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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.3 Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Uma caderneta que produz 'saúde´ e 'adolescentes´

 

The booklet that produces 'health´ and 'adolescents´

 

La Cartilla que produce 'salud´ y 'adolescentes´

 

 

Simone Maria HüningI; Valeska C. M. LuzII

IDocente. Curso de Psicologia e Mestrado em Psicologia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL).Maceió. Alagoas. Brasil
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Maceió. Alagoas. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é problematizar a Caderneta de Saúde do Adolescente, produzida pelo Ministério da Saúde. Nele discutimos alguns paradoxos entre a Caderneta e a política pública de saúde brasileira, a partir da análise de discurso foucaultiana. Organizamos nossa análise em quatro eixos de discussão: os conceitos de adolescência e juventude; a abordagem biologicista; a integralidade; a juventude e cidadania. Em seguida, colocamos a Caderneta em análise a partir do que propõe a Política Nacional de Promoção de Saúde. Finalizamos pontuando que a Caderneta não acompanha a concepção ampliada de saúde e o princípio da integralidade propostos pelo SUS, priorizando uma concepção de saúde que enfatiza a dimensão biológica. Percebemos também a ausência de referências a diferentes modos de ser jovem, assim como a produção de um discurso sobre saúde focado na prescrição, orientação e indicação de um modo ideal de vida saudável, pautado principalmente nos cuidados com o corpo.

Palavras-chave: Caderneta de Saúde do Adolescente; Política Pública de Saúde; Juventudes.


ABSTRACT

This work aims to problematize the Adolescent Health Booklet, produced by the Brazilian Ministry of Health. We discuss some paradoxes between the Booklet and the Brazilian public health policy, from a foucaultian discourse analysis perspective. Our analysis is organized in four discussion axis: the concepts of adolescence and youth; the biologicist approach; the integrality of health care; youth and citizenship. After that we analyze the Booklet in relationship with the National Health Promotion Policy. We conclude that the Booklet does not follow the expanded conception of health and the principle of integrality of health care, proposed by the Brazilian National Health System. It prioritizes a conception of health that emphasizes the biological dimension. We also observed the absence of references to different ways of being young, as well as the production of a discourse on health focused on prescription, orientation and indication of an ideal way of leading a healthy life, based mainly on body care.

Keywords: Adolescent Health Booklet; Public Health Policy; Youth.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo problematizar la Cartilla de Salud del Adolescente, producida por el Ministerio de Salud. Discutimos algunas paradojas entre la Cartilla y la política pública de salud a partir del análisis del discurso foucaultiana. Organizamos nuestro análisis en cuatro ejes: los conceptos de adolescencia y juventud; el abordaje biologicista; la integridad; la juventud y la ciudadanía. Seguidamente, analizamos la Cartilla a partir de lo que propone la Política Nacional de Promoción de Salud. Concluimos que la Cartilla no va acorde con la concepción amplia de salud y el principio de integridad propuestos por el Sistema Unico de Salud, priorizando una concepción de salud que enfatiza la dimensión biológica. Percibimos la ausencia de referencias a diferentes modos de ser joven, así como la producción de un discurso sobre la salud con enfoque en la prescripción, orientación e indicación de un modelo ideal de vida saludable, centrando los cuidados en el cuerpo.

Palabras-clave: Cartilla de salud del adolescente, Política pública de salud; Juventud.


 

 

Introdução

No Brasil, a saúde de jovens e adolescentes recebe atenção especial do Ministério da Saúde (MS) e engendra estratégias específicas de atenção e intervenção. Uma dessas estratégias é a Caderneta de Saúde do Adolescente, que será posta em análise neste trabalho. A Caderneta, apresentada em duas versões (Meninos e Meninas), pode ser encontrada no portal do MS na internet (http://www.saude.gov.br) em um link nomeado "Saúde para Você". Ao tomarmos a Caderneta como objeto de análise, temos como objetivo problematizar a estratégia do MS em sua relação com a política do Sistema Único de Saúde (SUS), discutindo como, a partir desse instrumento, se produzem e organizam as intervenções e práticas de cuidado à saúde da adolescência e juventude. Essa análise apontou alguns paradoxos entre a Caderneta e as políticas de saúde do SUS.

Organizamos essa problematização através de quatro eixos temáticos estabelecidos a partir da leitura da Caderneta: adolescência e juventude; abordagem biologicista; integralidade; juventude e cidadania. A discussão sobre adolescência e juventude pretende situar aspectos relativos a essas noções distintas. Elas perpassam tanto a Caderneta como os outros textos do MS relacionados a ela, implicando-se nos demais eixos. O segundo eixo, que discute a abordagem biologicista, foi definido pela ênfase que é dada ao corpo/biológico nas recomendações da Caderneta. O terceiro eixo, o da integralidade, é proposto a partir da relevância desse princípio para o SUS e da fragilidade com que o mesmo é expresso pela Caderneta. Por fim, o eixo juventude e cidadania parte da definição da Caderneta como "instrumento de cidadania dos adolescentes" (Ministério da Saúde, 2010a, s/p).

Seguindo a proposta da análise de discurso de Foucault (2001), evidenciamos a produção de objetos, verdades e subjetivações a partir dos jogos de poder que envolvem discursos sobre adolescência e saúde na Caderneta. Analisamos tais enunciados principalmente em sua relação com a rede de enunciados presentes nos documentos voltados à operacionalização do SUS, como a Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS). Entendemos que esses discursos, produzidos em jogos de poder/saber, engendram modos de ser, viver e cuidar de si, constituindo, portanto, as subjetividades tanto dos sujeitos alvos desses discursos (os adolescentes/jovens) como de seus cuidadores.

Tomamos a Caderneta como um dispositivo de constituição de modos (desejáveis) de ser, na medida em que a mesma constrói noções de adolescência, juventude e saúde através da demarcação de práticas ideais de atenção e cuidado, que devem ser problematizadas. Este estudo referencia-se especialmente no trabalho "Saúde Pública e Saúde Coletiva: investindo na criança para produção de cidadania", de Lara (2009), no qual a autora problematiza a Caderneta de Saúde da Criança como estratégia de governo (ver também Lara, Guareschi & Hüning, 2010a; Lara, Guareschi & Hüning, 2010b). Destacamos que a Caderneta de Saúde do Adolescente emerge do mesmo campo conceitual e institucional (MS, SUS) que a Caderneta de Saúde da Criança. Entretanto, possibilita outros desdobramentos, por expressar especificidades, principalmente no que se refere ao público para o qual é produzida.

A análise apresentada em seguida estrutura-se em relação aos quatro eixos mencionados, a partir dos quais optamos por, simultaneamente, apresentar e discutir a Caderneta. Após a discussão dos eixos, fazemos uma análise da Caderneta a partir do que é proposto pela Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS).

 

Sobre o uso dos termos adolescência e juventude e suas implicações

No ambiente virtual do MS, onde podemos acessar a Caderneta de Saúde do Adolescente, especificamente no segmento nomeado "Saúde do Jovem e Adolescente", há uma oscilação constante no uso dos termos jovem e adolescente. Acessando-se o link referente a um conjunto de aulas interativas, com o título "Conheça a saúde de adolescentes e jovens", encontramos a definição: "O Ministério da Saúde (MS) em consonância com a Organização Mundial de Saúde (OMS) circunscreve a adolescência à segunda década de vida (10 a 19 anos) e considera juventude o período dos 15 aos 24 anos de idade" (Ministério da Saúde, 2010a, s/p).

Essa demarcação expressa uma definição cronológica dessas categorias - que por um período se sobrepõem -e permite o entendimento de que as políticas de saúde são desenvolvidas com base nessa divisão etária, através da classificação entre sujeitos adolescentes e jovens. O documento oficial que faz vigorar a Caderneta de Saúde do Adolescente e estabelece os recursos financeiros para esse fim, a Portaria Ministerial de nº 3.147, define no artigo 1º:

A Caderneta de Saúde do Adolescente é um instrumento que visa apoiar a atenção à saúde da população juvenil, acompanhar o crescimento e desenvolvimento saudáveis e orientar na prevenção de doenças e agravos à saúde, além de facilitar as ações educativas que promovam o aprendizado e a consolidação de estilos de vida saudáveis (Portaria Ministerial nº 3.147, 2009, s/p).

Nessa portaria, a referência feita à "população juvenil" traz uma conotação generalista sobre os participantes do grupo para o qual a Caderneta é produzida. Não se percebe, nesse documento, pretensões em enfatizar a distinção entre adolescente e jovem, diferentemente do que se encontra em outros enunciados do portal do MS. No mesmo artigo, evidenciam-se as propostas da Caderneta, entre as quais ações educativas objetivando "promover o aprendizado e a consolidação de estilos de vida saudáveis" (Portaria Ministerial nº 3.147, 2009, s/p), destacando que o adolescente precisa ser educado a cuidar corretamente de si na busca por um modo saudável de vida. Apesar dessa referência genérica e da alternância no uso dos termos "adolescente" e "jovem" pelo MS, "adolescente" é o termo que ganha destaque no acervo do site do MS e na própria Caderneta. Não se percebe, para além da divisão etária apontada, uma problematização da utilização desses termos.

Desenvolver essa questão neste trabalho tem como objetivo refletir sobre as implicações que tais categorizações podem acarretar nos modos de se conceber e produzir a saúde de jovens e adolescentes, como o risco de uma vinculação à concepções únicas e hegemônicas da adolescência e da juventude. O que, por sua vez, relaciona-se ao alcance da política pública de saúde. Abramo e León (2005) discorreram sobre essas referências conceituais e contextualizaram o uso desses termos no Brasil. Afirmam que o termo "adolescência" indica um uso psicologizante da expressão, referenciando os processos púberes, emocionais e comportamentais que caracterizam essa fase da vida, marcada pelos rituais de mudanças. Já o termo "juventude" faz alusão à categoria social e é um balizador da geração no contexto histórico, representativo no espaço público, na sociedade. Entretanto, os autores destacam um aspecto importante mostrando que há uma interface no uso dos termos, pontuada historicamente dos anos 1980 em diante. Esses autores explicam a inserção do termo adolescência no debate público, no espaço da ação social e estatal, favorecendo a emergência de uma concepção social focada nessa fase como um momento que exige cuidado, proteção e defesa.

Por sua vez, a utilização do termo juventude, embora possa trazer vantagens no sentido do afastamento de uma perspectiva psicologizante, por si só não garante maior consideração à diversidade de modos de ser. Pais (1990) discutiu a teoria sociológica como uma proposta de estabelecer rupturas com as representações da juventude fundadas em opiniões usuais que significam os jovens como uma unidade social. Critica perspectivas que enfatizam as similitudes como um pré-requisito para definir de modo uniforme essa categoria, a qual é, muitas vezes, reduzida a critérios etários. Assim, preocupado em perceber e explorar as diferenças sociais que existem entre os jovens, Pais (1990) referiu-se à impossibilidade de englobar em uma geração, ou mesmo em um grupo, indivíduos que se identificam a si mesmos como pertencendo, por exemplo, a classes sociais, grupos ideológicos ou grupos profissionais diferentes.

A abordagem da adolescência como uma unidade uniforme e hegemônica destaca-se nos discursos sobre a saúde de adolescentes na Caderneta. Parte do que supostamente existe em comum entre os indivíduos da faixa etária que busca interpelar, até mesmo no que nela haveria de natural: "uma fase rica em descobertas e mudanças"; "Adolescência: uma bela etapa da vida! Por isso é preciso cuidar da saúde para que ela fique ainda melhor. Se você tem entre 10 e 19 anos de idade, está vivendo uma fase rica em descobertas e mudanças: a adolescência" (Ministério da Saúde, 2009a, p. 4).

Uma forma de romper essa redução foi sugerida por Pais (1990), ao propor o termo juventudes. Essas podem ser percebidas e estudadas como um conjunto social diversificado, identificado por diferentes culturas juvenis, em que as situações econômicas, as relações de poder, os interesses e oportunidades, dentre outros, também são considerados como atributos que as fazem diferir. Ao utilizar-se o termo juventudes, no plural, busca-se compreender a complexidade e heterogeneidade, como apontou Velho (2006), referindo-se ao estudo da juventude segundo a análise dos "multipertencimentos" (p. 193) de indivíduos e grupos característicos, entendendo-os através de valores e significados específicos que esses pertencimentos representam na vida dos jovens. Tal abordagem apresentaria maior consonância com a política do SUS, ao considerar diferentes sentidos para a juventude, diversos modos de ser jovem, de pensar e agir no contexto do cotidiano.

Entretanto, embora a utilização de um ou outro termo remeta a diferentes significações e implicações, isso por si só não garante a abertura para a multiplicidade de modos de vida e de formas de relação com si mesmo e com a saúde. Assim, entendendo como fundamental se considerar no trabalho em saúde a diversidade dessas culturas juvenis, apontamos para a importância de esses conceitos dialogarem com a proposta do SUS, trazendo uma coerência entre os sentidos por eles produzidos e as ações específicas para esse público. Sendo assim, é necessário percebermos as múltiplas expressões da juventude e as concepções de sujeito (jovem/adolescente) que se produzem por dispositivos como a Caderneta e considerar o contexto do cotidiano desses jovens ao se pensar as políticas públicas, "porque é cotidianamente, isto é, no curso de suas interações, que os jovens constroem formas sociais de compreensão e entendimento que se articulam com formas específicas de consciência, de pensamento, de percepção e ação" (Pais, 1990, p.164). Essa referência ao cotidiano demanda pensarmos em novas ferramentas para o trabalho em saúde, em práticas não institucionalizadas, mas possíveis de se efetivar nas ações desenvolvidas nos serviços através das chamadas redes e parcerias que o SUS concebe como ações intersetoriais.

 

Sobre a ênfase na abordagem biologicista

Do começo ao fim da Caderneta, são feitas alusões a um modo de vida saudável condicionado por orientações e prescrições pautadas, em sua maioria, no cuidado com o corpo: "Cuide bem dos pés, das unhas e dos cabelos" (Ministério da Saúde, 2009a, p. 10; Ministério da Saúde, 2009b, p.11); "Não ficar muitas horas em frente à TV ou computador" (Ministério da Saúde, 2009a, p. 11; Ministério da Saúde, 2009b, p.10); "Não pegue carona com quem consumiu bebida alcoólica" (Ministério da Saúde, 2009a, p.12; Ministério da Saúde, 2009b, p. 12); "Escolha sempre alimentos saudáveis nos lanches da escola e nos momentos de lazer" (Ministério da Saúde, 2009a, p.13; Ministério da Saúde, 2009b, p. 13); "Escovar bem os dentes todos os dias, após cada refeição e uma última vez antes de dormir" (Ministério da Saúde, 2009a, p.20; Ministério da Saúde, 2009b, p. 20); "Nunca esprema as espinhas para não deixar cicatrizes" (Ministério da Saúde, 2009a, p.32; Ministério da Saúde, 2009b, p. 32); "Conheça o funcionamento de seu próprio corpo. Isso permitirá que você cuide melhor de sua saúde e higiene" (Ministério da Saúde, 2009a, p.38).

Esses indicadores de cuidado estão presentes em todo o material analisado (nas imagens, nos recursos gráficos, como tabelas, calendários, fórmulas para cálculos, como por exemplo, o Índice de Massa Corpórea [IMC], esquemas etc.) e se caracterizam pelo discurso prescritivo e orientador a partir do qual a Caderneta é formulada. No item "Meu desenvolvimento" (Ministério da Saúde, 2009a, p. 15; Ministério da Saúde, 2009b, p. 15), existem tabelas para controle da "estatura (altura), peso, Índice de Massa Corporal (IMC), estágios de maturação sexual (Tanner) e pressão arterial" (Ministério da Saúde, 2009a, p. 15; Ministério da Saúde, 2009b, p. 15); em seguida, vê-se um gráfico que relaciona estatura e idade a partir do qual os adolescentes são classificados como apresentando uma estatura muito baixa, baixa ou adequada para a idade. Destacam-se os parâmetros biológicos naquilo que, na Caderneta, define o desenvolvimento. Ainda que se considere que referências biológicas sejam importantes, e até mesmo indispensável, para a avaliação da saúde e do desenvolvimento dos sujeitos, é preciso atentar para os efeitos desse modo de objetivação do corpo, da saúde e da adolescência 1. E, nesse sentido, identificamos duas problemáticas principais: por um lado, a hierarquização do fator biológico sobre os demais aspectos da constituição do sujeito e sua saúde. Por outro lado, o fato de se operar com uma norma biológica que estabelece um modelo absoluto, com claros intervalos de desvio da norma, considerada a partir da própria biologia (ou da estatística) e de modo isolado de outros fatores, tais como questões socioculturais. Os limites dessa redução foram apontados por Canguilhem (2009): "É a vida em si mesma, e não a apreciação médica, que faz do normal biológico um conceito de valor, e não um conceito de realidade estatística" (p.50). E prossegue: "Nenhum fato dito normal, por ter se tornado normal, pode usurpar o prestígio da norma da qual ele é a expressão, a partir do momento em que mudarem as condições dentro das quais ele tomou a norma como referência" (p. 56).

Percebe-se aí que, apesar das problematizações e proposições do campo da saúde coletiva (Nunes, 2006), vemos na Caderneta uma herança do modelo médico tradicional em diversas expressões da política pública em saúde brasileira. Destacamos aqui o poder de normalização e subjetivação que se vincula aos enunciados do campo científico, os quais chegam até a população alvo por meio dos especialistas em saúde. O processo de objetivação do corpo, da saúde e da adolescência relaciona-se diretamente a um modo de subjetivação que produz tanto os adolescentes saudáveis e cuidadores de si como os não saudáveis e/ou irresponsáveis em relação a sua saúde.

A referência a uma compreensão global do sujeito e da saúde aparece na Caderneta de forma muito tímida, vinculada à ideia de responsabilização dos sujeitos pelo cuidado que estes devem exercer sobre si. A estratégia aí é instruir o adolescente a tomar os corretos cuidados para obter saúde: "Para curtir a vida e desenvolver todas as suas capacidades, você vai precisar de muita saúde. Lembre-se, aprender a cuidar de seu próprio bem-estar físico, emocional, psicológico, espiritual e social é um dos desafios mais importantes para uma vida saudável" (Ministério da Saúde, 2009a, p.4; Ministério da Saúde, 2009b, p.4, grifo nosso). Embora se apresente ai uma concepção de bem-estar que ultrapassa o aspecto físico, as orientações sobre como colocar em prática esse cuidado voltam a ser pautadas, se não de forma exclusiva, prioritariamente no corpo, reduzindo a saúde a um objeto de apropriação do campo biomédico.

A Caderneta transforma-se em um manual de regras, instruções e modelos que prescrevem e ensinam o que é "ser um adolescente saudável". Segundo Traverso-Yépez (2001), mesmo esse modelo multidimensional do humano é frágil porque impulsiona o distanciamento das áreas de conhecimento, colocando-as numa relação de poder hierarquizada, que a proposta do SUS tenta desconstruir. Essa autora afirma que o modelo biopsicossocial "compartilha com o modelo biomédico a premissa positivista de procurar uma única realidade a ser desvelada através dos métodos da ciência natural" (p.52). Nessa perspectiva, segundo a autora, as faces psicológica e social aparecem mais como elementos superficiais no trabalho em saúde do que como uma prática autenticamente relevante. A Caderneta sugere que ao cuidar fisicamente de si nesse período de mudanças, o adolescente garantirá sua saúde. No entanto, na concepção que fundamenta o SUS "sofrimento e doença não se reduzem a uma evidência orgânica, natural, objetiva, mas estão intimamente relacionados com as características de cada contexto sociocultural" (Traverso-Yépez, 2001, p. 53). Como ferramenta de intervenção e efetivação das políticas do SUS, seria desejável que a Caderneta expressasse tal complexidade ao abordar o cuidado e a atenção em saúde.

Por fim, deparamo-nos na Caderneta com um espaço específico para o preenchimento de informações pessoais, nomeado de "Esse (a) sou eu" (Ministério da Saúde, 2009a, p.6; Ministério da Saúde, 2009b, p. 6), um questionário formulado para que o próprio adolescente responda. Aqui, sua singularidade é posta em pauta através das perguntas "o que mais gosto de fazer" e "qual meu esporte preferido". Essas são as únicas perguntas que escapam à esfera do biológico, pois, a partir da terceira pergunta, todas as outras se voltam para um campo de interesse médico-farmacológico, debruçando-se sobre questões estritamente orgânicas: tipo sanguíneo, alergias, medicações, hospitalizações.

Mais uma vez, a ênfase está na obtenção de informações úteis para identificar, diagnosticar, prescrever e compreender organicamente o funcionamento do sujeito. A Caderneta, inicialmente proposta como sendo do e para o adolescente - "feita para apoiar você nesse processo de autodescoberta" (Ministério da Saúde, 2009a, p.4; Ministério da Saúde, 2009b, p. 5), converte-se em um instrumento de registro e diagnóstico dos profissionais. Ao longo da Caderneta há mais orientações organizadas em torno da saúde sexual, saúde reprodutiva e saúde bucal. Após um conjunto de prescrições relacionadas a essas questões, encerra-se o ciclo informativo de cuidados com a seguinte recomendação: "Seguir essas orientações significa saúde" (Ministério da Saúde, 2009a, p.20; Ministério da Saúde, 2009b, p. 20). Essa afirmativa, junto ao conjunto de enunciados sobre o cuidado em saúde da Caderneta, é inquietante e leva-nos a pensar criticamente nos sentidos de saúde que a Caderneta produz. Se sua proposta é possibilitar ao adolescente descobrir-se e conhecer-se como sujeito e não apenas como organismo biológico, isso implicaria em uma não redução ao seu funcionamento orgânico. Ela deveria ser aberta para os diversos modos de viver essa adolescência e produzir uma vida saudável, descentralizando o cuidado com o corpo como o único fundamento da saúde. Nesse sentido, é pertinente refletir sobre a singularidade histórica da vida do sujeito, também integrada às questões de saúde.

 

Sobre a abordagem da integralidade

A discussão precedente, sobre a prevalência de uma abordagem biológica, já aponta para certa fragilidade do princípio da integralidade na Caderneta. Para seguirmos essa análise, destacaremos especificamente o que postula a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, 1990). O texto constitucional define a integralidade como um "conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema" (Lei nº 8.080,1990, s/p). Sendo assim, o princípio abrange todas as ações do SUS, fazendo também da Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens uma prática que precisa ser desenvolvida de forma integral.

De acordo com Bernardes, Pelliccioli e Guareschi (2010), a integralidade se insere no cuidado em saúde na medida em que o trabalho se constrói como vínculo e suporte social, proporcionando o desenvolvimento integral do humano. Nesse sentido, ele deve ter como base também a dimensão imaterial, em que há o deslocamento do foco da doença para o sujeito. Logo, está posta a dimensão de cuidado com o outro, de modo a se enfatizar justamente a possibilidade relacional e não apenas a técnica. Nesse sentido, o princípio da integralidade modifica a qualidade da atenção, em que se transfere o foco do "cuidado com o corpo" para o "cuidado com o outro", visibilizando não só a condição físico/orgânica do sujeito, mas um sujeito que possui atravessamentos de sua história de vida, do seu cotidiano, da cultura na qual está inserido e até mesmo das suas próprias impressões e concepções acerca de sua saúde.

Para Campos, Barros e Castro (2004), a integralidade se efetiva por meio da intersetorialidade, cujas ações não se restringem à soma de olhares sobre um objeto. O diálogo entre os setores envolvidos no trabalho em saúde é uma estratégia para operacionalizar a integralidade, pois se formam vínculos e tecem-se redes e parcerias, a fim de responder às necessidades da população, através da promoção, proteção e recuperação de agravos à saúde. Portanto, não só os setores devem estar envolvidos em sua efetivação, mas também os usuários dos serviços, através da participação e avaliação das ações implantadas.

O princípio da integralidade na Caderneta é expresso de modo frágil, apenas quando a saúde é citada (mas não discutida) como associada ao lazer, à cidadania, à vida social, às relações afetivas, à família, à escola, ao esporte: "Ter saúde também é estar na escola, alimentar-se bem, ter amigos, brincar, divertir-se, fazer alguma atividade física, enfim, ser feliz!" (Ministério da Saúde, 2009a, p.8; Ministério da Saúde, 2009b, p. 8). Desse modo, consideramos que o proposto pela Caderneta é insuficiente em relação a esse princípio, pois não promove a construção de uma atenção integral de forma conjunta com o adolescente, que contemple sua participação e autonomia na produção de modos de viver e cuidar da saúde.

 

Sobre juventude e cidadania: do status ao exercício

O último eixo de problematização que propomos refere-se à caracterização atribuída à Caderneta como "instrumento de cidadania dos adolescentes" (Ministério da Saúde, 2010, s/p). Essa proposta relaciona-se diretamente ao trabalho de Lara (2009), especialmente nas suas discussões sobre a "Caderneta da Criança (...) conferir a elas o título de cidadãs" (p. 55). Lara problematizou a Caderneta de Saúde da Criança como um documento de saúde que se propõe a ser um "passaporte de cidadania" (termo utilizado pelo MS), através de um modelo para ser uma "criança cidadã". Neste trabalho, discutiremos a formação do "adolescente cidadão".

Nas páginas da Caderneta de Saúde do Adolescente, encontra-se a referência à cidadania: "(...) não se esqueça de que você é o principal responsável pela sua saúde e esse é o primeiro passo para o exercício da sua cidadania" (Ministério da Saúde, 2009a, p.5; Ministério da Saúde, 2009b, p.5). Desse modo, o direito de ser cidadão é colocado para os adolescentes através da relação de responsabilidade que eles estabelecem com a sua saúde, fazendo do cuidado e da prevenção mediadores que articulam cidadania e saúde. Conforme apontou Lara (2009), as políticas de saúde do SUS produzem efeitos de verdade nas pessoas, que, nesse caso, estão atrelados às práticas descritas na Caderneta e à condição de cidadania obtida através do cumprimento dessas práticas: "o status de cidadania é posto como algo que se consegue mediante a filiação às práticas de saúde institucionalizadas nos serviços de saúde do SUS" (Lara, 2009, p.56). A adolescência concebida no SUS, assim como o adolescente cidadão, é construída, do mesmo modo, através da adesão às orientações postas na Caderneta.

Todavia, o que pretendemos discutir nesse eixo é a possibilidade de desenvolver a temática da cidadania através de uma abordagem ampliada e articulada à juventude, uma vez que essa articulação se dá por meio da construção histórica, conforme abordaram Abramo e León (2005). Os autores apontam que a juventude ganhou visibilidade inicialmente através dos movimentos sociais, relacionando a juventude a uma fase repleta de problemas vinculados à crise econômica e social, como o desemprego, a falta de oportunidades de inserção, a violência e a relação com a criminalidade. Os comportamentos de risco eram o foco da preocupação pública, pois a gravidez precoce, o uso abusivo de drogas, as doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, contribuíam para fazer dos jovens autores de um segmento social representativo nos problemas considerados graves. Porém, essa situação reconfigurou-se na medida em que os jovens passaram a expressar outras necessidades na sociedade, as quais não estavam, necessariamente, vinculadas à situação de vulnerabilidade. "Mudam os enfoques anteriores principalmente por superar a visão negativa sobre os jovens e gerar políticas centradas na noção de cidadania, abrindo a possibilidade da consideração dos jovens como sujeitos integrais, para os quais se fazem necessárias políticas articuladas intersetorialmente" (Abramo & León, 2005, p.22).

Os jovens passam a ser considerados como sujeitos de direito e a juventude passa a ser vista como uma categoria que ultrapassa seus problemas. A modificação se caracterizou, principalmente, no plano da cultura, da educação, do lazer, da vida comunitária, das demandas cotidianas. Desse modo, as camadas mais populares criaram espaços, promovendo sua participação através de grupos sociais, os quais esboçavam noções de desenvolvimento expressas na ideia do jovem como sujeito capaz de promover transformações construtivas (Abramo & León, 2005).

No que concerne à relação entre adolescência, saúde e cidadania, a Caderneta a constrói de modo reducionista, a partir da responsabilização pessoal e assujeitamento às suas prescrições biomédicas. Embora o direito à saúde, mediado pela informação e prevenção, seja parte das formas de ser cidadão, não significa que essa perspectiva seja a única possibilidade de seu exercício. Nesse sentido, é importante destacar a atuação intersetorial como um elemento constitutivo da produção de cidadania e saúde, uma vez que ela possibilita a criação de redes que considerem outras dimensões de cuidado, de saúde e de cidadania, como segurança, trabalho, esporte, educação, lazer e cultura.

No manual técnico desenvolvido pela Secretaria de Atenção à Saúde, intitulado "Saúde integral de adolescentes e jovens: orientações para a organização de serviços de saúde", encontramos ideias que subsidiam essa discussão da intersetorialidade como possibilidade de se promover o exercício da cidadania. Esse manual fornece "orientações básicas para nortear a implantação e/ou a implementação de ações e serviços de saúde que atendam os adolescentes e jovens de forma integral, resolutiva e participativa" (Ministério da Saúde, 2005, p.5). Nele existem princípios e diretrizes do atendimento aos adolescentes e jovens, que possibilitam organizar a atenção à saúde desse público, salientando que deve ser levada em consideração a "participação ativa dos adolescentes e jovens no planejamento, no desenvolvimento, na divulgação e na avaliação das ações" (Ministério da Saúde, 2005, p.7).

Esse documento data de um período anterior à elaboração e publicação da Caderneta de Saúde do Adolescente. Suas diretrizes são formuladas como um alicerce para o desenvolvimento de várias ações no âmbito da saúde de adolescentes e jovens, não sendo seu objetivo descrever regulamentações sobre um projeto específico do MS. Ao discorrer sobre as ações de participação juvenil, o documento referencia várias formas de desenvolver o trabalho com os jovens numa perspectiva cidadã. O fortalecimento da autonomia dos jovens é estrategicamente fomentado por essas ações de participação juvenil, mediado pela "participação criativa, construtiva e solidária" (Ministério da Saúde, 2005, p. 22). A lógica desse trabalho se constrói pela valorização das potencialidades desse público, pois elas serão facilitadoras para promover o desenvolvimento integral dos mesmos. A parceria da Unidade de Saúde com a comunidade, por exemplo, oportunizando a inserção dos jovens no planejamento, na execução e na avaliação das ações contribuiria decisivamente para sua eficácia e impacto social e, por sua vez, para o exercício da cidadania. O manual referencia ainda diversos modos de tornar autêntica a conotação de cidadania articulada com a saúde, como por exemplo:

(...) identificação e valorização das lideranças estudantis e juvenis da comunidade; mobilização para debates; (...) estabelecimento de parcerias com os grupos organizados de jovens que existem na comunidade; apoio na criação de canais para a sua expressão e reconhecimento, tais como atividades artísticas e culturais, rádio ou jornal comunitário, (...) grupos de voluntários, palanque da cidadania, olimpíadas desportivas ou intelectuais (Ministério da Saúde, 2005, p. 23).

Paradoxalmente, não vemos na Caderneta referências aos diversos modos de construir e exercer cidadania, na medida em que ela se focaliza na condução da informação, dizendo apenas "o que", "o porquê" e "como" devem ser tomados os cuidados da saúde. Nesse aspecto, questionamos a Caderneta e sua restrita referência à cidadania, pois existem outros vetores fundamentais para sua promoção, como vemos em outros documentos de referência do próprio MS, para serem trabalhadas na complexidade dos universos juvenis.

 

O que diz a Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS)

As políticas de saúde são as balizadoras das ações desempenhadas nos serviços de saúde do SUS. Dentre as várias políticas que operacionalizam esse sistema, escolhemos a PNPS para identificar a articulação existente entre as concepções postas nesse documento oficial e as ações propostas na Caderneta de Saúde do Adolescente. A ideia de "promoção de saúde" é bastante recorrente nos enunciados do portal do MS, assim como na Caderneta, e, por essa razão, consideramos fundamental discuti-la.

O MS define a Caderneta de Saúde do Adolescente como um método de "promoção à saúde do adolescente" (Ministério da Saúde, 2010, s/p). Partindo dessa afirmação, consideramos pertinente discutir suas diretrizes na construção de um modelo de atenção. Para isso, utilizaremos a 3ª edição da PNPS, elaborada pelas Secretarias de Vigilância e de Atenção à Saúde. Tal documento indica formas de trabalhar em saúde por meio da interação com outras políticas e tecnologias. Tem como pressuposto o diálogo e a articulação com outras estratégias, cujo objetivo é satisfazer as demandas de saúde da sociedade. Nesse sentido, a problematização da dualidade saúde-doença está no cerne dessa intervenção.

No SUS, a estratégia de promoção da saúde é retomada como uma possibilidade de enfocar os aspectos que determinam o processo saúde-adoecimento em nosso País - como, por exemplo: violência, desemprego, subemprego, falta de saneamento básico, habitação inadequada e/ou ausente, dificuldade de acesso à educação, fome, urbanização desordenada, qualidade do ar e da água ameaçada e deteriorada- e potencializam formas mais amplas de intervir em saúde (Ministério da Saúde, 2010b, p. 10). A promoção de saúde nessa definição da PNPS fundamenta-se em duas vias: enfocar os determinantes do processo de saúde-adoecimento e potencializar modelos ampliados de intervenção. Na primeira via, percebe-se que a existência desse processo permeia questões que antecedem o próprio adoecer e que se caracterizam justamente por determiná-lo. Articulado a isso, a segunda via propõe a quebra de um modelo reducionista dos cuidados em saúde:

A saúde é resultado dos modos de organização da produção, do trabalho e da sociedade em determinado contexto histórico e o aparato biomédico não consegue modificar os condicionantes nem determinantes mais amplos desse processo, operando um modelo de atenção e cuidados marcado, na maior parte das vezes, pela centralidade dos sintomas (Ministério da Saúde, 2010b, p. 9).

Essa política possibilita encaminhamentos que vão além das intervenções tradicionais, fomentando a concepção de uma saúde ampla que não se restringe às limitações institucionais dos serviços, como claramente aponta o documento:

Propõe-se, então, que as intervenções em saúde ampliem seu escopo, tomando como objeto os problemas e necessidades de saúde e seus determinantes e condicionantes de modo que a organização da atenção e do cuidado envolva, ao mesmo tempo, as ações e serviços que operem sobre os efeitos do adoecer e àqueles que visem o espaço para além dos muros das unidades de saúde e do sistema de saúde, incidindo sobre as condições de vida e favorecendo a ampliação de escolhas saudáveis por parte dos sujeitos e coletividades no território onde vivem e trabalham (Ministério da Saúde, 2010b, p. 11).

A PNPS é clara e direta em suas formulações quando articula a promoção de saúde à expansão das práticas dos serviços, salientando um movimento de conexão no qual as políticas públicas possam estimular a participação social nesse percurso de construção e implementação. Assim, explica:

A saúde, como produção social de determinação múltipla e complexa, exige a participação ativa de todos os sujeitos envolvidos em sua produção - usuários, movimento social, trabalhadores da saúde, gestores do setor sanitário e de outros setores -, na análise e na formulação de ações que visem à melhoria da qualidade de vida (Ministério da Saúde, 2010b, p. 12).

Assim, toda a concepção de promoção de saúde vai tecendo-se e tornando-se coerente na medida em que faz referência também às questões de cidadania, autonomia, participação, corresponsabilidade e cogestão. No mesmo documento, definem-se algumas diretrizes estratégicas de implementação de práticas no SUS, tais como:

Inclusão das ações de Promoção da Saúde na agenda de atividades da comunicação social do SUS: Apoio e fortalecimento de ações de Promoção da Saúde inovadoras utilizando diferentes linguagens culturais, tais como jogral, hip hop, teatro, canções, literatura de cordel e outras formas de manifestação (Ministério da Saúde, 2010b, p. 21).

Evidencia-se aqui o distanciamento entre a Caderneta e os fundamentos da PNPS, pois essas propostas vinculadas às culturas juvenis, ou mesmo outras ali não descritas, não são contempladas na Caderneta. A relevância dessa diretriz estratégica na promoção de saúde está em ampliar a gama de intervenções possíveis, que potencializariam tanto a inclusão dos jovens nas ações de saúde como as próprias ações. Na contramão da PNPS, vemos que a Caderneta prioriza prescrições em saúde ao invés da promoção de saúde, negligenciando produções subjetivas, culturais e sociais das juventudes.

 

Considerações finais

Após analisarmos a Caderneta de Saúde do Adolescente, e outros documentos do MS, podemos considerar que a saúde se apresenta na Caderneta de modo reduzido, não alcançando sua definição ampliada, conforme preconiza o SUS, uma vez que as questões relativas à cultura, ao lazer e à educação, por exemplo, não são exploradas. A Caderneta contrasta com o que é proposto pelo SUS quando, através de uma abordagem biologista e de procedimentos médico/biológicos, prescrições e orientações, direciona, de forma reducionista, a promoção e a prevenção de saúde. Entendemos que, relacionada aos processos de hierarquização e normalização a partir da biologia, e também dos procedimentos de categorização da psicologia, a Caderneta constitui e opera com uma ideia hegemônica de juventude que, por sua vez, restringe a possibilidade de se promover formas alternativas de vida e saúde que extrapolem modelos prescritivos de cura e normalização e insiram os sujeitos como coautores dos seus processos de saúde, conforme sugerem Campos e Campos (2006), ao defenderam os processos de construção compartilhada de autonomia dos sujeitos no cuidado à saúde.

A Caderneta de Saúde do Adolescente apresenta, de forma imperativa, modos a partir dos quais o adolescente deve se relacionar com sua saúde. Entretanto, sua abordagem quase restrita à recomendações é dissonante da proposta do SUS que preconiza a interlocução de saberes e a integralidade. Saberes que não se constroem de modo isolado ou descontextualizado, mas firmam-se por uma atuação ampliada, conforme define a PNPS, caracterizada por um trabalho intersetorial, pelo estabelecimento de redes para a efetivação de um trabalho em saúde pensado em sua complexidade. Nesse processo, seria fundamental a promoção da participação juvenil, recusando-se à condição passiva instituída, não apenas para jovens, mas para grande parte dos usuários dos serviços de saúde.

Tal proposição do trabalho em saúde ampliaria o comprometimento e a corresponsabilidade entre gestão, profissionais do serviço, usuários e todo o território no qual se inserem. Assim, a saúde, como direito e exercício de cidadania, seria oportunizada mediante esses processos de mudanças em que as ações não são meros integrantes do vasto sistema de saúde; pelo contrário, configuram-se por serem os elementos que definem e direcionam o funcionamento dos espaços de trabalho e, por isso, podem implicar na efetivação ou não da proposta política do SUS.

É nesse sentido que se estabelece a importância da consistência entre as políticas públicas e as propostas de atuação veiculadas nos materiais do MS como, por exemplo, na Caderneta aqui analisada, pois são esses instrumentos que acionam as concepções de saúde e as tornam indicadores operacionais de trabalho e produção de conhecimento. Por esse viés, vê-se a necessidade de perceber as articulações ou desarticulações existentes entre as políticas e estratégias de atuação do SUS, uma vez que sua construção possibilita uma abertura aos múltiplos modos de ser e de produzir sujeitos.

Todavia, é importante lembrarmos que essa possibilidade diferenciada de produção de saúde se efetiva diante da configuração de práticas plurais e é por isso que ressaltamos a importância de estarmos atentos aos cuidados em saúde desenvolvidos por uma lógica de austeridade e solidez, sobrepondo-se à flexibilidade e movimento que a concepção do SUS propõe. Logo, a PNPS se constitui apenas como uma das diretrizes de todo o conjunto de elementos responsáveis por fundamentar, indicar, construir e produzir saúde no Brasil. E por isso é oportuna, pois participa da construção e da implantação nos vários domínios da gestão do SUS, promovendo mudanças favoráveis nos modos de organização, planejamento, realização, análise e avaliação de trabalho no sistema público que produz saúde. Cabe, portanto, a avaliação não apenas do alcance e dos efeitos de ferramentas como a Caderneta de Saúde do Adolescente, mas uma cuidadosa revisão daquilo que ela institui e constitui ao, simultaneamente, consolidar-se como um instrumento do SUS e reiterar tantos paradoxos com a nossa política pública de saúde.

 

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Endereços para correspondência:
Simone Maria Hüning
simonehuning@yahoo.com.br
Valeska C. M. Luz
valeska.costa@hotmail.com

Submetido em: 08/10/2011
Revisto em: 22/12/2011
Aceito em: 22/12/2011

 

 

1 Utilizaremos os termos adolescência e adolescentes, pois esses são os utilizados pela Caderneta de Saúde do Adolescente.

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