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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.spe Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Juventude e trabalho: construindo a carreira em situação de vulnerabilidade

 

Youth and work: building the careers in a vulnerable situation

 

 

Marcelo Afonso Ribeiro

Docente. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo. São Paulo. Brasil. marcelopsi@usp.br

 

 


RESUMO

O artigo analisou os sentidos, caminhos e estratégias para a construção inicial da carreira de jovens em busca de trabalho, entre 18 e 24 anos e recrutados(as) num centro de intermediação de trabalho que, pela precariedade de suas condições objetivas e subjetivas, são considerados(as) vivendo em situação de vulnerabilidade psicossocial. De base qualitativa, o estudo realizou 30 entrevistas semiestruturadas e uma análise de conteúdo. Os achados apontaram que o sentido do trabalho seria de satisfação de demandas, não de um valor central a cultivar. Assim, a experiência de trabalho lhe atribuiria sentido pela construção de relações sociais baseadas no respeito (sentido psicossocial) e pelo ganho financeiro (sentido material). Porém, naturalizam a situação sociolaboral, resultando em conformismo e dificuldade de planejamento futuro pela necessidade de atender demandas presentes. Sua saída é desenvolver-se e adaptar-se continuamente, construindo suas carreiras em situação de vulnerabilidade.

Palavras-chave: Jovens, Carreira, Valor do trabalho, Vulnerabilidade.


ABSTRACT

The article analyzed the meanings, pathways and strategies for the initial building of the career of young searching for a job, between 18 and 24 years of age and recruited in an employment agency, which are considered living in vulnerable situations, because of the precariousness of their objective and psychosocial conditions. Aiming a qualitative study, 30 semi-structured interviews and a content analysis were conducted. The main findings pointed out that the meaning of work would be the satisfying of demands, not the cultivation of a core value. Thus, the work experience gives it meaning by the establishment of social relations with respect (psychosocial meaning) and by the financial gain (material meaning). However, it naturalizes a socio-occupational situation, leading to conformity and to a lack of future planning by the need to respond to the requests of the present. Their output will be the developing and the adapting continually, by building their careers in vulnerable situations.

Keywords: Youths, Career development, Work values, Vulnerability.


 

 

Muito tem se discutido na literatura especializada acerca da flexibilização e da precarização do trabalho, da redução considerável dos empregos e da dificuldade de se ter um trabalho decente e uma trajetória sócio-ocupacional contínua, o que levaria a uma ressignificação do trabalho como eixo organizador central da sociedade, da subjetividade e da identidade, e deixaria muitas pessoas apartadas da possibilidade de trabalhar em condições satisfatórias e ter no trabalho um valor básico (BLANCH, 2002; CASTEL, 1999).

Alguns grupos sociais têm sido apontados como grupos mais impactados e afetados por esta conjuntura contemporânea de precariedade e vulnerabilidade psicossocial das pessoas em suas relações com o trabalho, dentre eles os(as) jovens, considerados(as), principalmente pelas políticas públicas, como toda pessoa entre 15 e 29 anos, grupo que pode ser subdividido em 3 faixas etárias: 15 a 17 anos (adolescente), 18 a 24 anos (jovem) e 25 a 29 anos (jovem adulto). (ANDRADE, 2008; OIT, 2009).

Dentre os(as) jovens, além da diferenciação por faixa etária, pode-se categorizá-los(as) com base nas condições materiais e psicossociais que possuem para se desenvolver no mundo sociolaboral. Pouco tem se discutido sobre as escolhas iniciais e a construção das trajetórias de vida no trabalho de jovens que, em função da precariedade de suas condições objetivas e psicossociais, são considerados(as) como vivendo em situação de vulnerabilidade psicossocial, sendo, esta, a justificativa central do presente artigo, ou seja, trazer mais elementos para análise das concepções de juventude e das construções no mundo do trabalho destes(as) jovens, auxiliando a todos que trabalham diretamente com eles(as) a evitar estereótipos e concepções generalizadoras acerca dos(as) mesmos(as).

Os principais estudos se concentram no campo da orientação profissional (BASTOS, 2005; BOCK, 2010; DIEMER; BLUSTEIN, 2007; PARADISO, 2009; VALORE, 2002) e da sociologia do trabalho (ABRAMO; BRANCO, 2005; ANDRADE, 2008; MARTINS, 2001; POCHMANN, 2000), mas poucos foram realizados no campo da psicologia social do trabalho - matriz teórica do presente artigo.

Assim, através de uma pesquisa de campo, buscou-se analisar os principais caminhos e estratégias para a construção dos passos iniciais da carreira deste grupo específico de jovens entre 18 e 24 anos considerados(as) como vivendo em situação de vulnerabilidade psicossocial. Optou-se por esta faixa etária, pois são jovens que, em geral, estão em transição da escola para o trabalho (mesmo os que ingressam precocemente no mercado de trabalho) e utilizam sua remuneração como complemento da renda familiar ou para sua própria subsistência (CAMARANO, 2006; OIT, 2009).

Para tal tarefa, serão utilizados, principalmente, os referenciais teóricos de Robert Castel (concepções de vulnerabilidade social, desfiliação e trabalho), de Pierre Bourdieu (concepções de habitus de classe e juventude) e de Audrey Collin (concepções de carreira). Cada autor vem de uma tradição epistemológica distinta, entretanto, o que os une seria a busca da compreensão e da análise das relações possíveis entre pessoas e sociedade de modo psicossocial. O psicossocial é aqui entendido como um processo de

"construção contínua e compartilhada, não um ajustamento ou adaptação de um indivíduo (processo subjetivo) a uma realidade (processo social), ambos compreendidos não como processos delimitados e separados, mas sim um único processo visto como elo de continuidade do subjetivo ao social e vice-versa, pólos extremos de uma mesma estrutura processual global, que é produzida em relação dialética, pois se constitui como produto e produtora da própria relação, relação de dupla transição: do subjetivo ao social e vice-versa, num movimento contínuo. A estrutura é sempre processual, nunca substantiva" (RIBEIRO, 2011, p. 56).

 

Estruturação psicossocial do trabalho, do emprego e da carreira

O trabalho se caracterizou, principalmente, ao longo do século XX, como a protoforma do ser social e fundamento ontológico da existência social, na chamada sociedade do trabalho, ao ser o centro da organização social possibilitando e articulando a integração política, a coesão social, a normalidade cultural e a qualidade de vida de cada um. O emprego era a forma básica de vínculo com o trabalho, a carreira se constituía na sequência de posições ocupadas no mundo do trabalho e o trabalho tinha valor central na construção da vida. Havia mais segurança de planejamento futuro, contudo a oportunidade de criação de caminhos diferenciados no mercado de trabalho era mais restrita, sendo mais uma reprodução de modelos do que a produção de carreiras (BLANCH, 2003; LUKÁCS, 1980; SUPER, 1957).

É mister marcar que na, realidade brasileira, a possibilidade de se fazer escolhas no trabalho e a segurança de se ter um emprego sempre foram opções restritas para muitos.

Com a crescente flexibilização, heterogeneização e fragmentação do trabalho, que fez com que o emprego deixasse de ser a forma predominante de configuração do trabalho humano para a maioria dos trabalhadores, autores como Gorz (1987) começam a questionar a centralidade da categoria trabalho na contemporaneidade, discutindo que ela teria perdido sua potência de dimensão fundante da vida, pois havia se rompido o projeto coletivo implicado na sociedade do trabalho.

Neste contexto, o desemprego e as formas precárias de inserção sociolaboral (informalidade, subempregos, terceirização) aumentaram em quantidade e diversidade, rompendo com a estruturação do mundo do trabalho e gerando um impacto no trabalho e nas carreiras, agora mais heterogêneos e menos coletivos. Instaurou-se uma situação de vulnerabilidade social para uma considerável parcela da PEA (população economicamente ativa). O trabalho como valor central e a carreira como organizadora da relação entre a pessoa e o mundo do trabalho pareciam ter perdido sua força, não tendo mais esta potência estruturante como tinham na configuração do mundo moderno.

Em relação às carreiras, pode-se dizer que as pessoas não teriam mais uma carreira, como tradicionalmente se dizia dela como projeto social coletivo e acabado ao qual se adaptava, mas teriam que construir sua carreira na relação com o mundo. Assim, compreende-se por carreira, neste artigo, as resultantes possíveis da articulação entre as dimensões pessoal e social nas relações com o mundo do trabalho, concretizados pelas trajetórias de vida sociolaboral, que são legitimadas e compartilhadas psicossocialmente (COLLIN, 2000; RIBEIRO, 2009b).

Em relação ao trabalho, Castel (1999) indica que a organização sociolaboral sofreu um processo gradativo de fraturas em seu tecido pelos processos de flexibilização e desregulamentação das últimas décadas, abrindo espaço para construções menos normativas, o que tem favorecido uma pequena parcela da população e deixado a outra grande parcela em situação de vulnerabilidade e, no extremo, vivendo uma desfiliação social.

 

Mundo do trabalho como gerador de vulnerabilidade psicossocial

Castel (1995) define desfiliação como a ruptura de pertencimento ou vínculo societal, gerando estados de despossuir um lugar nas relações sociais, sendo assim impossibilitado de fazer vínculos, nomeados de supranumerários (pessoas sem utilidade ou de pouca utilidade social), caracterizados, em geral, pelo individualismo negativo (perda simbólica da relação com a sociedade) e pela desinstitucionalização (perda da ligação com os quadros objetivos que estruturam a vida social). Esta situação seria gerada por um processo de ruptura da coesão social sendo que há três zonas de variação desta coesão: integração, vulnerabilidade e exclusão (vide Figura 1).

 

 

a) Integração (ou filiação) social: pessoas que se beneficiam da estruturação social, têm acesso aos bens sociais, têm seus direitos sociais garantidos e conseguem constituir lugar na sociedade, estabelecer vínculos, ter reconhecimento e construir uma trajetória sociolaboral. São grupos por excesso, nos quais as pessoas têm as melhores condições objetivas e materiais de vida, o que redunda em boas oportunidades de educação e trabalho (CASTEL, 2009);

b) Vulnerabilidade social: pessoas que vivem em condições precárias de vida, em termos de acesso a bens e direitos sociais, construindo sua trajetória de forma transitória e descontínua, mas ainda assim tendo um lugar e um certo reconhecimento social, apesar de estarem instalados na precariedade e com pouca proteção social;

c) Exclusão (ou desfiliação) social: grupo de supranumerários que lutam contra as impossibilidades de construção de lugares e trajetórias no mundo sociolaboral e vivem imersos na insegurança, instabilidade e desproteção sociais. Estão impedidos, de forma parcial ou total, de acessar bens coletivos como saúde, educação e trabalho, antes garantidos pela inclusão no trabalho.

Nas zonas de vulnerabilidade e exclusão, concentra-se a maioria da população, nomeada por Castel (2009) de grupos pela falta, que tem condições objetivas e materiais de vida precárias e onde os suportes sociais e a possibilidade de autonomia e escolha são bem restritas. Como um movimento processual, dinâmico e dialético, há uma pressão mútua entre as três zonas propostas, que não seriam estados substantivos, mas relações dinâmicas e processuais, que definem um continuum psicossocial, ou seja, as relações e a organização social possuem as três zonas que não são separadas e isoladas e sim são dimensões de um mesmo processo de relação social, através do qual as pessoas circulam entre as zonas.

Neste artigo, utilizar-se-á uma apropriação da noção de vulnerabilidade de Castel (1995), denominada de vulnerabilidade psicossocial, que é marcada por uma diminuição da possibilidade de estabelecer vínculos e redes sociais, não uma fragilidade pessoal, nem institucional, e sim relacional, ou seja, a vulnerabilidade psicossocial seria a resultante de contextos de intersubjetividade, isto é, espaços delimitados (sociais, culturais, laborais, econômicos, simbólicos) de relação geradores de vulnerabilidade, nos quais as pessoas se encontram em dificuldade de estabelecer vínculos em alguma dimensão significativa da vida, como o trabalho (PAIVA, 2008). Que contextos de intersubjetividade estariam gerando mais vulnerabilidade psicossocial na contemporaneidade?

 

Juventude, habitus de classe e vulnerabilidade

Para Bourdieu (2008), algumas características, principalmente vinculadas ao grupo sociocultural de origem, facilitam ou dificultam o trânsito entre as zonas de coesão social descritas por Castel (1995), e as possibilidades de significação, relação e ação sobre o mundo têm forte sobredeterminação do habitus de classe de cada pessoa.

O habitus de classe seria o conjunto estruturado de disposições representacionais (maneiras de ser) e modelos de ação sobre o mundo (práticas), que aparecem em qualquer ação cotidiana e que organizaria as estratégias de vida através da mediação entre o estilo de classe (ação estruturada de dado habitus) e o estilo pessoal (desvio diferencial gerado pela pessoa em seu estilo de classe potenciadora de transformações), e caracterizaria os deslocamentos no espaço social que constituem sua trajetória social.

Tal processo tende a reproduzir as potencialidades inscritas em seu habitus na situação presente, mas que, como práticas, só podem ser explicadas ao se colocar em relação à estrutura objetiva que define as condições sociais de produção do habitus (relação entre os grupos sociais que geram suas características), que engendrou a prática, com as condições de exercício desse habitus (conjuntura singular da estrutura), marcando um estilo de classe e um estilo pessoal. Toda pessoa carrega a marca do seu habitus nos vínculos realizados com os diversos contextos de intersubjetividade.

Assim, para tentar analisar as possibilidades e limites para a construção de uma carreira no mundo contemporâneo e indicando que alguns grupos com características semelhantes teriam mais dificuldades que outros, elegeu-se os(as) jovens com habitus de classe que lhes oferecem condições objetivas desfavoráveis em termos culturais e socioeconômicos como foco do presente estudo. São grupos nos quais a família tem um rendimento baixo, não oferece boas condições de saúde, formação educacional, lazer e cultura, e se demanda do(a) jovem que ingresse precocemente no mundo do trabalho para complementar a renda familiar. Mas o que é ser jovem na contemporaneidade? O que é o trabalho para o(a) jovem? E quais condições os(as) jovens destes grupos específicos, nomeados de grupos pela falta por Castel (2009), encontram para ingressar no mundo do trabalho, exercer seu trabalho e construir suas carreiras?

 

Relações entre juventude e trabalho

Tradicionalmente, o(a) jovem era intitulado(a) de adolescente, definido(a) por uma faixa etária genérica do ciclo vital e caracterizado(a) por transformações psicológicas e biológicas universais. Em termos socioculturais, a juventude correspondia a uma fase de transição para a vida adulta marcada pela saída da escola, emprego em tempo integral, casamento, filhos e casa própria (trajetórias mais uniformes e genéricas). Ao(À) jovem cabia se preparar para a vida adulta, basicamente através da educação formal, e os papéis designados para os adultos, como trabalhar e constituir família, não eram destinados, para muitos, a esta fase da vida. Neste contexto, trabalho era a negação da juventude.

A literatura contemporânea sobre a juventude tem apontado que pensá-la como fase universal na vida de todos seria desconsiderar a situação e a condição cultural e psicossocial do(a) jovem, e que ela deveria ser compreendida como um conjunto social diversificado em função das diferenças socioculturais (diversidade das formas de reprodução e produção sociocultural), operando uma subversão do conceito de adolescência e sua substituição por jovens ou juventudes: variações produzidas de formas e condições diferenciadas de ser e se sentir jovem, que imprimem mais ambiguidades do que uma unidade (BOURDIEU, 1980; CAMARANO, 2006; COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005; DAYRREL, 2003).

Em termos socioculturais, pode-se dizer que a contemporaneidade tem gerado uma descronologização do percurso etário, uma desconexão dos atributos tradicionais de maturidade, uma vivência de papéis tradicionalmente adultos sem deixar de ser jovens (trabalho, família e independência financeira), resultando em trajetórias mais singulares determinadas pela incerteza e imprevisibilidade. Há uma maior complexidade nos padrões de transição para a vida adulta e uma menor linearidade, homogeneidade e previsibilidade das trajetórias: esta é a dificuldade de delimitar uma faixa etária específica universal aos(às) jovens (ABRAMO; BRANCO, 2005; ANDRADE, 2008; CAMARANO, 2006).

Uma mudança de cenário fica explícita, na qual trabalho não é mais a negação da juventude, ao contrário, é parte constituinte e fundamental da vida juvenil que é múltipla na visão do(a) jovem contemporâneo. Nos estudos recentes, o trabalho seria para os(as) jovens o problema mais significativo do ponto de vista social e coletivo, juntamente com a violência, sendo o principal fator de mobilização e de demanda, que se manifestaria pela reivindicação de um trabalho decente com sentido e de um emprego estável (ABRAMO; BRANCO, 2005; ANDRADE, 2008; GONÇALVES et al., 2008; IBASE, 2007; OIT, 2009).

Segundo a OIT (2009), trabalho decente seria "um conceito dinâmico, uma trajetória, antes que um estado ou situação" (p. 50), mais do que um emprego com bom salário e boas condições de trabalho, trata-se de uma inserção social que promova oportunidades de crescimento e desenvolvimento psicossocial e profissional. Mas o trabalho ainda seria central para a constituição psicossocial dos(as) jovens?

 

Valor e sentido do trabalho para os(as) jovens

Castel (2009) diz que há um recuo generalizado e irreversível do valor do trabalho, entretanto, isto se dá de formas e em direções distintas e, muitas vezes, contraditórias, por conta da complexidade e heterogeneidade das situações nas quais as pessoas negociam suas relações com o trabalho. Para os(as) jovens, o valor atribuído ao trabalho é diferente daquele que gerações anteriores construíram para ele, mas que o trabalho continuaria tendo um sentido central para suas vidas, apesar de ter perdido, em parte, sua referência positiva para a vida, pela precarização de suas condições.

Segundo Guimarães (2004), o trabalho passa de um valor ético central para se tornar a preocupação e o interesse básico dos(as) jovens: sua centralidade não advém de seu valor ético e sim de sua urgência como problema, ou seja, o sentido do trabalho seria antes o de uma demanda a satisfazer que o de um valor a cultivar. Assim, as dificuldades provenientes das novas condições de inserção no mundo do trabalho não têm gerado a perda do significado do trabalho e sim a produção de novos e diferentes significados com o trabalho como central na vida do(a) jovem (MARTINS, 2001). Importante destacar que há uma diversidade de atitudes face ao trabalho entre jovens com habitus de classe diferentes, em função do estilo pessoal que cada um(a) consegue construir na sua relação com o mundo, e fortemente dependente dos vínculos e dos suportes sociais que eles(as) podem mobilizar.

Em tese, Castel (2009) e Guimarães (2004) acreditam que o valor do trabalho permanece sólido, mas tem se destacado mais pela sua ausência e pela reivindicação de um trabalho com sentido, do que por seu valor ético intrínseco, principalmente entre os(as) jovens com nível de escolaridade baixo e condições desfavorecidas pelo seu habitus de classe, que vivem sua condição, trajetória e primeiros passos na carreira sob a crise do trabalho, com negação de direitos, ineficiência das políticas públicas e expostos(as) a processos de vulnerabilidade sociolaboral pela aleatoriedade e falta de boas oportunidades de construção de relações no mundo (perfil do(a) jovem aqui estudado).

Bourdieu (1997) diz que a escola funciona como um princípio da realidade ao dar um veredicto acerca da possibilidade do(a) jovem ultrapassar o projeto que lhe foi destinado(a) por sua família e que, no caso de muitos jovens, é geradora de sofrimento, pois aponta claramente a impossibilidade desta transcendência.

Wickert (2006) assinala que, diante desta situação marcada por falta de oportunidades e ausência de possibilidade de escolha, na qual os(as) jovens se percebem cumprindo todas as normas exigidas pelo mercado de trabalho, mas mesmo assim não sendo contratados(as), este(a) jovem acaba por aceitar qualquer coisa no mundo do trabalho renunciando às suas vontades e sonhos e, no limite, há uma espécie de renúncia de si mesmos(as), em nome do ideal de inserção no sistema, o que gera empobrecimento das relações e afastamento dos processos coletivos, processo nomeado por Castel (1999) de individualismo negativo (perda simbólica da relação com a sociedade), marcado por intensa culpabilização pessoal.

O perigo da vivência da vulnerabilidade advém do fato de que o(a) jovem, ao encerrar a educação básica (ensino médio), se vê num limbo social, pois não encontra nem lugar nem papel social para si, e o trabalho e a constituição de uma família passam a ser suas únicas possibilidades sociais reconhecidas que, quando não acontecem, provocam uma suspensão no ciclo vital danosa ao(à) jovem (SARRIERA, 2000).

Além disso, quando trabalham, não fazem planejamentos futuros, pois têm que viver o dia a dia, em função da vulnerabilidade gerada por suas relações psicossociais. Zarifian (2002), ao versar sobre a temporalidade, diz que estes(as) jovens vivem no tempo espacializado, ou seja, a temporalidade é uma imposição externa, não apropriada, que faz a pessoa construir o futuro como um eterno presente (tempo da reprodução).

 

Condições de convivência com o (não) trabalho

Chiesi e Martinelli (1997), Guimarães (2004) e Pochmann (2000) apontam que os(as) jovens com condições desfavorecidas pelo seu habitus de classe enfrentam sérias dificuldades nas suas primeiras relações com o mundo do trabalho, potencialmente geradoras de vulnerabilidade psicossocial. São elas:

a) Dificuldade de atender suas exigências de escolaridade, experiência e qualificação restando uma inserção precoce no mundo do trabalho, redundando numa sequência de inserções provisórias e de baixa remuneração como alternativa que iniciam um ciclo que pode se reproduzir ao longo de toda vida e comprometer o futuro desses(as) jovens, pois quanto mais precoce a entrada no mercado de trabalho, mais precária a inserção laboral e maior o prejuízo na formação educacional, impedindo a construção de uma ascensão sócio-ocupacional (ANDRADE, 2008; OIT, 2009; POCHMANN, 2004).

b) Desencantamento com o futuro profissional, pois o ciclo descrito no item (a) acaba por gerar uma experiência de impotência, conformismo e acomodação e o efeito desalento, restando a necessidade como fator primordial para a inserção no trabalho, diminuindo o grau de exigência do(a) jovem trabalhador(a) e aumentando sua submissão: verdadeiras patologias coletivas de frustração, geradoras de uma experiência de desencantamento, na qual a pessoa tem a sensação de não ter lugar social e nem ter recursos para desempenhar papéis sociais (MOISE, 2000).

c) Educação aparece com discurso de garantia para a conquista de bons trabalhos, mas não como realidade, pois não é legitimada pelo mercado de trabalho em função de sua baixa qualidade, gerando uma credibilidade reduzida, ou seja, não adianta aumentar os anos de estudo se a educação não for considerada de qualidade, gerando a coexistência de um discurso de maior escolarização, de um lado, e uma oferta de mais trabalhos desqualificados, de outro. O mundo sociolaboral contemporâneo, marcado pela heterogeneidade, não delimita mais referências genéricas e permite a emergência de discursos sociais com valor de realidade, mas que, muitas vezes, não têm uma concretização na experiência de vida do(a) jovem, como é o caso atual das garantias da educação para sucesso no trabalho (BOURDIEU, 1997; POCHMANN, 2004).

Diante deste quadro, a presente pesquisa buscou analisar qualitativamente a experiência de construção dos primeiros passos da carreira de um grupo de jovens da cidade de São Paulo-SP, estruturados dentro de grupos com características semelhantes àquelas descritas nos itens arrolados, na faixa etária de 18 a 24 anos, inseridos no mercado de trabalho ou em momento de inatividade forçada, mas buscando trabalho. Todos com uma trajetória de vida no trabalho de pelo menos dois anos, que podem ser correlacionados às zonas de vulnerabilidade social, segundo proposta de Castel (1995).

 

Metodologia

Foi utilizado um estudo de natureza qualitativa realizado com jovens trabalhadores(as) ou em situação de desemprego que frequentavam um CAT (Centro de Apoio ao Trabalho) da Prefeitura da cidade de São Paulo-SP. A pesquisa de campo durou dois meses e foram realizadas 30 entrevistas em profundidade, através de um roteiro semiestruturado elaborado. Esta modalidade de entrevista estimula o discurso livre das pessoas acerca dos temas elencados como objeto de investigação e permite que a pessoa conduza a direção da narrativa, que é interpelada pelas questões do pesquisador. Todos os cuidados éticos foram seguidos, conforme a Resolução 196/96 da CONEP.

As questões centrais abordadas na entrevista foram: sentidos atribuídos ao trabalho, características de um bom trabalho, objetivos e interesses em relação à inserção no mercado de trabalho, requisitos necessários para conseguir um bom trabalho, principais estratégias de busca de trabalho, histórico familiar no mundo do trabalho, vínculo com a educação na sua trajetória de vida, avaliação da educação recebida e importância da educação para a inserção no mercado de trabalho, concepção do que é carreira e perspectivas de futuro.

Procedimentos

O CAT foi selecionado como espaço para coleta de dados, pois presta serviços de intermediação e orientação de trabalhadores(as), em geral, oferecendo empregos formais de nível básico e médio (poucos de nível superior) com remuneração média de 1 a 2 salários mínimos, o que correspondia ao perfil da população alvo do estudo.

Foi realizado contato com a direção de dois CAT da cidade de São Paulo-SP, que permitiram a presença dos pesquisadores na instituição. Os(As) participantes eram abordados(as) depois de serem atendidos(as) pelo CAT e convidados(as) a participar da pesquisa, que era explicada em detalhes e, caso tivessem interesse em colaborar, era apresentado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que era, então, lido em conjunto com o(a) participante, para enfim ser assinado pelo pesquisador-entrevistador, pelo coordenador da pesquisa e pela própria pessoa, ficando uma via com cada. Depois de sanadas todas as dúvidas e o aceite do participante ser concedido, as entrevistas foram realizadas por um grupo de pesquisadores e duraram em média 60 minutos, sendo gravadas e transcritas.

Participantes

Jovens entre 18 e 24 anos, inseridos(as) precariamente no mercado de trabalho ou em momento de inatividade forçada, mas buscando trabalho, todos(as) com uma trajetória ocupacional de pelo menos dois anos, formação de nível médio (completo ou incompleto) e sem perspectivas de ingresso no ensino superior.

Análise dos dados

As entrevistas transcritas foram analisadas a partir da proposta de análise de conteúdo de Bardin (1977). Foi realizada uma primeira leitura flutuante individualizada de cada uma, com o objetivo de levantar os temas salientes e recorrentes, que foram sistematizados e originaram categorias para cada entrevista em particular (análise vertical). Após a realização do mesmo procedimento com todas as entrevistas, buscou-se a lógica que unia os dados e todo o conteúdo foi ordenado e categorizado (análise horizontal) e dividido em seis grandes categorias empíricas de análise: relações entre juventude e trabalho, valor e sentidos do trabalho para os(as) jovens, (falta de) perspectivas de futuro, valor e vínculos com a educação, requisitos para o sucesso no trabalho e o surgimento da vulnerabilidade psicossocial.

Cada categoria empírica foi confrontada com as categorias analíticas apresentadas na introdução do texto, a saber: valor e sentidos do trabalho para os(as) jovens, sentidos e objetivos da educação, relações entre juventude e trabalho, condições de convivência com o (não) trabalho, desencantamento com o futuro profissional, discriminação pelo estilo de classe (habitus) e vulnerabilidade psicossocial, gerando inter-relações e interpretações conjuntas. As categorias analíticas têm como referencial teórico as concepções de Bourdieu e Castel.

 

Apresentação e discussão dos resultados

Os(as) participantes foram categorizados(as) segundo idade, sexo, tempo de carreira, nível de escolaridade, estado civil, renda mensal familiar e escolaridade e profissão dos membros da família. Em termos de faixa etária, temos metade entre 18 e 21 anos e metade entre 22 e 24 anos, e, em termos de nível de escolaridade, metade tem o ensino médio incompleto e metade o ensino médio completo. Quanto ao sexo, temos um grupo equitativo entre homens e mulheres. Em termos de estado civil, são todos solteiros sem filhos. A maioria dos participantes trabalhava, com uma pequena parte desempregada, sendo a renda mensal familiar média variando de R$ 1.000,00 a R$ 2.000,00. Os pais possuem um nível de escolaridade mais baixo que seus filhos(as) (participantes), variando entre o ensino fundamental incompleto e completo, e poucos com ensino médio completo. Ocupam posições técnicas ou no setor de serviços no mercado de trabalho como pedreiro, lavrador, segurança, motorista, empilhador, atendente, padeiro, motoboy, costureira e eletricista, realizadas, em geral, de forma descontínua e com constante mudança na ocupação desempenhada.

Os participantes tinham pelo menos dois anos de carreira e sua primeira inserção laboral ocorreu entre 14 e 18 anos. Os trechos das entrevistas foram transcritos como vinhetas para ilustrar a análise realizada e seus autores foram identificados com pseudônimos, sendo indicada qual pergunta foi feita que gerou a resposta citada, transformada em vinheta.

Relações entre juventude e trabalho: a naturalização da atual estrutura sociolaboral

Se, tradicionalmente, trabalho, para muitos jovens, era a negação da juventude destinada a se dedicar aos estudos, segundo a narrativa dos(as) participantes, esta característica não aparece em nenhum momento. O trabalho é parte constituinte da vida dos(as) jovens, e ser apenas estudante é privilégio de poucos(as), sendo uma opção que parece não fazer parte do seu universo de significações e de seu habitus de classe.

O discurso de recusa a ter um papel ou lugar social único, tendo a recusa um caráter de ato consciente e deliberado de reivindicação e tentativa de transformação, conforme apontaram Abramo e Branco (2005), não se apresentou desta forma na narrativa dos(as) participantes, que manifestaram mais uma naturalização da situação, como fato dado, ou seja, a vida é assim, não há dúvidas, nem questionamentos.

Na mesma linha de raciocínio, a ideia de que há um ressentimento do(a) jovem para com o mercado de trabalho, configurando verdadeiras patologias coletivas de frustração (MOISE, 2000), também não se faz presente, pois toda argumentação foi construída mais no sentido do que fazer no mundo que está dado, não no que fazer para mudar este mundo. O mundo é este e a tarefa posta a todos(as) é lutar para se adaptar e, quanto melhor a adaptação, mais chance de sucesso.

Quando perguntada sobre os requisitos necessários para conseguir um bom trabalho, Clara respondeu que: "A gente tem que saber o que tá fazendo para conseguir trabalho melhor". A luta não é para que existam mais empregos estáveis e trabalho decente, como colocou a OIT (2009), mas sim como conseguir estes empregos através do desenvolvimento de estratégias, entendidas como ações realizadas no presente que se tornem recursos para o futuro (RIBEIRO, 2009b). Clara segue dizendo: "Preciso saber aonde estão as oportunidades e lutar para ter sucesso".

O desencantamento preconizado por Moise (2000), no qual a pessoa tem a sensação de não ter lugar social e nem recursos para desempenhar papéis sociais, parece não ser uma questão consciente, apesar do que Wickert (2006) assinala, no tocante a uma certa ausência de chance de escolha, na qual este(a) jovem acaba por aceitar qualquer coisa no mundo do trabalho renunciando às suas vontades e sonhos, e, no limite, há uma espécie de renúncia de si mesmos(as), em nome do ideal de inserção no sistema, o que gera empobrecimento de relações e afastamento dos processos coletivos. Os discursos dos(as) participantes indicam a vivência desta impossibilidade de escolha, mas, ao contrário do que Moise (2000) e Wickert (2006) apontam, eles(as) conseguem se construir via trabalho e enxergam nele uma oportunidade única de construção de relações psicossociais e de uma vida social.

Valor e sentidos do trabalho para os(as) jovens

Segundo Castel (1999) e Guimarães (2004), o valor central do trabalho tem sido colocado em xeque na contemporaneidade, entretanto, quando os(as) participantes foram questionados(as) sobre o valor e os sentidos do trabalho, Ana, por exemplo, apontou que ele seria o espaço social no qual se estabelecem vínculos: "onde mais você iria conhecer tanta gente?", pois no espaço do trabalho "a gente faz bem para o ego".

Deve-se analisar, com cuidado, estes comentários, pois, como apontou Castel (2009), o valor atribuído ao trabalho pelos(as) jovens é marcado por complexidade e heterogeneidade, entretanto, parece que a possibilidade de construir relações e vínculos sociais é marcante. O trabalho seria a única forma de existir socialmente, ao lado da possibilidade de assumir papéis sociais maternos e paternos.

Rute, questionada sobre os sentidos do trabalho, diz que o trabalho é "como um modo de vida, um modo de viver, sem trabalho não se consegue viver, a gente não teria casa, não teria luz, água, comida, e não teria amigos".

Esta frase mostra a dupla face do valor e do sentido do trabalho hoje em dia: como sentido principal, o trabalho é realizado para satisfazer as necessidades básicas de sobrevivência ("casa, luz, água, comida"), enquanto que, de forma secundária, o trabalho auxilia na possibilidade de ter vínculos sociais ("a gente não teria amigos"). Ana diz sobre os sentidos do trabalho que: "Só o fato de saber que você tem que levantar, que você tem um compromisso com outras pessoas, que você tem que estar lá, só isso já é o suficiente".

Apesar do trabalho não ser fruto de uma possibilidade de escolha (CASTEL, 2009; OIT, 2009; WICKERT, 2006) e o interesse aparecer como um luxo ou sonho distante na maior parte dos discursos dos(as) participantes, Artur, versando sobre os sentidos do trabalho, diz que: "bom trabalho é estar trabalhando independe do que for", o trabalho permite "fazer novas amizades e receber", além de gerar "independência e conhecer pessoas novas". A independência também tem um duplo significado: como independência financeira e como independência social, permitindo aos(às) jovens consumir (dentro de seus limites) e criar laços sociais mais autônomos, longe da família. Jorge segue dizendo sobre os sentidos do trabalho que: "Bom de trabalhar? Quem não gosta de ter no finalzinho do mês o seu dinheiro, né? Além do mais você conhece muita gente e tem uma vida social de verdade".

Castel (2009) e Guimarães (2004), bem como dados do IBASE (2007) e da OIT (2009), colocam as reivindicações de direitos como uma dimensão importante do trabalho, entretanto, os(as) participantes indicaram a dupla dimensão da independência (necessidade e vínculo social), mas não a reivindicação de direitos, como o mais importante, fazendo transparecer, novamente, uma naturalização da situação dada e a tentativa de extrair desta realidade o que ela teria de melhor. Poder-se-ia argumentar que, se estes(as) jovens vivem na vulnerabilidade social, a sobrevivência é mais premente do que a tentativa de mudança, localizando o presente como a temporalidade principal de suas vidas, no chamado tempo espacializado, que é um tempo da reprodução, não da transformação (ZARIFIAN, 2002).

(Falta de) Perspectivas de futuro

A luta por melhorias é marcada como uma projeção no futuro, ou seja, a luta de hoje seria a melhoria de amanhã. O discurso dos(as) jovens entrevistados(as) indica uma falta de reflexão acerca do futuro que, se à primeira vista poderia significar uma certa alienação, parece ser um dispêndio quase total de suas energias e forças no presente, como assinala Laís quando questionada sobre seus planos para o futuro: "temos que viver o momento, o presente, não há tempo de pensar o futuro". Maria diz que o desejo futuro se reduz à concretização do presente: "no momento, meu desejo é estar trabalhando" e os planos de futuro não ocupam as reflexões dos(as) jovens: "meus planos? Boa pergunta. Ah, não sei. São tantas coisas que vivo diariamente que passa branco, passa batido" (Maria) ou: "o negócio é ir levando a vida" (João) ou simplesmente: "ainda não sei" (Artur).

O futuro parece ser a reprodução do presente, no tempo espacializado descrito por Zarifian (2002), e os(as) jovens utilizam táticas, entendidas como ações realizadas no presente que não deixam história e só cumprem seu papel no imediatismo da situação (RIBEIRO, 2009b): esta parece ser a modalidade de ação dos(as) jovens entrevistados(as), que não daria chance para que a transformação do futuro, via reivindicação no presente, pudesse ter lugar, como na concepção de tempo-devir de Zarifian (2002), que seria a temporalidade que mobiliza a experiência passada para antecipar o porvir e se transforma em acontecimento, gerando recursos para o futuro.

Baseado nesta lógica, um desencantamento com o futuro, preconizado na literatura (CASTEL, 2009; MOISE, 2000), não aparece, pois há uma necessidade premente de cuidar do presente: a dimensão temporal estruturante destes(as) jovens é o presente, como também apontaram Paradiso (2009) e Diemer e Blustein (2007). O desencantamento se constitui num processo mais elaborado de significação da realidade e das possibilidades futuras. Os(as) participantes não parecem ter realizado esta elaboração simbólica e seguem, de forma prática, buscando alternativas de inserção e crescimento no mundo do trabalho, novamente numa naturalização da situação vivida. A falta de possibilidade de planejar projetos futuros, prende o(a) jovem ao presente e parece lhe impedir de lutar pelos direitos, o(a) fazendo concentrar suas lutas na batalha do dia a dia: a educação parece também entrar nesta lógica.

Valor e vínculos com a educação

A educação teria valor instrumental, como valor de troca, não valor de uso, José, ao ser questionado sobre a importância da educação para a inserção no mercado de trabalho, diz que o motivo para ir à escola: "é saber que um dia eu vou ter um emprego melhor. Se eu não for para a escola, eu, cada vez mais, vou ficando para trás das outras pessoas", apesar de que "o ensino médio hoje já não vale mais nada. Se você tem, você tem, você tem uma chance, se não tem, só sobra trabalho ruim para você".

A educação tem valor instrumental (diploma como passaporte para o mercado de trabalho, como valordetroca) e não valor formativo (valordeuso), sendo apontado como a principal contribuição da escola aprender a se relacionar com os outros, até porque, como foi dito por José, ter ensino médio não significa ter mais chances de trabalho.

Somado a isto está o fato de que a grande maioria dos(as) entrevistados(as) teve que conciliar trabalho e educação e "trabalhar e estudar juntos? Não dá futuro", fala Carla, mas que aparece como discurso de muitos outros entrevistados, como Jorge: "Quando eu estudava, eu estudava e trabalhava, então era aquela coisa, né? Ou você estudava mais ou trabalhava mais. E daí, não consegui nada, então atrapalhou?".

Guimarães (2004), OIT (2009) e Pochmann (2000, 2004) descreveram bem este ciclo: inserção precoce no mundo do trabalho, prejuízo à educação, poucas chances de uma ascensão sócio-ocupacional, reprodução de uma trajetória em ocupações desqualificadas e de baixa remuneração, semelhante aos pais, só que com um nível de escolaridade maior, o que parece não estar gerando um efeito concreto de melhoria de inserção no mundo do trabalho. Contrariando a teoria do capital humano, a elevação dos níveis de escolaridade num quadro de precarização do trabalho, acaba se mostrando insuficiente para potencializar sua geração. Aqui, novamente, não foi questionado pelos(as) participantes se esta situação poderia ser diferente, como se a educação existente para eles(as) fosse essa, não existindo a possibilidade de outra (também há uma naturalização da educação), apesar de ter sido perguntado a todos sobre a educação recebida e a quase totalidade dos(as) entrevistados(as) afirmou que tiveram uma formação ruim, e ninguém falou em mudanças educacionais.

Esta situação gera o ciclo descrito na literatura resultando numa certa conformidade com a situação e numa reprodução da carreira sem ascensão, como indica claramente Jorge ao ser questionado sobre sua concepção e potencialidades de carreira: "eu trabalhava das 8 da manhã às 10 da noite. Não dá prá fazer nada. Então, assim, aí você vai se acostumando, vai passando o tempo e se acomoda. Porque, se a pessoa estuda, ela só estuda, se ela trabalha, ela só trabalha, mas na vida a gente tem que trabalhar e estudar, não tem outro jeito". Se a escolaridade e a trajetória de trabalho não ajudam na construção da carreira, o que ajudaria?

Requisitos para o sucesso no trabalho e o surgimento da vulnerabilidade psicossocial

A maioria dos(as) jovens entrevistados(as) apontou que a escolaridade e a experiência seriam dois grandes fatores para a inserção no mundo do trabalho. Entretanto, acrescentaram, de forma enfática, um outro fator que não apareceu tão claramente na revisão de literatura: o que garantiria um bom trabalho, principalmente a permanência no trabalho, seriam características pessoais como dinamismo, simpatia, postura, saber conversar, respeito pelas pessoas e paciência. Bourdieu (2008) diria que estas características, como simpatia, concebidas como interpessoais, são parte do habitus de classe (estilo pessoal), mas que os sujeitos as veem como pessoais, pois crem na ideologia liberal de que nossas características têm relação apenas conosco e teriam pouca influência dos vínculos sociais estabelecidos a cada momento e que podem ser geradores de vulnerabilidade ou vantagem social.

Questionado sobre os requisitos necessários para conseguir um bom trabalho, Jorge fala que: "A pessoa tem que ter postura, diálogo, tem que saber conversar, sei lá tem que ter muita coisa" como "respeito pelos outros, educação com as pessoas" e "tem que ser dinâmico, simpático e não causar transtorno", como assinala Diego.

Há uma ordem de importância muito clara, como aponta Rute ao responder à mesma questão: "primeiro a simpatia e como segundo requisito o estudo" ou "tem que ser bem informado e ter simpatia, tem que ter também estudo", vindo primeiro as características interpessoais e depois a escolaridade e a experiência. A escola não seria tão importante, importante é o que você aprenderia na vida e na família, por isso o valor dado à oportunidade de fazer vínculos atribuída ao trabalho.

Aqui a discriminação pelo seu estilo de classe (habitus) aparece quando os(as) jovens dizem que o que vem de berço é fundamental e nem todos(as) tem, nem conseguem desenvolver e o mercado de trabalho exigiria, como diz Ana ao responder sobre os requisitos para conseguir um bom trabalho: "o mercado exige o que vem de berço, a maioria não tem berço, mas a gente tem que tentar se encaixar, fazer o quê?".

De novo, há um certo conformismo e a naturalização da desigualdade social que pode levar à vulnerabilidade ao aproximar este(a) jovem da perda simbólica da relação com a sociedade (individualismo negativo, CASTEL, 1999) e da desinstitucionalização (perda da ligação com os quadros objetivos da estrutura da vida social, BOURDIEU, 2008).

O mundo do trabalho seria organizado por um habitus de classe, diferente do habitus dos(as) jovens aqui pesquisados(as), que teriam que desenvolver características interpessoais e estilos pessoais oriundos de outro grupo sociocultural sob risco de serem excluídos do mundo do trabalho, o que, em parte, explicaria a grande importância do desenvolvimento de características interpessoais para o sucesso no trabalho, como diz Diego: "que se não tem, tem que desenvolver para se adaptar" ou Carla: "Tem que ter a experiência que eles querem, tem que ser do jeito que eles querem, é como se eu tivesse que aprender tudo de novo".

A constatação de Carla reflete bem o paradoxo vivenciado por estes(as) jovens e, somando-se ao não reconhecimento da escolaridade por eles(as) conquistada pelo mercado de trabalho, a situação vivenciada é uma situação de vulnerabilidade e, na presente pesquisa, ao contrário de outras (ABRAMO; BRANCO, 2005; GUIMARÃES, 2004; OIT, 2009), sem uma constatação da injustiça social e, consequente, luta por direitos e melhores condições de trabalho. Quando a reivindicação aparece, ela emerge na forma de sonho, sem sua potência transformadora e sem a mínima convicção de que possa acontecer concretamente, como versa Jorge ao falar sobre condições ideais de trabalho: "Horário para todo mundo tinha que ser, vamos sonhar, né? Sete horas no máximo. Quem não queria duas horas de almoço?"

 

Considerações finais

De forma sintética, pode-se resumir os principais achados da pesquisa apontando que o trabalho, do ponto de vista do grupo estudado, é, basicamente, vinculado às necessidades de sobrevivência e à possibilidade de fazer vínculos sociais; os principais requisitos apontados para o sucesso no trabalho estariam mais relacionados às características pessoais do que à formação educacional; os(as) participantes vivem o presente (tática), com grande dificuldade de projetar o futuro; tendem a reproduzir a trajetória ocupacional dos pais; a educação tem valor instrumental (diploma como passaporte para o mercado de trabalho); a escolha por um trabalho não obedece a critérios específicos e sim ao fato de ter que trabalhar (há muito medo do desemprego); e utilizam, como base, a rede de relacionamentos para a inserção no trabalho.

Conclui-se que o grupo de jovens estudado vive no trabalho desempenhado a possibilidade de estabelecer relacionamentos sociais com respeito e de crescer pessoalmente através destas relações (sentido subjetivo e social) que, associado ao ganho financeiro (sentido material), dariam sentido ao trabalho, o que indica às múltiplas dimensões de sentido que emergem da relação com o trabalho para além de uma visão hegemônica (CASTEL, 2009).

Ao contrário do que versaram Abramo e Branco (2005) e OIT (2009), a dimensão reivindicativa do trabalho não apareceu no presente estudo, só surgindo na forma de sonho, mas sem sua potência transformadora.

Os(as) jovens estudados(as) estabelecem uma posição de naturalização da situação sociolaboral, em termos da estruturação do mundo do trabalho, do processo educativo (tem valor instrumental, não formativo) e das possibilidades que têm no mundo, redundando num certo conformismo e numa impossibilidade de planejamento futuro, também explicado pela necessidade de atender às demandas do presente, no qual ficam aprisionados(as), sendo a tática sua principal modalidade de ação no mundo.

Além disso, validam, muitas vezes, discursos sociais com valores de realidade que não encontram uma concretização nas suas experiências de vida, como é o caso atual das garantias da escolarização para o sucesso no trabalho.

O sucesso no mundo do trabalho viria pela escolaridade e pela experiência, mas principalmente pelo desenvolvimento de características interpessoais, em geral, estruturadas por habitus de classe diferentes do habitus dos(as) participantes pesquisados(as), o que seria um grande dificultador para boa parte desses(as) jovens.

Diante disso tudo, a saída é se desenvolver continuamente e se adaptar constantemente, sendo suas carreiras, muitas vezes, uma reprodução ad infinitum de um modelo de relação com o mundo, que não gera ascensão nem crescimento, e pode resultar em vulnerabilidade, por isso pode-se dizer que os(as) jovens estudados(as) constroem suas carreiras entre a vulnerabilidade e a exclusão (CASTEL, 1995, 2009).

Finalizando, o trabalho, antes tomado como valor central para vida, não perdeu sua centralidade, como apontou parte da literatura (Gorz, 1987), mas parece ser mais uma demanda básica do que um valor central, corroborando Castel (2009) e Guimarães (2004).

Importante marcar que a presente pesquisa apresentou limites, pois, apesar de estabelecer um grupo de participantes equitativos em termos de sexo e respeitar esta dimensão, não fez uma análise de gênero; recrutou seus(suas) participantes em uma instituição de intermediação de mão de obra, o que pode ter gerado um viés interpretativo; e não teve entre eles(as) jovens com filhos, o que, provavelmente, alteraria os achados.

Julga-se, contudo, sua relevância no fato de que é mais um relato de pesquisa que reforça a necessidade de: maior investimento acadêmico, com mais pesquisas sobre a mesma temática; continuidade da revisão teórica sobre a questão das juventudes; e maior clareza na elaboração das políticas públicas acerca das demandas das juventudes.

 

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Submetido: 18/11/2010
Revisto: 28/04/2011
Aceito: 15/08/2011

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