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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Atenção à saúde de pacientes com ambiguidade genital

 

Health care to patients with genital ambiguity

 

Cuidado de la salud a los pacientes con ambigüedad genital

 

 

Susane Vasconcelos ZanottiI; Hélida Vieira da Silva XavierII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Maceió. Alagoas. Brasil. susanevz@yahoo.fr
IIPsicóloga Residente. Hospital Universitário Prof. Alberto Antunes/Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Maceió. Alagoas. Brasil. helida_vieirasx@hotmail.com

 

 


RESUMO

A presente pesquisa buscou conhecer e compreender as ações envolvidas na atenção à saúde de pacientes com ambiguidade genital em um Hospital Geral do Nordeste. A metodologia consistiu em levantamento de dados nos prontuários para identificar os casos de ambiguidade genital atendidos no período de 2003 a 2007 e entrevistas com profissionais da área de saúde. A chegada ao hospital de um sujeito com genitália ambígua fomenta questões delicadas pertinentes ao diagnóstico e tratamento à problemática. Este último esbarra em limitações relacionadas à infraestrutura do hospital. Somado a isso, as dificuldades geradas pela dinâmica hospitalar restringe a conduta dos profissionais de saúde envolvidos na atenção à saúde de pacientes com ambiguidade genital.

Palavras-chave: Ambiguidade genital; Atenção à saúde; Hospital geral.


ABSTRACT

This research aimed to know and understand the actions involved in health care for patients with genital ambiguity in a General Hospital located in the Brazilian Northeast. The methodology consisted of surveying data from medical records to identify cases of genital ambiguity seen in the period from 2003 to 2007 as well as interviews with health professionals. The arrival at the hospital of a subject with ambiguous genitalia raises sensitive issues concerning diagnosis and treatment of the problematic. The latter bumps up against limitations related to the infrastructure of the hospital. Added to this, service fragmentation makes it difficult for health professionals conduct their actions concerning the health care of patients with genital ambiguity.

Keywords: Genital ambiguity; Health care; General hospital.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo conocer y comprender las acciones involucradas en el cuidado de la salud de los pacientes con ambigüedad genital en un Hospital General en el Noreste. La metodología consistió en datos de la encuesta de los registros médicos para identificar los casos de ambigüedad genital atendidos en el período 2003 a 2007, y entrevistas con profesionales de la salud. La llegada al hospital a un hombre con genitales ambiguos, fomenta temas sensibles relacionados con el diagnóstico y el tratamiento del problemático. Este último se vio obstaculizado por las limitaciones relacionadas con la infraestructura del hospital. Sumado a esto, las dificultades creadas por el hospitalario de dinámica restringe la conducta de los profesionales de la salud implicados en el cuidado de la salud de los pacientes con ambigüedad genital.

Keywords: Ambigüedad genital; Cuidado de la salud; Hospital general


 

 

Ambiguidade Genital

“É menino ou menina?”, esta questão formulada aos pais, após o nascimento de uma criança, demanda a exclusão de uma das alternativas citadas. A impossibilidade de identificar o sexo pela mera observação dos genitais externos denota uma emergência médica e social (Spinola-Castro, 2005). A emergência mencionada é caracterizada pela medicina dentre os distúrbios da diferenciação do sexo. Tais distúrbios consistem em alterações que se referem a uma discrepância entre os diferentes sexos que um indivíduo apresenta: genético, gonadal, fenotípico (Damiani, 2002).

Nos seres humanos a diferenciação sexual está associada à presença ou ausência do cromossomo Y no cariótipo. Até aproximadamente a sétima semana após a fertilização, o embrião humano é um organismo bissexual, provido com primórdios gonadais e genitais idênticos nos dois sexos. Neste momento é impossível fazer a distinção macro ou microscópica entre embriões com predestinação masculina ou feminina.

O processo de constituição como um todo é dividido em quatro etapas: definição do sexo cromossômico (XY ou XX), instituída na fertilização; diferenciação das gônadas em testículos ou ovários; diferenciação dos genitais internos e externos, masculinos ou femininos, a partir das estruturas indiferenciadas presentes no embrião; e diferenciação sexual secundária (Guerra-Júnior & Hackel, 2002). Os processos de determinação e diferenciação sexuais contribuem para o desenvolvimento dos genitais externos e internos, bem como para o desenrolar do amadurecimento sexual durante a puberdade (Maciel-Guerra & Guerra Júnior, 2002).

No caso da ambiguidade genital, ela é considerada na literatura médica (Damiani, 2002) uma emergência pediátrica no recém-nascido e, em alguns casos, a vida da criança apresenta-se imediatamente em risco. Mesmo quando não há essa urgência, a definição do sexo biológico de um sujeito é importante, mas as condutas adotadas para isso não são simples (Maciel-Guerra & Guerra Júnior, 2002).

Ao longo dos tempos, as condutas adotadas em casos de ambiguidade genital diferiram. Elas são citadas em escritos da história de várias civilizações, recebendo valores e significados diferentes para sua existência. Spinola-Castro (2005), percorre os escritos da historia ao longo dos séculos e assinala que o final do século XIX caracteriza-se como a “era das gônadas”. Neste período, o verdadeiro sexo era considerado pela presença da gônada (idem).

No início do século XX, a definição gonadal do sexo passa a ser questionada, porém duas características da atenção não sofreram alterações: “o objetivo de manter bem definidas em cada indivíduo e na sociedade como um todo as divisões entre os dois sexos, e o conceito de que cada corpo teria apenas um único sexo, independente dos órgãos sexuais” (Spinola-Castro, 2005, p. 48-9). Aos médicos era recomendado não só realizar o diagnóstico do sexo, como também a eliminação de aspectos ambíguos incoerentes com o sexo diagnosticado. A posteriori, iniciou-se a era cirúrgica. Neste período, o clínico e o cirurgião centralizaram o poder de decisão do sexo a ser estabelecido. Sendo assim, o médico determinava o sexo biológico e a anatomia do sujeito apontava os caminhos dessa decisão (Idem).

Como ressalta Spinola-Castro (2005), com o advento das intervenções cirúrgicas a preferência geral era inicialmente pela criação do sexo feminino. Tal decisão, do ponto de vista cirúrgico, era considerada mais viável com vistas à funcionalidade sexual futura. Neste período, para resolução dos casos eram ponderados dois aspectos: a possibilidade de manter relações sexuais e/ou a reprodução.

A partir da década de 90, outros aspectos passaram a ser analisados na realização de cirurgias para definição do sexo. Segundo Damiani (2002) a questão mais importante é a escolha do sexo de criação, ou seja, o sexo atribuído pelos pais àquela criança e segundo o qual ela tem sido tratada. Além disso, observa-se o diagnóstico etiológico, as condições anatômicas presentes e a possibilidade de correção para este ou aquele sexo (Damiani, 2002).

Apesar de todo o avanço das discussões acerca dos aspectos éticos envolvidos nos procedimentos a serem adotados em um caso de ambiguidade genital, tal emergência pediátrica é acompanhada por questões delicadas em relação ao diagnóstico e tratamento adequado (Maciel-Guerra & Guerra-Junior, 2002).

 

A pesquisa

A pesquisa “Ambiguidade Genital” surgiu diante da complexidade de ações envolvidas na condução desses casos e das inúmeras questões subjetivas emergentes. Seu objetivo foi compreender as ações envolvidas na atenção a pacientes com ambiguidade genital atendidos em um Hospital Geral do Nordeste. Inicialmente, foi realizado mapeamento dos casos de ambiguidade genital atendidos entre 2003 e 2007 no referido hospital através de um levantamento de dados nos prontuários médicos do serviço de genética clínica para identificar os casos com genitália ambígua.

Estes prontuários foram analisados a partir de um protocolo, instrumento elaborado pela equipe de pesquisa, constituído pelos seguintes dados: idade, situação familiar, local de moradia, constituição familiar, diagnóstico, tratamento realizado, tipo de distúrbio da diferenciação do sexo, modo de chegada e a trajetória hospitalar dos pacientes.

Concomitante à análise dos prontuários, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com profissionais da área de saúde. Os entrevistados foram identificados e selecionados a partir dos prontuários mapeados e através de indicações dos participantes da pesquisa, obedecendo ao critério de atender ou já ter atendido pacientes com ambiguidade genital.

O roteiro de entrevista com dezoito questões abertas foi elaborado com objetivo de conhecer a visão da equipe de saúde sobre o atendimento a pacientes com ambiguidade genital e as condutas adotadas no hospital, nesses casos. Foram entrevistados doze profissionais. Seis médicos: um cirurgião pediátrico (CirPed), um endocrinologista (Endo), dois pediatras (Ped1 e PedNeo) e dois geneticistas (Gen1 e Gen2). Dois profissionais de psicologia (Psi1 e Psi2), um do serviço social (AstSoc) e três da enfermagem (Enfer1, Enfer2 e Enfer3).

Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e os dados organizados em consonância com os objetivos da pesquisa. Os resultados foram sistematizados a partir de categorias derivadas de uma análise de conteúdo (Bardin, 1977/2004) da seguinte forma: o material foi recortado através de uma análise semântica sob a forma de temas-eixo, em torno dos quais o discurso dos profissionais se ordenou. Os dados apresentados foram discutidos a partir da literatura médica, com o aporte teórico psicanalítico de autores contemporâneos que abordam a temática da pesquisa.

 

Mapeamento dos casos de ambiguidade genital atendidos no hospital

O mapeamento nos prontuários resultou na identificação de dois casos de ambiguidade genital atendidos no período de 2003 a 2007. No ano de 2004, um paciente no hospital com suspeita de pseudo-hermafroditismo masculino e em 2005 um caso cuja descrição no exame físico apresentava genitália externa ambígua.

O primeiro caso, de 2004, procurou o serviço do hospital de modo espontâneo para uma consulta com uma ginecologista devido à queixa de hipertrofia clitoridiana. A médica solicitou avaliação de um endocrinologista. Em nova consulta com outra ginecologista esta solicita uma série de exames – Ultra-sonografia, 17 – OH Progesterona, T4 livre, androstenediona, SDHEA. A hipótese diagnóstica foi de hiperplasia da supra-renal. Concomitante ao atendimento médico a paciente participou de um grupo com pacientes transexuais no hospital.

Uma médica endocrinologista foi consultada e refere que a paciente não realizou as dosagens hormonais solicitadas, ou seja, ela iniciou um tratamento hormonal não descrito no prontuário. Como conduta deste último profissional, a paciente foi encaminhada ao ambulatório de genética. A conduta da geneticista foi orientar a paciente sobre o distúrbio da diferenciação do sexo que ela suspeita, o pseudo-hermafroditismo, e explicar as etapas para investigação do caso. Solicitou os exames que já foram realizados e informou o valor e importância da realização do cariótipo. Por fim, agendou exame físico que será realizado em local apropriado. Na consulta seguinte, a geneticista obteve mais informações sobre a infância e adolescência da paciente e realizou exame físico.

A paciente relatou ter realizado mastectomia parcial sob alegação de ginecomastia que consiste no crescimento das mamas nos homens, geralmente associadas a desequilíbrios hormonais. Segundo descrição no prontuário, a geneticista teve dificuldade para realizar o exame físico por falta de condições apropriadas. Como conduta, a profissional solicitou o cariótipo para precisar o diagnóstico. Sua hipótese continuou pseudo-hermafroditismo masculino, disgenesia gonadal mista ou deficiência da 5a redutase. Aguardaria o retorno da paciente com os resultados do exame para fechar o diagnóstico, porém esta não retornou à consulta. A paciente interrompeu o tratamento no mesmo ano, em 2004.

O segundo caso, atendido em 2005, foi encaminhado para o Hospital por um neurologista infantil da cidade que o paciente reside, no interior do Estado, para avaliação no setor de genética, por apresentar quadro de anomalias congênitas múltiplas associadas à genitália externa. Na consulta, a geneticista fez anamnese da criança, exame físico, e registrou o resultado do cariótipo. O profissional não precisou o diagnóstico, e sua hipótese diagnóstica foi dismorfias múltiplas a esclarecer numa revisão de todo o caso, não solicitando exames de nenhuma espécie.

No retorno do paciente, o caso havia sido estudado e o médico forneceu um laudo, no qual constava histórico e hipótese diagnóstica suscitada até o momento. Ao que parece, o profissional solicitou um exame, pois se verificou que em posterior consulta, em julho de 2005, um resultado de exame não havia sido encontrado no hospital. Quanto ao ocorrido, o profissional aguardou providências. Esta foi a última consulta do paciente, que interrompeu o acompanhamento no mesmo ano. O médico geneticista foi o único profissional do hospital que teve contato com esse caso.

Os dados demonstram que um paciente chegou ao hospital por demanda espontânea e o outro, por encaminhamento de outro médico, um neurologista. Em ambos os casos, nota-se dificuldades na condução do caso, relacionadas à falta de estrutura física e laboratorial e interrupção por parte do paciente, ainda na fase diagnóstica.

Quanto ao resultado de apenas dois casos registrados no setor de genética do hospital no período de cinco anos, vale ressaltar que esses dados foram obtidos nos arquivos do Serviço de Genética Clínica. Este foi o único meio encontrado pela equipe para realizar uma pesquisa retrospectiva e encontrar especificamente casos de ambiguidade genital no universo dos atendimentos de um hospital geral.

 

Sobre o atendimento a sujeitos com ambiguidade genital

Para conhecer e compreender as ações envolvidas na atenção a pacientes com ambiguidade genital, privilegiou-se as respostas dos profissionais no que concerne a visão dos mesmos acerca dos atendimentos de sujeitos com esta problemática. Os médicos foram indagados ainda sobre a direção do tratamento e os métodos utilizados em uma decisão cirúrgica de definição do sexo. As respostas dos profissionais de psicologia deram subsídios para examinar a inserção do psicólogo nos atendimentos a casos de genitália ambígua.

Ambiguidade genital: definição

No tocante à conceituação da ambiguidade genital, as respostas apresentadas pelos profissionais entrevistados ressaltaram o caráter de dúvida quanto à definição do sexo. Eles caracterizaram a ambiguidade genital como uma emergência pediátrica, em que não se pode afirmar se é menino ou menina, a qual propicia o surgimento de problemas psicológicos e sociais para o paciente e sua família. Como questões de natureza subjetiva emergentes nessa situação, destacaram a frustração e a angústia dos pais em relação à incerteza sobre o sexo de seu filho.

Os médicos definiram a ambiguidade genital em termos técnicos, com ênfase na complexidade desses casos. Os demais profissionais relataram algumas experiências no atendimento a esses pacientes. Para os médicos, em linhas gerais, a ambiguidade genital consiste em uma alteração morfológica da genitália externa do indivíduo que pode ter causas tanto genéticas quanto causas não genéticas. Existem graus variados de ambiguidade, desde as mais leves, até genitálias absolutamente ambíguas, ou mesmo mal formadas.

A definição e classificação da ambiguidade genital tem sido objeto de estudos e pesquisas médicas (Maciel Guerra & Guerra-Júnior, 2002; Huges, Houk, Ahmed & Lee, 2006; Damiani & Guerra-Júnior, 2007; Huges 2008). Dada a amplitude de expressão clínica e complexidade da ambiguidade genital, não é raro que muitos casos sejam subdiagnosticados e subregistrados.

Diagnóstico e tratamento

Questionados acerca dos procedimentos relativos à atenção a pacientes com genitália ambígua, os pediatras ressaltaram que, se a criança nasce no hospital, contata-se os profissionais apropriados que solicitarão exames para investigação diagnóstica. Caso o paciente procure o ambulatório, a depender do primeiro profissional, este fará encaminhamentos para outras especialidades, e que, em geral, pediatras, ginecologistas e endocrinologistas encaminham para geneticistas.

A partir das respostas dos profissionais, independente de se o paciente nasceu no hospital ou foi atendido no ambulatório, os procedimentos para tratamento podem assim serem descritos: verificada a genitália ambígua, informa-se à família a situação; quando a criança não tem registro civil faz-se a primeira orientação aos pais, que é de não registrar a criança. Concomitante a este período, dá-se início à investigação diagnóstica com anamnese, exames físicos, laboratoriais e avaliação por imagem. Visto que a ambiguidade genital é um sinal clínico, é preciso que seja agilmente investigada e diagnosticada a etiologia do distúrbio.

Seguindo os procedimentos, informa-se o diagnóstico à família, define-se o sexo de criação da criança, bem como a “correção que deverá ser feita para completar o que a natureza normalmente faz, deixar a genitália diferenciada” (Gen2), em suma, as correções cirúrgicas. Orienta-se ainda a respeito de possíveis tratamentos hormonais e se fornece esclarecimentos a respeito de prognóstico. Neste percurso, o paciente e sua família também recebem atendimento psicológico e, quando necessário, um assistente social participa do processo.

No estudo da literatura médica pertinente ao tema (Damiani, 2002; Maciel-Guerra & Guerra Júnior, 2002), os autores ressaltam que, imediatamente após o nascimento de uma criança com um distúrbio da diferenciação do sexo, o principal objetivo é o diagnóstico preciso de sua etiologia para definição do sexo de criação. Preferencialmente, feita de forma ágil, com o intuito de evitar situações de risco para a vida do sujeito como em casos de hiperplasia congênita da supra-renal na forma perdedora de sal.

Essa conduta também visa minorar problemas psicológicos e sociais com os quais a família possivelmente se defronta frente à incerteza do sexo do seu filho (Maciel-Guerra & Guerra-Junior, 2002). Já nos casos mais tardiamente diagnosticados, durante a puberdade ou em idade adulta, a atuação e conduta dos profissionais devem minimizar esses danos (idem).

Quanto à idade em que os pacientes com ambiguidade genital chegaram ao hospital, os entrevistados relataram que, em geral, são recém-natos, até crianças de 2 a 4 anos de idade. “E quando se trata de problemas relacionados ao desenvolvimento de características sexuais secundárias, a faixa etária é [...], púbere ou pré-púbere, 11 e 15 anos” (Gen2). No que concerne ao tratamento tardio, na adolescência ou fase adulta, a fala dos profissionais demonstra a complexidade de abordar o tema tanto na idade adulta quanto na infância.

O ideal, relata um cirurgião: “é quando se chega a um diagnóstico no período neonatal e aí sim a condição é muito melhor” (CirPed). Em contrapartida, relata um dos geneticistas: “as pessoas muitas vezes já vem com o sexo social (da criança) definido, apesar do problema, aí é que é uma situação extremamente delicada” (Gen2). E o endocrinologista citou um exemplo: “os pais já entraram aqui dizendo: ‘olha, eu tenho uma menina, ela já tem nome de menina’. A maioria das vezes ela fica como menina, mesmo a gente sabendo que o cariótipo não é esse” (Endo).

Em todos esses casos o diagnóstico preciso é de suma importância porque conduz todos os procedimentos terapêuticos e permitirá a definição do sexo de criação. Vale ressaltar dois pontos destacados pelos profissionais entrevistados: a importância do processo diagnóstico e que este nem sempre é realizado de forma ágil, podendo ficar suspenso por um tempo indefinido. Este tempo irá depender do serviço e recursos do hospital.

Dentre as dificuldades, um dos geneticistas citou a interrupção do tratamento devido à falta de estrutura: “a falta de uma estrutura que permita, uma vez identificado esse paciente, que ele não seja perdido, que ele não volte lá para o interior e nunca mais retorne” (Gen2). Por outro lado, se o paciente volta, a dificuldade consiste na realização de exames.

Sabe-se que a investigação diagnóstica de uma ambiguidade genital tem início com o reconhecimento do sexo ao nível cromossômico por meio da realização de exame de cariótipo (Maciel-Guerra & Guerra-Junior, 2002). Sobre a avaliação genética nos casos de ambiguidade genital, o Conselho Federal de Medicina (2003) define que esta deve incluir o aconselhamento genético, bem como os exames laboratoriais, sendo o cariótipo um dos exames obrigatórios.

Os geneticistas e o médico endocrinologista entrevistado relataram que esse exame não é realizado nem no hospital estudado, nem no Estado. As famílias precisam pagar pelo cariótipo. O material é coletado em laboratórios particulares e enviado para ser realizado em outro Estado. Além disso, os médicos mencionaram outros exames, que não o cariótipo, que são necessários pra se definir um diagnóstico específico e que também são de difícil acesso, como dosagem hormonal e exames de imagem.

Outra questão significativa mencionada a respeito do diagnóstico e do tratamento concerne ao reconhecimento pelos profissionais de que a ambiguidade genital causa um grande impacto na família, aspecto sobre o qual iremos discorrer a seguir.

A família: participação e decisões

Incluir a família nas discussões sobre as condutas a serem adotadas em casos de ambiguidade genital nem sempre foi ato relevante para o corpo médico, como assinala Spinola-Castro (2005). A responsabilidade da decisão do sexo de criação recaía inicialmente sobre a equipe multiprofissional, privando a família das informações e decisões, utilizando termos técnicos no restrito contato. “A família era orientada para não discutir com a criança a sua condição, e os profissionais responsáveis por esses pacientes eram, por sua vez, orientados a sempre reforçar junto à família a adequação do gênero estabelecido” (Spinola-Castro, 2005, p. 49-50).

Esta não é mais a conduta utilizada nos casos de ambiguidade genital. As ações dos profissionais de saúde no atendimento a pacientes com ambiguidade genital mostram outro cenário. Maciel-Guerra e Guerra Júnior (2002) ressaltam a participação da família nesse processo de investigação diagnóstica e tratamento, que é demorado e exige desta paciência e tranquilidade: “a cada passo da investigação, a família deve ser informada sobre o que está ocorrendo” (p. 166).

Foi consenso entre os profissionais entrevistados que o contato com a família é imprescindível durante todo o processo de tratamento. No que diz respeito à transmissão de informações aos pais, ressalta-se a fala de um geneticista, que enfoca a importância e o cuidado com que a informação deve ser fornecida à família: “dar as informações necessárias para que a família, dentro do seu nível educacional e cultural, consiga compreender o que está se passando com aquele filho no sentido de que possa apoiá-lo e suportá-lo, no sentido de dar suporte, em todo o processo de tratamento e de acompanhamento” (Gen2).

Como reflexos da falta de informação, apoio e orientação aos pais/paciente, os profissionais sublinharam: a rejeição do filho pelo pai, receio de que o filho seja homossexual, estigmatizado socialmente, a crença de que a criança seja fruto de um castigo divino. A culpabilização de um pai pelo outro também foi citado, bem como mães que se responsabilizam pelo problema do filho.

Quanto a ouvir as famílias, é indispensável nas entrevistas que suas opiniões, dúvidas, angústias, valores, sejam respeitados, para que assim esta possa ser auxiliada na condução dessa problemática. Porém, contraditoriamente, verifica-se na fala de alguns profissionais a não participação da família no processo terapêutico, com a justificativa de dificuldade para compreender o caso ou para evitar problemas a esta.

Definição do sexo de criação

Ao nascimento de uma criança com genitália ambígua, a pergunta circunstancial é: qual será o sexo da criança? Esta interrogação irá balizar as decisões que determinarão as condutas clínicas e cirúrgicas dos profissionais de saúde. Esta questão igualmente inquieta os pais que “são tomados de enorme frustração e estranhamento diante do filho que não podem identificar como o de suas expectativas” (Ferrari, 2002, p. 465).

O objetivo primordial é responder esta questão, ou seja, definir o sexo da criança. A esse respeito, os profissionais afirmaram a decisão como um processo que envolve equipe multiprofissional e família. Segundo um dos geneticistas (Gen2) trata-se de um processo acordado, pactuado, entre o que a técnica e o diagnóstico permitem, e as convicções e interesses, aspectos culturais e emocionais da família.

Essa concepção é coerente com a prática do Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (GIEDDS) do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas. Para esses profissionais, a definição do sexo de criação, além de envolver profissionais e família, depende de variáveis tais como: constituição cromossômica, tecido gonadal e risco de malignização destas, funcionalidade sexual futura, período e técnica de correção cirúrgica para reconstrução da genitália externa, previsão do desenvolvimento de caracteres sexuais secundários espontâneos, necessidade de terapia de reposição hormonal, possibilidade de fertilização futura (Maciel-Guerra & Guerra Júnior, 2002).

A problemática da definição do sexo da criança precede inclusive sua concepção, a partir da psicanálise. Menino ou menina? Essa interrogação primordial ilustra a marca imperativa do desejo e fantasia dos pais, ao oferecerem significados à existência da criança muito antes de seu nascimento (Zalcberg, 2003).

Freud (1914/2003) nos apresenta em seu texto Introdução ao narcisismo que, antes de nascer, até mesmo antes de sua concepção, a criança habita o imaginário de seus pais. Amiúde a gravidez é um período repleto de expectativas, sonhos, ideais parentais, que são depositados na linguagem e que irão marcar a criança antes de seu nascimento.

Quando a criança nasce com uma genitália ambígua, a discrepância entre a criança da realidade e a criança idealizada é tanta que ultrapassa os limites do “aceitável” e choca os pais com o real, aquilo que não pode ser simbolizado.

Para Ansermet (2003) o diagnóstico de ambiguidade genital se interpõe como uma irrupção do real e faz fracassar o “edifício simbólico” e imaginário construído pelos pais, crucial para o desenvolvimento físico e subjetivo da criança. A criança, que antes ocupava o lugar de desejo na fantasia da mãe e promessa de satisfação, fica desamparada. Igualmente, cabe aos pais reconstruir uma narrativa que dará subsídios no amparo da criança, no sentido de redirecionar o investimento libidinal dos pais (idem).

 

Equipe multiprofissional

A respeito da equipe multiprofissional no atendimento a pacientes com ambiguidade genital, vale destacar o Art. 4º da Resolução 1.664 (Conselho Federal de Medicina, 2003): “Para a definição final e adoção do sexo dos pacientes com anomalias de diferenciação, faz-se obrigatória a existência de uma equipe multidisciplinar que assegure conhecimentos nas seguintes áreas: clínica geral e/ou pediátrica, endocrinologia, endocrinologia-pediátrica, cirurgia, genética, psiquiatria, psiquiatria infantil”.

O atendimento por uma equipe multiprofissional foi citado pela maioria dos profissionais entrevistados tanto no processo diagnóstico quanto no tratamento medicamentoso e/ou cirúrgico a pacientes com ambiguidade genital. O cirurgião entrevistado ressaltou ainda a importância dessa equipe para a definição do diagnóstico e do tratamento: “uma equipe multidisciplinar tem que dar o diagnóstico da malformação e daí traçarem um planejamento terapêutico” (CirPed).

Os profissionais que integram essa equipe também foram mencionados durante as entrevistas: pediatra, assistente social, psicólogo, cirurgião pediátrico, geneticista e endocrinologista. No entanto, nota-se com a análise dos dados, uma discrepância entre o hospital contar com profissionais das diferentes áreas; estes profissionais encaminharem o paciente para as outras especialidades e; haver uma equipe multiprofissional voltada para o atendimento de sujeitos com ambiguidade genital.

Quanto ao hospital contar com todos os profissionais, o cirurgião entrevistado é enfático ao expor a situação. “Nós temos todos esses especialistas, mas temos que sair recrutando para tratar a criança e dependendo muitas vezes da boa vontade dos colegas” (CirPed). Esse mesmo profissional destaca que quando os casos são clássicos, como uma hiperplasia congênita da supra-renal, o tratamento não requer muita discussão, ele já é estabelecido.

No entanto, quando o caso exige mais do profissional, a comunicação entre as especialidades se faz presente, mas não há um trabalho integrado. “Mas dizer que já participei de reunião com a família, com todo mundo junto, com os endócrinos...? Não! Psicólogos? Não! Eu já vi isso em congresso, psicólogos, todo mundo...” (CirPed).

Em relação à ausência de encaminhamento para outras especialidades, o profissional de genética ressaltou o fato de esse ser o único Serviço de Genética Clínica no Estado. Por esse motivo, imagina-se que teoricamente todos os casos de genitália ambígua deveriam passar por esse Serviço, até para efeito de diagnóstico. Na prática, não é isso que se constata. Se há menos casos do que deveria haver... “então em algum lugar esses casos devem estar por aí soltos, ou não sendo investigados ou, então investigados sem a participação da genética, o que é estranho” (Gen1). Os resultados da pesquisa confirmam esse aspecto. Os profissionais entrevistados mencionaram atendimentos a pacientes com genitália ambígua que não correspondem ao número obtido no levantamento de dados nos prontuários do Serviço de Genética Clínica.

Quanto à existência de uma equipe para o atendimento de sujeitos com ambiguidade genital, foi mencionado por alguns profissionais a dificuldade de acompanhamento do paciente em sua trajetória hospitalar. “Existem os psicólogos, existem os assistentes sociais, existem os endócrinos, os pediatras, mas não existe um ambulatório pra isso... nós não temos uma estrutura especificamente voltada para tratar genitália ambígua” (CirPed).

Os dados demonstram que, nas idas e vindas do paciente, ele se perde, frequentemente não retorna nem faz os exames ou atendimentos com outros profissionais. Acrescido à essa dificuldade, foram listadas as dificuldades sócio-econômicas dos pacientes, de acesso aos exames que precisam ser pagos, retorno ao ambulatório, fazer acompanhamentos tanto para o diagnóstico quanto na condução dos casos.

 

O profissional de psicologia nos atendimentos a casos de genitália ambígua.

No que concerne ao acompanhamento psicológico, dois profissionais foram identificados a partir do levantamento nos prontuários. Apesar de os profissionais de outras áreas mencionarem nas entrevistas a importância do psicólogo no atendimento a esses pacientes, os casos acompanhados pelos psicólogos não foram encaminhados por esse motivo. Os pacientes atendidos estavam internados nas enfermarias em que os psicólogos atuam.

De acordo com esses profissionais, a incerteza quanto ao sexo do sujeito recém-nascido, do adolescente ou do adulto silencia, promove conflitos familiares, mal-estar, estranheza, angústia e frustração. Ambos ressaltaram que a atuação do psicólogo na condução desses casos mostra-se essencial no que diz respeito ao auxílio de pacientes e familiares na elaboração e simbolização de seus conflitos. No entanto, o trabalho da equipe de saúde mental, quando mencionado, é apresentado como uma intervenção pontual. Não foi descrita uma atenção sistemática e articulada ao trabalho da equipe médica. A partir da análise das entrevistas, foram constatadas uma série de circunstâncias que impedem uma melhor atenção a esses casos, desde ausência de encaminhamento, problemas de ordem estrutural do hospital, ao reduzido número de psicólogos.

 

Conclusão

O atendimento a um paciente com ambiguidade genital no Hospital pesquisado é acompanhado por questões delicadas em relação ao diagnóstico e ao tratamento à problemática. Nos dois casos identificados na pesquisa foram realizados exames. Em um deles, vários especialistas foram consultados, e ambos não chegaram a iniciar o tratamento, interrompendo-o ainda na fase diagnóstica.

Quanto ao resultado de apenas dois casos registrados no setor de genética do Hospital no período de cinco anos, pôde-se constatar, com as entrevistas, que nesse período houve outros casos de pacientes com ambiguidade genital no Hospital, mencionados pelos profissionais entrevistados. No entanto, esses não foram encaminhados e/ou atendidos pelo profissional de genética.

O atendimento dos médicos apresenta-se comprometido devido à inexistência do cariótipo no quadro dos exames realizados na rede do SUS do Estado. É o resultado desse exame que irá conduzir as demais investigações e procedimentos médicos.

Os profissionais de saúde entrevistados caracterizaram a ambiguidade genital como uma emergência pediátrica, a qual propicia o surgimento de problemas psicológicos e sociais para o paciente e sua família. Apesar de tal afirmação dos profissionais, aos pacientes com ambiguidade genital o atendimento é realizado de forma independente pelas diversas áreas para as quais são encaminhados para exames e tratamentos. Não foram identificadas integração nessas ações ou abordagem multidisciplinar sobre os diversos aspectos envolvidos no caso a caso.

Os resultados demonstram que a condução do tratamento a pacientes com ambiguidade genital apresenta entraves como desinformação, dificuldade de acesso a exames, descontinuidade no acompanhamento e desarticulação do serviço.

 

Referências

Ansermet, F. (2003). A ambiguidade sexual. In: Ansermet, F. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. (pp. 147-162). Rio de Janeiro: Ed. Contra capa.         [ Links ]

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Submetido em: 09/06/2011
Revisto em: 19/08/2011
Aceito em: 23/08/2011

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