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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.2 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Transmissão psíquica geracional familiar no adoecimento somático

 

Family generational psychic transmission in somatic sickening

 

Transmisión psíquica generacional de la familia en las enfermedades somáticas

 

 

Terezinha Feres CarneiroI; Aline Vilhena LisboaII; Andrea Seixas MagalhãesIII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. teferca@psi.puc-rio.br
IIDoutoranda. Bolsista Capes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. alinevlisboa@ig.com.br
IIIDocente. Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. andreasm@puc-rio.br

 

 


RESUMO

Este estudo apresenta uma discussão acerca do processo de transmissão psíquica familiar e sua possível influência no adoecimento somático. Tem como objetivo compreender a somatização a partir da transmissão de um legado não representado entre gerações. O adoecimento é entendido como sofrimento psíquico familiar, decorrente de conteúdos não elaborados que gerariam impasses nas relações. A doença é concebida como resultado de abandono e de fragilidade, marcada por histórias contadas através das gerações, engessando o investimento afetivo. Por outro lado, a condição impactante de um adoecer pode levar os membros a reelaborarem conflitos e a recontarem a própria história. A escuta analítica do terapeuta de família possibilita a compreensão do material recalcado presente nos mitos, censuras e segredos familiares. Nessa direção, a clínica de família facilita a retomada, a re-significação e o fortalecimento de processos psíquicos, visando à promoção da saúde emocional do grupo.

Palavras-chave: Transmissão psíquica; Adoecimento somático; História familiar; Terapia psicanalítica de família.


ABSTRACT

This study presents a discussion on the process of family psychic transmission and its possible influence in somatic sickening. The goal is to understand somatization from the transmission of an unrepresented legacy among generations. Sickening is understood as the family psychic suffering resulting from non elaborated contents that would generate obstacles in relationships. Illness is conceived as the result of abandonment and fragility, marked by histories told through generations, preventing affective investment. On the other hand, the impacting condition of becoming ill can lead family members to re-elaborate conflicts and re-tell their own histories. Family therapist’s analytic listening makes it possible to understand the repressed material present in myths, censuring, and family secrets. From this standpoint, family clinic facilitates the retaking, the re-elaboration, and the strengthening of psychological processes, aiming at promoting the group’s emotional health.

Keywords: Psychic transmission; Somatic sickening; Family history; Psychoanalytic family therapy.


RESUMEN

Este estudio presenta una discusión sobre el proceso de la transmisión psíquica en la familia y su posible influencia en las enfermedades somáticas. Su objetivo es entender la transmisión de un legado que no están representados entre las generaciones. La enfermedad se entiende como el sufrimiento mental familial debido al contenido de las relaciones no desarrollados y bloqueados. La enfermidad se concibe como un resultado de la neglicencia y fragilidad de generacion en generación que revoque la inversión afectiva. Por otro lado, la condición de un enfermo puede llevar a los miembros a desarrollar los conflictos y a contar su propia história. El enfoque psicoanalítico de la terapeutica familiar facilita la comprensión de contenido reprimido presente en los mitos, secretos y censura de la família. La clinica de la família facilita la reanudación, la redefinición y lo fortalecimiento de los procesos mentales con el fin de promover la salud emocional del grupo.

Keywords: Transmisión psíquica; Enfermedades somáticas; Historia familiar; Psicoterapia psicoanalitica de la família.


 

 

O processo de adoecimento tem sido um desafio para aqueles que procuram compreender as origens de diversos tipos de doenças. O adoecer faz parte da natureza humana e o seu processo apresenta fatores tanto determinantes como condicionantes que se entrelaçam. Os fatores genéticos, biológicos e fisiológicos, tanto quanto os ambientais e psicológicos, fazem parte desse complexo processo. Este estudo enfatiza o processo de adoecimento somático, ressaltando o trabalho de transmissão psíquica geracional na família como fator influente e complementar da dinâmica intrapsíquica do sujeito.

Ao longo da história do homem, observa-se que adoecer esteve sempre associado às situações dolorosas, aos sentimentos de punição e de maus presságios, além de apontar para um futuro incerto. Nos séculos XVIII, XIX e no início do século XX, doenças como o câncer e a tuberculose, por exemplo, foram consideradas maldições e equivalentes de morte, até o momento em que os cientistas passaram a conhecer a etiologia das mesmas. A representação das doenças era marcada pelo horror e pelo tabu do castigo divino, em conseqüência do total desconhecimento do homem sobre a origem, o tratamento e as possibilidades de cura. Nos casos de doenças cardíacas, por exemplo, as metáforas eram utilizadas para significar aquilo que era da ordem do mau presságio, do abominável e do repugnante. Muito pior que a doença em si, era o efeito que as fantasias e os mitos criados provocavam nos doentes, nas famílias e na comunidade, pois, através dos séculos, a transmissão dessas histórias acerca das doenças permitiu a sustentação do tabu e do mito em relação aos tipos de representação dos sujeitos sobre as suas doenças (Sontag, 1984). Nesse cenário histórico-cultural, a supremacia organicista ganhou força, pois passou a desvendar cientificamente a origem da doença. As evidências concretas do corpo biológico passaram a estruturar o pensamento sobre o adoecer, e os estudos da genética, especialmente, vêm proporcionando maior conhecimento sobre as predisposições do sujeito para determinados tipos de doença e sobre o controle do desenvolvimento dos mesmos.

Por outro lado, no entanto, observa-se que ao longo da história das concepções sobre adoecimento (Cerchiari, 2000; Scliar, 2007), os aspectos psicológicos são percebidos como secundários no estudo da etiologia das doenças. A concepção psicogenética fora substituída por novos paradigmas sem que atentassem para particularidades do adoecer, numa perspectiva integrativa dos aspectos ambientais, físicos, culturais e psicológicos. Atualmente, existem teorias excludentes de um pensamento integrativo de saúde, dicotomizando os olhares sobre a somatização. Entretanto, alguns autores (Filgueiras, Lisboa, Macedo, Paiva, Benfica & Vasques, 2007; Lisboa, 2005; Marty, 1980, 1998; Mello Filho & Burd, 2004, 2010) observaram que nem sempre os sujeitos adoecem somente em consequência de uma predisposição genética. Eles alertam para uma combinação também de fatores psíquicos de predisposição regidos por um funcionamento intrapsíquico entrelaçado por uma história familiar e cultural. Alguns casos clínicos estudados por teóricos como Betts (1997), Jasmim, Lê, Marty, Herzberg, (1990), Lisboa e Féres-Carneiro (2005), e Loss (1998) revelam evidências de uma ligação entre fatores psicológicos do sujeito com a psicodinâmica familiar no sentido de que o sujeito também se constitui na saúde e na doença, refletindo a produção intersubjetiva do grupo.

Com base em estudos de famílias de mulheres com câncer de mama, Filgueiras et al (2007) ressaltam que o adoecimento, do ponto de vista psíquico, possui uma dimensão psíquica hereditária, mesmo que não haja predisposição genética no grupo. O desenvolvimento de doenças é favorecido quando se considera, além da herança psíquica, a existência de certas particularidades da psicodinâmica familiar que comprometem a condição de saúde dos membros. Isto nos leva a pensar que certas condições psíquicas da família podem ser caracterizadas como fatores de risco para o adoecimento somático e que, de acordo com o potencial psíquico de todos, cabe tanto ao sujeito quanto à sua família tentar reconhecer e transformar tais fatores durante o trabalho clínico de associação e de análise na terapia de família.

Entre os diversos e complexos fatores psíquicos que podem contribuir para o processo de adoecimento, ressalta-se o trabalho da transmissão psíquica como um caminho possível para a predisposição e para o desenvolvimento de doenças no grupo familiar. Este estudo aponta a família como um lugar possível de adoecimento quando há vulnerabilidade em sua dinâmica intersubjetiva para absorver elementos da história geracional que colocam a saúde do grupo exposta a um contínuo e progressivo desinvestimento libidinal e representacional. Considera-se que o adoecimento pode ser fruto de uma ligação inconsciente com um traço parental ou ancestral adoecido ou desvitalizado libidinalmente, estando ou não o sujeito sob a influência das predisposições biológicas e genéticas. Nessa direção, portanto, o objetivo é discutir o conceito de transmissão psíquica na família e suas possíveis influências no processo de adoecimento de um ou mais membros do grupo. Assim, certas particularidades do funcionamento psíquico do grupo, como a produção fantasmática, a identificação e a representação, acompanhadas da movimentação afetiva, podem facilitar a circulação de uma herança psíquica comprometida com conteúdos não elaborados, cujo destino não só se apresenta em dissociações psíquicas como se materializa em somatizações.

Do ponto de vista psíquico, considera-se a família como lugar de representações estruturantes que dão continuidade à cultura e que possui um vínculo intersubjetivo próprio. Além disso, este espaço é o berço da constituição da subjetividade e é o lugar onde os conteúdos psíquicos, que atravessam as gerações, circulam, sofrendo ou não transformações ao longo de novos arranjos familiares. Compreende-se que os conteúdos de uma herança podem conter fatos reais transformados em traços mnêmicos ou em representações compartilhadas no espaço psíquico familiar. De outro modo, os traços também podem ser compreendidos como fatos imaginados que, do ponto de vista intersubjetivo, dizem respeito à maneira pela qual se dá a relação do sujeito a partir das diferentes formas de significação com a imagem do outro. Esse espaço intersubjetivo familiar compreende o ambiente em comum de dois ou mais espaços intrapsíquicos, possui uma lógica própria regida pelo trabalho psíquico constante de ligação e de transformação, cujas representações e fantasias possam circular para a composição da relação identidade-alteridade na condição de saúde. A intersubjetividade seria o outro ou mais de um outro integrante da fantasia do sujeito. A função da família, portanto, é gerenciar esse trabalho psíquico, transformando o espaço intersubjetivo. É por essa via que podemos pensar também na condição de saúde da família, associando-a com o material representado, elaborado e identificado ao longo de uma história (Eiguer, Carel, André-Fustier, Aubertel, Ciccion & Kaës, 1998; Kaës, 1997; Ruiz Correa, 2002).

Além das considerações acima, esclarecemos alguns pressupostos teóricos da psicossomática psicanalítica, como importante área de estudos para a compreensão do funcionamento mental de sujeitos somatizantes, juntamente com o conceito de transmissão psíquica no contexto familiar. Destacamos a escola psicossomática de Paris por apresentar fundamentos voltados a uma dinâmica intrapsíquica do adoecer que nos servem de referências para a compreensão dessa dinâmica no espaço intersubjetivo. Dentre as diversas considerações acerca da concepção de somatização, sinaliza-se a relação do processo de adoecimento com um gradativo desinvestimento libidinal e com algumas atividades psíquicas, como as representações identificadas com traços de outros sujeitos da história familiar carentes de recursos fantasísticos.

 

Alguns pressupostos teóricos da psicossomática psicanalítica para a compreensão do processo de adoecimento do sujeito

Em estudos recentes (Coelho & Ávila, 2007; Melho Filho & Burd, 2004, 2010; Volich & Ferraz, 2003) o processo de somatização tem sido considerado um assunto controverso, por se tratar de uma conceituação não muito clara e por apresentar fundamentações embasadas na psicanálise, na cultura e na medicina de maneira dicotômica, reforçando a velha visão dual mente/corpo. Betts (1997) e Loss, (1998) afirmam que, diferentemente da conversão histérica, da melancolia e do transtorno somatoforme, a somatização nem sempre vem acompanhada por transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão. Coelho e Ávila (2007) mostram que a relação das somatizações com transtornos psiquiátricos consideráveis pode reduzir a perspectiva multifatorial do desenvolvimento dessa condição, além de camuflar as particularidades do funcionamento biopsicossocial dos sujeitos para além de um enquadramento nosográfico.

Acrescenta-se às concepções sobre somatização aquela que a compreende como um processo em que há ou não lesão no corpo, no qual o funcionamento mental do sujeito está acoplado a uma rede intersubjetiva familiar que, por sua vez, pertence a um contexto sócio-cultural mais amplo. A fim de que se possa entender o processo de somatização no sujeito, primeiramente, é preciso conhecer esse processo sob o ponto de vista também interpsíquico, que está inserido em um contexto intersubjetivo complexo, interligado e co-dependente de outros campos relacionais.

Lipowski (1988) cita a somatização como uma tendência de o sujeito expressar suas angústias. O autor delineia um panorama sobre a história da concepção da somatização em que a etiologia da histeria e da hipocondria serviria de base para que as primeiras referências fossem construídas a respeito do processo de adoecimento. Valorizando o contexto epistemológico de cada estudo, a concepção primeiramente se voltava para uma ideia de distúrbio da mente sobre o corpo, como nos casos de melancolia e de histeria relatados por Freud ([1892]1997, [1896], [1917]1969). Porém, a fundamentação psicanalítica apresentada pelo mesmo autor se restringe a visualizar a somatização como uma defesa inconsciente e um ‘déficit’ psíquico contra uma ameaça externa, sem atentar para a existência de uma combinação própria de vários fatores intrapsíquicos em um contexto intersubjetivo e cultural em jogo no processo, que não obedecem necessariamente a essa defesa e déficit. Na tentativa de fundamentar as somatizações como doenças relacionadas às manifestações funcionais específicas ou a certos tipos de perfis de personalidade, outros estudos (Alexander, 1989; Melho Filho & Burd, 2010) reforçaram a dualidade orgânico/psíquico do adoecimento, gerando impasse diante dos diversos laços que fazem do homem um ser psicossociossomático (Lisboa, 2011).

Para Ferraz e Volich (2003), a partir de pesquisas realizadas pela Escola de Psicossomática de Paris, fundada por Pierre Marty, a integração da concepção cartesiana de mente-corpo trouxe uma perspectiva mais ampla sobre o fenômeno, uma vez que o adoecimento seria um processo contínuo, evolutivo e funcional entre o orgânico e o psíquico. Dessa forma, a partir de uma perspectiva psíquica, uma afecção somática grave como o câncer, por exemplo, compreenderia uma desorganização progressiva e evolutiva, favorecendo um desinvestimento libidinal gradativo do sujeito em relação a si mesmo e ao outro, ao longo de sua história (Betts, 1997; Marty, 1980, 1993, 1998). De outra maneira, outras doenças graves, ou a evolução de uma doença de crise ou crônica, representaria um afrouxamento psíquico e libidinal proveniente de um impacto muito intenso e repentino sofrido pelo sujeito.

Em meio às contribuições sobre somatização ou adoecimento do corpo, as concepções de Marty (1980, 1993, 1998), McDougall (2000) e McDougall, Gachelin, Aulagnier, Marty, Loriod e Caïn (2001) revelam que o corpo doente não possui um sentido e é consequência de um funcionamento atípico do aparelho psíquico, com apagamento das defesas mentais e uma neutralização do trabalho do pré-consciente em determinados períodos da história do sujeito. De acordo com o primeiro autor, quando o sujeito adoece de forma grave ou crônica, há maior expressão do apagamento do afeto das representações, pois a palavra é reduzida a representações de “coisas”. Os outros autores ainda acrescentam que a desafetação, ou seja, o esvaziamento afetivo do sujeito, o expõe a uma vulnerabilidade psíquica onde os recursos internos de defesa passam a ser insuficientes. Nesse sentido, no estado da doença, percebemos que todas as atividades psíquicas se desorganizam num movimento de desconstrução do funcionamento e do fluxo mental. Assim, a partir desses pressupostos, podemos pensar que há processos psíquicos anteriores (ao adoecimento) que podem predispor o sujeito ao adoecimento. Desse modo, queremos dizer que há atividades psíquicas que, combinadas com um fluxo libidinal instável, podem compreender fatores de predisposição ao adoecimento, desde que estejam acoplados também a uma intersubjetividade familiar que dificulte o trabalho intrapsíquico e interpsíquico. Cada vez mais, as particularidades do adoecer, indicativas de diferentes combinações entre o espaço orgânico, intrapsíquico, intersubjetivo e cultural presentificam-se na forma de surpreendentes e estranhos acometimentos somáticos.

De acordo com uma perspectiva integrativa, Marty (1980, 1993, 1998) aponta que uma maneira de pensar o empobrecimento das representações está no fato de o pré-consciente do sujeito atuar em uma realidade fixada em uma fase sensório-perceptiva, vivenciada nas primeiras relações mãe-bebê. As insuficiências do pré-consciente como função de elaboração das representações de coisas em palavras têm origem na deficiência funcional da mãe ou do cuidador como, por exemplo, as sensoriais e as motoras, e em uma desarmonia entre as respostas afetivas às necessidades do bebê. Ao longo da vida, os sujeitos estão predispostos a situações de tensão psíquica que precisam ser descarregadas ou escoadas por elaboração mental, ou através de comportamentos motores. Quando as excitações ou tensões não podem ser contidas e elaboradas pelo sujeito, supõe-se que estas se acumulam e podem atingir, de forma patológica, o corpo, provocando desde uma simples dor de cabeça a uma formação de câncer. Postula-se que a diferença existente entre os tipos de somatização está no tempo de exposição do sujeito às tensões psíquicas e na contrapartida libidinal e psíquica de que o mesmo dispõe e utiliza para canalizar e transformar as excitações, mesmo sob a influência da predisposição genética e da condição fisiológica, psicológica e ambiental. Parte deste processo, portanto, não só se constitui nas primeiras relações mãe-bebê, como se estrutura ao longo da vida através das representações formadas com base nas relações intersubjetivas.

Do ponto de vista intrapsíquico, a existência de um conteúdo não elaborado pela mãe, transmitido na relação com o bebê, favorece o empobrecimento das representações dele, à medida que as palavras da mãe são reduzidas a gestos sem afeto. O bebê sente a figura materna desprovida de afeto, sem que haja possibilidades de articulações para a construção do simbólico. Assim, esta relação primária empobrecida coloca em jogo a capacidade do sujeito de utilizar os recursos afetivos e metafóricos na construção do sentido em seu desenvolvimento. A influência de uma herança da mãe, ou daquele responsável pelos cuidados com o bebê, pode comprometer a formação do pré-consciente do sujeito, prejudicando a organização do espaço simbólico, a evocação e a realização de associações livres (Marty, 1998; McDougall, 2000). Nessa direção, a família e o sujeito apresentam uma confusão entre o pensar e o dizer e o fazer, entre a ação e a representação, pois os recursos intermediários do pré-consciente, assim como as defesas psíquicas, estão enfraquecidos e são reflexo da relação constituída sobre bases simbólicas e afetivas frágeis. O enfraquecimento do espaço intersubjetivo familiar permite que o pensar se neutralize e que o sujeito passe a responder mais com ações automáticas.

Embora os conceitos de Marty (1980) apontem alguns estados e atividades psíquicas que colaboram para o adoecimento do sujeito, alguns deles podem ser observados no universo intersubjetivo familiar, tais como: a) desorganização progressiva, que compreende um conjunto de condições cumulativas de situações de risco; b) capacidade de mentalização, ou melhor, de representação, articulada com a capacidade de realização de elaborações psíquicas e c) trabalho do sonho e das fantasias compartilhadas como atividades psíquicas que devem permitir melhor representação de um material recalcado ou reprimido pelo grupo.

O conceito de mentalização de Marty foi elaborado a partir da teoria da primeira tópica de Freud (1900), que situa o pré-consciente como sendo o lugar onde se manifestam as representações de coisas, onde são evocadas lembranças de realidades vividas de ordem sensório-perceptiva, e onde as representações de palavras são oriundas da qualidade da comunicação do bebê com a mãe ou cuidador. Segundo Marty (1993), do ponto de vista intrapsíquico, o aparelho somático compreende um campo acoplado ao funcionamento fisiológico, por onde circula todo o fluxo pulsional da psique humana, que está presente nas relações intersubjetivas com o outro. Na psique, encontramos não só um reservatório de energia libidinal, mas operadores psíquicos que dinamizam essa energia, dando destino ao acúmulo das excitações no próprio corpo e nas relações. Do ponto de vista familiar, podemos pensar que o adoecer possui parte de sua origem decorrente desse acúmulo de excitações que fora fortalecido pelo trabalho de transmissão psíquica geracional, onde circulam conteúdos conflituosos, não elaborados, representantes de uma ameaça à qualidade das relações (Eiguer et al, 1998; Ruiz Correa, 2000). O processo de adoecimento do corpo é compreendido, portanto, a partir da transmissão psíquica de um legado velado e não elaborado que encontra um conjunto de condições psíquicas favoráveis na intersubjetividade familiar para o seu desenvolvimento em alguns sujeitos (Abrahan & Torok [1973]1995; Lisboa, 2005).

Outra questão a considerar é que Déjours (1989) e Marty (1993) apresentam o adoecimento somático como um processo inconsciente e parte dele como pré-consciente. A diferença entre as concepções desses autores, contudo, está no processo psíquico em relação ao estado de adoecimento. O primeiro considera que algumas somatizações sobrevêm fora dos processos de desorganização psíquica progressiva, pois o sujeito somatizante reorganiza e retoma, pela doença, a evolução mental, antes interrompida ou neutralizada por um conflito psíquico ou trauma impactante de difícil elaboração, tentando, assim, fazer novas ligações psíquicas. O segundo autor afirma que, pela via da desorganização psíquica progressiva, o aparelho psíquico se encontra em um estado de fixação e regressão, com automações comportamentais de difícil elaboração. Para Marty (1998), em casos de doenças mais graves, a dificuldade de representação é precedida por uma depressão essencial, um estado psíquico que apresenta uma baixa progressiva do tônus vital. A depressão essencial é comparada ao estado de morte no sujeito, quando, então, a energia vital se perde sem compensações mentais elaborativas. O mesmo autor demonstra, ainda, que a desorganização psíquica compreende um movimento patológico do sujeito diante da vida, cuja destruição da organização libidinal culmina em feridas no corpo, chegando até a morte em alguns casos. Isso quer dizer que um sujeito tanto pode apresentar uma queixa difusa sem lesão orgânica, como desenvolver uma doença orgânica, sem se apresentar como doente, mas que em ambos os casos há uma movimentação evolutiva de exposição a um esvaziamento afetivo e relacional.

Neste trabalho, nos embasamos na concepção de Déjours (1989), considerando que a somatização implica uma possibilidade de representação simbolizante daquilo a que, em um determinado momento, não fora dado sentido, reativando o processo de criação das elaborações mentais e retomando os significados geracionais de um corpo fragilizado pela doença. Em caso de notícias sobre doenças, o mesmo autor ressalta que a falta de simbolização pode ser observada nas falas simplificadas e empobrecidas dos pacientes, com um aumento excessivo de agitação e de expressão psicomotoras. A ideia de que os processos intrapsíquicos antecedentes ao adoecimento somático são fragilizados mais ainda pelo material transmitido entre as gerações revelam condições e modos de transmissão psíquica, cuja herança afeta os membros da família de maneira a reforçar as narrativas dos discursos atuais.

 

De Freud a Kaës: o conceito e o trabalho da transmissão psíquica na família

A transmissão psíquica compreende um processo estruturante sobre a herança genealógica de uma família e ocorre em nível inconsciente, na maior parte das vezes, transitando no espaço intrapsíquico e intersubjetivo. Nas últimas três décadas, as pesquisas em relação à transmissão psíquica têm sido aprofundadas em alguns países e, hoje, há consideráveis produções científicas a este respeito. O francês René Kaës é um dos pesquisadores mais atuantes desse campo de estudos na atualidade. De acordo com esse teórico (Kaës, 1997), as observações clínicas da transmissão psíquica partiram do estudo das estruturas psíquicas de base e suas organizações nos pacientes borderline, narcísicos e psicóticos. A transmissão havia sido nomeada por Freud, primeiramente, como herança, contágio, transferência, repetição e identificação, ao longo de sua obra. Desde então, os maiores representantes que renovaram, a partir de Freud, o conceito de transmissão e passaram a enfatizar a falha na mesma foram os pesquisadores Nathan Abraham e Maria Torok. Na década de 1960, esses autores iniciaram estudos sobre luto, incorporação, cripta e fantasma como condições e atividades psíquicas muito presentes na dinâmica fantasmática do sujeito, em conseqüência do legado recebido das gerações anteriores (Abrahan & Torok, [1973]1995).

O significado da palavra transmissão, a etiologia de transmitir vem do latin transmittere que significa “mandar de um lugar para o outro, de uma pessoa para outra”, “deixar passar além”, “comunicar por contágio”, “propagar” (Ferreira, 2004). O trabalho de transmissão é parte de uma importante engrenagem existente no universo familiar, onde a cadeia geracional é mantida por uma combinação entre história e ciclo de vida intrafamiliar.

Ruiz Correa (2000) mostra que o trabalho de transmissão psíquica acontece no universo familiar por representar um espaço privilegiado, por onde conteúdos geracionais são manifestados através das representações construídas sobre os diversos movimentos internos, perpetuando os laços de contigüidade que fundamentam a identidade e a alteridade do sujeito. A família é lugar de transformações, e é nessa condição que ela origina as configurações intra e interpsíquicas. A autora revela que o processo de transmissão é pré-consciente também na forma particular de contar histórias e de expressar os afetos que circunscrevem as relações estabelecidas entre uma pessoa e outra ou entre uma geração e outra. Desse modo, podemos dizer que a transmissão psíquica pode operar em nível pré-consciente, desde que a capacidade do grupo de elaboração do material herdado possa espelhar as relações afetivas constituintes da intersubjetividade grupal.

Por outro lado, para Kaës (2001), a transmissão psíquica compreende um processo geralmente inconsciente, e o modo de trabalho é fundamentalmente não verbal, com base no mecanismo da repetição que, não só estaria na ordem da linguagem não verbal, como também pertenceria à ordem da pulsão. Os discursos parental e social sustentam a transmissão psíquica, permitindo a elaboração de um legado. Os objetos intrapsíquicos do sujeito são constituídos pelos vínculos estabelecidos a partir das diversas modalidades identificatórias e da fantasmática organizadora da representação interna no grupo através das gerações (Kaës, 1997). Entendemos que a identificação e a função do pré-consciente correspondem, respectivamente, à ligação com o passado e ao gerenciamento da movimentação libidinal interna atual. Do ponto de vista interpsíquico, a transmissão dos objetos acontece nos momentos significativos da família, como casamentos, nascimentos, mortes e o desenvolvimento da linguagem da criança. Toda a movimentação não verbal articula-se com a linguagem do grupo a partir de elementos geracionais que podem conter material perturbador e, assim, influenciar na configuração das relações entre os membros, como também em suas subjetividades. Essas situações são observadas em famílias que têm extrema dificuldade em lidar com mudanças internas, como o nascimento do primeiro filho, a entrada do filho na adolescência e outras. A subjetividade de cada membro não escapa da trama psíquica projetada pelos discursos parentais e ancestrais, quando, então, o material não significado pode ser transmitido. Em certos contextos familiares, são observados vários objetos não elaborados comprometendo a saúde dos sujeitos, a partir de uma impossibilidade de expressão, prejudicando os avatares da história simbólica da família.

Com foi dito anteriormente, o tema da transmissão não é algo novo e, segundo Kaës (2001), pode ser identificado através de quatro termos correspondentes ao longo da obra freudiana. A transferência, a herança dos pais (simbólica), a herança biológica e os sedimentos mnêmicos aparecem em diversos artigos freudianos, apontando relações entre os processos intrapsíquicos e interpsíquicos do sujeito com o objeto. Embora não apareça explicitamente em sua obra, Freud ([1897], [1930]1969) havia demonstrado que a cultura é também uma forma de transmissão que acontece nas diversas maneiras de o grupo interpretar e expressar algum acontecimento. Embora a cultura não seja uma temática constante em sua obra, é através dela também que o próprio autor conduz os seus estudos clínicos de acordo com preceitos e demandas de um contexto sócio-histórico próprio. Em seus estudos intrapsíquicos, ele associa a questão da transmissão psíquica a contágio, herança, transferência, repetição e identificação. Mais tarde, Kaës se apropria do conceito kleiniano de identificação projetiva, dando status de modalidade central para a transmissão psíquica inconsciente, juntamente com outros estudos sobre as questões metapsicológicas circunscritas no processo de transmissão e no funcionamento grupal (Kaës, 2005).

Nessa releitura da obra freudiana, Kaës (1997, 2001, 2004) mostra que Freud havia introduzido, a princípio, a concepção de transmissão psíquica como uma questão de herança filogenética, e depois associada à hereditariedade nos estudos sobre a histeria (Freud, [1897], [1905], 1969) nos quais, naquela ocasião, Freud debatia sobre a maneira de pensar a transmissão das neuroses pelas atividades psíquicas. Mais tarde, no trabalho sobre a Interpretação dos sonhos, de 1900, Freud inaugurará outra via de compreensão da transmissão, a da transmissão inconsciente por identificação com o objeto ou com a fantasia do desejo do outro. Kaës (2001) justifica a hipótese de a transmissão, nos casos de histeria, acontecer pela imitação, pelo contágio psíquico entre os sujeitos e pelas modalidades intrapsíquicas da transmissão dos pensamentos do sonho. O sonho compartilhado (Kaës, 2004) pode ser pensado como uma ferramenta de análise do processo de transmissão psíquica por condensar marcas recalcadas e registros pré-verbais sobre aspectos psíquicos primários dos sujeitos. Desta forma, o sonho na família pode ser pensado como atividade psíquica, por onde um material não elaborado pelo grupo é compartilhado em vários traços sem sentido, representando os elementos recalcados.

Em Totem e Tabu (1912-13[1969]), Freud revela outra via de interpretação do processo de transmissão psíquica sem nomear tal processo. A interdição ao incesto, ao parricídio e ao filicídio compreende pontos de partida para a estruturação da sociedade e da família. A transmissão da culpa e do tabu, através das gerações, configura a base de toda origem do funcionamento psíquico e a organização do funcionamento grupal. Assim, as heranças arcaicas, os acontecimentos traumáticos, como perdas, rupturas e separações, marcam a vida do sujeito de maneira particular e geram angústias, impasses e até doenças. Postula-se que o ambiente psicológico familiar, enquanto continente e lugar de elaboração dos acontecimentos traumáticos, acaba promovendo uma transformação do conteúdo transmitido. Numa perspectiva clínica, a função do trabalho do sonho compartilhado na família compreende um dos dispositivos lançados pelo terapeuta para o resgate de elementos ancestrais, tornando possível a re-inscrição de marcas originárias faltantes no grupo na tentativa de uma restauração do trabalho do pré-consciente.

Outros artigos de Freud, como A Psicologia das massas e análise do eu ([1921]1969) e O Eu e o Isso ([1923]1969), relançaram a questão da identificação não só como uma atividade intrapsíquica da transmissão psíquica. As instâncias psíquicas, como o Eu e o Supereu, compreendem lugares onde os conteúdos recalcados e traços mnêmicos podem sofrer transformações. Freud ([1923]1969) afirma que o Ego é formado a partir de fragmentos de muitos outros egos, ou traços deles, sendo que alguns traços são passados de geração em geração pela identificação. Abraham e Torok (1995) desdobram essas contribuições, mostrando em seus trabalhos que os traços herdados podem ser de personagens póstumos e que as lacunas deixadas por estes são retomadas pela identificação. Segundo os autores, de maneira inconsciente, a constituição do ego seria realizada, em parte, sob influência de uma composição por identificação dos traços dos egos dos antepassados, comprometidos muitas vezes com traços de objetos adoecidos que atravessaram as gerações por causa da repetição.

Outro ponto a acrescentar diz respeito ao que Kaës (2001) evidencia sobre o processo de transmissão psíquica a partir de Freud. Segundo o autor, há, em Freud, quatro campos de investigação da transmissão psíquica, vistos como: transmissão intrapsíquica, intersubjetiva, transpsíquica e formação do eu. A transmissão intrapsíquica é vista como um processo com base na intensidade e na representação entre as instâncias psíquicas do sujeito. Já a transmissão intersubjetiva faz uma distinção entre a realidade intrapsíquica e a realidade intersubjetiva, cuja interpretação é dada pelo manejo do sujeito com as suas relações imaginárias, simbólicas e reais em espaço intersubjetivo com produto dos espaços intrapsíquicos. O espaço intersubjetivo possibilita que o sujeito encarne, no simbólico, aquilo que é vivido no imaginário, dando forma não só ao corpo, mas ao corpo familiar, onde os tipos de vínculos e relações se tornam modos de transmissão. É nesse campo que podemos, portanto, ter o alcance da função do pré-consciente grupal como uma função intermediadora, uma zona de passagem e de contato, que facilita ou não a representação de conteúdos geracionais (Kaës, 2005).

O terceiro campo da transmissão psíquica diz respeito à transmissão transpsíquica que abole os limites e os espaços intersubjetivos, pois o que se transmite entre os sujeitos não é da mesma ordem do que se transmite através deles, como nos casos dos sonhos em grupo, compartilhados por todos os membros da família. Nesse caso, o material transmitido ultrapassa os limites entre os espaços intra e interpsíquicos, oriundos de outro lugar fora do alcance do pré-consciente. O último campo, a formação do Eu, se refere à instância psíquica de posição intermediária nos processos e nas funções de passagem, pois parte do Eu está consciente e outra, pré-consciente e inconsciente. O Eu pré-consciente compreenderia um intermediador dos processos de transmissão psíquica, ao organizar a vida psíquica do outro. Ele funciona como tradutor do não-sentido produzido pelo outro, e a falência ou falha do Eu pré-consciente terá como efeito confusões entre o dizer e o fazer, entre a ação e a representação produzidas na relação (Käes, 2004, 2005).

Além dos quatro campos da transmissão psíquica, existem dois tipos que acontecem no grupo familiar. Para Benghozi (2000) e Ruiz Correa (2000), a transmissão psíquica pode ser analisada sob o ponto de vista intergeracional e transgeracional. O primeiro diz respeito ao material psíquico transmitido, passado pelas gerações mais próximas, que pode ser elaborado e transformado pelo grupo, quando é dado sentido aos acontecimentos atuais com base em dados anteriores da história. Nos relatos de família sobre acontecimentos traumáticos recentes, eles são atualizados novamente na ocasião do desenvolvimento de doenças graves, como o câncer. O segundo tipo de transmissão psíquica, a transgeracional, refere-se a um modo tanto estruturante quanto defeituoso de transmissão, pois há o atravessamento de um conteúdo inconsciente, transmitido por gerações mais distantes. Este conteúdo remete às lacunas e aos vazios não elaborados pelas gerações atuais. Isto ocorre quando o não-dito, as reticências e o silêncio acerca de um assunto de família não encontraram espaço para representação e estão na ordem do recalcado.

 

O trabalho da transmissão psíquica geracional no adoecimento do sujeito: a influência de conteúdos da história familiar

Em uma história familiar, os elementos vivenciados como reais ou imaginados são introjetados como traços mnêmicos acoplados a sensações e excitações suspensas e impedidas de serem imediatamente ressignificadas. Freud (1997) já mostrava em seu caso clínico de 1892 que as excitações traumáticas ab-reagidas são suspensas no momento de extrema tensão e passam a transitar no pré-consciente como elementos soltos à procura de uma ligação ou representação.

Em casos de famílias que apresentam uma pluraridade de somatizações, sejam de crise graves ou crônicas, como diabetes, hipertensão e câncer de mama, por exemplo, o início e a evolução desses adoecimentos devem ser observados a partir de acontecimentos marcantes da história familiar recente. Acredita-se que há transferência de fragmentos ou traços de conteúdos não elaborados, pela movimentação libidinal desencontrada, que é prejudicada pela dificuldade de compreensão e de escoamento das tensões psíquicas. Os casos contados por Betts (1997), Lisboa (2005) e Loss (1998) mostram que no discurso do sujeito há sempre um fantasma assombrando as possibilidades de transformação do material herdado. Isso porque as representações são engessadas por uma quantidade de excitação psíquica sem sentido, impedindo a transferência da condição de não-sentido para a simbolização dos elementos. Mais ainda, essa transformação familiar fica comprometida quando há repetição de acontecimentos perturbadores, impedindo o grupo de pensar e reagir sobre as demandas.

De acordo com nossa experiência clínica, as falas dos sujeitos são influenciadas por ideias construídas por mitos ou lendas contadas sobre casamentos, nascimentos e mortes. Dessa forma, alguém se inscreve como herdeiro e se apresenta como catalizador dessas ideias, estando afinado com um material integrador ou destruidor. Desse modo, presume-se que a transmissão psíquica e a relação intersubjetiva da família podem suscitar o adoecimento. E a doença seria a ligação entre família e a herança alimentada por mitos e fantasias, amalgamadas por fantasmas que impregnaram as zonas de passagem e de contato, provocando um contínuo desinvestimento libidinal dos vínculos e o apagamento do reconhecimento da alteridade entre os membros.

Os fatos significativos se revelam através de perdas ocorridas e compreendidas como tal mesmo diante de situações que promovem transformação. Porém, a mais significativa entre elas é a morte de pessoas muito próximas. O falecimento inesperado de genitores, filhos ou cônjuges causam grande abalo na família, servindo de ponto de partida para inúmeros adoecimentos em um momento tardio da vida. Jasmin et al. (1990) expõem casos de mulheres com câncer de mama que relatam perdas dessa natureza, acompanhados ainda de uma depressão essencial durante a história de vida. Na clínica, geralmente, as circunstâncias do adoecimento são associadas pelos sujeitos a fatos marcantes na família que servem de trampolim para um desinvestimento libidinal gradativo e desorganizador da dinâmica intersubjetiva, na forma de uma baixa capacidade de representação mútua, acumulando excitações psíquicas cada vez mais soltas e sem ligação, como em falas repetitivas e pela metade. O grande esforço do grupo familiar na clínica está no fato de que o discurso dos membros tenta dar sentido às rupturas e aos fatos que atacam a própria capacidade de pensar e sentir juntos.

O adoecimento de alguns familiares faz emergir lembranças que não encontraram ainda momentos apropriados para serem expressas e sentidas de maneira compartilhada. A lembrança de mortes geralmente desperta sentimentos de abandono e promove a sensação de fragilidade. Essa situação pode deixar o grupo vulnerável a qualquer passagem de material geracional perturbador. Nessas ocasiões, os mitos tomam conta da fantasmática familiar onde o trabalho do pré-consciente pode se engessar com o fantasma presente nas identificações múltiplas dos membros com as histórias anteriores. Os processos intrapsíquicos de cada sujeito se revelariam como catalizadores desse material solto na intersubjetividade, capturando traços e traduzindo, nas diversas formas de expressão verbal, corporal e comportamental, os elementos desorganizadores da saúde mental.

Na forma de um processo progressivo e cumulativo de excessiva tensão psíquica, o adoecimento passa a ter ligação com algum objeto da história familiar que favorece certos componentes de risco ao potencial psíquico de cada membro, limitando a capacidade de elaboração do grupo ao longo de suas fases de desenvolvimento. O campo intersubjetivo da família pode apresentar-se, portanto, em ressonância com um conteúdo herdado e transmitido de pais para filhos, de avós para netos, em estado de fragmentação funcional (Marty, 1980). Isso quer dizer que a geração atual de uma família pode encontrar dificuldades ao elaborar suas próprias excitações interpsíquicas frente a diversas demandas, passando por uma fragmentação funcional, onde a desorganização de suas representações sobre o material herdado se torna crescente. Nessa direção, há um acúmulo de excitações ou conflitos não resolvidos no passado que ganham proporções excitatórias não alcançadas pela capacidade do grupo de elaborá-las. Ao re-atualizar um conflito do passado, o trabalho psíquico familiar atual pode configurar-se em um campo favorável para as plurisomatizações compreendidas como o ponto de chegada do escoamento excitatório ou de conteúdo recalcado ou de elemento que circula solto no pré-consciente grupal. Com base nesses pressupostos, este estudo destaca a influência do trabalho da transmissão psíquica nos processos intrapsíquicos e intersubjetivos constituintes da condição de adoecimento somático na família, uma vez que o conteúdo da herança transmitida interfere na qualidade do funcionamento psíquico do sujeito e do grupo familiar. Isto, sob a forma de um mito, silêncio, segredo, censura ou discursos pela metade, reticentes, que demonstram dificuldade de expressão da angústia mantida por um pacto não verbal.

As lacunas deixadas por uma perda não elaborada podem ser evidenciadas pelos sentimentos de abandono, da sensação de isolamento e da distância afetiva entre os membros da família. O esvaziamento e o apagamento libidinal podem ser observados na atmosfera familiar e, principalmente, no discurso dos membros doentes. Podem existir pequenas confusões entre o pensamento e a fala que, às vezes, prejudicam a compreensão da sucessão e do sentido dado aos acontecimentos. As reticências e as metáforas surgem, sendo que a segunda pode representar uma forma cultural de nomear e entender sentimentos tão complexos. As palavras não são movidas pelo afeto e desaparecem diante de um silêncio improdutivo e crescente, alimentado por essa desafetação.

 

Considerações Finais

Além do trabalho da transmissão psíquica, e com base na história e na intersubjetividade de uma família, a questão do adoecimento e da transmissão psíquica suscita maiores considerações em relação à representação, elaboração, identificação, investimento libidinal, herança e trabalho do pré-consciente grupal numa visão longitudinal de seu desenvolvimento. Todo grupo familiar fica suscetível às vicissitudes ocorridas em sua história, e o adoecimento, paradoxalmente, compreende uma maneira de concretizar essas mudanças. Do ponto de vista intersubjetivo familiar, a somatização pode compreender um caminho encontrado pelos sujeitos para representar as repetições de histórias parentais ou ancestrais, cujos recursos psíquicos se mostraram frágeis na tentativa de elaboração das perdas ocorridas ao longo do tempo. O adoecimento na família pode representar a condensação de um legado transmitido ao longo das gerações, mantendo a condição estruturante das relações entre os membros. O enredo de um mito pode manter confusões e impasses diante de transformações necessárias, neutralizando o movimento libidinal e fragilizando a saúde dos membros. Essa situação se potencializa quando a dinâmica intersubjetiva familiar é empobrecida de representações e quando a negação e a repressão surgem como defesas inflexíveis.

A família nos aponta uma maneira de pensar a relação existente entre transmissão psíquica e adoecimento somático, a partir de dois ângulos: ou por uma repetição de acontecimentos, gerando um retorno a fantasias e mitos de histórias anteriores em torno dos adoecimentos dos membros; ou sinalizando a reatualização de sofrimentos não simbolizados e perdidos na história a partir dos adoecimentos. As histórias do passado podem encontrar seu destino na doença, uma vez que essa for amalgamada por uma identificação a qualquer material histórico. A doença pode retratar o desinvestimento libidinal gradativo, dificultando as possibilidades de transformação das representações de abandono. O acúmulo de questões não elaboradas ao longo da vida, como perdas e mudanças no ciclo familiar podem contribuir para o desenvolvimento de doenças, de modo que se transformem em tensões contínuas e sem sentido na relação familiar.

Na clínica, o trabalho do pré-consciente da família pode ser depurado pelos caminhos realizados entre o pensamento e a fala, diante da escuta do terapeuta de família. É possível retomar os conteúdos psíquicos não elaborados a fim de que os mesmos sejam re-significados e as representações se fortaleçam em busca de melhor qualidade de todos os herdeiros.

 

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Submetido em: 21/07/2010
Revisto em: 30/07/2011
Aceito em: 05/08/2011

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