordem e a uma determinada disciplina com vistas a atingir determinados resultados (Axt & Elias, 2004, p.18),

de maneira tal, que denunciam a realidade ainda presente no contexto escolar – como se na sala de aula não fosse possível criar. A professora Karol também concorda com Suélen (mãe) e com Sabrina (criança), ao revelar, intrinsicamente na fala, a ideia de a brinquedoteca na escola ser o espaço onde a criança tem liberdade de criar.

Contudo, pensamos ser interessante contrastar essa fala de Sabrina (criança) com outras dela própria: ao mesmo tempo em que aponta gostar da fantasia na brinquedoteca (porque ela lhe permite criar mais), argumenta que esse deve ser diferente (pois lá não é possível aprender, apenas se brinca). Pensamos ser essa última fala a que melhor traduz a relação dialógica do brincar/aprender (ciência/arte, trabalho/recreação), apontada nos discursos dos sujeitos entrevistados.

Percebe-se que a possibilidade da brinquedoteca como espaço de (re)criação, negociação, liberdade de expressão da criança, acaba constituindo-se, nesse sentido, em um espaço questionador da lógica da escola. Aquela permite à criança produzir sentidos outros aos espaços institucionalizados onde ela está inserida. Tanto assim, que as professoras complementam suas falas, trazendo o espaço da brinquedoteca como: lugar de expressão da criança; onde ela pode falar dela mesma, lugar onde o professor pode aprender com a criança.

Karol (professora) – Olha só, a criança, vamos dizer assim, se nós adultos impormos muito o nosso mundo, nós não estamos deixando espaço pra que ela cresça. E pra criança, ela precisa também impor o mundo dela, o momento que ela ta vivendo. E... a melhor forma que ela tem pra fazer isso é através do brincar. É uma forma dela ta comunicando como que ela ta se sentindo, como ela ta vendo, como é que ela é... e nós precisamos entender esse momento. Não adianta nós perguntarmos pra criança com o falar do adulto as coisas que a gente quer dela. É muito mais, fica muito mais fácil nós entendermos quando ela nos mostra. E a capacidade que ela tem de mostrar através do brincar, da brincadeira é muito grande.

Pesquisadora – Durante a tua fala eu fui vendo que você distingue esse brincar da brinquedoteca de uma atividade direcionada. E que esse brincar na brinquedoteca seria um brincar mais livre, é isso? É nesse sentido que você trabalha?
Amanda (professora) – É, ele é livre no sentido de que a criança vai decidindo do que ela vai brincar, com quem e quando. E... na minha função de professora, ele é importante porque ele me dá elementos de como fazer minhas intervenções.

Notadamente, perpassa o discurso das professoras a ideia de brinquedoteca como contexto de linguagem. A própria presença física da brinquedoteca pode ser tida como uma linguagem, na medida em que possibilita um espaço organizado com brinquedos, dentro da escola – espaço tido como lugar de trabalho –, permitindo a construção/criação de outros sentidos. E, como linguagem, o brincar se faz como processo de significação da realidade vivida, onde a criança aponta seu modo de compreensão daquilo que a faz sujeito. Isso efetivamente contrapõe-se à lógica institucional de direcionamento do professor, na qual este ensina e a criança aprende; ou como Algebaile (1996) aponta, uma lógica onde a escola oferece muito pouco espaço para as crianças expressarem seus anseios, alegrias, medos, angústias, prazeres, enfim, suas vidas. Há pouco espaço e tempo para o diálogo entre educadores e educandos, para ambos narrarem as suas experiências. A linguagem está encarcerada, cristalizada, fossilizada. Ela é a oficial, a dominante, a que privilegia a norma lingüística, a correção ortográfica e gramatical, em detrimento da linguagem como significado para o educando [...] (Algebaile, 1996, p.122).

Nesse contexto, como fica, pois, entendida a brinquedoteca na escola? Aqui outra contradição se faz presente, sendo ela também dialogicamente articulada. Retomar as discussões apresentadas no item anterior, sobre a necessidade de produção (ou seja, de gerar produtos no trabalho escolar, o que relega o brincar a uma atividade desnecessária), suscita problematizações a respeito da função social da escola. Isso porque atualmente a mesma é destinada à produção de futuros adultos a serviço do projeto capitalista: adultos que estarão no mercado, seguirão regras, produzirão coisas e pensamentos em prol do progresso e desenvolvimento. Dentro dessa lógica, as mudanças de horários e usos da brinquedoteca da escola são justificadas pela escola, seu conjunto de professores, pais e alunos. A brinquedoteca acaba por significar espaço/tempo desperdiçado, desnecessário, sem finalidades práticas imediatas. Essa compreensão aparece nas afirmações das crianças quando associam a brinquedoteca à “perda de tempo”, na medida em que lá “não se aprende nada”. Por outro lado, as mesmas afirmam que esse se constitui em outro, a mais, para brincar – já que resta pouco tempo para fazê-lo na escola.

Pesquisadora – Sobre a brinquedoteca, o que você acha de ter uma brinquedoteca na escola?
Flávio (criança) – Eu acho legal porque tem mais um momento pra... se divertir.

Pesquisadora – O que que tu acha de ter uma brinquedoteca na escola?
Sabrina (criança) – É bom porque a gente tem pouco tempo pra brincar, na brinquedoteca tem mais tempo. São quarenta e cinco minutos.

Pesquisadora – O que faz com que você goste de ir lá [brinquedoteca]? O que faz com que tu vá na brinquedoteca?
Joana (criança) – Porque lá eu tenho tempo pra brincar.

Assim, a brinquedoteca passa a ser entendida como a possibilidade de mais tempo para brincar na escola. Isso remete ao questionamento de como estão organizados os tempos/espaços das crianças, não só dentro da escola – tanto que elas reivindicam mais para brincar.

 

Encerrando a pesquisa, abrindo sentidos...

Entender a relação dialógica, produzida nos discursos, entre o brincar e o aprender na escola foi primordial, pois permitiu perceber que o brincar se apresenta na lógica da racionalidade, da disciplina e trabalho, mas também na da recreação, diversão e lazer. Assim, o brincar é tanto visto como direcionado pelo professor (como o brincar educativo), mas também como autorizado pela instituição escolar (entrada e saída das aulas, intervalo/recreio, aulas de Educação Física e Artes). Nessa perspectiva, o sentido da brinquedoteca, para as mães, crianças e professoras, acaba também se formando na lógica institucional, pela afirmativa de que as crianças devem aprender algum conteúdo nesse espaço. Isso fica claro nas críticas que fazem ao não direcionamento do brincar, ou ao trazerem o presumido (isto é, não se conhece a brinquedoteca, mas supõe-se que, por estar inserida em uma escola, ela deva promover a aprendizagem de determinados conteúdos).

Lafargue (1997) e Sanchez-Vazquéz (1999) auxiliam nessa discussão, apontando o lugar ocupado, respectivamente, pelo trabalho e pelas relações prático-produtivas e prático-utilitárias em nossa sociedade. Isso significa dizer que os discursos dos sujeitos inseridos na instituição escolar são marcados de tal modo, que o brincar passa a ser mal visto e mal compreendido neste espaço. Também Brougère (2004) contribui para o entendimento desse discurso, ao apontar que os investimentos educacionais dos pais e da sociedade, sobre a criança, acabam valorizando somente aquele brincar seguido do adjetivo pedagógico/educativo.

Mas o brincar na lógica prático-produtiva/prático-utilitária tem seu contraponto no brincar/divertimento, recreação – apontado, muitas vezes, como facilitador da aprendizagem. Essa seria outra possibilidade de a criança aprender conteúdos, por ser mais divertida/descontraída. Assim aparece o sentido que Oliveira e Francischini (2003) denotam ao brincar: como simples recreação e que aparece nos discursos de mães e professoras como verdadeira reanimação, no significado literal dessa palavra.

Esta dicotomia entre brincar X aprender reflete e refrata-se na dicotomia entre aluno X criança, indicada nos discursos dos pais e professores. Desse modo, parece que aprender de maneira séria, disciplinada e produtiva cabe ao aluno. Já o brincar serve à criança; é uma maneira de expressar-se; uma atividade “natural” da infância. Essa discussão denota o quanto os lugares sociais são negociados nas relações que estabelecemos; além de remeter aos modos como constituímo-nos sujeitos na atividade, ao mesmo tempo em que construímos a atividade. A criança faz-se aluno (com suas obrigações, deveres e direitos) na relação com a pessoa que se faz professora e com os muitos outros instituidores desses lugares sociais. Isso porque, ao ser reconhecido, o sujeito se reconhece, apropriando-se dos sentidos do seu fazer e do seu lugar no mundo. A atividade se torna mediadora do devir, por meio da qual se arranjam modos particulares de ver e agir na realidade.

O brincar, assim, é igualmente apontado como linguagem da criança, possibilidade de expressão, ressignificação e (re)criação. Neste sentido, a brinquedoteca é lugar de inversão da lógica institucional de direcionalidade do professor, na medida em que permite à criança (re)criar suas vivências, expressar-se, ensinar ao professor. A brinquedoteca acaba constituindo-se em possibilidade de outros afetos, outros sentimentos e sentidos para a instituição escolar.

Naturaliza-se, na instituição escolar, a cultura da escola, como se a estrutura, organização, tempos/espaços e compreensões do que ela seja fossem ad eternum e não houvesse a participação dos sujeitos nesta cultura viva. Ao contrário, a cultura escolar constitui os discursos dos sujeitos, mas estes também a constituem, sendo partícipes dessa produção discursiva por opção e não por falta dela. Maheirie et al. (2006) contribuem com essas reflexões, ao afirmarem que a escola não é vista em sua possibilidade de criação, havendo muitas dificuldades na construção de novos olhares e sentidos no ensino sistematizado. Essa é outra idéia perpassando os discursos dos sujeitos da pesquisa: a sala de aula como lugar de repetição, absorção do conhecimento científico; oposto aos processos de criação. Esses, portanto, acabam restringindo-se às Artes e Educação Física (tidas como disciplinas menos sérias), onde o corpo faz-se presente, havendo a possibilidade de brincar e movimentar-se.

Essa cisão entre produção do conhecimento X imaginação/criação também foi apontada como distinção dos espaços escolares: o aprender em sala de aula é o caminho para a absorção dos conteúdos repassados, ditos científicos; o criar fica a cargo do brincar, possível de realizar-se nas disciplinas de Educação Física e Artes. A brinquedoteca, por também ser um espaço diferenciado da sala de aula, ficou entendida como lugar de (re)criação e ressignificação. Isso faz questionar o modo como as relações de ensinar e aprender vêm sendo entendidas e significadas pelos sujeitos.

Nesse sentido, Zanella (2006) contribui, ponderando a realidade das relações de ensinar e aprender, mas indicando a possibilidade de (re)criação, por meio da relação estética dos sujeitos com o mundo; propiciando contato com outras linguagens, outras lógicas. Nessa perspectiva, o brincar é uma outra linguagem possível na escola; uma possibilidade de (re)criação e ressignificação desse espaço, de ruptura com o já instituído, de estetização das relações de ensinar e aprender.

Nesse caminho de criação possibilitada, de ruptura, o brincar foi apresentado, também, nos discursos dos sujeitos: como possibilidade de transgressão às normas postas. O brincar apresentou-se como inventividade e criação, opondo-se à repetição do trabalho escolar; uma possibilidade de reivindicação, resistência a uma dada ordem social imposta. Consequentemente, a transgressão foi indicada como a possibilidade de criar outros tempos/espaços para o brincar. Quais seriam, então, os tempos/espaços instituídos para essa atividade na escola? Os discursos indicam que eles se restringem ao recreio/intervalo, entrada e saída da aula, aula de Artes e Educação Física, além da brinquedoteca. Mas, como esses tempos/espaços são percebidos pelos sujeitos, também se apresentam na contradição dialógica: o brincar como perda de tempo, mas a brinquedoteca como possibilidade de mais tempo para brincar. Portanto, acabou sendo imprescindível compreender a dialogicidade dos tempos/espaços, pois novas práticas – como a brinquedoteca – contêm velhas concepções (brincar na lógica prático-produtiva/prático-utilitária); ao passo que as mesmas dão condição de possibilidade às novas práticas.

O brincar na escola implica uma outra compreensão ética, mas também estética, do espaço escolar. À luz dessa compreensão, será que a sala de aula permaneceria a mesma? Será que as relações, os corpos, transitariam, aconteceriam, como hoje? O espaço/tempo do brincar ainda é construído como espaço isolado, à parte de como pensar em integrar? Por outro lado, a brinquedoteca seria uma maneira de fazer isso? De outra forma, discutir a construção de tempos/espaços do brincar na escola leva-nos a não apenas almejar crianças criativas, mas também críticas. Há uma postura política, ética e estética no brincar na escola. Acreditamos que, nesse sentido, a presença da brinquedoteca no espaço escolar se justifica, pois possibilita o estranhamento, o desconforto, a contradição necessária à emergência de novas práticas e novos olhares imprescindíveis à reinvenção da vida.

 

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Submetido em: 08/03/2011
Revisto em: 27/04/2011
Aceito em: 27/04/2011

 

 

1 Os nomes referindo-se aos sujeitos da pesquisa são fictícios, em respeito às proposições do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

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